RESUMO: Este artigo trata do momento circunscrito entre os primeiros debates sobre a abstração geométrica e a consolidação de movimentos construtivos no Uruguai, na Argentina e no Brasil entre as décadas de 1930 e 1950, explorando a diversidade de orientações teóricas que nortearam o desenvolvimento de distintos projetos abrigados sob essa denominação genérica. Daremos especial atenção às diferenças entre os grupos do concretismo latino-americano, observando a circulação de artistas e os diferentes projetos de modernidade que seus escritos ensejavam. O objetivo é dirimir a noção de que o concretismo brasileiro teve seu florescimento retardado pelo fato de que a atuação de Torres García, a partir de Montevidéu, demorou a repercutir no Brasil, ao contrário da Argentina. Nesse sentido, chamamos a atenção, por um lado, para o modo como o movimento Madí, pioneiro na consolidação da abstração geométrica a partir de Buenos Aires, e o Grupo Ruptura, de São Paulo, foram influenciados por alguns preceitos da Escola de Ulm; e, por outro lado, observamos a influência do Universalismo Constructivo de Joaquín Torres García, que introduziu uma noção particular de arte abstrata, carregada de simbolismo e sentido espiritual, que reverberou entre artistas brasileiros ambientados no Bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.
Palavras-chave: Torres García, Mario Pedrosa, arte abstrata.
ABSTRACT: This article deals with the circumscribed moment between the first debates on geometric abstraction and the consolidation of constructive movements in Uruguay, Argentina and Brazil between the 1930s and 1950s, exploring the diversity of theoretical orientations that guided the development of different projects enclosed within this generic name. We will pay special attention to the differences between the groups of Latin American concretism, observing the circulation of artists and the different projects of modernity that their writings gave rise to. The aim is to counteract the notion that Brazilian concretism had its flowering delayed by the fact that the work of Torres García, from Montevideo, took time to reverberate in Brazil, unlike Argentina. In this sense, we call attention, on the one hand, to the way in which the Madí movement, pioneer in the consolidation of geometric abstraction in Buenos Aires, and the Ruptura Group, in São Paulo, were influenced by some precepts of the School of Ulm; and, on the other hand, we observe the influence of the Constructive Universalism of Joaquín Torres García, who introduced a particular notion of abstract art, full of symbolism and spiritual meaning, which reverberated among Brazilian artists set in the Santa Teresa neighborhood, in Rio de Janeiro.
Keywords: Torres García, Mario Pedrosa, abstract art.
Dossiê
Arte abstrata na América do Sul: projetos de modernidade e circulação de ideias a partir de uma análise sociológica
Abstract Art in South America: projects of modernity and circulation of ideas from a sociological analysis
Recepção: 27 Junho 2022
Aprovação: 15 Fevereiro 2023
Movimentos construtivistas brasileiros vêm há algum tempo sendo objeto de análises sociológicas no país (Arruda, 2001; Sant’Anna, 2003; Villas Bôas, 2008; Formiga, 2014; Ribeiro, 2012; DiCarlo, 2019). Nesses estudos, o repertório forjado nas artes plásticas em meados do século XX tem sido objeto de interesse como parte dos projetos de modernidade que ordenaram o pensamento social do período, ao retomar os debates da época como parte de um segundo modernismo brasileiro. Esse artigo busca ampliar o escopo das pesquisas existentes, debruçando-se sobre as referências que observam os primeiros debates sobre a arte abstrata no Uruguai, na Argentina e no Brasil entre as décadas de 1930 e 1950.
O objetivo é apontar aspectos da forma como esses movimentos se deram na América do Sul e sinalizar as orientações diversas entre os diferentes grupos, ajudando a entender por que a atuação de Torres García a partir de Montevidéu, desde 1934, não repercutiu entre os concretistas brasileiros, tendo também curta duração entre os argentinos. Trata-se, portanto, de abordar o desenvolvimento da arte abstrata por uma perspectiva sociológica a partir da consolidação de círculos de atores sociais que se tornavam portadores de projetos distintos. Vista dessa forma, a formação de movimentos culturais ajuda a compreender a colaboração entre artistas brasileiros, argentinos e uruguaios como também as divergências que contribuíram para que agrupamentos artísticos se dissolvessem e dessem lugar a novos arranjos.
Entre os materiais utilizados destacam-se amplo levantamento documental e análise de catálogos de exposições do concretismo, ocorridas a partir do início de um movimento internacional estabelecido em diversas cidades do mundo. Esses catálogos foram acessados, em sua maioria, nos arquivos da Biblioteca do Museu de Arte Moderna de Buenos Aires; na Fundación Espigas, também localizada em Buenos Aires; além do arquivo digital do Museu de Belas Artes de Houston, Internacional Center for the Arts of the Americas (ICAA).
O artigo busca entender a forma como os círculos de artistas dos países apontados dialogaram e estabeleceram diferentes correntes artísticas que serviram de filtro para esses movimentos, fato que reverberou em linhas de arte abstrata distintas, inclusive com características antagônicas, como argumentaremos. Nesse sentido, trataremos de duas linhagens divergentes do Concretismo, que serão explicadas a partir das interlocuções que as viabilizaram. Por um lado, o concretismo do grupo Asociación Arte Concreto-Invéncion, formado em Buenos Aires sob a liderança de Tomas Maldonado, e o Grupo Ruptura, agremiado em torno de Waldemar Cordeiro, em São Paulo e no qual os atores se filiavam de forma mais contundente aos postulados da Bauhaus.
Na narrativa da História da Arte, a constituição da abstração geométrica é correntemente atribuída ao movimento suprematista instituído a partir de Malevitch e Naum Gabo em Moscou em meados da década de 1910, nos anos que antecederam a revolução russa (Rickey, 2002). Sua difusão global, a partir dos debates entre a arte não figurativa e realismo socialista, confunde-se com a própria história das Internacionais Comunistas e muitas vezes é associada às disputas entre Trotski e Stalin, amplamente discutida por Marcelo Mari (2006). Seus preceitos tiveram intensa repercussão das mais diversas formas. Na Holanda, foram recebidos por Mondrian e o De Stijl. Na Alemanha, a Bauhaus é correntemente vista como polo de difusão da abstração geométrica.
Na América Latina, por um lado, muitos autores argumentam que a defesa da geometria como forma privilegiada chegou aos artistas argentinos e brasileiros através dos contatos com Max Bill (García, 2011), designer e artista suíço que estabeleceu em Ulm, a partir de 1953, uma escola para dar continuidade aos ensinamentos da Bauhaus, desarticulada durante a II Guerra Mundial. Acreditando na arte como forma de transformação social, a escola de Ulm se somava aos esforços de reconstrução da Europa no imediato pós-Guerra (Sant’Anna, 2012). Essa corrente se caracterizou, de forma geral, como um movimento que procurou renovar a arte moderna pela estreita associação com as ciências duras, acentuando elementos racionais da geometria e teria sido recebida tanto pelos jovens artistas paulistanos, como por agentes institucionais que premiariam a obra de Max Bill na I Bienal de São Paulo em 1951 e receberiam suas ideias para a fundação da Escola Superior de Desenho Industrial no Rio de Janeiro, a partir de 1962.
Por outro lado, também na narrativa canônica, houve grupos que deram um sentido espiritual para a ideia de abstração – caso do Grupo Madí na Argentina, no qual se destacou, por sua atuação de liderança, Carmelo de Arden Quin; e, sobretudo do uruguaio Torres García, que difundiu suas ideias pela América Latina. Também nessas narrativas, Maria Helena Vieira da Silva e Árpád Szenes teriam papel central no momento em que viviam no Rio de Janeiro e estavam ligados aos artistas de Santa Teresa.
Essa corrente teve a figura de Joaquín Torres García como uma importante referência. Nascido em Montevidéu, em 1874, filho de imigrante catalão, ele acompanhou a família para a Europa ainda jovem, em 1891. Torres García teve sua formação em pintura e um início de carreira intenso em Barcelona, onde viveu entre os anos de 1892 e 1919. A partir daquele ano o artista residiu em vários países: Estados Unidos (Nova Iorque), de 1920 a 1922; Itália, 1922 a 1924; França, primeiro em Villefranche-sur-Mer, onde passou o ano de 1924 e parte de 1925, depois em Paris, atuando de forma contundente entre os círculos de artistas abstratos da cidade até 1932, quando voltou para a Espanha, dessa vez para Madrid, onde passou o ano de 1933. Em 1934, prestes a completar 60 anos de idade, e 43 anos após ter deixado sua cidade natal, Torres García voltou para Montevidéu, onde viveria até o fim da vida, em 1949.
Torres García dedicou o período em que viveu pela segunda vez em Montevidéu à divulgação de sua teoria da arte, o Universalismo Constructivo, que reverberou entre argentinos e, através deles, chegaria também ao grupo de artistas sediado no Rio de Janeiro e representante de um certo modernismo católico (Araújo, 2022). Frequentado por Murilo Mendes, Cecília Meirelles e outros intelectuais, o grupo havia recebido Árpád Szenes e Vieira da Silva, artistas recém-emigrados da Europa e através de quem travariam contato com Torres García. Ainda que também defendesse uma abstração construtiva, a concepção de arte abstrata de Torres García não descartou totalmente a figuração e recorria a uma geometria orgânica, que abria mão da precisão dada pela régua e o compasso, revelando uma concepção espiritual da arte. Nada mais distante, portanto, do que o modelo legado pela tradição do construtivismo russo, que seria repercutido na Bauhaus, onde arte e ciência se aproximavam em prol de objetivos práticos.
Esse é a apresentação, em linhas gerais, dos contornos de duas linhagens da arte abstrata na América do Sul. A partir dessa noção abrangente procuraremos contribuir com as explicações sobre a consolidação do concretismo na Argentina e no Brasil, chamando atenção para as divergências entre os artistas, dadas pelas distintas formas como manejaram as ambiguidades teóricas do modernismo para levar a cabo uma renovação no campo da arte moderna. Este artigo argumenta, portanto, que a abstração geométrica estava encarnada em projetos compartilhados por atores sociais concretos que se inscreviam em círculos de sociabilidade e se aproximavam e afastavam por consensos e contendas, reinterpretando e reformulando seus conceitos a partir dos mais diversos pontos de vista.
No Brasil, houve quem levantasse a hipótese de que os movimentos de arte abstrata tardaram a penetrar o circuito artístico nacional devido à baixa ressonância da atuação de Torres García no país. Otília Arantes, por exemplo, cita nomes importantes da arte moderna brasileira que não aderiram à arte abstrata nas décadas de 1930 e 1940 e aponta a postura de nomes de peso no campo da arte como explicativas do silenciamento da abstração na primeira metade do século XX. Além do crítico paulista Sérgio Milliet, reticente em relação à arte pós-cubista, também Mário de Andrade acusava a arte abstrata de “intelectualista”, “contorcionista” e “egoísta” (Arantes, 2004, p. 61). Ao mesmo momento, a socióloga lembra como Argentina e Uruguai se adiantaram no debate sobre a arte abstrata: “enquanto isso, nossos vizinhos da Argentina e do Uruguai (onde há de ter pesado mais a influência de Torres García, desde 1934 de volta a Montevidéu), estavam mais bem ‘sintonizados’ com a arte mundial mais recente” (Arantes, 2004, p. 61, destaque nosso).
No entanto, ao ler a obra teórica fundamental de Torres García, intitulada Universalismo Constructivo: contribuición a la unificación del arte y la cultura de América, constituído por uma seleção de conferências dadas pelo artista entre os anos de 1934 e 1942, foi ficando muito evidente que a concepção de arte abstrata expressa pelo Universalismo Constructivo era diferente daquela cultivada pelos concretistas. Para reduzir ao essencial esse debate, os concretistas argentinos filiavam-se, em grande medida, aos postulados da Bauhaus. O bem fundamentado trabalho de María Amalia García (2011) é certeiro a esse respeito, ao analisar a Asociación Arte Concreto-Invención através da interlocução com o artista suíço Max Bill. Os artistas abstratos que levaram o movimento consagrado como Concretismo – que ganhou espaço na América do Sul já em um momento posterior à volta de Torres García para Montevidéu e, de forma contraditória, com a sua contribuição – foram fortemente influenciados pela tradição alemã, em específico, da Escola de Ulm,
No fue el marco del expresionismo abstracto norteamericano sino la abstracción geométrica recuperada en función de la línea europea – Bauhaus, Art Concret y Abstraction Création – la que primó en ambos países [Argentina e Brasil], en lo que estas formas abstractas fueron sostenidas por las instituciones artísticas, disputándoles a otras imágenes su capacidad de representación nacional
(García, 2011, p. 87).Maria Amalia García (2011) privilegia, em sua leitura, a interlocução dos artistas sul-americanos com Max Bill, especificamente com Tomás Maldonado, a partir de uma viagem à Europa em 1948. O roteiro de Maldonado incluiu, além de estadia em solo italiano, passagem por Paris e Zurich, onde se encontrou com Max Bill (2011). A partir dessa viagem, Maldonado e Bill estabeleceram uma intensa troca de correspondências que serviria especialmente aos propósitos do suíço de penetrar o circuito de arte na América do Sul.
O Universalismo Constructivo de Torres García, por outro lado, não compartilhava da mesma percepção de arte abstrata. Sua proposta levava a um tensionamento singular, ao contrariar o princípio geométrico que caracterizou as linhas que recolheram as influências da Bauhaus, associando o abstrato ao plano espiritual.
Qué podrá darnos ese tipo de hombre galvanizado, frío, escéptico, que todo lo niega; y qué, el apasionado místico, el hombre de fe que siempre afirma. Porque estas dos posiciones esenciales abarcan y catalogan todas las otras secundarias en interminable serie, ya que ponen frente al positivista el hombre de lo ideal y lo metafísico, al hombre de ciencia frente al sabio, al hombre religioso, en fin, al artista animista, frente al frío neoplasticista o brutalmente naturalista
(Torres García, 1984, p. 792).A partir da crítica ao materialismo, que na leitura de Torres García teria caracterizado a cultura ocidental a partir do Renascimento, a doutrina do artista uruguaio pregou um sentido estético profundo. “Lo moderno, ya todos sabemos lo que es, y que casi se reduce al maquinismo: invenciones mecánicas, objetos industriales, etc. Nada que toque al espíritu, nada, en suma, que toque sobre todo al individuo moral: al hombre, a él mismo. Todo es externo.” (Torres García, 1984, p. 535). Ao sugerir em seu projeto um retorno à estrutura e ao classicismo, conferindo um sentido religioso para seu fazer artístico, Torres García ia no sentido contrário ao que o concretismo argentino queria apontar, opondo-se também ao concretismo brasileiro, especialmente ao movimento paulista, que partilhavam da associação entre arte e ciência que caracterizou escolas de arte abstrata como a Bauhaus.
Torres García recuperou em seu projeto estético o humanismo cristão e ofereceu uma interpretação espiritualista para o que entende por abstrato, como defendeu Esther de Cáceres (1965), o que o diferenciava das correntes de arte abstrata de caráter geometrizante, identificadas com a ciência.
La relación entre lo real y lo ideal así establecida nos trajo a aprender, como clave de todas las artes, ese proceso de abstracción en su justo término, es decir allí en donde la palabra abstracción es fiel a su sentido y al proceso psicológico a que ella se refiere. Lejos de toda confusión en que se ha caído al denominar abstracta a toda pintura no figurativa, y al asociar a esto juicios de valor, cuando sabemos bien que ha pintura buena y pintura mala, sea representativa o no representativa
(Cáceres, 1965, p. XIV).Como é possível perceber na passagem colocada acima, as diferentes interpretações para o que se entendia naquele momento por arte abstrata sugerem projetos diferentes para o futuro do modernismo na América do Sul. A seguir, trataremos da formação do concretismo argentino e brasileiro, levando em conta seus antecedentes locais, na expectativa de fortalecer o argumento sobre a questão de que foram construídos a partir de diferentes interlocuções, relacionadas às trajetórias dos artistas que se empenharam em dar corpo a um movimento de renovação da arte moderna sul-americana.
O Grupo Ruptura foi criado em São Paulo no início da década de 1950 e é tido na história da arte como o primeiro movimento de abstração geométrica no Brasil (Amaral, 1977). Waldemar Cordeiro agremiava em seu entorno artistas que se reuniram para fundar um movimento construtivo brasileiro, dando início ao Grupo Ruptura, que publicaria seu manifesto em 1952 e faria sua primeira exposição no ano seguinte. Liderado por Waldemar Cordeiro, o Grupo Ruptura estabeleceria uma estreita relação com o movimento construtivo da Escola de Ulm (Sant’Anna, 2012) e apostaria nos ritmos geométricos e cálculos matemáticos para encontrar uma forma de arte que estivesse em compasso com os novos tempos.
No entanto, a arte abstrata brasileira tem uma história que precede o Grupo Ruptura e esses antecedentes ajudam a entender as artes abstratas como movimentos diversos, que incorporaram aos programas dos diferentes grupos teorias por vezes conflitantes. Citaremos alguns desses antecedentes, não com a intenção de fazer justiça a todos os nomes que contribuíram no processo, mas para defender o argumento levantado sobre as distintas orientações que traziam. Um dos pioneiros da abstração brasileira foi o pernambucano Vicente do Rego Monteiro, que tinha largo trânsito em Paris e atuou alinhado aos artistas vanguardistas radicados na cidade. Data da década de 1920 sua publicação, em Paris, de um livro sobre culturas amazônicas, ao mesmo tempo em que usava motivos da arte marajoara em suas composições, reconhecidamente abstratas (Dimitrov, 2015). No entanto, Rego Monteiro inviabilizou-se como referência, por escolhas ideológicas, para os artistas que consagrariam a arte abstrata no campo da arte moderna brasileira na década de 1950, ao filiar-se, a partir do final dos anos 30, ao integralismo. A posição de Rego Monteiro certamente contribuiu para que os artistas do concretismo não o recuperassem (Dimitrov, 2015).
Outro antecedente para a solidificação da arte abstrata no Brasil foram as três edições do Salão de Maio, realizadas entre os anos de 1936 e 1939, em São Paulo. As exposições realizadas no salão receberam obras de caráter abstrato, inclusive de tendência geométrica. A particularidade é que ficaram a cargo de artistas internacionais convidados, que não seriam incorporados aos modernistas brasileiros pela crítica, o que pode ter dificultado o reconhecimento do evento como precursor da arte abstrata brasileira, ainda que pudesse ser considerado como um dos eventos pioneiros da arte abstrata no país. Os estrangeiros, inclusive, foram apartados do movimento modernista nacional pela crítica, que fazia questão de demarcar a diferença entre artistas nacionais em relação às experimentações abstratas, como chama a atenção Renata Gomes Cardoso (2015) em suas discussões sobre a análise que o proeminente crítico de arte Sergio Milliet fez, naquele momento, sobre a participação dos artistas abstratos no salão de 1939, sintetizada na seguinte afirmação, que Renata Cardoso (2015, p. 141) atribui a Milliet: “o autor afirma que no III Salão de Maio, ao lado de obras excelentes, ‘se expunham algumas dezenas de telas ‘abstracionistas’”. A arte abstrata ainda foi adjetivada por Milliet como “estéril, esquemática e tristemente técnica”. Essa postura de Milliet é representativa de como os modernistas brasileiros foram resistentes à arte abstrata, especialmente aquela de tendência geométrica, racionalista, herdeira dos postulados da Bauhaus, mesmo depois de ter se tornado um fenômeno incontornável no campo da arte moderna internacional.
Glaucia Villas Bôas (2008), ao retomar a construção do concretismo a partir do Ateliê do Engenho de Dentro, contesta a narrativa mais tradicional, que reconhece a criação do concretismo brasileiro no eixo Rio de Janeiro/ São Paulo, normalmente contado a partir da I Bienal de São Paulo, em 1951, e do lançamento do manifesto do Grupo Ruptura no ano seguinte. Segundo Villas Bôas (2008), fundado em 1946, o Ateliê do Engenho de Dentro seria o primeiro espaço de conversão para a arte abstrata no Brasil. O ateliê foi criado no Centro Nacional Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, onde Almir Mavignier trabalhava. À época aluno de Árpád Szenes, artista húngaro ligado ao núcleo de Santa Teresa, Mavignier teria tido a ideia de criar um ateliê de pintura junto a Nise da Silveira, diretora do Setor de Terapêutica Ocupacional e Recreação do Hospital (Villas Bôas, 2008).
O Ateliê do Engenho de Dentro se configura como um espaço importante para a história do Concretismo no Brasil, especialmente por ter agregado aqueles que seriam os formadores da geração que levaria ao Grupo Frente. Além de Mavignier, participaram desse espaço também Ivan Serpa e Abraham Palatnik (Villas Bôas, 2008), sendo que Serpa viria a dar aulas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e de sua turma sairia a base de sociabilidade do Grupo Frente (Sant’Anna, 2003). A eles também se uniria ali a importante figura do crítico de arte Mario Pedrosa, que conheceu Mavignier numa exposição das obras produzidas no Ateliê do Engenho de Dentro realizada no prédio do Ministério da Educação e Cultura (MEC), no ano de 1947 (Villas Bôas, 2008).
A partir desse momento, Pedrosa acompanharia e se tornaria entusiasta da arte produzida por esse grupo. Dois anos mais tarde, Pedrosa e Léon Dégand, realizariam a curadoria da segunda exposição dos artistas do Engenho de Dentro, intitulada Nove artistas do Engenho de Dentro, que se deu em 1949, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (Villas Bôas, 2008), fato que mostra como o fazer artístico desse grupo repercutiu em um círculo ampliado da arte moderna brasileira, que levaria ao Concretismo.
A trajetória de Mario Pedrosa e sua relação com a arte moderna é anterior à entrada do debate da arte abstrata no Brasil, como coloca Otília Arantes, quem data sua conversão à arte abstrata a partir de 1944, por ocasião da exposição de Alexander Calder no Museu de Arte Moderna de Nova York (out. 1943 – jan. 1944), quando Pedrosa articula atualidade estética e arte social, a partir das obras expostas por Calder (Arantes, 2004, p. 15). Pedrosa seria uma figura chave, que circulava pelos distintos grupos que promoviam o debate em torno da renovação artística da arte moderna brasileira ainda na década de 1940. Ao primeiro núcleo formado por Pedrosa, Mavignier e Palatnik, se uniriam mais tarde os artistas do concretismo carioca. Identificados com as aulas de Ivan Serpa, eles se denominariam primeiro Grupo Frente (1953) e, mais tarde, visando acentuar a diferença com a frente concretista de São Paulo, Neoconcretismo (1959).
Importa ressaltar, para finalizar esta seção, que a arte abstrata chegou ao Brasil por dois caminhos distintos, que recolheram influências igualmente díspares para seus projetos. Por um lado, a partir de Árpád Szenes e Vieira da Silva, ligados aos artistas de Santa Teresa que mantiveram contato com a linha de pensamento de Torres García, como será tratado, e projetaram uma arte abstrata de caráter espiritualista que guardava afinidades com o projeto cultural da Igreja Católica; por outro lado, os paulistas do Grupo Ruptura, que recolheram as influências da Escola de Ulm e levaram a cabo uma linha de arte abstrata que emparelhava arte e ciência. A influência de Ulm também foi a principal inspiração para os concretistas argentinos. Portanto, trata-se de pensar a repercussão de duas linhagens da arte abstrata na América do Sul. Essas questões serão retomadas após a apresentação dos movimentos de arte abstrata na Argentina e no Uruguai.
A estética do Grupo Madí, como ficou conhecida a primeira formação de artistas abstratos na Argentina, teve seu arranjo em 1944, com a fundação da revista Arturo, Revista de Artes Abstractas, formada por Carmelo Arden Quin, Rhod Rothfuss, Gyula Kosice, Edgar Bayley, Tomás Maldonado, Lydi Prati e outros artistas que compunham um grupo formado por distintas nacionalidades, principalmente argentinos e uruguaios. A revista ainda contou com a ilustre colaboração de Joaquín Torres García. A publicação foi concebida sob o signo da vanguarda, como coloca Roitman (2000, p. 26): “Arden Quin, en el artículo de introducción llamado Manifiesto de Arturo propone un arte despojado de toda expresividad, de toda representación, de todo simbolismo y, aplicando el materialismo dialéctico, intenta una interpretación dinámica de la historia del arte.”
A partir do grupo formado em torno da revista Arturo, surgiram os grupos Arte Madí e Asociación Arte Concreto-Invención, em 1946, e Perceptismo, em 1947. A formação dos distintos grupos se deu pela fragmentação do contraditório núcleo aglutinado em torno da revista Arturo, decorrente de divergências plásticas e filosóficas (Lopez, 2000). Nesse processo de fragmentação, outros artistas são incorporados aos grupos, que ganharam contornos mais sólidos com relação às propostas plásticas e teóricas então defendidas.
No entanto, a entrada do debate sobre arte abstrata, que levaria à formação dos grupos apresentados acima se deu de forma intensa ainda na década de 1930, com o retorno da Europa para Argentina e Uruguai de artistas sul-americanos. Dentre os regressados, Joaquín Torres García que, depois de 43 anos na Europa, voltou para sua cidade natal, Montevidéu, em 1934, e se tornou o grande disseminador da arte abstrata na América do Sul. Na narrativa mais recorrente da História da Arte, as correntes abstratas penetraram a América do Sul por duas frentes de artistas – uruguaios e argentinos – que participavam dos círculos de arte construtiva nas metrópoles europeias desde os inícios desses movimentos. Assim o regresso desses artistas para seus países marcou o início dos debates sobre arte abstrata na América do Sul, e viria a formar a geração dos grupos tratados nesse trabalho.
Em território argentino, as primeiras manifestações da arte abstrata se deram com Emilio Pettoruti, com uma exposição em 1924, no Salão Witcomb 86 que, segundo Marcelo Pacheco (2002), “es el hito inicial de la modernidad y la vanguardia local”. Esse ato inicial se reforça na década de 1930, com duas exposições de pinturas e esculturas não figurativas, realizadas em Buenos Aires em 1933 e 1934 (Pacheco, 2002), mesmo momento do regresso de Torres García a Montevidéu, estabelecendo assim duas frentes de difusão da arte abstrata.
A esses nomes se somam outros artistas, como o da fotógrafa alemã Grete Stern, ex-aluna da Bauhaus, que se radicou em Buenos Aires em 1936 (Pacheco, 2002). Também a estadia em Buenos Aires de Lucio Fontana, argentino com formação italiana, que durante o ano de 1934 participou do grupo de artistas abstratos que se reuniam em torno da Galleria del Milione (Lauria, 2003). Lucio Fontana manteve contato com a nova geração de artistas abstratos, sendo o mediador para a exposição do grupo Asociación Arte Concreto-Invención ocorrida na casa da fotógrafa Grete Stern, em 1945 (DiMaggio, 2010).
Em 1936, Fontana e outros artistas abstratos, inclusive Juan Bay, que mais tarde participaria do Grupo Madí, lançaram uma exposição de desenhos e gravuras intitulada Primera exposicíon de dibujos y grabados abstractos, na Galeria Moody de Buenos Aires, que, como sugerido no título, não menciona antecedentes locais (Lauria, 2003), incluindo nomes como Juan Del Prete, Pablo Curatella Manes e Xul Solar (Pacheco, 2002).
O pintor argentino Juan Del Prete regressou da Europa em 1933 e realizou nesse mesmo ano a primeira exposição de caráter totalmente abstrato na Argentina, já que a citada exposição de Pettoruti, de 1924, dava-se mais pelos postulados do Cubismo e do Futurismo, com esporádicos desenhos abstratos (Santana, 1985). Em 1934, Del Prete realizou outra exposição de mesmo caráter (Pacheco, 2002). Chamamos a atenção para a durabilidade da participação de Del Prete no circuito de arte não figurativa argentina, como marca de sua importância. Ainda no ano de 1949, Del Prete expôs no Segundo Salão Argentino de Arte não Figurativa, na Galeria Van Riel, junto a artistas dos grupos que se formaram após a revista Arturo. Ali também expunham Arden Quin, Maldonado, Kosice, Rothfuss e outros.
Segundo Marcelo Pacheco, ainda na década de 1920 o assunto das “artes abstratas” ocupou lugar em revistas e publicações na Argentina (Pacheco, 2002). No entanto, é na década de 1930 que esse processo se intensifica, quando artistas com carreira consolidada regressaram da Europa. Del Prete teve sua experiência vanguardista como integrante da Abstración-Creación, em 1932 (Santana, 1985); Lucio Fontana tem duas estadias na Argentina, uma na década de 1930 e outra na década de 1940 (Lauria, 2003). Além disso, Grete Stern emigra para Londres em 1933, forçada ao exílio pela ameaça hitlerista, e em 1936 organiza uma exibição de seus trabalhos nas oficinas da Revista Sur, em Buenos Aires, instalando-se definitivamente na Argentina (Lauria, 2003). Grete Stern exerce particular influência no grupo Asociación Arte Concreto-Invención, pela difusão dos fundamentos da arte e desenhos de vanguarda, sobretudo os provenientes da Bauhaus (García, 2011).
A essa frente de difusão da arte abstrata que se dá na Argentina, soma-se a já citada volta de Torres García ao Uruguai, em 1934, onde se estabeleceu outro polo difusor da arte abstrata na América do Sul. Esses personagens trazem o debate sobre a arte abstrata para a Argentina e preparam o cenário artístico para o surgimento dos grupos que consolidaram o concretismo em 1944, com a publicação do único número da Revista Arturo, de onde saíram as lideranças para os grupos Arte Madí, Asociación Arte Concreto-Invención e Perceptismo (Pacheco, 2002), e marcam o período de consolidação de grupos de arte abstrata no campo da arte moderna argentina, uruguaia e, logo depois, brasileira.
A volta de Torres García a Montevidéu após carreira consolidada, tendo trabalhado com Mondrian, Klee, Kandinski, Van Doesburg e editado a revista Cercle et Carré, com Michel Seuphor (DiMaggio, 2010), marca um importante ponto na difusão da arte abstrata na América do Sul e consolida esse artista como referência contundente para a formação do Concretismo argentino, ainda que tenha atuado junto aos jovens artistas Madís por pouco tempo. Desde sua volta ao Uruguai, Torres García ministrou várias conferências acerca dos movimentos de arte construtiva, além de fundar a Escuela del Sur, instituição de ensino que junto com suas conferências influenciou uma geração de artistas (Corne, 2009), inclusive Arden Quin, como o próprio declara: “quando nós, em 1935, assistimos a primeira conferência de Torres García, tomamos conhecimento, pela primeira vez, do fenômeno da geometrização. Isto foi, autenticamente, uma revelação. [...] Após a conferência dele, passei, de um salto, para a abstração”. (Arden Quin apudCorne, 2009, p. 121). O contato com Torres García vai além da conferência assistida, como coloca o curador Nelson Di Maggio, ao descrever esse momento da carreira de Arden Quin.
Ya instalada la dictadura de Gabriel Terra [no Uruguai], Arden Quin pasó a residir en la casa de la hermana de su padre, Ana Morales Alves, en Montevideo. Mientras tanto, en 1935, Henry y Betty Kravetz-Brown, judíos polacos, lo invitaron a la sociedad Teosófica, con sede en el Palacio Díaz, impecable arquitectura art déco, para escuchar la conferencia de Joaquín Torres García. Quedó deslumbrado. Fue un encuentro fundamental, así como ver por primera vez reproducciones de Kandinsky, Mondrian, El Lissitzky y La Escuela de París. Días más tarde, impulsados por los mismos amigos, conocería al maestro del constructivismo
(DiMaggio, 2010, p.12).A obra de Torres García chegaria à discussão da criação dos movimentos de arte abstrata na Argentina, através de Arden Quin, que se instalou em Buenos Aires ainda em 1937, e com quem manteve contatos em Montevidéu (DiMaggio, 2010). Em Buenos Aires, Arden Quin viveu de diversas profissões. Além de atuar na militância da causa antifascista, assistiu a cursos universitários de Filosofia e Letras e estabeleceu contatos com outros artistas em ambientes de encontros e debates, como os cafés Rubí, La Fragata, Politeama, Moderno (DiMaggio, 2010). Ainda no fim da década de 1930, Arden Quin estabeleceu relações com os jovens artistas que levariam adiante o projeto da Revista Arturo.
En 1939, en ocasión de una exposición de Pettoruti en Montevideo, [Arden Quin] conoció a Carlos María Rothfuss Nogueira (luego Rhod Rothfuss) y en 1940 a Fernando Fallik (luego Gyula Kosice), marroquinero y poeta de dieciséis años. Su círculo de amistad se extendió a los poetas Godofredo Iommi y Edgar Bayley (hermano mayor de Tomás Maldonado), quienes lo acompañarían en sus charlas en el radio El Pueblo, mientras colaboraba en asuntos políticos en la publicación bimensual El Universitario, que había fundado. En 1943, con el círculo ampliado, se resolvió la creación del grupo Arturo, integrado y conducido por Arden Quin, por ser el más profesional y el mayor, y con la entusiasta participación de Kosice, Rothfuss, Edgar Bayley, Tomás Maldonado, Lydi Prati y Enio Iommi
(DiMaggio, 2010, p. 15).O grupo que publicou a revista Arturo não se sustentou por muito tempo. As desavenças ficaram explícitas no único número da revista, que assume caráter contraditório entre postulados teóricos e obras escolhidas para a composição. Textos e imagens não se conciliavam.
Contradictoria en su propósito, la tapa de talante gestual firmada por Maldonado y la abstracción de las reproducciones de Vieira da Silva desmentían los criterios geométricos audaces adoptados por Arden Quin, Kosice y Rothfuss en su artículo “El marco: un problema de la plástica actual”
(DiMaggio, 2010).Também Gyula Kosice, em entrevista a Biblina Escartin, falou dos conteúdos contraditórios da revista. Ao responder sobre a formação do grupo da revista Arturo, afirma: “[…] ya estábamos en Arturo una revista que reflejaba las contradicciones que teníamos como modernistas. Maldonado – que no figuraba en la redacción – hacia tapas que no representaban los postulados teoréticos que estaban dentro” (Kosice, 1987). Outro fator interessante para observar desencontros entre as obras selecionadas para integrar a revista e os textos que tentavam enquadrar o movimento que se iniciava é o fato de Arden Quin e Kosice, futuros líderes do movimento Madí, só terem poemas e ensaios na revista, não tendo publicado imagens de suas composições plásticas (García, 2011) – mais um elemento que corroborou para as contradições entre postulados teóricos e imagens apresentadas na revista.
Em uma cronologia feita por ocasião da exposição Arden Quin, em 1997, na Fundación Arte y Tecnología, em Madrid, a curadora L. Ishi-Kawa marca o ano de 1946 como o primeiro momento de formalização dos rearranjos do grupo que fundou a revista Arturo.
La escisión del grupo se formaliza y siguiendo a Tomás Maldonado, Edgar Bayley, su hermano, y Lidy Prati, su mujer, se desentienden de los otros miembros del grupo y fundan la Asociación Arte Concreto-Invención. El 3 de agosto Arden Quin, da a conocer Madí, leyendo el ‘Manifiesto Madí’ (CarMeloArDenQuIn) en presencia de Martín Blaszko, Esteban Eitler, Gyula Kosice, Ignacio Blaszko y Rhod Rothfuss
(Ishi-Kawa, 1997, p. 21-22).O grupo de Arte Madí passaria por mais uma fragmentação, marcada por desentendimentos entre Arden Quin e Kosice, que perpassam gerações e se mantêm até hoje. Na mesma cronologia, falando do ano de 1947, Ishi-Kawa afirmou que
en febrero Kosice saca el nº 0 de la Revista Madí, al parecer sin advertir de ello a Carmelo de Arden Quin, que llevaba tiempo trabajando en ella. En ese número se publica el borrador del manifiesto Madí de Arden Quin, sin mencionar el nombre del autor con el sólo título de Manifiesto de la escuela
(Ishi-Kawa, 1997, p. 22).Em 1948 Kosice passa a adotar o nome Madínemsor para seu grupo e Carmelo de Arden Quin vai para Paris, onde continua o projeto Madí Universal (Ishi-Kawa, 1997).
A partir desse momento o movimento iniciado pelos jovens artistas se torna conhecido pelas inovações trazidas para a plástica modernista, como também por disputas em torno de autorias que seguem indefinidas. A relação de Arden Quin com o grupo é muitas vezes esquecida ou diminuída, em função das figuras de Maldonado e Kosice que conseguiram consolidar mais efetivamente uma narrativa que os consagrou como fundadores do movimento na Argentina. Esse ponto ainda deve ser destacado por ser representativo do fato de que a linha do concretismo argentino que repercutiu de forma mais intensa foi aquela associada a Tomás Maldonado e, por consequência, alinhada ao legado da Bauhaus.
Um último aspecto a ser considerado nesse tópico é o caráter contraditório da participação de Torres García no lançamento da revista Arturo. Torres García efetivamente contribuiu com os preparativos, como também com textos e obras para a revista. No entanto, o alinhamento entre Torres García e os jovens concretistas não duraria muito, como nos mostram as polêmicas registradas nas revistas dos grupos dissidentes do núcleo da revista Arturo.
Em 1946, Tomás Maldonado, que liderou a Asociación Arte Concreto-Invención, escreveu no boletim de divulgação do grupo um artigo intitulado “Joaquín Torres García contra el Arte Moderno”. Seu texto teve como motivação responder a três artigos publicados na revista Removedor1 do Taller Torres García. Maldonado abre o texto dirigido a Torres García da seguinte maneira:
en estos últimos tiempos, los artistas no-figurativos de la Argentina hemos visto ampliado el número de nuestros enemigos. Al coro reaccionario se han sumado nuevas voces. Esta vez provienen del Uruguay y, en verdad, que no se destacan, ni por su estilo, ni por su contenido, de la de los grandes jerarcas de la reacción local
(Maldonado, 1946, s./p.).A partir daquele momento o núcleo de artistas abstratos argentinos que orbitou em torno de Tomás Maldonado rompeu de forma definitiva com os preceitos construtivos de Torres García, de caráter espiritualista, e se aproximou da linha legada pela Bauhaus, primeiro através da citada aproximação do grupo de Maldonado com Grete Stern e, a partir de 1948, pelo intenso contato de Maldonado com Max Bill. Arden Quin, por outro lado, manteria relação com Torres García e seguiria trabalhando com conceitos caros ao construtivismo do conterrâneo, como evidencia, a título de exemplo, um texto escrito em 1955, em que Arden Quin reforça a importância da ludicidade na obra de arte, como também assinala o uso da proporção áurea para agrupar materiais dentro da obra (Arden Quin, 1955). Esses dois elementos têm papel de destaque nos escritos e nas obras de Torres García.
Resgatamos essa contenda apenas como uma das evidências que provam o quanto a concepção de arte abstrata de Joaquín Torres García se diferenciava daquela defendida pelos concretistas, particularmente daqueles que acolheram as práticas da Bauhaus. Também vale chamar a atenção para o fato de que a ruptura do núcleo inicial de artistas abstratos argentinos, agrupados em torno da revista Arturo, se deu por divergências teóricas que estavam relacionadas às distintas correntes de arte abstrata que serviram de referência para os artistas sul-americanos.
Os intercâmbios estabelecidos previamente à revista Arturo chegariam também ao Brasil, quando Arden Quin e Edgar Bayley vieram ao Rio de Janeiro em busca de colaboradores para a revista e fizeram contato com o Grupo de Santa Teresa, por meio de Murilo Mendes e Vieira da Silva, que teriam publicações no único número da revista (Corne, 2009). Esse é mais um elemento que marcaria as contradições da revista Arturo. A viagem de Arden Quin e Bayley ao Rio de Janeiro também é lembrada por Di Maggio como parte da influência de Torres García sobre a preparação do projeto da revista Arturo.
En el verano de 1944 se publicó el primer y único número de la revista Arturo. Antes, y por consejo de Torres García, viajaron Arden Quin y Bayley a Río de Janeiro a buscar la colaboración del poeta Murilo Mendes. Tuvieron ocasión de conocer Maria Helena Vieira da Silva, exilada de las dictaduras europeas, quien envió fotos de su obra a Torres García
(DiMaggio, 2010, p. 15).Por infortúnio, a viagem em questão conta com poucos registros documentais. É possível, no entanto, depreender dessa viagem que os contatos estabelecidos com artistas brasileiros na década de 1940 não chegaram ao núcleo que levaria mais adiante os movimentos de arte concreta. Arden Quin e Bayley, ao fazer contato com Vieira da Silva e Murilo Mendes, se aproximaram mais do modernismo católico, que teve lugar no Brasil nas décadas de 1930 e 1940. Reconhecido como a segunda geração de modernistas brasileiros, nesse movimento se destacaram personalidades como Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Alberto da Veiga Guingnard.2 Não encontramos documentos que dessem mais informações sobre a viagem de Arden Quin e Bayley ao Rio de Janeiro em 1943. Sabe-se, no entanto, através dos Relatos de Viagem (1998) de Cecilia Meireles, que a poetisa brasileira – que tinha trânsito fluido entre os artistas de Santa Teresa e inclusive cultivou amizade duradoura com Vieira da Silva e Árpád Szenes, como documentado por Amanda Reis Tavares Pereira (2017) – também cultivou relações em Montevidéu, onde inclusive conheceu Torres García. Jacicarla da Silva (2009) colocou que,
[...] por meio de suas viagens, Cecília Meireles conhece [...] grandes nomes da cultura uruguaia, como Gastón Figueira, Clara Zum Felde, esposa do crítico uruguaio Alberto Zum Felde, os pintores Torres García, Figari, Arzadum, a família Vaz Ferreira, Esther de Cáceres, à qual a poetisa brasileira enviou muitos de seus livros
(Silva, 2009, p. 97).A circulação de Cecília Meireles em Montevidéu no início da década de 1940 corrobora a informação de DiMaggio (2010) de que a viagem pouco documentada de Arden Quin e Bayley ao Rio de Janeiro, quando chegam ao círculo de artistas católicos, teria se dado por indicação de Torres García. Nesse sentido, argumentamos que os esforços empenhados por Torres García para divulgar e consolidar seu projeto de arte construtiva chegou ao Brasil; não foi reconhecida, no entanto, por tomar como suposto que deveria dar-se entre os artistas que optaram pela arte abstrata.
Em 1946, Carlos Drummond de Andrade, ligado ao grupo de intelectuais católicos, publicou um texto intitulado “Invencionismo”, no jornal carioca Correio da Manhã, onde resolveu noticiar a estética concretista que se desenvolvia na Argentina. Nota-se que é a única menção ao movimento portenho localizada na imprensa da época. No entanto, fica marcada a incompatibilidade ideológica do autor com o projeto que noticiava. Drummond inicia seu texto observando a falta de atenção que os círculos intelectuais brasileiros davam ao invencionismo, aparentemente tratando o assunto de forma amistosa com relação aos argentinos e criticando a forma como o movimento foi invisibilizado no Brasil.
Mais uma demonstração de que contigüidade territorial nem sempre é fator de conhecimento mútuo, e que a distância intelectual não corresponde à distância física, esta da existência de um movimento estético que há quatro anos se desenvolve na Argentina e de que até agora não se aperceberam os meios intelectuais brasileiros
(Drummond, 1946).No entanto, Drummond segue seu texto fazendo duras críticas ao movimento que noticiava, ao fazer uma leitura do Concretismo argentino como movimento imitativo, como forma de devolver a crítica à arte moderna feita pelos fundadores da revista. A posição de Drummond está mais empenhada no propósito de distanciar essa corrente do que vinculá-la a cena artística brasileira. Após colocar o concretismo como uma continuação direta do legado teórico de Kandinsky, encerra o artigo trançando uma opinião dura com relação aos propósitos dos argentinos: “este, em linhas gerais, o ‘novo humanismo’ que nos vem do Prata, e que Bajarlía considera a primeira tendência de vanguarda oriunda da América Espanhola. Mas receio muito que não seja original, e nada tenha inventado” (Drummond, 1946).
A linha argumentativa de Drummond evidencia como o campo da arte moderna brasileira estava dividido. Ainda é relevante o fato de o poeta não mencionar a participação de Murilo Mendes e Vieira da Silva na revista Arturo. Júlio Castañon Guimarães (1996) organizou e publicou a intensa troca de correspondências entre Drummond e Murilo Mendes, que data desde a década de 1930 até o momento em que Mendes se muda para Roma, em 1957. Drummond estava consciente da participação de Murilo Mendes na revista Arturo, o que possibilita supor que escolheu posicionar-se contra a proposta da publicação e omitir a participação de Murilo Mendes, que atuava numa linha do modernismo compartilhada por ele.
É ainda digno de nota que, embora não faça referência à obra de Arden Quin no período, Mario Pedrosa publique, naquela mesma página do Correio da Manhã em que saiu o artigo de Drummond sobre o concretismo argentino, um texto sobre uma exposição de arte italiana organizada por Pietro Maria Bardi no Ministério da Educação e Saúde (Pedrosa, 1946). Próximo de Murilo Mendes desde os tempos do salão na casa da família de sua esposa Mary Houston, ainda antes do casamento, Pedrosa participava do núcleo de Santa Teresa, embora não compartilhasse das afinidades que os uniam. Assim, como Drummond, tivera decerto acesso a Árpád Szenes e Vieira da Silva, por quem Arden Quin é introduzido no Brasil e com quem Torres García mantém estreito contato. E, embora fosse próximo de Calder e Seuphor, Pedrosa nada publica na década de 1940 sobre os movimentos construtivos latino-americanos no Correio da Manhã, para o qual contribuía regularmente desde 1944 (Formiga, 2014).
Ainda houve outra frente de diálogo entre modernistas argentinos e brasileiros, dada entre os jovens do grupo Asociación Arte Concreto-Invención e o grupo que dirigiu a revista Joaquim, em Curitiba. Como colocou Maria Amália García (2011), os anos de 1947 e 1948 marcaram uma aproximação entre esses dois núcleos, que superaram incompatibilidades entre seus projetos no intuito de fortalecer o movimento. O argentino Juan-Jacob Bajarlía, advogado e poeta que participou das atividades da Asociación Arte Concreto-Invención (García, 2011), teria sido figura chave nessa interlocução. Em comunicação por correspondências com Drummond de Andrade, Bajarlía ameniza as conclusões sacadas no artigo publicado pelo poeta brasileiro no ano anterior no jornal Correio da Manhã. O texto “Invencionismo” volta a ser publicado no número oito da revista Joaquim, acompanhado do manifesto invencionista e da reprodução de obras do grupo Asociación Arte Concreto-Invención (García, 2011).
[...] la revista Joaquim se constituyó en espacio receptivo y en un suporte permeable a la transmisión. Sólo observando las tapas de Joaquim (todas con base figurativa) es posible deducir que los miembros de la AACI [Asociación Arte Concreto-Invención] habían relajado su dogmatismo en función de privilegiar la interacción [...]
(García, 2011, p. 76).Os contatos estabelecidos pelo grupo de Tomás Maldonado com o campo artístico brasileiro tentaram ser objetivos e buscar meios que difundissem seu movimento, sem priorizar interlocuções que estivessem sintonizadas em torno da defesa da arte abstrata. A entrada do concretismo portenho através da revista Joaquim em nada aproxima artistas abstratos argentinos e brasileiros. A revista teve vinte e um números publicados entre 1946 e 1948. Foi idealizada e levada principalmente pelo curitibano Dalton Trevisan. Contou com a colaboração de figuras do campo artístico como Mario de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Sergio Milliet (Sanches Neto, 1998). A revista não apresenta nenhum colaborador que fosse entusiasta da arte abstrata como opção para renovar o campo da arte moderna. Ao publicar imagens justamente do grupo Asociación Arte Concreto-Invención, liderado por Maldonado, em um momento em que esse grupo já se havia inclinado ao racionalismo proposto pela Bauhaus, fica evidente que esses atores privilegiaram espaços de divulgação de suas obras em detrimento da coerência teórica.
Pedrosa, primeiro e maior advogado da arte abstrata no Brasil, embora não desprezasse absolutamente o construtivismo de Torres García partilhava de valores que o levavam a filiar-se a outra corrente da arte abstrata. Sua experiência da forma na abstração geométrica se aproximaria cada vez mais dos preceitos da pureza de Ulm, repercutindo no Brasil as dissidências no campo argentino. Não por acaso, já em 1970, ao falar sobre Árpád Szenes e a relação com seus alunos, Almir Mavignier e Lygia Clark, escreve Pedrosa: “quanto a Árpád Szenes, ensina pintura, desenho, arte. É um estranho métier o que ensina, é tão estranho que os estranhos como ele, Ligia Clark ou Almir Mavignier, não esqueceram nunca, mesmo quando o que passaram a fazer contraria tudo o que Árpád transmitiu” (Pedrosa, 1995, p. 233-234).
Para Pedrosa, a mesma proximidade que tornava comensuráveis a arte de Vieira da Silva e Torres García parece ser o que afastava Árpád Szenes da futura produção de seus pupilos. Em 1944, o crítico brasileiro já se aproximara de Calder e, em 1949, defendia a tese Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte, que alinhava os pressupostos do movimento construtivo no Brasil à teoria da boa forma (Ribeiro, 2012, p. 104). Se Pedrosa buscava na Gestalt e na pureza da forma os elementos capazes de impactar sensibilidades e construir uma nova sociedade moderna, o simbolismo de Torres García era, decerto, um entrave à recepção de sua obra naquele momento. Para Torres García, havia “dos especies de geometría, una intuitiva, podemos decir, espiritual, y otra hecha con la regla y el compás. La primera es la que nos sirve, no la segunda” (Torres García, 1965). Assim, também as obras de Árpád Szenes e Vieira da Silva, se conciliáveis com o universalismo construtivo do uruguaio, em nada podiam se aproximar do movimento construtivo que se criaria no Brasil.
Nesse sentido, apontamos para duas linhagens da arte abstrata, sublinhando as relações e divergências entre elas, através da circulação entre Argentina, Uruguai e Brasil dos artistas que participaram desses movimentos.
Em caráter de conclusão é factível estabelecer as seguintes correspondências: 1) por um lado, é possível afunilar as afinidades entre concretistas argentinos e os paulistas do Grupo Ruptura, via influência que ambos movimentos recolhiam de dissidentes da Bauhaus, especialmente Max Bill, ao associar arte e ciência e valorizar a ideia de progresso técnico como um marco da modernidade; 2) por outro lado, pode-se identificar afinidades entre o projeto de Torres García e os artistas cariocas que participaram do núcleo que iniciou os debates em torno da arte abstrata como possibilidade de renovação do campo, como Mavignier, a partir do Ateliê do Engenho de Dentro e desse a Árpád Szenes e Vieira da Silva, tocando os artistas de Santa Teresa. O que compatibiliza o universalismo construtivo de Torres García com os citados grupos brasileiros é uma compreensão da arte a partir de valores espirituais, que conformava uma corrente crítica em relação às ideias de progresso e mesmo da ciência como orientadores de um projeto de modernidade. Nada mais distante, portanto, do que a forma como esses dois segmentos significaram a ideia de arte abstrata, sendo que Torres García tencionava seu sentido a ponto de inserir símbolos de teor místico e arcaico em suas obras, em uma linha semelhante a que levaria os modernistas católicos brasileiros, como o citado caso de Carlos Drummond de Andrade, a criticar os concretistas. Essas posições também ajudam a elucidar a contenda entre Torres García e os concretistas argentinos.
Indicamos o caminho para entender esse desencontro gerado pelas diferentes referências que serviram de filtro para a arte abstrata sul-americana, ao chamar atenção para a circulação de ideias entre artistas argentinos, uruguaios e brasileiros, pontuando o caráter contraditório que essas relações assumiram ao colocar sob uma mesma perspectiva projetos culturais que não estavam alinhados em suas escolhas mais fundamentais. Formas de arte, portadores de projetos de modernidade e círculos sociais se confundiam opondo atores e movimentos.