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TRABALHO E OS DESAFIOS DA PESQUISA SOCIOLÓGICA
LABOUR AND THE CHALLENGES OF SOCIOLOGICAL RESEARCH
LE TRAVAIL ET LES DÉFIS DE LA RECHERCHE SOCIOLOGIQUE
TRABALHO E OS DESAFIOS DA PESQUISA SOCIOLÓGICA
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 1, núm. 1, pp. 101-118, 2013
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepção: 1 Fevereiro 2013
Aprovação: 1 Abril 2013
RESUMO: Discutir o trabalho na sociedade contemporânea é condição essencial para qualquer análise sociológica sobre processos de mudança social. Crises recentes do sistema de produção capitalista, a introdução de novos mecanismos de controle do trabalho e de organização nas empresas, o uso de tecnologias da informação, a submissão das atividades econômicas a lógica de um mercado globalizado, resultaram em alterações significativas nas formas de emprego assalariado e na disseminação de ocupações marcadas por atipicidade e precariedade. A proposta do texto é identificar e problematizar os principais desafios de interpretação e as principais fronteiras colocadas para a sociologia (do trabalho) nesse novo contexto e sugerir uma revisão de enfoques e de temas de pesquisa.
Palavras-Chave: Trabalho, Sociologia, Interpretação.
ABSTRACT: Discussion of labour in contemporary- society is an essential condition for any sociological analysis of processes of social change. Recent crises in the capitalist production system, the introduction of new corporate mechanisms for controlling labour and organization, the use of information technologies, the subjection of economic activities to the logic of a globalized market, have resulted in significant alterations to the forms of paid work and the spread of occupations involving irregularity and uncertainty. The text seeks to identify and problematize the main interpretative challenges and the principal frontiers posed for a sociology of labour in this new context and suggests a review of research approaches and topics.
Keywords: Work, Sociology, Interpretation.
RÉSUMÉ: Parler du travail dans une société contemporaine est la condition essentielle pour n’importe quelle analyse sociologique sur les processus de changement social. Les récentes crises du système de production capitaliste, I ‘introduction de nouveaux mécanismes de contrôle du travail et de l’organisation dans les entreprises, l’utilisation de technologies de l’information, la soumission des activités économiques à la logique d’un marché mondialisé a entrainé des changements significatifs des emplois rémunérés et la dissémination d’occupation atypiques et précaires. La proposition du texte est d’identifier et de problématiser les principaux défis de l’interprétation et les principales frontières placées par la sociologie (du travail) dans ce nouveau contexte et de suggérer une révision de cibles et de thèmes de recherche.
Mots-clés: Travail, Sociologie, Interprétation.
Análises sociológicas sobre situações de mudança na sociedade contemporânea não podem prescindir da discussão sobre a contínua importância do trabalho na vida social. Crises do sistema de produção capitalista nas últimas décadas, a introdução de novos mecanismos de controle do trabalho e de organização das empresas, o uso de tecnologias da informação, a submissão das atividades econômicas à lógica de um mercado globalizado, resultaram em alterações significativas nas formas de emprego assalariado, clássico, e na disseminação de ocupações marcadas por uma atipicidade e precariedade (em tempo parcial, em domicílio, por tempo determinado, multifuncional).
O perfil do mercado de trabalho se alterou em função da implantação de um novo padrão de relações que surgiu como resposta à crise de produtividade do padrão fordista e que se apoia na flexibilidade dos processos e dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. (cf. Harvey, 1992, p. 140 entre outros). E o crescimento da participação feminina, a informalidade, as exigências de qualificação e de compromisso com os objetivos das empresas, em um contexto que combina intensificação do trabalho com insegurança no emprego, recolocaram no debate sobre o trabalho hoje o seu caráter de formador de identidade e de força política institucionalizada de contestação social.
Interpretar essas transformações exige da Sociologia (do trabalho) uma renovação da pesquisa empírica e uma atenção especial às novas estratégias de controle das empresas e dos empregadores e às novas manifestações de resistência por parte dos que vivem do trabalho. O substantivo corpo teórico construído a partir de investigação sobre a estruturação dos espaços fabris e sobre o estabelecimento de formas de controle do processo de trabalho tem encontrado dificuldades para explicar, nos dias atuais, a variedade das novas formas de dominação fabris e não fabris, a flexibilização como elemento central das relações de trabalho e a subcontratação de tipo “precário”, além dos argumentos que conferem às “leis do mercado” o poder de regulação do emprego em oposição a leis trabalhistas estabelecidas em outras épocas.1
As alterações ocorridas nos últimos anos no universo do trabalho tiveram também o efeito de colocar em xeque as organizações dos trabalhadores e os mecanismos de resistência e contestação estabelecidos nos embates políticos dentro dos espaços restritos da produção ou no espaço público de reivindicações coletivas. Os sindicatos avaliam hoje a necessidade de repensar suas práticas e buscar novas formas de atuação. O acúmulo político obtido ao longo do século XX não tem sido suficiente para preservar sua capacidade de reação diante dos mecanismos renovados da acumulação capitalista; e a busca de estratégias inovadoras para enfrentar essa conjuntura tem exigido um intenso processo de discussão sobre a forma de manter a instituição como um polo de contestação e regulação das atividades laborais.
No caso do Brasil e da América Latina, outras questões se colocam para a investigação sociológica. O fato de boa parte da literatura sobre trabalho ter sido fruto de pesquisa baseada nas sociedades industriais europeias e norte-americanas revela que os estudos e orientações teóricas da Sociologia e da economia política têm estado referidos aos contextos de mercados de trabalho formalizados e de sociedades estruturadas a partir da consolidação da indústria e das grandes empresas. O processo de globalização da economia, no entanto, despertou outros tipos de curiosidade, principalmente porque o enxugamento das empresas forçou a criação de estratégias de eficácia econômica que passaram a incluir entre suas prioridades o deslocamento geográfico e o aproveitamento de vantagens comparativas oferecidas por novas regiões e localidades que se transformaram “nós” das cadeias produtivas globais. Estas análises sempre serviram de referência teórica indispensável para a sociologia do trabalho desenvolvida no Brasil, mesmo que utilizadas com a devida cautela pelo fato de terem sido elaboradas em outro contexto e de serem incapazes de captar as especificidades do emprego, do processo de industrialização tardio, de um mercado de trabalho marcadamente informal, ou da organização sindical.
Um dos principais desafios da Sociologia brasileira (e latino-americana) é justamente investigar a questão do trabalho tendo como pano de fundo, uma situação social marcada pela precariedade dos laços de emprego ou pela existência permanente do trabalho “não clássico”. O fato da Sociologia do Trabalho, desde sua origem, ter se dedicado a estudar principalmente o trabalhador industrial da grande empresa nas suas diversas reestruturações fez com que pouca atenção fosse de dicada aos trabalhadores de outros setores (inclusive do setor rural) de “tal maneira que a maioria dos conceitos formulados pela disciplina seguem arrastando suas origens industriais e modernas.” (De La Garza, 2011, p. 12). Para este autor, a realidade social tem mostrado que “o emprego na indústria tem diminuído em favor dos serviços, as micro e pequenas empresas no Terceiro Mundo não diminuíram, os trabalhos precários aumentaram junto com a aparição das novas qualificações, ou seja, cresceu a importância dos trabalhos não clássicos.”
Uma nova demanda, portanto, se coloca quando as elaborações das teorias clássicas da Sociologia do Trabalho não comportam as especificidades dos lugares e dos contextos econômicos e do trabalho, como, por exemplo, a emergência de serviços modernos e precários e de outras atividades precárias assalariadas ou não. De acordo com De La Garza (2011, p. 17),
se uma parte dos serviços implica que o produto não é separável de quem o produz ou quem o consome [...], isto implica em uma reformulação de quem são os atores no processo produtivo. Se o serviço é capitalista seguirão presentes trabalhadores assalariados e empresários [...] mas um terceiro ator entrará de maneira direta no processo de produção que não se apresenta nem como assalariado nem como patrão, que é o consumidor, o usuário [...].
Os estudos sobre trabalho passaram também a reconhecer a necessidade de recriar parcerias com outras tradições de análise social, ampliando o seu escopo de investigação para contextos extrafabris. A lógica da globalização econômica, por exemplo, atribui relevância aos “territórios produtivos”, às localidades e às regiões na estruturação em rede das empresas e introduz elementos para uma investigação sobre a ação dos atores econômicos e políticos que se reorganizam nesses espaços. Estimulada por pesquisas da geografia, da história, da ecologia, da antropologia, da ciência política e da economia, entre outras, a sociologia (do trabalho) tem condição de não só dialogar com essas disciplinas, como de aprofundar o seu conhecimento sobre a participação do mundo do trabalho, o que inclui trabalhadores e sindicatos, na constituição de novas ordenações econômicas locais e regionais, na estruturação do mercado de trabalho, nas instâncias de formação profissional e no poder de influência através das discussões públicas sobre projetos de desenvolvimento econômico.2
Uma pauta de pesquisa sobre o trabalho nas sociedades contemporâneas
Como forma de estimular a pesquisa e de colaborar para a formulação de uma pauta para discussão sobre as perspectivas da atividade do trabalho face às transformações dos últimos anos, enumero a seguir algumas considerações e sugestões como contribuição para futuras investigações sociológicas.
A questão da flexibilidade
O debate sobre a consolidação de um padrão flexível na organização das empresas e nas relações de trabalho tornou-se um dos principais assuntos para a pesquisa e a problematização na área de estudos laborais, pelo seu caráter polêmico e pela elucidação de pontos de vista diferenciados sobre as consequências sociais dessas novas dinâmicas.
A defesa da flexibilidade ganhou relevância na prática e no discurso empresarial com o argumento de que a adoção da multifuncionalidade no trabalho valorizava o trabalhador. Embora o emprego industrial continue a ser uma referência importante no mercado de trabalho, estatísticas recentes mostram que houve uma redução nessas ocupações e o “emagrecimento” das fábricas fez o setor de serviços associados à indústria crescer de modo substantivo, alterando o perfil dos trabalhadores envolvidos em todo o processo de manufatura. A ênfase no caráter positivo dessas mudanças resultou também na construção de uma crítica e um discurso sociológico divergente. As interpretações que adotam o termo “precarização” para identificar as mudanças atuais avaliam que esse processo, na verdade, reafirma e sofistica formas de exploração e dominação já existentes nos mecanismos de controle empresarial e com isso aprofundam a exclusão social. Da mesma forma, análises dos novos processos de trabalho têm constatado que, se por um lado há um aumento da margem de independência dos trabalhadores no que diz respeito à organização do trabalho, como resultado do desenvolvimento de novas tecnologias, dos investimentos em treinamentos e das gestões mais participativas, por outro lado, observa-se o agravamento da subordinação, através da subcontratação e de vários tipos de contrato temporário (Cf. Ramalho, 2011).
Tempo de trabalho
Uma das características mais marcantes do atual contexto foi a alteração da concepção de “tempo de trabalho”. Na medida em que a jornada de trabalho regulada pela legislação foi sendo gradativamente burlada pela exigência de atividades que se estendem por horários pouco comuns, ocorreu uma intensificação do trabalho e um encurtamento do tempo para a execução das tarefas exigidas pelas empresas. Esta nova situação confirma a importância atribuída ao “controle do tempo” por parte dos empregadores e coloca em debate a autonomia real dos indivíduos para decidir sobre o seu tempo de trabalho e combiná-lo com outras esferas da vida. Enquanto a estrutura da produção se subordina ao “despotismo do mercado” (Burawoy, 1985), a volatilidade da demanda afeta diretamente a organização do trabalho, apertando os horários e aumentando a pressão sobre os trabalhadores. Nos novos padrões organizacionais, o tempo de trabalho se transformou em uma variável que se ajusta às exigências da produção, e para os trabalhadores, a fronteira entre o território do trabalho e o território da vida privada, da casa, da família se tornou mais porosa, menos clara. (Cf. Cardoso, 2009).
Essa mesma situação se reproduz em outras partes do mundo e, no Brasil, adquire um contorno agravado pela presença do emprego não formalizado e das formas precárias e até degradantes de trabalho. No entanto, o que aparece como ponto a ser discutido é a complexidade do controle do tempo de trabalho e a forma como foram criados novos mecanismos de subordinação. Todos esses aspectos revelam os detalhes das novas estratégias de controle gerencial e se tornam alvos inevitáveis de investigação tanto do ponto de vista das empresas e da lógica da produção como do ponto de vista dos trabalhadores e de seus órgãos de representação. (Cf. Ramalho, 2011).
Trabalho fabril
Nesse caso, diante da implantação de estratégias gerenciais com a lógica da flexibilidade e da adoção de novas tecnologias, uma questão de pesquisa que se apresenta está referida não só ao desvendamento dos mecanismos de controle do trabalho, mas também à investigação sobre seu impacto nas práticas de resistência operária construídas e consolidadas no período fordista.
Se por um lado há experiências que indicam um aumento na margem de independência dos trabalhadores no que se refere à organização do trabalho, por outro lado, constata-se um agravamento da subordinação, principalmente nos novos tipos de contrato temporários, aumentando o poder de influência da empresa sobre o comportamento operário. Aos argumentos sobre as vantagens de uma maior autonomia contrapõe-se a estratégia de redefinição da articulação entre o coletivo e o individual, assim como por trás da redefinição de coletivo, de autonomia, estaria ocorrendo uma reapropriação da autonomia dos assalariados por parte das gerências (Cf. Linhardt, 1996; Coutrot, 1998; Appay, 1993; 1997).
A curiosidade inerente a este aspecto do controle fabril está na identificação de como ocorre o processo de reconstituição de uma cultura operária de resistência política nesse novo contexto: de que modo a exigência de mais escolarização e qualificação e de uma certa autonomia nas decisões coletivas relativas ao processo produtivo, vistas como uma estratégia para aumentar a subordinação e o poder de influência da empresa sobre o comportamento operário, podem também funcionar como uma oportunidade para se estabelecer um uso diferenciado e contestatório do sentido de coletividade imposto pelas empresas e assim recuperar um poder de reivindicação que se enfraqueceu com as transformações do mundo do trabalho.
Trabalho não clássico
O desenvolvimento teórico da sociologia do trabalho privilegiou na maior parte dos casos a investigação sobre mercados de trabalho, processos de trabalho e a regulação do trabalho assalariado, e induziu os pesquisadores a não atribuírem a importância devida à “extensão das atividades não assalariadas, assim como a extensão dos trabalhos informais, precários, inseguros, flexíveis, não estruturados, atípicos”, ou em outros termos o chamado “trabalho não clássico”. Para De La Garza (2011, p. 11-12), este descuido resultou em não se considerar essas categorias antigas e novas de trabalhadores como capazes “de constituir identidades coletivas, projetos ou sujeitos coletivos”, vislumbrando um futuro de fragmentação e redução ao individual. Para este autor, a questão que se coloca agora é “explicar as fontes da identidade e da ação coletiva entre trabalhadores situados em relações não claras de assalariamento”, e ao não se restringir ao trabalho assalariado discutir um conceito ampliado de trabalho”.
Trabalho imaterial
Outro aspecto que afeta a análise e as percepções futuras sobre o trabalho se relaciona ao trabalho imaterial. Segundo De La Garza (2011, p. 15-16), “se há algo que caracteriza e modifica os conceitos anteriores de trabalho e processo de trabalho do fim do século 20, é a extensão da produção imaterial e a transformação e geração de objetos puramente simbólicos.” O produto do trabalho imaterial comprime “as fases econômicas tradicionais de produção, circulação e consumo em um só ato”, complexificando as relações sociais de produção ao fazer intervir “um terceiro sujeito” (o consumidor) no processo de produção junto ao trabalhador e seu patrão.
Para Pochmann (2012, p. 1), esse “trabalho cujo resultado não é algo concreto, palpável, como o que predominou na antiga classe trabalhadora material, que envolvia a indústria, a agricultura e a construção civil”, tornou-se a base para a formação de um tipo diferente de trabalhador. O crescimento desse tipo de atividade trouxe também uma desconexão com a regulação pública do trabalho. Para este autor,
o direito do trabalho tal como o conhecemos, leva em conta o local específico de atuação do trabalhador. Os direitos trabalhistas (jornada de trabalho, descanso semanal, férias, acidentes de trabalho, etc.) valem somente quando a pessoa está exercendo seu trabalho no local designado para isso. Quando ela não está nesse local, os direitos não estão conectados com ela. Como o trabalho imaterial vem sendo realizado de forma cada vez mais distante do espaço em questão, há um descolamento da regulação pública.
Gênero e trabalho
Relações de trabalho flexíveis alteraram o cotidiano e a organização das famílias e introduziram de forma definitiva a questão de gênero na pauta dos pesquisadores do trabalho. Conclusões de uma investigação recente realizada na Europa demonstraram a forte interferência do uso do tempo no equilíbrio entre a vida e o trabalho (Works, 2008). O mesmo se aplica a determinados tipos de emprego no Brasil e na América Latina. Fica demonstrado que o “trabalho em tempo parcial” está no centro do debate sobre flexibilidade por ser considerado uma disposição que faz aumentar os níveis de emprego, em particular o das mulheres. Do mesmo modo se recupera o trabalho a domicílio, comum nos primórdios da revolução industrial. Segundo Holzmann (2007, p. 326), “o trabalho industrial em domicílio ressurge como expediente do capital para flexibilizar o uso da força de trabalho”, consistindo “em tarefas simples e repetitivas, parte ou etapa da produção de um produto complexo, realizado diretamente para uma empresa que produza ou monte o produto final”.
Embora esse novo perfil do mercado de trabalho possa ser visto positivamente por parte das mulheres, por permitir conciliar o emprego com outras responsabilidades domésticas, quando se discute a conciliação entre trabalho e necessidades da família, a maioria das mulheres tem problemas para lidar com as novas demandas. Tratar dos mecanismos de dominação através do trabalho no que diz respeito à vida familiar e à participação feminina tornou-se, portanto, um ponto de debate e de pesquisa essencial, no sentido de permitir avaliar a invasão do controle do tempo de trabalho em outras esferas da vida social, redefinindo diferenças tradicionais sobre o papel das mulheres na família e no emprego.
Trabalho, pobreza e exclusão social
As mudanças no universo do trabalho sugerem também uma inevitável articulação com as condições sociais para além dos muros da fábrica, associando as novas características de ocupação e emprego às questões relativas à pobreza e à exclusão social. Neste caso, está em jogo o questionamento da função integradora do trabalho na sociedade, frente à redução da presença do Estado e dos sistemas de proteção do emprego e a flexibilização das leis laborais. Cria-se, nesse contexto, uma diferenciação social importante entre o trabalhador empregado e o trabalhador pobre, com repercussão sobre diferentes setores da vida social.
Para Liedke (2007, p. 322-23), “as descontinuidades das atividades de trabalho e os longos períodos de desemprego conduzem à desestruturação de vínculos sociais outrora duradouros, no trabalho e na vida social”. Segundo Castel (1998, p. 34), o trabalho não pode ser pensado “enquanto relação técnica de produção, mas como um suporte privilegiado de inscrição na estrutura social”. Para ele, existe “uma forte corre lação entre o lugar ocupado na divisão social do trabalho e a participação nas redes de sociabilidade e nos sistemas de proteção que 'amparam' um indivíduo diante dos acasos da existência”, possibilitando “zonas de coesão social”. Assim, associar trabalho estável/inserção relacional sólida vai caracterizar uma área de integração; enquanto a ausência de participação em qualquer atividade produtiva e o isolamento relacional vão ter como consequência os efeitos negativos da exclusão.
Essa nova lógica exige mais pesquisa: “A problemática da coesão social não é a do mercado, a solidariedade não se constrói em termos de competitividade e de rentabilidade” (Castel, 1997, p. 165-166; Guimarães, 2003).
Trabalho e direitos humanos
A articulação das atividades empresariais em redes produtivas, muitas de caráter nacional e global, e a situação de precarização dos laços de trabalho ampliada pelas novas práticas da flexibilização, embora apresentadas como propostas de modernização da economia, não erradicaram as situações extremas de exploração do trabalho e a permanência injustificável de trabalho infantil e de formas de trabalho coercitivas e análogas à escravidão. Esta realidade brasileira, comum também a outros países, e que se apresenta tanto em áreas urbanas como em áreas rurais, repõe o debate sobre o uso desse tipo de prática que não só confirma a continuidade de estratégias de dominação sobre o trabalho, como também revela a face de estratégias que não respeitam direitos humanos básicos.
No Brasil, de acordo com Esterci e Figueira (2011), ao longo das décadas de 1980 e 1990, a discussão sobre “trabalho escravo” ganhou uma outra dimensão política ao servir como categoria para “designar toda sorte de exacerbação da exploração, da injustiça e da desigualdade entre os seres humanos nas relações de trabalho”. Os exemplos de degradação do trabalho se tornaram tão injustificáveis que o termo escravidão acabou servindo como denúncia de “uma forma de desigualdade no limite da desumanização; espécie de metáfora do inaceitável”, afetando a sociedade com um sentimento de indignação e que só recentemente “foi capturado por legisladores e incorporado às leis”. No final dos anos 1990 houve um avanço na interpretação sobre “trabalho escravo” no sentido de “criminalizar condutas” ainda não incluídas, legalmente, na categoria de crimes que eram, todavia, “mais nocivas” que aquelas já legalmente criminalizadas. Para estes autores, nas interpretações formais e conservadoras do direito, o conceito jurídico de escravidão estava atrelado unicamente ao critério da liberdade formal. Fazia-se necessário incluir, na conceituação dos crimes, outras práticas, como as que atentam contra a dignidade da pessoa.
Trabalho e Sindicato
A reestruturação das empresas com vistas a melhor competir em mercados globalizados, além de ter flexibilizado relações trabalhistas, trazendo insegurança e precariedade de contratos, atingiu também as ações sindicais. A questão de pesquisa que se coloca é avaliar as alternativas políticas da instituição sindical nessa nova conjuntura. Qualquer discussão teórica sobre processos de ação coletiva associados à classe trabalhadora fabril e sobre o sindicato precisa levar em conta que antigas práticas políticas se mostraram defasadas diante das novas estratégias gerenciais e diante do modo como se reconstituiu o mercado de trabalho; e que novas práticas coletivas enfrentam as dificuldades relativas a uma desfiguração gradativa do trabalho como fator fundamental para a formação de uma identidade e de um sentimento de pertencimento social.
Investigações sociológicas sobre sindicatos realizadas nos últimos anos já apontam para a existência de alterações na pauta sindical, revendo práticas anteriores e elaborando outras formas de lidar com a vida do trabalhador em sua totalidade. A nova natureza do trabalho tem aproximado as instituições de defesa dos trabalhadores de outras esferas da vida social, em particular aquelas que se organizam com base nos interesses dos trabalhadores nos lugares onde vivem. Nos Estados Unidos fala-se de uma nova forma de exercer o poder coletivo (Kalleberg, 2003), que representaria o exercício do interesse de classe não restrito à produção, mas em conjunto com o interesse de consumidores que moram em localidades.
Constata-se uma sensibilidade e, cada vez mais, uma preocupação com os destinos e a gestão das cidades e das regiões, com o meio ambiente, a saúde, a educação etc. Isso inclui, além de uma perspectiva diferente de organização e mobilização, a participação em fóruns de debates e a proposição de temas, como o papel das empresas na sociedade, os problemas da educação, os investimentos econômicos e as questões regionais, associadas à preocupação central com a temática do trabalho (Rodrigues; Ramalho, 2007). Trata-se, portanto, da necessidade de voltar aos sindicatos para identificar sua adaptação aos novos contextos e sua mudança de rumos político-organizacionais e avaliar novas formas de ação coletiva, como a retomada, por exemplo, do trabalho de base através das comissões de fábrica como forma de enfrentar a conjuntura desfavorável.
Trabalho e movimentos sociais
A discussão sobre trabalho e emprego em contextos marcados por mudanças no processo produtivo e a preocupação dos sindicatos com o impacto das novas estratégias empresariais sobre a vida das populações que vivem em localidades atingidas pela reestruturação tem significado uma busca diferenciada de mecanismos de resistência e de confronto político, tendo em vista as dificuldades impostas pelo desemprego e pela redução dos postos de trabalho. Nesse sentido, novas formas de colaboração política têm sido articuladas para reivindicar direitos sociais e direitos de cidadania. Assim, por exemplo, movimentos organizados em função de demandas ambientais, de melhores condições de vida urbana (segurança, saúde, educação), se tornam parceiros naturais dos grupos que defendem os direitos do trabalho. Da mesma forma, movimentos sociais que atuam nas áreas rurais, em confronto com as estratégias das grandes propriedades voltadas para o mercado mundial, encontram uma identificação política com as lutas dos trabalhadores rurais e urbanos pelo fato de estarem também enfrentando uma mesma lógica que tem a marca predominante dos interesses do mercado capitalista. Ganha relevância, nesse contexto, uma investigação sobre essas novas formas de manifestação e sobre as possibilidades de que a reunião de diferentes repertórios de contestação possa resultar em novas formas de pressão social que envolvam trabalhadores e cidadãos.
Trabalho, espaço e territórios produtivos
A importância de novas experiências institucionais estimuladas pela incorporação das localidades e de suas vantagens comparativas às estratégias das empresas que seguem uma lógica internacional, assim como as questões relativas ao papel das pequenas e médias empresas no mercado globalizado, insere na discussão dos estudos do trabalho a questão do espaço e de sua construção social. Do mesmo modo, a questão do trabalho e do emprego se torna essencial no debate atual sobre os espaços urbanos, pois, como afirmam Cocco et a]. (1999, p 23-24), “a transferência do 'lugar' da produção para os territórios das cidades extrapola a localização estritamente privada característica do regime de acumulação fordista. Afinal, o espaço da produção, ao deixar a fábrica e passar a se referenciar na cidade (no território), ganha uma conotação pública inexistente anteriormente”.
As localidades e as regiões experimentam de modo diferente os efeitos econômicos das mudanças ocorridas nas empresas; no entanto, essa nova conjuntura fez crescer o debate sobre estratégias de desenvolvimento econômico e social, ora para debelar a crise e decadência, ora para evitar a implementação de práticas gerenciais que resultem em redução de postos de trabalho e de desemprego. Esse processo demonstra que a questão do trabalho pode ser tratada também através da participação dos representantes dos que vivem do trabalho na constituição de novos mecanismos de organização institucional associados à problemática econômica e política regional; na ampliação do conceito de cidadania; na democratização de decisões políticas; e na maior participação da sociedade civil, o que sugere uma nova relação entre o público e o privado, baseada na negociação e na responsabilidade social dos vários atores para com a região.
Conclusão
Pesquisar e discutir o trabalho na sociedade contemporânea permanece uma tarefa essencial para os cientistas sociais preocupados em compreender a mudança social. Os novos usos, a complexificação da divisão do trabalho, a flexibilização das atividades produtivas, não reduziram a sua importância como fator essencial de manutenção do sistema capitalista e em diferentes contextos, o trabalho mantém seu caráter formador de identidades de classe. Por outro lado, os efeitos da introdução de novas estratégias empresariais e a imposição da flexibilidade como um novo padrão nas relações capital/trabalho colocaram em xeque e enfraqueceram a resistência dos trabalhadores e sindicatos ao uso continuado de práticas de emprego precário e desprotegido de regulação legal. No entanto, novas pautas foram introduzidas e questões relativas a formas de ação coletiva e de articulação institucional e política para assuntos relativos ao trabalho em territórios produtivos se tornaram parte importante das novas estratégias das instituições de representação dos trabalhadores.
Em resumo, o novo contexto deixa para os pesquisadores o desafio de rever conceitos e buscar novas interpretações sobre o funcionamento desse padrão produtivo e das formas de resistência que se constroem nos espaços de trabalho reformulados.
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Notas