Dossiê
Recepção: 02 Fevereiro 2023
Aprovação: 30 Março 2023
DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.920
RESUMO: Pode-se afirmar que o que consideramos como clássicos na Sociologia é consensual, ainda que esse consenso seja relativamente recente. De modo geral, remetemos a autores brancos, homens e europeus o papel de clássicos nas Ciências Sociais, ignorando o que fora produzido no mesmo período, ou ainda em período anterior, em outras partes do mundo. Nos últimos anos tem havido um movimento de reanálise da obra de Ibn Khaldun (1332-1406), pensador tunisiano que poderia ser apontado como predecessor da Sociologia moderna. Neste trabalho, busco realizar uma reflexão sobre as possibilidades de ampliação dos clássicos da Sociologia a partir da obra de Khaldun, apresentando brevemente alguns de seus conceitos centrais, assim como contextualizando sua recepção no Brasil.
Palavras-chave: Ibn Khaldun, sociologia Clássica, eurocentrismo.
ABSTRACT: It can be said that what we consider as classics in Sociology is consensual, even if this consensus is relatively recent. In general, we refer to white, male and European authors the role of classics in the Social Sciences, ignoring what was produced in the same period, or even in a previous period, in other parts of the world. In recent years, there has been a movement towards re-analysis of the work of Ibn Khaldun (1332-1406), a Tunisian thinker who could be seen as a predecessor of modern Sociology. In this work, I seek to reflect on the possibilities of expanding the classics of Sociology based on Khaldun's work, briefly presenting some of its central concepts, as well as contextualizing its reception in Brazil.
Keywords: Ibn Khaldun, classical Sociology, Eurocentrism.
Introdução
O ensino de Sociologia – especialmente quando estamos nos referindo ao ensino dessa disciplina para fins de formação especializada no Ensino Superior – tende a concentrar parte de seus esforços na história dessa ciência, ou ainda numa apresentação das teorias sociológicas, organizadas por correntes de pensamento e de forma relativamente cronológica. No bojo dessas práticas, podemos observar que o ensino de autores clássicos é relativamente consensual (Oliveira, 2015), ainda que não seja corriqueiro problematizar o quão recente é esse consenso, de modo que, normalmente, aceitamos que esses clássicos “sempre estiveram lá”, ao menos desde a fundação da Sociologia (Connell, 2007; 2019).
Como é bem conhecido pela literatura na área (Miceli, 1989; Trindade, 2018; Oliveira, 2021), ainda que no Brasil as primeiras experiências de ensino de Sociologia tenham se iniciado no século XIX, por meio de cátedras fundadas em escolas de ensino secundário1, foi a partir dos anos de 1930 que foram fundados os cursos superiores de Ciências Sociais2, que se tornaram centrais no processo de institucionalização da Sociologia nas universidades. Tais cursos passaram a articular paulatinamente a formação em nível superior nas áreas de Antropologia, Ciência Política e Sociologia, relegando predominantemente para a pós-graduação a formação disciplinar nessas áreas.
Com o advento da Reforma Universitária, em 1968, passaram a se organizar no Brasil os cursos de pós-graduação no modelo semelhante ao que conhecemos hoje, possibilitando a consolidação da agenda de pesquisa e de formação de profissionais na Sociologia brasileira (Barreira et al, 2018; Oliveira, 2021), de modo que temos hoje um dos mais destacados sistemas de pós-graduação da América Latina. De modo semelhante ao que se passou em vários outros países do Sul global, a sociologia ensinada no Brasil – seja na graduação ou na pós-graduação – concentra-se, sobretudo, no ensino de autores e teorias forjadas no eixo euro-americano, ainda que novos debates tenham ganhado mais visibilidade nas últimas décadas.
No presente trabalho busco trazer alguma contribuição para a ampliação do debate sobre o ensino de Sociologia a partir de uma perspectiva não eurocêntrica. Especificamente volto-me para o legado de Ibn Khaldun3 (1332-1406), pensador tunisiano que é considerado por muitos como um precursor da Sociologia4 (Baali, 1988; Alatas, 2006; Soyer e Gilbert, 2012; Abdullahi e Salawu, 2012). Busco, através desse caso particular, defender uma perspectiva ampliada dos clássicos da Sociologia, enfatizando ainda o processo de recepção desse autor no Brasil, e sua contribuição para o cânone das Ciências Sociais, dialogado principalmente com o próprio debate sobre a história da Sociologia, cujo campo tem se ampliado e autonomizado nos últimos anos (Maia, 2017).
Para além do eurocentrismo nas Ciências Sociais
A formação acadêmica canônica no campo das Ciências Sociais brasileiras está centrada essencialmente em autores euro-americanos, com algum espaço para autores brasileiros que normalmente figuram em disciplinas de “Pensamento Social Brasileiro”, ou em alguns tópicos especiais, porém, raramente nas disciplinas de teoria, ainda que esse seja um cenário em transformação. Analisando o ensino de teoria sociológica nos cursos de Ciências Sociais brasileiros, Oliveira (2015, p. 101) indica que “além de ser bastante acadêmica como um todo, e teórica nos semestres iniciais, a formação não é necessariamente plural ou atualizada”, considerando ainda que nos primeiros semestres os alunos são recorrentemente apresentados à sociologia clássica, representada essencialmente por Karl Marx (1818-1883), Émile Durkheim (1858-1917) e Max Weber (1864-1920), concentrando em um curto período de tempo uma diversidade significativa de autores contemporâneos, mas que não acompanha o próprio avanço da área, inclusive em termos geográficos, sendo a única unanimidade nesse caso a obra de Bourdieu (Oliveira, 2015).
Circunscrevendo-nos à Sociologia, é relevante mencionar que os chamados “clássicos” ocupam um lugar não apenas de destaque, como também quase “sagrado” no cânone das Ciências Sociais, compreendidos como autores fundamentais no processo formativo de qualquer sujeito iniciado neste campo do saber. Não à toa, são recorrentes os textos que buscam justificar não apenas a existência dos clássicos, como também sua atualidade e aplicabilidade (Souza, 2000; Romero, 2005; Matos, 2012; Martins, Guerra, 2013; Sell, 2014; Rodrigues, 2016; Weiss, Benthien, 2017).
Alexander (1999) desenvolve uma argumentação na qual tenta primeiro compreender por que não haveria clássicos nas ciências naturais, indicando que, no caso delas, as atenções se voltam para as dimensões empíricas e, em vez de clássicos, elas disporiam de modelos. Depois, busca argumentar, a partir de uma perspectiva pós-positivista, o porquê de as ciências sociais possuírem clássicos, o que se deveria ao fato de tais ciências exprimirem suas ambições sistemáticas nessas discussões históricas, sendo marcadas pelo acúmulo de paradigmas e não por sua superação.
Todavia, apesar da existência de um virtual consenso em torno dos clássicos da Sociologia, sobre quem são e sua relevância, é importante considerar que essa análise é profundamente anacrônica, uma vez que a restrição dos clássicos a essa tríade é uma invenção relativamente recente em nossa área. Talcott Parsons (1902-1979) publicou em 1937 o livro A estrutura da ação social (2010a, 2010b), considerado um dos mais relevantes livros da teoria sociológica americana da primeira metade do século XX. Nesta obra ele indica que Thomas Marshall (1893-1981), Durkheim, Weber e Vilfredo Pareto (1848-1923) eram os fundadores da tradição clássica na teoria social. A síntese que nós conhecemos, centrada em Marx, Weber e Durkheim, é relativamente recente e inclui entre seus autores ao menos um cuja obra antecede o próprio advento do conceito de Sociologia. Ademais, autores do “período clássico” possuíam outra interpretação sobre quem eram os autores clássicos da Sociologia, Giddings (1855-1931) considerava Adam Smith (1723-1790) como fundador da Sociologia, ao passo que Branford (1863-1930) indicava Condorcet (1743-1794) para esse papel (Connell, 1997).
Connell (2012) traz uma problematização interessante sobre o debate em torno da teoria social, indicando que o que denominamos de teoria social é aquilo que fora escrito por homens brancos, burgueses, europeus ou americanos que viveram entre o século XIX e XX. Para a autora,
Assim, uma divisão imperial do trabalho estrutura o processo social que fundamenta os textos que usualmente nomeamos como “teoria”. As formas de trabalho que constituem e direcionam o processo de produção de conhecimento estão concentradas principalmente nas instituições de elite do Norte global.
Na Austrália ou no Brasil, nós não citamos Foucault, Bourdieu, Giddens, Beck, Habermas etc. porque eles conhecem algo mais profundo e poderoso sobre nossas sociedades. Eles não sabem nada sobre nossas sociedades. Nós os citamos repetidas vezes porque suas ideias e abordagens tornaram-se os paradigmas mais importantes nas instituições de conhecimento da metrópole – e porque nossas instituições de conhecimento são estruturadas para receber instruções da metrópole.
(Connell, 2012, p. 10).Esse exercício de poder se move no presente e no passado, pois delimita o que podemos chamar de teoria social no presente (em oposição ao que temos denominado de teorias do Sul, estudos pós-coloniais, estudos subalternos etc.) e também se liga diretamente à forma como imaginamos os clássicos da teoria social, ou mais especificamente em nosso caso, teoria sociológica. Em outro trabalho, Connell (2019) destaca a origem global da Sociologia e o modo como ela foi se tornando mais restrita ao longo do tempo, pois, autores como Spencer, Ward, Engels, Letourneau, Tönnies, Durkheim, Sumner, Giddings, incorporavam em suas análises vastos dados provindos do mundo colonizado, de modo que a sociologia não se restringia à análise das sociedades industrializadas da Europa e Estados Unidos.
Interessa-nos destacar que a compreensão que temos de clássicos da Sociologia não é apenas recente – consolida-se entre as décadas de 1930 e 1960 – como também possui um forte elemento discricionário, guinado não necessariamente pelas qualidades intrínsecas dos textos produzidos por Marx, Weber e Durkheim, mas sim pelas relações de poder nas quais tais autores estão situados. O fato de serem homens brancos europeus não é mero acaso, mas sim condição necessária para terem sido alçados a esse status, para além da qualidade de suas obras.
Interessa-nos aqui um movimento cada vez mais recorrente nas Ciências Sociais que busca reivindicar uma revisão e ampliação dos cânones, reconhecendo-se a diversidade existente. Como bem nos pondera Castro (2022, p. 9-10),
sem dúvida, a institucionalização das ciências sociais seguiu as condições sociais e os privilégios mais gerais das sociedades patriarcais e europeias ou norte-americana no seio das quais se desenvolveu. Mas hoje podemos, e devemos, [perguntar?] onde estão, na tradição das ciências sociais, as mães fundadoras, ou as autoras e autores não ocidentais, ou não brancos?
É na esteira dessa discussão que a obra de Ibn Khaldun parece incontornável. Afinal, para autores como Fuadi Baali (1988), Khaldun não seria apenas um dos fundadores da Sociologia, mas o fundador dessa ciência. Entretanto, apesar disso, ele é um autor ainda pouco debatido na Sociologia brasileira.
Ibn Khaldun, um clássico da Sociologia e sua recepção no Brasil
Como indicado na seção anterior, muitos dos autores clássicos não consideravam que eles mesmos estavam entre os fundadores da Sociologia, porém, talvez o exemplo mais emblemático venha de Durkheim, que publicou em 1892 a obra Montesquieu e Rousseau: pioneiros da Sociologia. Notadamente Durkheim (2008) preocupou-se em definir a Ciência Social ao mesmo tempo que buscou compreender em que medida Montesquieu (1689-1755) e Rousseau (1712-1778) conseguiram efetivamente produzir uma Ciência Social, indicando suas contribuições e limites. Interessa-nos aqui perceber que Durkheim amplia o escopo temporal, mas não geográfico daqueles que seriam os pioneiros da Sociologia.
À luz das discussões que temos encontrado em período recente, cabe-nos indicar se efetivamente Khaldun seria um dos “pais”5 da moderna Sociologia, ressalvando-se o fato de ser necessário reconhecer o grau de arbitrariedade que está presente na delimitação de tal “paternidade”, cuja configuração canônica é ainda uma invenção recente (Connell, 2019) . Sua obra mais conhecida Muqaddimah – também conhecida no ocidente pelo nome de Prolegômenos – se propõe a ser uma introdução a seu Kitābu l-ʻibar (Livro das lições).
Seu trabalho mais destacado, Os Prolegômenos, foi traduzido apenas em 19586 para o português, contando com uma única impressão. Indica-se que a tradução foi realizada diretamente do árabe por José Khoury do Instituto Brasileiro de Filosofia e por Angelina Bierrenbach Khoury da Escola Normal Alexandre de Gusmão, contando ainda com uma introdução de Jamil Almansur Haddad. Nesse contexto é relevante destacar o papel da tradução realizada, pois se tratava de um dos primeiros esforços de traduzir o autor para o mundo ocidental. Como destaca Duarte (2007, p. 402-403),
Vale registrar que entre nós Ibn Khaldun foi traduzido de maneira integral e publicado entre os anos de 1958 e 1961. José Khoury, imigrante libanês, assumiu a difícil e hercúlea tarefa; concluiu os trabalhos no ano de 1956 e teve início a difícil procura de uma editora que aceitasse publicá-lo. Visitou editores brasileiros e argentinos sem sucesso e, no final, desfez-se de bens pessoais para que Ibn Khaldun fosse publicado numa versão integral em língua portuguesa. Àquela altura, havia apenas uma tradução francesa realizada e publicada por William Mac-Guckin de Slane entre 1862 e 1868 a partir de texto estabelecido na França em 1858, que, por sua vez divergia daquele que, em 1857, fora editado no Egito. A tradução de Khoury, esgotada há muito, foi vivamente saudada quando do seu lançamento, mas não teve leitores e pesquisadores que aceitassem o desafio, isto é, não iniciou-se ali uma tradição brasileira de estudos sobre Ibn Khaldun; hoje, esta tradução está esquecida, há mesmo uma desvalorização do trabalho de Khoury. No entanto, quando atentamos para a inexistência de edições críticas dignas deste nome e para as traduções integrais até àquela altura realizadas, percebemos melhor o trabalho de Khoury. A dificuldade terminológica, a abrangência semântica foram tratadas com rigor por este tradutor e deveriam, certamente, apesar das limitações desta tradução, aliás, drama comum a todas as disponíveis, fazer da sua obra peça presente na biblioteca de todo estudioso de Ibn Khaldun e do pensamento árabo-islâmico. Não bastasse tamanho empreendimento, Khoury seria ainda o tradutor de crônicas árabes escritas à época das Cruzadas. Como se vê, noutros dias, o estudo da Idade Média.
É importante ressaltar que nesse mesmo ano foi publicada a primeira versão integral do texto de Khaldun em inglês, o que foi realizado pelo historiador e linguista alemão Franz Rosenthal (1914-2003), mantendo o título em árabe Muqaddimah, sendo ainda considerada uma das melhores traduções do autor.
No primeiro volume, além da tradução e da apresentação constam ainda dois apêndices: “Planisfério de Idrissi e explicações de Ibn Khaldun sobre os diversos climas e suas divisões” e “Autobiografia de Ibn Khaldun”. A apresentação é intitulada de “Preâmbulo: apresentando Ibn Khaldun ao leitor”, que consta como um livreto em anexo, no qual há uma síntese de quem foi o autor. Notadamente esse tipo de material existe pois se reconhece que esse era um autor profundamente desconhecido do grande público. Haddad faz menção ao fato de que Khaldun, apesar de desconhecido no Brasil, era um autor bastante popular na comunidade árabe. Também há menção à rede que foi acionada para que esse projeto editorial se tornasse possível, incluindo aí o cônsul-geral do Líbano e, também, o da República Árabe Unida7.
Há poucas pistas sobre os processos de mediação cultural da obra de Khaldun no Brasil, todavia, é interessante notar que Haddad, apesar de pouco conhecido nas Ciências Sociais, tinha uma forte inserção no campo cultural, sendo um conhecido poeta e teatrólogo, além de tradutor. Em 1943 Haddad havia publicado um artigo no jornal Folha da Manhã sobre o poeta e pensador Omar Khayyam (1048-1131) e, no ano seguinte, realizou a tradução para o português de Rubaiyat, obra mais conhecida deste autor persa, tendo ainda realizado uma apresentação para esse trabalho. Desse modo, podemos perceber que Haddad, apesar de não ser versado sobre as Ciências Sociais, era um grande conhecedor do mundo árabe e de sua intelectualidade. A escolha de Haddad como apresentador de Khaldun para o público leitor apontava, assim, para a chave de leitura que estava sendo utilizada para interpretar a importância desse autor: ele era um clássico da cultura e do pensamento árabe.
Apesar de Khaldun ser um autor desconhecido do grande público, Haddad indica que no trabalho de V. de Miranda Reis já havia menção ao pensador tunisiano, indicando que ele teria uma visão sociológica “adiantadíssima”, não apenas em relação a seus contemporâneos como também em relação a Montesquieu e a Comte. Oras, o trabalho em questão é Ensaio de Synthese Sociológica (1935), que integra ainda a primeira geração de manuais de sociologia produzidos entre 1920 e 1940, ou seja, trata-se de uma obra publicada no Brasil quando o campo das Ciências Sociais ainda não estava constituído, e ainda não havia se consolidado o panteão de autores canônicos dessa área. Como bem demonstra Meucci (2011), a maior parte dos autores que publicaram manuais de Sociologia no Brasil entre 1920 e 1930 eram autodidatas, e se referiam principalmente a autores francófonos e anglófonos. Isso quer dizer que a referência de Miranda Reis à Khaldun ainda na década de 1930 era de fato uma exceção à regra.
Chama a atenção o fato de que na apresentação há um esforço de indicar que Khaldun seria um autor fundamental para os campos da História, da Filosofia e da Sociologia. Esse reconhecimento se dá em diálogo com a literatura estrangeira acessada por Haddad, principalmente a literatura francófona. São citadas as seguintes obras que lastreiam a apresentação de Khaldun: Les siècles obscurs du Maghreb: l'islamisation de l'Afrique du nord, Les Penseurs de L’Islam e Dictionnaire des Sciences Economiques, além do trabalho em italiano Storia della Lett. Araba.
Interessante perceber que apesar de já haver naquele momento um campo editorial especializado nas Ciências Sociais, que vinha se desenvolvendo principalmente a partir da década de 1930, os Prolegômenos não foram publicados por nenhuma dessas editoras, mas sim pela Editora Comercial Safady Limitada, que publicava livros de história e também livros vinculados à cultura árabe (especialmente libanesa) em seu sentido amplo, incluindo-se aí livros de culinária, por exemplo. Isso nos dá pistas de que a tradução e difusão da obra de Khaldun nesse contexto pode ter sido compreendida mais como uma contribuição à cultura árabe no Brasil que propriamente uma contribuição ao campo das Ciências Sociais.
Um dos fundadores dessa editora era o historiador de origem libanesa Jamil Salim Safady, autor de obras como Panorama da imigração Árabe e O café e o mascate, cujo irmão, Jorge Salim Safady, era fundador do Centro Cultural Árabe Brasileiro em São Paulo e defendeu uma tese de doutorado em história na Universidade de São Paulo (USP), em 1972, intitulada A imigração Árabe no Brasil: 1880-1971, sendo um dos trabalhos acadêmicos pioneiros sobre cultura árabe no Brasil. Jorge Safady foi um dos fundadores e secretário do Centro Brasileiro de Estudos Árabes, inaugurado em 1967, que contava com membros de prestígio como o cônsul-geral da República Árabe unida, cônsul-geral da República Árabe Síria e o cônsul-geral do Líbano, além de Helmi M. Nasr (1922-2019), que era professor de língua e cultura árabe na USP (Safady, 1967). Podemos observar com isso que os irmãos Safady que estavam por trás desse projeto editorial não eram leigos no campo acadêmico, porém, tampouco se dedicavam às Ciências Sociais no sentido estrito do termo – estavam mais preocupados com a formação no Brasil dos chamados Estudos Árabes, compreendidos como um campo interdisciplinar voltado para a compreensão da cultura árabe em seu sentido mais amplo, e a tradução e difusão de Khaldun para o português integrava esse projeto.
Pensando tanto o papel de Haddad quanto de Safady na cena cultural de seu tempo, assim como na própria comunidade árabe de São Paulo, é possível inferir que foi em meio a uma comunidade árabe elitizada que ocorreu de fato a circulação da obra de Khaldun, o que se deu de forma concomitante à produção de outras obras sobre o tema ou mesmo de traduções de outros autores clássicos do mundo árabe, como foi o caso da obra de Khayyam, que teve outras traduções em um período relativamente curto.
Em período posterior, podemos afirmar que essa entrada editorial da obra de Khaldun no mercado brasileiro em certa medida reforça seu maior reconhecimento na Filosofia e na História (Araújo, 2007; Moreira, 2013; Leme, 2019; Arruda, 2021), o que pode se relacionar ao fato de que o marco fundacional desses campos remetem a um período anterior à obra de Khaldun, ao passo que, na Sociologia, possui uma trajetória que demarca o século XIX como início dessa ciência, como o período no qual se situam os “clássicos”. O fato é que, apesar de ter havido a publicação de livros no Brasil sobre Khaldun, não ocorreu ainda uma retomada da publicação de seus trabalhos, mesmo sendo obras de livre acesso mas que dependem de um esforço de tradução.
Ainda no material de apresentação são trazidos dois artigos publicados em jornais sobre a publicação no Brasil da obra de Khaldun, o primeiro do próprio Jamil Haddad publicado no jornal “Folha da Manhã” em 10 de julho de 1958, e o segundo de autoria de Judas Isgorogota, publicado em 17 de janeiro de 1959 em “A Gazeta”. Neste último, Khaldun é chamado de “Pai da Sociologia” e “Precursor dos sociólogos como dos economistas”. Notadamente os jornais desempenhavam na década de 1950 um papel relevante na difusão de determinados debates das Ciências Sociais; no entanto, já havia revistas acadêmicas especializadas que publicavam resenhas sobre livros relevantes na área, de modo que, ao indicar nesse material que naquele momento havia apenas resenhas publicadas em jornais, podemos inferir que o livro de Khaldun passou longe do radar dos acadêmicos profissionais das Ciências Sociais brasileiras.
Dois anos após o primeiro volume ser traduzido para o português, Vivaldo W. F. Daglione8 publicou uma resenha desse material na Revista de História da USP (Daglione, 1960). A resenha é bastante descritiva, aproximando-se mais de um resumo desse trabalho, e o autor aparentemente desenvolvia um intenso trabalho de resenhista de livros para a Revista de História; entre 1959 e 1963, foram publicadas 13 resenhas neste periódico, sendo que nenhuma outra se volta para os estudos árabes. Em todo o caso, chamam a atenção suas palavras iniciais na resenha:
Ibn Khaldun, historiador e sociólogo do Islão no século XIV, autor bastante conhecido dos estudiosos daquele período histórico (1), é considerado, além de historiador e sociólogo, um precursor dos economistas da época contemporânea. Expôs suas ideias e conhecimentos na obra Os Prologômenos, ou A Filosofia Social, agora traduzida diretamente do árabe para o português, em três volumes, dos quais, o primeiro, que aqui resenhamos, já foi posto ao alcance do público.
(Daglione, 1960, p. 269).Observa-se, assim, que mesmo a parca difusão acadêmica que a obra teve naquele momento ocorreu à margem das Ciências Sociais – ao menos é o que nos indicam as pistas dadas pela sua tradução. Ao que tudo indica, os esforços em torno da tradução e difusão da obra de Khaldun vinculou-se mais a uma elite cultural da comunidade árabe no Brasil, que também estava se esforçando em consolidar os Estudos Árabes no país. Os agentes vinculados ao campo da Sociologia não estiveram à frente desse processo, tampouco encontramos indícios de que esse autor tenha sido incorporado nos cursos regulares de Sociologia nas graduações em Ciências Sociais. A consolidação dos clássicos da Sociologia no Brasil acompanhou o movimento mais geral que irradiou a partir do Norte global, excluindo inclusive autores que figuravam de forma recorrente nos manuais de Sociologia publicados entre os anos de 1920 e 1940, como Auguste Comte (1798-1857), Pierre-Guillaume-Frédéric Le Play (1806-1882), Saint Simon (1760-1825) etc.
Ibn Khaldun e sua contribuição como Clássico da Sociologia
Abdullahi e Salawu (2012) problematizam se Khaldun seria um sociólogo esquecido, indicando que, apesar de ter desenvolvido ideias para a análise da sociedade buscando seguir métodos científicos como fizeram os autores considerados clássicos da Sociologia, ele não aparece nos livros e nos cursos na área, ao menos no Ocidente.
Esse destaque “ao menos no Ocidente” é interessante, pois, pesquisando um pouco mais sobre o tema, descobri a Universidade Ibn Haldun – cujo nome é uma homenagem direta à Ibn Khaldun – fundada na década de 1990 em Istambul, Turquia9. Além da clara referência ao pensador tunisiano, chamou-me a atenção o currículo dos cursos de mestrado e doutorado em Sociologia desta universidade. Para o mestrado uma das disciplinas obrigatórias é a de Teoria Social I, cuja ementa é:
Este curso visa examinar uma ampla gama de teóricos sociais clássicos no mundo muçulmano e no Ocidente, de Farabi a Ibn Khaldun, a Marx e Weber. A principal tarefa é tornar as teorias sociais clássicas relevantes para a compreensão atual da sociedade humana. Em outras palavras, o objetivo principal do curso é ajudar os alunos a desenvolver uma maneira de olhar para questões passadas e contemporâneas “sociologicamente”. Ao fazê-lo, a teoria será discutida como uma ferramenta para organizar o conhecimento existente para gerar “novos conhecimentos”. Cada teórico será compreendido em seu próprio tempo para que contextos sociais e históricos específicos, que deram origem à sua teoria particular, possam ser completamente entendidos.10
Para o curso de mestrado, além dessa disciplina, também são obrigatórias as disciplinas de Teoria Social II; Seminário; Métodos de Pesquisa e Ética em Publicação e “Ibn Khaldun e os Problemas Contemporâneos”. No caso do doutorado são disciplinas obrigatórias: Seminários; Métodos de Pesquisa Avançados; Leituras Avançadas em Teorias Sociológicas Clássicas; Leituras Avançadas em Teorias Sociológicas Contemporâneas e Ibn Khaldun: Teoria, Métodos e Discussões Contemporâneas. Em que pese o fato de que em ambos os cursos há disciplinas específicas sobre Ibn Khaldun, destacando seu diálogo com o mundo contemporâneo, gostaria de destacar a ementa das Leituras Avançadas em Teorias Sociológicas Clássicas:
Este curso visa examinar as raízes da sociologia, partindo dos pensadores formados pelo mundo islâmico até o início do século XX. Nesse contexto, serão feitas leituras e análises aprofundadas sobre as teorias de pensadores como Al-Farabi, Ibn Khaldun, Ibn Sina, Ibn Rushd, Montesquieu, Alexis de Tocqueville, August Comte, Karl Marx, Emile Durkheim, Vilfredo Pareto, Max Weber, Ferdinand Tönnies, Franz Boas, Levi Strauss e Georg Simmel. Será sublinhado que estas teorias continuaram a influenciar o pensamento sociológico desde o início do século XX. Este curso visa direcionar os alunos para fazer exames críticos aprofundados e discussões sobre os conceitos e ideias desses pensadores, antropólogos e sociólogos. Uma abordagem comparativa será feita ao longo do curso.11
Essas ementas chamaram-me bastante a atenção, pois alargam a concepção ocidental de teoria sociológica clássica, iniciando pelo filósofo social turco Al-Farabi (872-950), passando por Khaldun e ainda pelos polímatas Ibn Sina (980-1937), persa, e Ibn Rushd (1126-1198), nascido no então califado de Córdoba. O destaque especial que Khaldun recebe entre os demais pensadores muçulmanos o situa não apenas como um autor clássico para esse grupo de intelectuais, como também da teoria sociológica clássica. Cabe ressaltar, em todo caso, que mesmo nesse contexto ainda predomina um perfil de autores clássicos mormente ocidental, branco e masculino e, no caso da teoria contemporânea, os autores não ocidentais desaparecem, o que pode nos apontar para os desafios existentes nas tentativas de alargamento do grupo de autores considerados canônicos.
Alatas (2006) busca destacar os desafios para reatualizar o debate sobre a obra de Khaldun, que passa, obviamente, por realocá-lo ao lado dos autores clássicos da Sociologia – algo que tem sido realizado principalmente por autores árabes – mas também pelo ensino, pela presença de Khaldun em currículos e manuais de Sociologia. Como ele nos afirma,
A maioria dos livros sobre teoria social clássica visa apresentar teóricos clássicos europeus, como Marx, Weber, Simmel e Durkheim, mas não são fiéis à definição de “clássico” que afirmam adotar. A implicação lógica da definição de “clássico” é a consideração séria de pensadores não europeus que foram contemporâneos dos europeus do século XIX e início do século XX que são abordados em livros de teoria.
A ausência de pensadores não europeus nos livros didáticos de teoria resulta em sua ausência também nos cursos de teoria. O Resource Book for Teaching Sociological Theory publicado pela Associação Americana de Sociologia é muito revelador a esse respeito. Ele contém uma série de descrições de cursos para a teoria sociológica. A gama de teóricos clássicos cujas obras são ensinadas são Montesquieu, Vico, Comte, Spencer, Marx, Weber, Durkheim, Simmel, Tönnies, Sombart, Mannheim, Pareto, Sumner, Ward, Small, Wollstonecraft e vários outros. Nenhum pensador não europeu está incluído e as pensadoras mulheres não estão de forma alguma bem representadas (Moodey, 1989). Embora Ibn Khaldun possa parecer uma exceção à regra porque muitos europeus “descobriram” e discutiram suas obras desde o século XIX, uma rápida revisão dessas discussões revelaria que ele é principalmente de interesse histórico. (Alatas, 2006, p. 790-791)12.
Nesse sentido, é interessante perceber que o exemplo que trago para o texto – de uma universidade que leciona Khaldun entre os autores clássicos da teoria sociológica – provém de uma universidade localizada entre a Europa e a Ásia. As disciplinas que se voltam especificamente para a atualidade da obra de Khaldun refletem, em grande medida, o impacto que este autor passou a ter sobre o pensamento árabe contemporâneo a partir do final do século XIX, a partir da chamada Nahda, ou Renascimento árabe. Desse modo, temos que a revisita à obra de Khaldun na intelectualidade árabe ocorre em período concomitante à emergência da Sociologia na Europa, que em poucas décadas passou a ser lecionada no Egito – já em 1913 (Ibrahim, 1997). Não é por acaso que a primeira edição impressa dos Prolegômenos ocorreu apenas em 1857, em Bulaq, cidade próxima ao Cairo (Araújo, 2007).
Recordo-me que, quando comecei a ler o Prolegômenos de Khaldun, uma das coisas que mais me chamou a atenção foi o fato de citar Aristóteles já no início do primeiro livro, visibilizando o fato de que ele era um conhecedor da filosofia ocidental (Khaldun, 1958). Khaldun em sua obra consegue dialogar com ambas as tradições, a ocidental e a oriental (do mundo muçulmano principalmente), evidenciando desse modo a ignorância dos pensadores ocidentais sobre o que é produzido no resto do mundo, tomando a parte pelo todo. O fato de Khaldun conhecer a filosofia ocidental, mas ser ignorado por ela nos traz elementos interessantes para refletirmos sobre como a geopolítica do conhecimento é assentada em um sistema de ignorância sistêmica (Ribeiro, 2011).
Ainda que não seja o foco deste trabalho, seria impossível nos voltarmos para a obra de Khaldun sem fazermos referência a alguns de seus conceitos fundamentais, exemplificando com eles a relevância do autor e por que ele deveria constar no rol de clássicos da Sociologia. Tal como alguns pensadores sociais europeus, Khaldun percebe que a sociedade é gerida por leis próprias, seria um ser histórico, de modo que sua análise seria distinta dos demais seres, e para tanto ele aciona principalmente os conceitos de al-’umraan e al-’asabiyya, tomando como fio condutor a análise da relação entre a civilização nômade e a civilização sedentária.
De forma bastante simplificada poderíamos dizer que al-’umran representa a “vida social”, que seria constitutiva da natureza humana. Segundo Khaldun (158, p. 108): “[...] os homens são obrigados a viver em sociedade, visto que, sem ela, não poderiam assegurar a própria existência, nem cumprir a vontade divina que os colocou no mundo para povoá-lo e serem detentores de Seus poderes. Eis o que constitui o ‘umran.”.
Por outro lado, al-’asabiyya era uma categoria preexistente em relação à obra de Khaldun, assumindo normalmente a ideia de “espírito de parentesco”; todavia, é em Os Prolegômenos que esse termo se populariza e passa a ganhar o sentido de “sentimento de grupo” ou ainda de “espírito de corpo”. Khaldun reconhece que as tribos do deserto tanto são ligadas pelo espírito de família quanto pelo espírito de clã (expressão adotada na tradução de 1958 no Brasil), o que se relaciona com a própria ideia de al-’umran, já que,
para se manter ali e viver, é preciso ter os meios de se guardar e defender. Quando se compreende isso, quando, para poder se estabelecer e sobreviver num deserto, qualquer tribo precisa de todo o seu espírito tribal, e de toda a sua união e força [...]. Para alcançar seu fim, devem empregar a força das armas, para vencer o espírito de oposição, que forma um dos caracteres da raça humana. Ora, para combater, precisa-se de partidários animados de “Assibia”, este espírito de grupo a que aludimos neste capítulo.
(Khaldun, 1958, p. 219-220).Soyer e Gilbert (2012) comparam o trabalho de Khaldun com os de Comte e Durkheim, destacando como Khaldun e Comte percebiam o desenvolvimento da sociedade a partir de diferentes ciclos/fases. Do mesmo modo, realizam um paralelo entre a ideia de consciência coletiva em Durkheim e de al-’assabiyya em Khaldun.
A noção de Durkheim de “solidariedade mecânica” e “solidariedade orgânica” refletia a noção de Khaldun de Asabiyah ou “coesão social”. A compreensão khalduniana da sociedade baseava-se na asabiyah, que é idêntica à noção de consciência coletiva de Durkheim (Baali, 1988), o fator chave para estabelecer a ordem social dentro das sociedades. Por consciência coletiva, Durkheim se refere à soma de sentimentos que são comuns às pessoas na sociedade; a consciência de grupo é fortalecida ao longo do tempo e une o grupo (Durkheim, 1984). Ernest Gellner observou em Muslim Society (1981) que “Ibn Khaldun, como Emile Durkheim, é principalmente um teórico da coesão social” (p. 86). Khaldun comparou as sociedades com os indivíduos quando afirmou que “as dinastias têm um tempo de vida natural como os indivíduos” (Muqaddimah, 1958, p. 343). Como Khaldun, Durkheim aplicou metáforas e analogias biológicas para descrever mudanças sociais. Ambos os estudiosos conceituaram a sociedade como um organismo social que evolui ou se desenvolve de simples e mecânico para complexo e orgânico (Durkheim, 1984).
(Soyer e Gilbert, 2012, p. 21)13.Para os fins deste artigo interessa-nos destacar como Khaldun já estava pensando, no século XIV, questões fundamentais para a sociologia contemporânea, que se encontram nos fundamentos teóricos dessa ciência. Reconhecer que Khaldun estava desbravando os fundamentos da vida social, partindo empiricamente não da Europa, mas do mundo árabe, é um passo fundamental para ampliarmos o reconhecimento sobre quem pode pensar o mundo social, indo para além do ocidente.
Considerações finais
Este trabalho foi motivado, em grande medida, pela ausência de bibliografia em português no campo da Sociologia sobre a obra de Khaldun, ainda que a tradução de seu trabalho mais conhecido tenha sido realizada já no final da década de 1950, fruto principalmente da ação de uma elite cultural da comunidade árabe brasileira. Paulatinamente observa-se um esforço por parte da comunidade acadêmica internacional de questionar o modelo de cânone que temos hoje na Sociologia – e, para tanto, a revisita à obra de Khaldun é fundamental. Esta, no entanto, não é uma tarefa fácil, pois mesmo no caso do Egito, talvez o país árabe mais proeminente no campo da Sociologia, Khaldun tem desaparecido gradualmente dos manuais de Sociologia ao menos desde dos anos de 1960 (Alatas, 2006), o que reforça o argumento de Connell (2019) de que os cânones da Sociologia tornaram-se paulatinamente mais restritos a um menor número de pensadores, em que pese o esforço que temos percebido recentemente (Castro, 2022).
A cultura canônica que temos hoje na Sociologia foi estabelecida a partir do processo de rotinização dessa ciência, principalmente a partir de manuais e do ensino. O trabalho de Meucci (2011) sobre os manuais de Sociologia brasileiros produzidos entre as décadas de 1920 e 1940 demonstra bem que os cânones mudam com o tempo, e que os autores considerados fundamentais para a Sociologia naquele momento não são os mesmos que consideramos hoje (ainda que alguns se repitam), esta análise empírica evidencia como essa é uma realidade mutável. De certo modo, poderíamos afirmar que sempre há algum grau de arbitrariedade ao indicarmos quais são os autores clássicos; o mesmo poderia ser afirmado também sobre a literatura que reivindica esse status para Khaldun.
É importante ainda considerar a seguinte questão: ao indicarmos que Khaldun não seria um sociólogo no sentido estrito – tendo em conta a concepção contemporânea –, pois ele não dialogaria com a experiência moderna burguesa capitalista que marca a emergência da Sociologia, isso pode nos levar a outro exercício interessante, o de buscarmos uma ampliação não apenas dos cânones desta ciência, como também de sua própria concepção. O que significa atrelar a Sociologia à modernidade, especialmente quando partimos de uma concepção de modernidade profundamente eurocêntrica? Ao encararmos essa questão, compreendemos que alargar o rol de autores clássicos é apenas uma pequena parte do desafio que nos é colocado.
O exercício de desprovincializar a Sociologia (Costa, 2006) demanda um alargamento da compreensão dos clássicos, o que necessariamente nos leva para além da Europa. Obviamente não podemos negar que em grande medida as tradições acadêmicas que proliferaram no ocidente incorporaram os cânones no modelo em que usualmente os conhecemos – Marx, Weber e Durkheim, não necessariamente nessa ordem e eventualmente acompanhados de mais alguns nomes – mas não podemos tomar a parte pelo todo, tampouco nos esquivar do debate crítico sobre a geopolítica acadêmica.
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Notas
Autor notes