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MALES PRIVADOS, SOCIOLOGIA PÚBLICA: O LEGADO DE WRIGHT MILLS
PRIVATE UNEASE, PUBLIC SOCIOLOGY: THE LEGACY OF WRIGHT MILLS
MAUX PRIVÉS, LA SOCIOLOGIE PUBLIQUE : L’HÉRITAGE DE WRIGHT MILLS
MALES PRIVADOS, SOCIOLOGIA PÚBLICA: O LEGADO DE WRIGHT MILLS
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 1, núm. 1, pp. 13-39, 2013
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepção: 1 Julho 2013
Aprovação: 1 Agosto 2013
RESUMO: O Artesanato Intelectual era a bandeira brandida por Mills em defesa de uma ciência social capaz de enfrentar aquilo que um autor que ele conhecia muito bem designava como “o semblante severo da época” sem cair nas perversões burocráticas, tecnocráticas e teorocráticas (se me permitem o deselegante neologismo) às quais oferecia combate. Artesanato, contudo, não é trabalho solitário. Sua marca não é o isolamento e sim a individualidade formada no exercício cuidadoso da criatividade. Cuidadoso, neste contexto, refere-se não apenas ao esmero na execução da obra, na craftsmanship tanto prezada por Mills, mas também ao desvelo na atenção ao objeto, que não pode ser negligenciado em nome de alguma forma de narcisismo acadêmico.
Palavras-Chave: Artesanato intelectual, Wright Mills, Sociologia Pública.
ABSTRACT: Intellectual Craftsmanship was the concept paraded by Mills in his defense of a social science capable of responding to what one author he knew very well called “the severe semblance of the period” without succumbing to the bureaucratic, technocratic and theorocratic (if the reader will pardon this inelegant neologism) distortions his approach looked to confront. Craftwork, however, is not a solitary activity. It is marked not by isolation but by an individuality formed in the careful exercise of creativity. Careful, in this context, refers not only to the skill in fashioning the work, the craftsmanship so highly valued by Mills, but also the concern to remain attentive to the object, something that cannot be neglected in the name of some kind of academic narcissism.
Keywords: Intellectual Craftsmanship, Wright Mills, Public Sociology.
RÉSUMÉ: L’artisanat intellectuel était l’étendard brandit par Mills pour la défense d’une science sociale capable d’affronter, ce qu’un auteur qu’il connaissait très bien, désignait comme « l’aspect sévère de l’époque » sans tomber dans les perversions bureaucratiques, technocratiques et théorocratiques (si je puis me permettre ce néologisme peu élégant) auxquelles il offrait le combat. L’artisanat, cependant, n’est pas un travail solitaire. Sa marque n’est pas celle de l’isolement, mais celle de l’individualité formée dans l’exercice attentif de la créativité. Attentif, dans ce contexte ne se réfère pas uniquement au soin de l’exécution de l’œuvre, à la craftsmanship si chère à Mills, mais aussi au zèle de l’attention à l’objet, qui ne peut être négligé au nom d’une quelconque forme de narcissisme académique.
Mots-clés: Artisanat intellectuel, Wright Mills, Sociologie publique.
Os homens anseiam, no mundo atual, por uma “qualidade de espírito” que lhes permita “perceber o que está ocorrendo no mundo e o que pode estar acontecendo dentro deles mesmos”. Posta em uso com a devida lucidez, essa qualidade é a “imaginação sociológica”. O homem que há pouco mais de meio século escreveu isso, num manifesto em prol da imaginação racionalmente exercida, é reconhecido como um dos mais importantes sociólogos de meados do século passado. Tanto que, quando a International Sociological Association promoveu, em 1997, às vésperas do seu cinquentenário, uma enquete entre seus associados para indicar os “Books of the Century” na área, The Sociological Imagination obteve nada menos do que 59 votos, o que o colocava no segundo lugar na classificação geral, referente a título e não a autor. Não há surpresa na primeira colocação, de Max Weber, com 95 votos para Economia e Sociedade, e mais 47 distribuídos por outras obras suas, o que lhe dá, como autor, um total de 142 indicações. É verdade que o arquiadversário de Wright Mills, Talcott Parsons, somou 66 indicações, mas distribuídas por 11 títulos, dos quais nenhum chegou perto do obtido por Imaginação Sociológica. (E os outros dois porquinhos da tríade famosa? Durkheim e Marx ficam longe, empatados com 22 votos cada). Estranho reconhecimento, é preciso admitir. Pois Mills quase não é mais lembrado e não serão poucos os estudantes que mal sabem da sua existência. Parece que sua presença, em especial no contexto norte-americano, ainda se dá de modo difuso em toda uma geração formada no embate que ele sustentou em duas frentes, a do “empirismo abstrato” e a da “grande teoria”.
Minha argumentação será bifronte. Pelo lado luminoso sustentarei que o programa de trabalho proposto por Mills merece, aqui e agora, muito mais atenção do que lhe tem sido dada. Tanto é assim que me atrevo a afirmar que a votação dada à Sociological Imagination (e, por extensão, ao conjunto da obra de Mills) exprime a percepção, ainda que difusa, de que esse livro é, sim, um clássico, mesmo quando de proporções mais “artesanais” ‑ mas não foram “artesãos” todos os grandes clássicos? Pelo lado sombrio, admitirei que ele não logrou levar até o fim a sua proposta, nem poderia fazê-lo, dada a sua natureza e as condições nas quais ela se apresentava. Isso me levará a afirmar que os avanços que outros tentaram obter após ele, por altamente meritórios que sejam, não capturam o potencial da sua posição básica: aquela segundo a qual cabe à imaginação sociológica captar “história e biografia e as relações entre ambas no interior da sociedade”; ou, em enunciado alternativo, captar “os problemas da sua intersecção no interior da estrutura social”. Formulação poderosa, talvez a mais forte da Sociologia na sua época. Ninguém antes se atrevera a pôr na mesa proposta dessa ordem desde a transição do século XIX para o XX, mais precisamente, desde Dilthey, ele próprio arquiadversário da Sociologia no estilo durkheimiano, que, no entanto, teria apreciado a posição de Mills e, ao seu modo, Simmel. Propõe-se nela que história e biografia são inseparáveis, num sentido muito forte. Não se trata somente de apontar relações entre elas, mas chega-se a identificar uma relação específica, que é sua intersecção num campo também específico, a estrutura social. Com isso, vai-se além de meras referências aos processos de socialização ou aos agentes no interior da sociedade. Na realidade, abre-se o caminho para ultrapassar o problema do contraste entre estrutura e agência, ao se reservar à estrutura social a condição de cenário no qual se projetam as relações entre história e biografia.
Essa última afirmação certamente é arriscada. Para confirmá-la de modo cabal seriam necessários a Mills conceitos mais poderosos de história e biografia do que os disponíveis na bibliografia corrente e recursos analíticos não menos poderosos para estabelecer as relações postuladas pela teoria. E não se poderia exigir de um autor que, praticamente isolado, não somente propusesse com força como também completasse tarefa de tal magnitude. Meio século depois ainda pouco avançamos, por qualquer ângulo, naquilo que aquela proposta encerra, que é uma teoria da experiência social ajustada ao seu tempo. Como esperar isso de um artesão em plena época da produção em massa? Artesanato, afinal, era a bandeira brandida por Mills em defesa de uma ciência social capaz de enfrentar aquilo que um autor que ele conhecia muito bem designava como “o semblante severo da época” sem cair nas perversões burocráticas, tecnocráticas e teorocráticas (se me permitem o deselegante neologismo) às quais oferecia combate. Artesanato, contudo, não é trabalho solitário. Sua marca não é o isolamento e sim a individualidade formada no exercício cuidadoso da criatividade. Cuidadoso, neste contexto, refere-se não apenas ao esmero na execução da obra, na craftsmanship tanto prezada por Mills, mas também ao desvelo na atenção ao objeto, que não pode ser negligenciado em nome de alguma forma de narcisismo acadêmico. A expressão craftsmanship, aliás, tem longa história na língua inglesa. Mais do que uma forma de organização do trabalho, ela designa a excelência do produto e a qualidade do esforço – no caso, a imaginação sociológica ‑ nele incorporado. É muito característico de Mills que o artesanato seja contraposto à pesquisa que Lazarsfeld – seu colega em Columbia e respeitável adversário – em outro contexto denominaria “administrativa”, contrapondo-a à “crítica”, que Mills preferiria. Importa, sobretudo, que esse contraste se fazia em termos da qualidade e, em especial, da relevância da reflexão no tocante às grandes questões da sociedade, ficando os reparos à organização e aos resultados da sociologia corrente subordinados a esse tema central.
A associação da imaginação sociológica ao artesanato intelectual assim concebido permite a Mills emprestar à imaginação uma potência que, se não é a da mera rigidez do método, tampouco é livre jogo da fantasia. É “fantasia exata”, na expressão de Valéry depois emprestada por Adorno e, entre nós, por Celso Furtado. É forma aprendida de sensibilidade: flexibilidade, mobilidade, receptividade com timbre racional. Seu exercício exige uma disciplina peculiar: encharcar-se no tema, cultivar a imersão atenta, sem, contudo, perder a capacidade do analista, que é a de manter aquele distanciamento que permita entender a objetividade precisamente como respeito ao objeto. Rose Goldsen, colaboradora de Mills em pesquisa em bairro de imigração porto-riquenha, relata como ele percorrias as ruas, não para fazer entrevistas ou algo do gênero, mas para assimilar por todos os poros o ambiente no qual se moviam as pessoas às quais se dirigia a pesquisa. Procedimentos como esse lhe permitiam captar sinais de mudanças e crises naquilo que era seu foco de atenção, eventualmente realizando o que denominava “mudança de perspectiva”. Esse último termo evocará nos leitores brasileiros de Florestan Fernandes recurso que este usava em momentos cruciais de trabalhos seus, em especial nesse modelo de imaginação sociológica que é A integração do negro na sociedade de classe: a “rotação de perspectiva”. Não se trata de procedimentos idênticos e como concepção são independentes, mas a afinidade é clara, no mínimo na abertura e mobilidade intelectual. A propósito, a referência a Florestan permite evocar mais um caso de desenvolvimento paralelo de concepções e estilos de trabalho, com padrão análogo: assimilação crítica de grande clássico na área (no caso, mais Marx do que Weber) e impregnação por problemas da sociedade local. Trata-se de Octavio Ianni, que no seu modo de trabalhar pareceria estar usando literalmente a proposta de artesanato intelectual de Mills, embora o fizesse inteiramente por sua conta. Ambos, aliás, Florestan e Ianni, junto com outros intelectuais latino-americanos de esquerda, não pouparam Mills de críticas por ocasião do importante seminário organizado por Luiz Costa Pinto, no Rio de Janeiro, em 1959, sobre o grande tema do momento, “resistências à mudança”.
Qual é, afinal, o déficit mais saliente da sociologia convencional? É a incapacidade de identificar e formular do melhor modo os problemas relevantes numa ordem social. Pois é disso que se trata. Os transtornos privados e as questões públicas não estão aí dados como evidências: é a imaginação bem conduzida que permite detectá-los e converter os laços entre ambos em problema. Quando se fala em formular “do melhor modo”, o que está em jogo é esse aspecto decisivo da atitude de Mills: o respeito pelos envolvidos no problema detectado. Não por acaso, então, quando ele se junta a Hans Gerth para fazer uma “psicologia das instituições sociais” e quando já havia ido a Mead para buscar intuições básicas para sua obra, o que vem à tona é a ideia de “caráter” mais do que de “personalidade”. Caráter, na sua raiz grega, remete ao que é próprio dos homens nas suas associações, o seu ethos. Por esse ângulo, a sociologia proposta por Mills tem funda impregnação ética; mais funda do que aquela que se encontra nas obsessões normativas de Parsons. Que o subtítulo do livro Caráter e estrutura social também não seja tomado demasiado ao pé da letra: não é de “psicologia social” que se trata, mas exatamente de “caráter”, do timbre social que ressoa em cada indivíduo. Assim como, de resto, seria precipitado interpretar como mera aberração “psicologista” o título dado por ambos à introdução a texto clássico de Max Weber, que ficou “Psicologia social das religiões mundiais” (no lugar da referência original à “ética econômica”). Creio ser possível sustentar que, na cabeça deles, em especial na de Mills, a transição daquilo que denominam psicologia social àquilo que Weber denominava ética (uma orientação persistente de conduta compartilhada por muitos) se fazia sem problema.
Sabemos no que isso vai desembocar, em termos programáticos. Talvez a distinção mais frutífera com que opera a imaginação sociológica, escreve Mill, seja entre “transtornos pessoais” e “questões públicas”. Os transtornos em questão são pessoais num sentido muito preciso. Dizem respeito à pessoa, não como indivíduo isolado e sim como caráter, vale dizer, ao indivíduo socialmente formado. São privados ao se restringirem ao âmbito das suas relações com o meio mais próximo no interior do qual se movem. Já as questões têm índole pública, no sentido de temas controversos, potencialmente conflituosos (que Mills associa a ameaças a valores cultivados). Remetem ao âmbito maior das instituições, que ultrapassam os limites privados precisamente ao permitirem, na sua condição de organização de papéis, a passagem do privado ao público. Temos, assim, dois pares de distinções. Por um lado, história e biografia; pelo outro, transtornos e questões. Qual é a relação entre eles, e no interior de cada qual? História e biografia são categorias de grande amplitude e entre elas há uma heterogeneidade de escala que não admite relação direta - até porque Mills não propõe nada do tipo de relação causal, menos ainda de homologia estrutural. Mas há, sim, uma relação forte, que não somente incide sobre aspecto fundamental do pensamento de Mills, como também sobre o modo como ele soube absorver contribuições dos grandes mestres das ciências sociais (ou dos estudos sociais, como ele aceitaria de bom grado). “As perguntas mais importantes a fazer, em qualquer esfera da sociedade, são: que tipos de homens e mulheres tende a criar, que estilos de vida pessoais inculca e reforça”, escrevia ele, em 1953, bem antes das suas obras principais. Impossível não perceber nessa passagem a marca de autor que em momentos cruciais está presente no modo de pensar de Mills, seja por inspiração direta ou por “afinidade eletiva”. Max Weber, no escrito sobre a isenção valorativa nas ciências sociais: “Na avaliação de toda e qualquer ordenação das relações sociais, seja qual for seu formato, cumpre também inquiri-la sobre o tipo humano ao qual ela, no processo de seleção de motivos externos ou internos, oferece oportunidades ótimas para ocupar posição dominante”. Essa poderosa passagem de Weber – no meu entender a mais importante na sua teoria (para além da metodologia e quando associada à ideia de condução da vida) – está presente, como referência implícita, em momentos cruciais na obra de Mills. De certa forma, atravessa toda sua reconstrução do universo da classe média norte-americana em White Collar e não poderia estar ausente, na posição central que reserva à seleção dos dominantes, em The Power Elite – esse manifesto da paradoxal mescla de Mills, que, à falta de melhor termo, poderia ser denominada “elitismo democrático”. Pois Mills conseguiu isso: fundir elitismo teórico e paixão democrática prática.
Paradoxal, sim, mas característico de um modo de pensar e de ser muito peculiar, que transparece ao longo de toda a sua obra, marcada por essa figura retórica que o crítico literário seu contemporâneo, Kenneth Burke, designava como “perspectiva por incongruência”. (Merece atenção, aliás, a afinidade, mais por conta de universo intelectual compartilhado do que por qualquer aproximação efetiva, entre Mills e Burke). Essa mesma “perspectiva por incongruência”, que junta proveitosamente temas opostos, se encontra, aliás, em outro maverick da vida intelectual norte-americana do período de formação de Mills, Thorstein Veblen. É a ele que se deve a expressão “incapacidade treinada”, forjada como que por encomenda para caracterizar a sociologia convencional rejeitada por Mill.
É no mesmo estilo de pensamento que Kenneth Burke forjou o conceito de “vocabulário de motivos” para designar o horizonte, num contexto dado, da capacidade individual para dar expressão linguística (e, por essa via, significado) ao mundo que percebe e à sua ação nele. Esse conceito está presente em Mills numa variação do tema de Weber que vimos antes – algo que pode sugerir, de resto, quanto o pensamento de Mills é uma síntese heteróclita da teoria europeia, especialmente Weber e o elitismo, e do pragmatismo norte-americano na tradição de Mead e Dewey. Isso ocorre na Imaginação sociológica, quando ele escreve que “as motivações dos homens, e mesmo as proporções nas quais os diferentes tipos de homens estão tipicamente conscientes delas, devem ser compreendidas em termos dos vocabulários de motivos que predominam numa sociedade e de modificações sociais e confusões entre esses vocabulários”.
A relevância dessa ideia para entender o pensamento de Mills fica patente ao longo de sua obra sobre a classe média norte-americana, talvez o seu texto mais refinado ou, pelo menos, mais próximo à sua proposta teórica. Ela ajuda a entender o modo como ele se preocupa com a vulnerabilidade dos integrantes desse estrato social à “alienação”. Sobretudo, aplica-se às mais notáveis conclusões que Mills tira das suas análises nessa área, em especial aquela relativa à propensão à indiferença como um dos fenômenos sociais mais preocupantes.
Nesse ponto, cabe ouvir um dos seus melhores comentadores, Fred H. Blum (na indispensável obra coletiva em homenagem a Wright Mills editada por Irving L. Horowitz, The New Sociology): “Ele viu claramente que a alienação, e a abdicação da razão nela implícita, poderia ser tão severa ao ponto de manifestar-se na forma de insanidade. ‘Encontramos-nos em um momento curioso na história da insanidade humana’, escreveu ele [naquele livro impressionante no qual trata das “causas da terceira guerra mundial”]. ‘Em nome do realismo os homens estão inteiramente loucos, e precisamente aquilo que chamam de utópico é agora a condição da sobrevivência humana’. Ele analisou corretamente aspectos decisivos da insensibilidade do nosso tempo em termos de uma consciência esquizofrênica. Ele soube discernir uma ‘atmosfera paranoide de medo’ no impulso capitalista a ir ao perigo extremo, e a abdicação a qualquer papel possível da razão e mesmo da sanidade nos negócios humanos era um fato central do qual tinha consciência”.
Essa posição de Mills permitiu-lhe chegar ao limite da análise sociopsicológica de orientação pragmatista na sua época. De passagem, permitiu-lhe cunhar frases que Adorno poderia ter acolhido em Minima Moralia. Como quando, ao analisar os tipos polares de relação com o dinheiro em passagem de The Power Elite, conclui o diagnóstico do perdulário, em contraste com o avaro, escrevendo que “ele consome conspicuamente para mostrar que está acima das considerações pecuniárias, e nisso revela quanto as preza”. Encontram-se na bibliografia referências ao efeito em Mill do contato com os exilados da Teoria Crítica da Sociedade, em particular naquilo que tange à análise da sociedade e da cultura “de massas” (contrapostas, em Mills, às “de público”). Há, porém, afinidade muito mais funda entre o gigantesco texano e o diminuto frankfurtiano Adorno. Ambos, por detrás do seu ar severo, compartilhavam funda sensibilidade para as mais sutis vibrações no mundo social e mal contida compaixão pelos efeitos da ordem social sobre o curso da vida, na biografia dos seus integrantes. Ouça-se Mills falando da comunicação em massa: “O indivíduo torna-se o espectador de tudo, mas testemunha humana de nada”. Ou, se quisermos ir até o fim, “hoje a compaixão sem amargura e terror é mero sentimento de mocinha e não digno de um homem inteiramente adulto”, como escreveu no livro sobre as causas da terceira guerra mundial.
Perspectiva por incongruência, sim, mas com uma tensão entre os dois termos que confere singular pungência à análise. Em White Collar Mills escreve: “Pois o problema da apatia política, visto sociologicamente, é parte do problema mais amplo da autoalienação e carência social de significado. Ela repousa numa ausência de legitimações firmes e, portanto, de recompensas aceitas e duráveis por papéis desempenhados - e, todavia, no exercício continuado, compulsivo mesmo, desses papéis”. Aproxima-se, nesse particular, ao chamado grupo de Palo Alto, que desenvolveu, na mesma época, conceito assimilável por ele sem reservas, como se pode discernir nas análises da classe média e nos seus desdobramentos: o de duplo vínculo, double bind. Refere-se ele a dilemas comunicativos em que a pessoa fica paralisada diante de exigências mutuamente incompatíveis às quais não consegue escapar a não ser por uma rota de fuga que ameaça levá-la ao limite da esquizofrenia. (“Você é negro, cara. Vá lá e mostra que é branco”). A solução para essa arapuca psicossocial consiste em perceber que os dois termos do enunciado estão em níveis diferentes de significado e que não há solução linear para a sua justaposição direta. Muito do que Mills denomina “alienação” assemelha-se a isso.
Falei antes do “elitismo democrático” de Mills. Quanto à questão da elite, Mills nunca contestou a tese da tendência à concentração do poder (entendido como capacidade de decisão) no topo, vinculada à maior capacidade de acesso ao poder das minorias detentoras de recursos sociais, econômicos e culturais. Há muito na sua construção da análise da “elite do poder” que evoca o tema proposto por Marx no exame do “18 Brumário de Luís Napoleão”, da coterie, do pequeno grupo compactamente ligado por relações e interesses comuns, que entre nós foi assimilado nas análises políticas de Oliveiros Ferreira.
Isso suscita de imediato a questão do poder. E, por esse prisma, a coerência parece perfeita entre a incorporação de elementos centrais da teoria das elites e o entendimento por Mills do poder, como capacidade de decisão antes do que de dominação. Entretanto, isso não se faz sem a introdução de perturbações que apontam para outro sentido. Na perspectiva da sociologia política que lhe é própria, Mills vincula o poder a “quaisquer decisões que os homens tomam a respeito dos arranjos sob os quais vivem e dos eventos que constituem a história dos seus tempos”. E acrescenta: “Na medida em que tais decisões são tomadas, o problema de quem está envolvido em fazê-las é o problema básico do poder. Na medida em que poderiam ter sido feitas, mas não o foram, o problema converte-se no de quem deixa de fazê-las”. A questão central nisso tudo é o da decisão como núcleo da questão do poder. Decisão, mais do que supremacia ou dominação. Vale dizer, um modo de intervenção ativa mais do que um estado de coisas. Dominantes são aqueles que detêm a capacidade de decisão. E o termo é levado a sério: antes da capacidade de estabelecer como válida e vigente uma opção no interior de um conjunto em disputa, decidir implica capacidade de separar, de discernir, de selecionar. O problema do poder, que numa eventual sociedade de públicos equipotentes diria respeito à capacidade distribuída por todo o conjunto social, apresenta-se, numa sociedade complexa de massas, como o do padrão de seleção dos selecionadores, daqueles que comporão as elites setoriais e o seu conjunto. Onde quer que se encontre concentração de renda e de poder político encontra-se a concentração da capacidade de seleção de opções e de decisão em círculos cada vez menores de elites. É nisso que Mills adota o critério “elitista” de análise. Não para fazer dele o seu, todavia, e sim para melhor descrever uma realidade social dada e torná-la acessível ao exame racional e à crítica por todos os concernidos.
Encontramos antes dois pares de termos a serem relacionados. Entre questões privadas e públicas há um intermediário, as instituições. Estas, por sua vez, são compostas por papéis, por desempenhos de agentes situados. Papéis organizam socialmente as condutas, assim como instituições organizam papéis. O ele decisivo, portanto, é dado pelos papéis. A questão é mais complexa quando se trata de relacionar biografia e história. Isso se deve, em parte, pelo descompasso entre os dois termos no pensamento de Mills. Preocupado como ele está com a figura do indivíduo na sua configuração social de pessoa e caráter, sua concepção de biografia é mais densa do que a de história, que acaba reduzida à mudança social. A grande oposição, tal como escreve na Imaginação sociológica, é entre “ordem e mudança, ou seja, estrutura e história”. Mudança é termo tênue demais para dar conta do problema da história. É verdade que também não caberia buscar solução no culturalismo histórico de um Dilthey, apesar da sua contribuição no estudo da conexão entre história e biografia pela via da cultura. Não será nele que encontraremos uma versão densa e ao mesmo tempo flexível do conceito de história. Pois na formulação teórica da qual ele é representante eminente, a história aparece como dada na construção da biografia, não é ela própria construída. Em Mills a conexão procurada tende mais a caminhar no sentido oposto e mais promissor, da gradativa construção da história pelo entrelaçamento de biografias situadas nesse cenário específico que é a estrutura social. “Ter consciência da ideia de estrutura social e utilizá-la com sensibilidade é ser capaz de identificar as ligações entre uma grande variedade de ambientes de pequena escala. Ser capaz de usar isso é possuir imaginação sociológica”, escreve ele, já nos primeiros passos da sua obra. A ideia da multiplicidade de relações é muito importante, mas de onde retiram elas sua dinâmica? Embora estrutura não seja em Mills um ente estático, há um vácuo entre ela e a história. Mills opera com três níveis articulados de organização: papéis como organização da conduta, instituições como organização de papéis e estrutura como organização de instituições. E a história, é organizada como? E organiza o quê? Talvez se pudesse avançar nesse ponto mediante o uso de propostas teóricas do marxismo, mas não é esse o esquema de referência de Mills, e não caberia exigi-lo dele, até porque não há garantia de que resolvesse o impasse.
Melhor seria, então, retomar os dois pares de termos e perguntar sobre a conexão entre eles (e não mais no interior de cada qual). Como se conecta o par história/biografia ao par distúrbios/questões? Por aquilo que traz a marca inconfundível da herança pragmatista de Mills: a formulação em termos de problema. Trata-se, em primeiro lugar, de referências heurísticas. Elas apontam para problemas e não para soluções. Cabe à imaginação sociológica exercer sua capacidade própria para que problemas relevantes possam ser formulados e o complexo conjunto de relações entre níveis de organização e desenvolvimentos ao longo do tempo ganhe sentido, não só para o pesquisador como (para usar termo central em Mills) para o público. A ciência social não é um empreendimento autorreferido. Tem importância política direta, e só tem importância quando leva isso em conta. “O papel educacional e político da ciência social numa democracia consiste em ajudar no cultivo e na constituição de públicos e indivíduos que sejam capazes de desenvolver definições adequadas de realidades pessoais e sociais, de viver com elas e de agir sobre elas”, escreve ele. É nesse sentido que “devemos agir como intelectuais políticos” e nos unirmos aos intelectuais em todo lugar. Esta última formulação soa como uma evocação politizada da comunidade ilimitada de estudiosos na qual pensava Peirce (que Mills estudou bastante, junto com sua referência mais próxima, Dewey, ao escrever Sociology and Pragmatism).
Mills soube tirar pleno proveito da vitalidade e da intensidade do envolvimento social que se encontra nas grandes correntes do pragmatismo norte-americano, não só de um Dewey como até de um William James, com sua aberta oposição ao expansionismo dos EUA de Theodor Roosevelt. Para James, a posição pluralista era essencial; para Dewey, o fundamento inequívoco do pensamento e da ação era a democracia. Para ambos, como depois para Mills, isso não se resumia num quadro institucional. Consistia numa posição perante o mundo e num fundamento para a ação. Falando da democracia, John Dewey, citado por Mills, escreve: “Ora, esta ideia não pode ser aplicada a todos os membros de uma sociedade, exceto onde a relação do homem com o homem seja mútua e onde haja adequada provisão para a reconstrução dos hábitos e instituições sociais por meio de amplo estímulo que deriva de interesses equitativamente distribuídos. E isto significa uma sociedade democrática”. Comentando essa passagem, Heloísa Fernandes formula argumento fundamental (no volume que organizou na coleção “Grandes Cientistas Sociais”): “E, do mesmo modo, democracia já não é mais uma forma de regime político, mas um modo de ser, um modo de vida: aquele que permite a constante reorganização da experiência. Ideia que calibra toda a obra de Mills – não só na sua crítica à sociedade americana e soviética como nos seus programas práticos de mudança”. Talvez se possa refinar essa formulação mediante a afirmação de que a ideia que calibra todo o pensamento de Mills é a de experiência e que é a partir desta que ele coloca a democracia, nos termos apontados por Heloisa, no centro da sua atenção e dos seus esforços. Não por meras razões de eficiência, mas porque é somente por essa via que se poderá superar a “indiferença de massa” e a “insensibilidade moral” (o termo “moral” sendo usado muito mais no sentido, central para Mills, de responsável do que de normativo costumeiro).
A referência à responsabilidade como referência fundamental, no mesmo nível que autonomia e liberdade e de democracia como o meio no qual ambas se realizam, confere nitidez ao grande projeto de Mills, de uma sociologia pública, capaz de elevar o nível de percepção e de racionalidade no interior da cidadania, sem restrições. Por isso a ênfase no público: não como olhar nostálgico e sim como alvo a ser perseguido numa reconstrução da experiência social, na qual a Sociologia tem sua parte.
Encerrada a participação direta de Wright Mills com sua morte em 1962, seu grande projeto de uma sociologia atenta ao seu compromisso público ameaçava perder-se naqueles anos de confrontação e insegurança no cenário norte-americano (crise dos mísseis em Cuba entre os EUA e a URSS, assassinato de John Kennedy, esgotamento do modelo de sociedade estável após a segunda grande guerra e a da Coreia, chegada à idade adulta da coorte do baby boom, coincidindo com a mobilização pelos direitos e o envolvimento no Vietnã). Dadas as tendências de desenvolvimento na área, corria o risco de ser sufocado pela expansão do mainstream sociológico, dividido entre a hegemonia estrutural-funcional macro e as modalidades emergentes de interacionismo micro. Essa situação somente poderia ser rompida por alguém com perfil muito peculiar, que associasse desenvoltura teórica em ambas essas correntes à reconhecida contribuição em áreas centrais da pesquisa empírica; em estudos de organização do trabalho e da burocracia, por exemplo. As últimas indicações já sinalizam o nome que tenho em mente como sucessor à altura (embora não oficialmente) de Wright Mills. Trata-se de Alvin W. Gouldner, talvez o mais brilhante sociólogo norte-americano da sua geração, que, à semelhança de Mills, também não está tão presente no cenário recente e contemporâneo como mereceria. (Aliás, no levantamento da ISA obteve magras quatro indicações, nenhuma delas ao livro que vai nos interessar aqui).
Doze anos após The Sociological Imagination, o livro de Gouldner, de 1970, sobre The Coming Crisis of Western Sociology, tem outro tom, como seu título já indica. Estamos mais diante de um diagnóstico, militante sem dúvida, porém num espírito que já se manifesta na abertura do livro. Nada de “promessa”, como ainda se encontra em Mills. Logo na abertura temos um encaminhamento “para a crítica da Sociologia” para só no final encontrarmos um capítulo programático. Após 1968, Gouldner pisava em terreno mais escorregadio do que Mill na virada dos anos 50. A Sociologia mainstream prosseguia sem grandes abalos; mas à esquerda da sociedade e da academia novas forças se avolumavam e as confrontações se tornavam cada vez mais abertas. É significativo que um livro da mais elevada scholarship dirigido a um público acadêmico norte-americano naquele momento tivesse como primeira citação no texto uma frase do soixante-huitard Daniel Cohn-Bendit. Nada menos do que “teóricos são ridículos” – é verdade que seguida da proclamação de que, diante do hiato entre teoria e prática, “estamos tentando desenvolver uma teoria”. Igualmente significativo é que, com grande fair play de resto, relate as duras palavras dirigidas aos participantes do encontro da Associação Americana de Sociologia, em Boston, em agosto de 1968, pelo porta-voz dos jovens dissidentes na profissão, Martin Nicolaus (cujo nome acabou tendo posição assegurada pela proeza intelectual da tradução para o inglês dos Grundrisse de Marx). Em “tom gélido e medido”, relata Gouldner, os presentes ouviram coisas como “a profissão de sociólogo é um subproduto do tradicionalismo e conservantismo europeu novecentista casado com o liberalismo das corporações americano do século XX (...) os olhos profissionais do sociólogo dirigem-se ao povo de baixo e sua palma profissional estende-se para o povo de cima (...) ele é um Pai Tomás não apenas para este governo e esta classe dirigente, mas para todos”.
Está em jogo, portanto, a crítica radical da Sociologia. A posição de Gouldner é clara. Consiste em afirmar o caráter desejável da crítica radical, lembrando ao mesmo tempo em que sua versão mais séria (deixando de lado o anti-intelectualismo tosco) provém do próprio campo sociológico. “Meu argumento é, então, que a Sociologia pode produzir e não meramente recrutar radicais; que ela pode gerar, e não simplesmente tolerar, radicalização”, escreve ele. Posto isso, a questão que se põe para Gouldner consiste em ultrapassar o âmbito de apontar as limitações da Sociologia convencional, para chegar a assinalar os pontos nos quais ela se abre para o novo, ao invés de perder-se em labirintos criados por ela mesma. Diante disso, nossa questão é: para onde conduz o esforço de Gouldner e em que medida ele representa um avanço em relação a Wright Mills?
Gouldner tem uma vantagem importante em relação a muitos críticos da vertente dominante na Sociologia norte-americana no terço final do século passado. Além de conhecê-la em profundidade, tem contribuição original no campo da teoria e da pesquisa de índole funcionalista, sem perder-se na ortodoxia. Isso o coloca no mesmo plano de um Lockwood, por exemplo. Enquanto Lockwood deixava sua marca ao elaborar a distinção entre integração social e integração sistêmica, Gouldner buscava abrir e oxigenar a teoria a partir de seus artigos Reciprocity and Autonomy in Functional Theory, de 1959, e The Norm of Reciprocity, de 1960. Um exame crítico das concepções de complementaridade e interdependência na teoria funcional ortodoxa leva-o a propor as concepções alternativas de reciprocidade e de autonomia funcional. Busca, com isso, aliviar a carga do sistema como ente unitário, cujos elementos se vinculam como complementares entre si num esquema de dependência mútua que os faz integralmente subordinados ao sistema envolvente. A ideia de autonomia funcional é realmente inovadora, pela perspectiva que adota. Trata-se de atribuir mais relevo às partes componentes do que ao sistema como unidade dada, e de ver as conexões entre elas como variáveis e problemáticas, com graus diferentes de dependência ou autonomia. É de reconhecer-se que isso introduz um apreciável grau de flexibilidade numa teoria usualmente tida como rígida, quando não simplesmente conservadora. Além disso, a atenção ao problema da reciprocidade tornou Gouldner mais receptivo à expansão de modalidades do interacionismo então em curso, com vertentes tão diversas como as de Goffman e Garfinkel. (Aqui, não resisto a trazer episódio narrado pelo próprio Gouldner. Saindo de uma editora com seu amigo Goffman, ele comenta: “Você viu como eles nos tratam como mercadorias?”. Retruca Goffman: “Por mim tudo bem, desde que seja mercadoria cara”).
Por que introduzir neste ponto essas referências a remotos avanços teóricos? Simplesmente porque elas permitem visualizar a estratégia adotada por Gouldner ao longo de toda sua obra para conduzir uma crítica interna ao padrão dominante de Sociologia, até permitir-lhe formular uma proposta programática, que depois encontraria suporte, ainda que indireto, na importante revista que fundou em 1974, Theory and Society, com o significativo subtítulo Renewal and critique in social theory. Pois é isso que está em jogo para Gouldner: crítica a serviço da renovação. O termo renovação é central. É ele que informa sua reconstrução da presença na Sociologia do pensamento romântico (pelo qual não esconde simpatia e no qual, claro, inclui Wright Mills), no seu importante artigo Romanticism and Classicism: deep structures in social Science (publicado na sua coletânea de artigos For Sociology). Um dos grandes temas do pensamento social crítico é associado, nesse artigo, ao romantismo, quando Gouldner lhe atribui caráter “emancipador”.
É nessa prática de trabalhar por dentro, na busca de aperfeiçoamentos na teoria social mais do que no encalço de concepções alternativas, que residem a força e também a debilidade da posição de Gouldner. A força se encontra na sua atenção às condições históricas (incluindo nisso o presente) que informam a produção de conhecimento social pelo ângulo do estilo de pensar e de fazer dos seus produtores. Gouldner leva muito a sério que a sociologia é feita por sociólogos. Interessam-lhe a organização do trabalho (não fosse essa área uma das que primeiro explorou como pesquisador) e a formação e inserção social do sociólogo - essa figura que, para além de ser um profissional especializado, é um intelectual envolvido, queira ou não, nos grandes debates sobre a forma presente e as tendências da sociedade. Não será por acaso que suas últimas obras enfrentam por vários ângulos o problema dos intelectuais como categoria social. Sobre isso ele tem muito a dizer, mesmo em termos bastante severos, quando se refere à profissão sociológica como cada vez mais fundida ao aparato do Estado de bem-estar, tornando-se “uma espécie a mais de quadro perito e burocrata”. É verdade que sua ênfase na centralidade do Estado de bem-estar norte-americano, em The Coming Crisis, assim como sua aposta na convergência entre sociologia convencional e marxismo, revelou-se equivocada e constitui o ponto fraco substantivo da sua obra (como demonstrou Brasilio Sallum Jr., em mesa na Anpocs, em 2004, e, em seguida, na revista portuguesa Sociologia, Problemas e Práticas ‑ título bem a propósito para nosso tema). Isso não afeta, porém, o cerne do seu trabalho. Característico nele é o último passo que não hesita em dar na sua análise, quando concentra toda a atenção numa renovação da Sociologia na figura do seu praticante. Sua proposta de uma Sociologia Reflexiva acaba muito mais centrada na figura do sociólogo do que na imaginação reclamada por Mills. “A missão histórica de uma Sociologia Reflexiva como a concebo seria a de transformar o sociólogo, de penetrar profundamente na sua vida e no seu trabalho cotidiano, enriquecendo-os com novas sensibilidades, e de elevar a auto-percepção do sociólogo a um novo nível histórico”, escreve ele. Neste passo, a dimensão pública da Sociologia parece ser concebida como internalizada pelo sociólogo, sempre que ela exerça a reflexibilidade que a ciência social à altura do seu tempo propicia.
Essa aposta, um tanto “romântica” talvez, na renovação da Sociologia pela via da renovação do sociólogo, a despeito de vir no bojo de uma análise brilhante, acaba não justificando a esperança de real avanço em relação à promessa de Wright Mills. Tem, contudo, o mérito de explicitar um dos termos da equação que se vai construindo para dar suporte a uma Sociologia crítica com efetiva presença social. Já temos a imaginação e a reflexão. Falta trazer à cena o terceiro componente da promessa, a dimensão pública. Onde Wright Mills via uma Sociologia à qual faltava imaginação e Alvin Gouldner a via carente de reflexibilidade, Michael Burawoy vê quatro, das quais uma é nova e proposta por ele. Na realidade, trata-se de quatro correntes no interior da mesma ciência, que se distinguem entre si pela orientação imprimida ao trabalho e pelo tipo de interlocutores com os quais contam, ou pelo menos que esperam ter. A Sociologia Pública, da qual ele é o principal formulador e paladino, desde memorável discurso presidencial na Associação Americana de Sociologia, em 2005, apresenta-se como uma espécie de ponto de condensação do conjunto. Junto com ela estão a vertente profissional (a Sociologia acadêmica convencional), a voltada para políticas públicas junto a instituições de diversa natureza e a vertente crítica, que se preocupa com o alcance às implicações da teoria e da prática sociológicas.
Burawoy é pesquisador reconhecido num campo nevrálgico da profissão, o estudo da organização e das relações de trabalho (cabe lembrar que Wright Mills e Gouldner também o frequentaram). Não será de causar espanto, então, que ele veja o empreendimento sociológico com olhar atento e também crítico às formas de qualificação e divisão de trabalho. Organização, processo e produto parecem ser os registros que norteiam seu escrutínio, crítico em todos os passos. O que era a Sociologia inteira em Mills vira profissional; o que era (ou deveria ser) reflexivo em Gouldner vira crítica; o envolvimento externo da pesquisa vira orientação para políticas públicas; e o envolvimento com segmentos bem definidos da sociedade com viés emancipador forma o campo da Sociologia Pública propriamente dita.
O que há de público na sociologia pública (para além da participação em políticas, por exemplo)? Creio que a resposta mais direta é que ela se propõe a exigência básica de dirigir-se a públicos (áreas e organizações da sociedade) como interlocutora e não como parceira numa relação perito-cliente, menos ainda como hierarquicamente diferenciada, acima ou abaixo. Nesse sentido, sua interlocução básica é extra--acadêmica mais do que no interior do campo dos pares profissionais. Tudo isso, claro, sem tornar-se diletante e ao mesmo tempo buscando independência em relação aos constrangimentos intra-acadêmicos e das agências poderosas externas. Um conjunto severo de exigências, por certo. Não admira que tenha suscitado imediatas contestações. Ao invés de resolver os pontos de fratura no interior da disciplina a Sociologia Pública só faz piorá-los, sustentam autores como Jonathan Turner, nos EUA, e John Scott, na Inglaterra; não adianta dirigir-se a públicos que são e continuarão surdos ou indiferentes ao que a Sociologia lhes queira dizer, emenda Scott (nessa linha, poderiam ter aventado o risco de que seus praticantes passassem a só se dirigir a públicos amistosos); a hostilidade à Sociologia já presente no interior da sociedade e a desconfiança em relação a pregações ideológicas só farão aumentar, sustentam esses opositores e tantos outros. Em posição mais favorável, um autor como Touraine (ao qual esforços dessa natureza nunca foram alheios) vê na Sociologia Pública uma espécie de ponta avançada no exercício daquilo que lhe parece próprio da melhor Sociologia, que consiste em desenvolver um estudo de atores, em contraste com sistemas, rumo ao reconhecimento de sujeitos de direitos no interior de movimentos e organizações. (Não tentarei aqui apresentar ou discutir a Sociologia Pública. Isso vem sendo feito exemplarmente entre nós por autores como Ruy Braga. Veja-se, por exemplo, o dossiê no número 56/2009 do Caderno CRH e também o número 87/2012 de Lua Nova).
A Sociologia Pública representa uma proposta vigorosa e digna da maior atenção. LI primeira vista, seria a plena explicitação do potencial de programas de trabalho como os de Mills e Gouldner. Difícil, contudo, evitar a impressão de que ainda não estamos diante da realização de uma promessa de há meio século. Pelo contrário, a sensação é de que algo se perdeu no caminho. Comparada com o que se poderia esperar dela, a proposta da Sociologia Pública tem algo de desencarnado, excessivamente focado, unilateral mesmo. De onde virá essa impressão? Talvez sua fonte esteja numa polarização mal resolvida. Por um lado, ela se dirige com toda a força para o debate no interior do campo sociológico; pelo outro, concentra toda a atenção nos públicos externos. Falta a conexão teórica e de método que poderia transformar essa polarização em tensão fecunda, criativa – exatamente o que Wright Mills procurava. Mills não está primordialmente preocupado em designar tarefas para a Sociologia, mas em qualificá-la (“uma qualidade do espírito”), tanto quanto Gouldner está voltado para renová-la. Diante disso, Burawoy dá o passo que lhe parece decisivo: trata-se de politizá-la. No caminho para isso, ele se vê diante da tarefa de uma prestação de conta com o velho mestre. O resultado é um documento notável, que merece atenção (bem maior do que lhe será dada aqui). Em 2008, Burawoy publica, na revista de “geografia radical” inglesa com o belo título Antipode uma Open Letter to C. Wright Mills (em seguida publicada entre nós na revista Outubro). O tom da carta é de respeito e admiração, temperados por uma ponta de condescendência. Mills foi vítima de algumas ilusões, adverte ele. A primeira seria a de julgar que o conhecimento é liberador. “Você pensava que, se os sociólogos fossem independentes, a sua imaginação sociológica seria liberadora. Não é necessariamente assim”. É verdade, prossegue, que “compreender a relação entre milieu e estrutura pode não ser liberador de per si, mas bem pode ser necessário para tal liberação. Ademais de imaginação sociológica também se faz necessária uma imaginação política”. Mills tinha em mente um programa político, baseado num partido trabalhista, controle da produção pelos trabalhadores e planejamento democrático, afirma Burawoy, para comentar que esse era de fato um programa radical, mais de impossível realização. “Sua imaginação política era utópica”, escreve ele, para concluir: “Sua imaginação política não lograva conectar distúrbios pessoais a questões públicas”. Aqui há um evidente deslocamento. Mills falava da imaginação sociológica e lhe atribuía certa capacidade. Burawoy não se pronuncia sobre o sucesso ou não daquele empenho. Desloca, entretanto, a exigência para o campo político, como se fosse homólogo ao sociológico no tocante a isso. Antes de discutir a “imaginação política”, contudo, caberia discutir se foi cumprida a missão da imaginação sociológica tal como proposta por Mills. No caso afirmativo, como; no caso negativo, se ainda merece atenção.
Um segundo ponto no qual Burawoy encontra grave insuficiência em Mills consiste em que, embora sendo um pioneiro da sociologia pública, “sua visão ainda está presa no passado”. A imagem do sociólogo que inspira Mills é equivocada, afirma ele. “Voltando-se para os clássicos do século XIX e sustentando a mitologia do intelectual desvinculado e sem amarras, você nos apresenta o sociólogo bifronte ‑ olhando para fora está o intelectual independente dirigindo-se soberanamente a públicos e a reis, olhando para dentro está o artesão absorvido em si mesmo e afastando as patologias da profissionalização”. Hoje é diferente, prossegue. “Agora nós substituímos o seu mônada individual por uma divisão de trabalho sociológico ‑ uma matriz de sociologias ‑ profissional, ligada a políticas, crítica e pública ‑, na qual o florescimento de cada uma depende do florescimento de todas, uma matriz que busca uma interdependência orgânica e, pelo menos nos Estados Unidos, luta contra a hegemonia da sociologia profissional e da ligada às políticas”.
Texto respeitoso, mas em várias passagens à beira da injustiça, quase diria deslealdade. O que aconteceu nesse período para tamanho desencontro? Por que reconhecer que a proposta sobre a conexão de males privados e questões públicas ainda é digna de atenção (supõe-se que para além de “entoada como mantra”, para usar expressão de Burawoy) para em seguida reclamar que essa conexão não é resolvida numa suposta imaginação política de Mills? Por que sequer se cogita a questão de como levar adiante projeto tão forte no seu campo específico, a Sociologia? Pois é precisamente disso de que se trata. Mills não teve condições para resolver o problema que propôs e, “mantras” à parte, ninguém realmente se empenhou a fundo nisso, mesmo com os novos recursos teóricos e analíticos posteriores à sua obra. Isso não se resolve praticando a “divisão de trabalho” (fordista?) na reflexão e na pesquisa. A Sociologia ainda não encontrou solução, nas condições contemporâneas, para a questão de o que realmente significa a dimensão pública do seu trabalho; coisa que não se fará sem retomar em profundidade a questão decisiva da relevância da pesquisa. Limitar-se a perguntar “para que” e “para quem” pode facilmente resultar em mais um “mantra”.
Parece que de Mills para cá o debate sobre as questões centrais da ciência social não avançou na mesma proporção que a expansão institucional dessa área do conhecimento (e o aumento dos controles institucionais sobre ela). Enquanto isso, a atenção, como vimos, tende a incidir sobre a figura do sociólogo nas suas motivações, referências e capacidade reflexiva. Enquanto deixarmos de lado uma proposta substantiva, relativa ao núcleo duro da Sociologia como pesquisa científica e prática social como a de Wright Mills, e agirmos como se ela pudesse ser guardada na sala de troféus de eras passadas em nome do realismo da divisão do trabalho, nos escapará a chance de promover reais avanços nos fundamentos do conhecimento social e na sua prática. Basta, para isso, um pequeno ato de coragem: o de admitir que a proposta da “imaginação sociológica” está longe de ter sido resolvida e deve ser retomada nos novos tempos, por difícil que seja. Se a questão é o legado de Mills, ele está aí inteiro e vivo, para quem tiver força (e imaginação) para recolhê-lo.