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O COTIDIANO E A PRÁTICA ARTESANAL DA PESQUISA
EVERYDAY LIFE AND THE CRAFTING OF RESEARCH
LE QUOTIDIEN ET LA PRATIQUE ARTISANALE DE LA RECHERCHE
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 1, núm. 1, pp. 119-141, 2013
Sociedade Brasileira de Sociologia

Artigos


Recepção: 1 Dezembro 2012

Aprovação: 1 Fevereiro 2013

DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.26

RESUMO: Na prática artesanal de pesquisa, o que se reclama é de uma sensibilidade sociológica atenta às experiências da Vida cotidiana. O paralelo com a produção artesanal é exemplificado ao se explorarem os segredos de almofada das rendeiras de bilros. O social situado, com a sua trama de interações, é a almofada de afazeres da Sociologia da Vida cotidiana, em que se sentam os rendilhados da Vida social. As tramas da criatividade passam por uma aprendizagem processual e reflexiva, conjugando imaginação sociológica com rigor metodológico. Quem cria aprende com o que vai criando. Assim acontece na produção artesanal da Sociologia, em que o conhecimento é resultado de artes de pensar, de questionar e de fazer, cuja matéria-prima é uma espécie de barro social. Em sua forma mais bruta e realista, esse barro é o cotidiano. Com ele se bilram textos e ideias.

Palavras-Chave: Cotidiano, Prática, Social, Trama, Artesanato.

ABSTRACT: In the research craft, what is demanded is a sociological sensibility attentive to the experiences of everyday life. The parallel with craftwork is exemplified in the exploration of the cushion secrets of bobbin lace makers. The situated social world, with its web of interactions, is the cushion of tasks of a Sociology of everyday life on which the laced designs of social life are seated. The weavings of creativity involve a processual and reflexive apprenticeship, combining sociological imaginations with methodological rigour. The person creating learns from what they are creating. This is what happens in the crafting of Sociology, where knowledge results from the arts of thinking, questioning and making, the primary material of which is a kind of social clay. In its rawest and most realist form, this clay is the everyday.

Keywords: Everyday Life, Practice, Social, Weaving, Craftwork.

RÉSUMÉ: Dans la pratique artisanale de la recherche, une sensibilité sociologique attentive aux expériences de la vie quotidienne est nécessaire. Le parallèle avec la production artisanale est illustré par I ‘exploration des secrets de coussin des dentellières. Le social situé, avec sa trame d’interactions, c’est le coussin des activités de la sociologie de la vie quotidienne sur lequel s’assoient les entrelacs de la vie sociale. Les trames de la créativité passent par un apprentissage processuel et réflexif, conjuguant imagination sociologique et rigueur méthodologique. Qui crée apprend en créant. C’est ainsi dans la production artisanale de la sociologie où la connaissance est le résultat des arts de penser, questionner et faire et dont la matière première est une espèce d’argile sociale. Dans sa forme la plus brute et réaliste, cet argile est le quotidien. Avec lui se tisse textes et idées.

Mots-clés: Quotidien, Pratique, Sociale, Trame, Artisanat.

Na prática artesanal de pesquisa, o que se reclama é de uma sensibilidade sociológica atenta às experiências da vida cotidiana. O paralelo com a produção artesanal é exemplificado ao se explorarem os segredos de almofada das rendeiras de bilros. O social situado, com a sua trama de interações, é a almofada de afazeres da Sociologia da vida cotidiana, em que se sentam os rendilhados da vida social. As tramas da criatividade passam por uma aprendizagem processual e reflexiva, conjugando imaginação sociológica com rigor metodológico. Quem cria aprende com o que vai criando. Assim acontece na produção artesanal da Sociologia, em que o conhecimento é resultado de artes de pensar, de questionar e de fazer, cuja matéria-prima é uma espécie de barro social. Em sua forma mais bruta e realista, esse barro é o cotidiano. Com ele se bilram textos e ideias.

Memórias rendilhadas: o saber da experiência

Em minhas memórias de infância há uma imagem reavivada em passeios de beira-mar. Dela fazem parte mulheres com almofadas ao colo, campo de um jogo com pauzinhos cuja finalidade não alcançava. Vim mais tarde a descobrir que os sons da batida dos bilros, dedilhados com perícia, ecoavam uma arte em laboração, a renda de bilros. Em Portugal, a produção destas rendas sempre se concentrou na orla marítima (Vila do Conde, Viana do Castelo, Nazaré, Peniche, Setúbal) e nas ilhas (Madeira e Açores), justificando o aforismo que assegura que onde há rede há renda. Não admira que as artes de bilros tenham chegado ao Brasil nas mãos de mulheres de pescadores e marinheiros portugueses, disseminando-se pelo litoral nordestino e margens dos rios interioranos (como o São Francisco), estendendo-se ao sul, especialmente a Santa Catarina, região de forte colonização açoriana. Já como sociólogo, comecei a apreciar a arte de bilros com outros olhos, explorando os vínculos sociais que, na prática artesanal, se estabelecem entre quem produz e o que se produz. O que descobri foi que as rendeiras são mulheres cujas vidas se filiam nos filamentos de renda que vão fazendo, elas compõem novelas rendadas em vez de escrevê-las. Nessas novelas de vida há memórias rendilhadas que se enrolam em enredos de histórias de vida pessoais e comunitárias.

Enquanto seus homens andavam na faina do mar, as rendeiras esperavam-nos rendando nacos de realidades familiares, como as da praia: rendas de algas, conchas, lapas, peixes, búzios, estrelas-do-mar... Também no Brasil, os padrões trabalhados expressam realidades da natureza observada (renda pé de coelho, bico da baratinha, renda de coentro, rabo de pavão, entremeios de jiboia, renda céu estrelado) e de sentimentos de vida (renda do amor despedaçado, do coração desencontrado, renda da esposa ou lembre-se de mim). Ou seja, os moldes de renda refletem experiências de vida que entrelaçam heranças culturais num cotidiano vivido. Assim sendo, as rendas não são apenas entrançamentos de fios de algodão ou de linho, são também junções de fios de vida tecidos na urdidura da experiência. Por tal razão, nos motivos das rendas encontramos razões sociológicas que os explicam. O traçado das rendas não se traduz apenas numa diversidade de pontos, reproduz experiências de vida, traça também destinos prováveis de uso com marcas sociais. A renda mais acessível aos pobres é designada de Alegria de Pobre, com modelos simples e de rápida execução. Pechincha é também a renda Sabão com Gás, uns quantos exemplares vendidos garantiam à rendeira a compra, na feira semanal, de sabão e gás (querosene) para a lavagem da roupa e a iluminação da casa (Girão, 2002, p. 95). Outras rendas que escoam bem nas vendas – e, por isso mesmo, populares – ganham nomes como: Acode Precisão, Compra Café, Ajuda Pobre, Bico do Povo ou Chega a Todos. Já as rendas aristocráticas reivindicam nomes requintados, quer as de renascença (rendas Van Dyck, de Puy e de Cluny), quer as de malhas de bilros (rendas Chantilly ou Lilly).

Aqui chegados, a pergunta que se impõe: qual o propósito de uma prática artesanal de pesquisa? Quando se reivindica um modo artesanal de produção sociológica não se está propriamente a considerar o artesanato como uma ideologia ou uma estética, apenas uma forma de organização do trabalho, uma conjunção do “saber com o fazer”, uma convergência da “concepção com a execução” (Leite, 2005, p. 36), um conjunto de conhecimentos e competências, artes de fazer que – imbuídas numa ética de trabalho – partem de um conhecimento prático, ancorado a observações do cotidiano. A recuperação do “espírito do artesanato” (Sennett, 2008) para o campo da Sociologia passa por uma valorização da experiência. Também Mills (1965, p. 211-243) nos alerta para a necessidade de não separarmos o ofício de sociólogo das experiências de vida, aprendendo a usá-las como um artesão intelectual. Daí decorre que na prática artesanal da pesquisa se reivindique uma sensibilidade sociológica que valorize as experiências mundanas da vida cotidiana, tomando-as como uma fonte de inspiração para a reflexão sociológica (Pais, 2009). Olhar o social através do cotidiano nos dá ensejo de entrelaçar experiências de vida (Clinton, 1999) com vocação sociológica (Weber, 1989).

A experiência é base fundamental do conhecimento cotidiano. É um conhecimento de factualidades e situações que busca o como do que acontece. Para perceber o porquê de como a vida acontece, o conhecimento sociológico não pode também deixar de se mover no mundo das experiências cotidianas. É esta devolução do mundo da vida ao mundo do conhecimento objetivo que Merleau-Ponty (1945) reivindica na sua Fenomenologia da Percepção, ao defender que o ato metódico não se exprime numa atitude logocêntrica, dado trilhar o caminho que é caminhado pelo sujeito cognoscente do mundo que habita e que procura entender. A experiência cotidiana é evidentemente diferente da experiência sociológica, mas esta, como acontece com a experiência do artesão, pode inspirar-se naquela. Os artesãos têm essa capacidade de verterem experiências de vida na produção artesanal. Ou seja, a produção artesanal surge como uma recriação da vida cotidiana, e esta, como uma extensão da oficina. As peças de artesanato produzidas revelam experiências do cotidiano, “pedaços da vida diária, das práticas religiosas, das crenças, das festas, das tarefas domésticas, da dura luta pela sobrevivência” (Alegre, 1994, p. 136). Há tempos visitei uma conhecida ceramista paraguaia, Rosa Brítez, em sua casa de terra batida, em Itá. Surpreendeu-me a coleção de figurinhas de barro acasaladas, reproduzindo o ato sexual em variadíssimas posições. Perguntei-lhe de onde lhe tinha vindo a ideia. A resposta, sorridente, foi elucidativa: “Es mi experiencia de vida, tengo trece hijos”. É certo que, com a fama que viria a ganhar, a pressão “mercadológica” (Leite, 2005) deu-lhe asas à imaginação. Com alguma frustração, vim a saber que o meu raríssimo acervo de vinte posições fora largamente superado por uma vasta coleção de mais de uma centena de figurinhas eróticas, logo açambarcadas pelo rei D. Juan Carlos, quando as viu na Expo de Sevilha, em 1982. Como quer que seja, e aqui queria chegar, foi a experiência de vida de Rosa Brítez que lhe despertou a criatividade.

O que levou Wright Mills a escrever sobre as elites? O próprio confessa que se inspirou em Balzac, na preocupação que este tinha em registar os tipos sociais que ia encontrando (1965, p. 216). Como na produção artesanal, há que se valorizar a vida cotidiana tal como a encontramos na experiência e na observação. Foram experiências de vida da adolescência que levaram Bourdieu (2004) a abraçar a Sociologia. A conversão, como o próprio o reconhece, deu-se quando decidiu pesquisar os bailaricos que ocorriam entre jovens de meio rural, de onde ele próprio era originário, com o propósito de questionar o celibato dos primogênitos (Bourdieu, 2002). Para essa “conversão”, muito ficou a dever a Raymond Aron que o introduziu na fenomenologia, através de Schutz. Eu próprio me interrogo por quê abracei a Sociologia tendo formação em Economia. Talvez porque sempre me deixei atrair por curiosidades, inquietudes e suspeitas suscitadas por observações do cotidiano. Em minha meninice lisboeta passava tardes ao triciclo, na varanda de casa, de olho em tudo o que pudesse perturbar a tranquilidade da rua. Dessas observações de balcão como as do prostrado Jeff, da Janela Indiscreta de Hitchcock – me terá vindo a inspiração de um método que uso em minhas pesquisas sociológicas. Os pintores “futuristas” cultivavam-no. Quando pintavam uma casa, ao ver uma pessoa debruçada sobre uma varanda, subiam até ela para experimentarem as sensações plásticas que se descobrem quando alguém se debruça no balcão de uma varanda. Sentado no meu triciclo, comecei a ter apetite de rua. Mais tarde, já sociólogo, senti-me um etnógrafo urbano (Pais, 2008; 2010), deambulando pelas cidades em busca de um conhecimento de selva (arandú katy), como era designado pelos índios guarani o conhecimento feito de experiências e observações diretas. Não posso também desvalorizar a minha experiência numa banda de garagem, os Song’s Boys. Em bailes de coletividades populares não conseguia desviar o olhar do salão de dança, esquadrinhando os ritos de aproximação e as estratégias de sedução, tema de um dos meus primeiros livros, sobre rituais de galanteria (Pais, 1986). Muitas de minhas pesquisas surgiram de uma de “curiosidade espontânea” (Freire, 1997, p. 97-98), ou “ociosa”, como a designava Veblen (Barañano, 1993). Na Sociologia, como no artesanato ou na arte, o importante não é apenas buscar é também preciso criar disponibilidade para encontrar. O cotidiano é uma fonte de revelação do social.

Segredos de almofada

As rendas de bilros são executadas numa almofada onde se inscrevem os padrões. É nela que é sentada a renda (Girão, 1984), isto é, é nela onde as rendeiras tramam as figurações de sua arte. As modelagens (piques) são feitas com papelão ou cartão grosso, adequadamente perfurado com o desenho que se pretende inscrever. As perfurações são consumadas com o que mais se encontra à mão. No Brasil usavam-se espinhos de mandacaru e xiquexique, sendo os fios enrolados em ossos ou espinhas de peixe e os bilros feitos do fruto da palmeira de tucumã, caroços de buriti, macaúba etc. Os piques ou pinicados ainda hoje fazem uso dos cartões de caixas de sapatos. Quando não se usam cópias de modelos já criados, as perfurações são um prenúncio de criatividade. O talento aparece associado à arte de beliscar o papelão, como o reconhece uma rendeira do nordeste brasileiro: “Quando chega gente, manda eu ‘beliscar’ o papelão. Agora mesmo, tem um pedaço para eu ‘inventar’ papelão de camiseta e de entrada de banho [...]. Vou então ‘beliscando’, e depois de ‘beliscando’ é que vou desenhar” (Fleury, 2002, p. 269).

Estabelecendo um paralelismo com a Sociologia, a arte de beliscar encontra-se presente em muitos ensaios de Simmel, nos seus snapshots, retratos instantâneos da realidade que – quais piques ou pinicados – permitem chegar às formas elementares da interação social. Para Simmel, o desafio da Sociologia é a descoberta e identificação das formas de vida social. Em seus ensaios sobre a amizade, a coqueteria, a gratidão, a confiança ou a dependência revela uma inspiração criadora no modo como os comportamentos se inscrevem numa gênese social, ao serem lidos como formas sociais de existência que unem o passado ao presente, o simbólico ao real. Como a rendeira ou o oleiro que buscam em seus moldes formas criativas, também Simmel é um artesão que chega à ideia de “sociedade” trabalhando distintas formas de “sociação” (Levine, 1971). Norbert Elias não era indiferente a este formismo ao amalgamar o social com barro conceptual de suas imaginadas configurações sociais (Loyal; Quilley, 2004).

No Brasil, enchidas com estopa ou palha de bananeira, as almofadas têm os chamados ouvidos, onde quase tudo se arrecada: bilros excedentes, linhas, tesoura etc. (Girão, 1966, 7). Na Sociologia como produção artesanal, os ouvidos das nossas almofadas de trabalho são baús onde se guardam observações que nos levam à descoberta das subjetividades cotidianas. Elas nos chegam através de múltiplos canais de comunicação, uma vez que a subjetividade é um fenômeno intramundano e não há comunicação sem intersubjetividade. É no cotidiano que se dá uma apreensão significativa do conhecimento intersubjetivo (Schütz, 1966). É na experiência cotidiana que descobrimos o conhecimento tácito das interações sociais. Os ouvidos registam todas as informações pertinentes para a decifração do que se pretende interpretar: entrevistas, observações, documentos pessoais, fotografias etc. Da mesma forma que as rendeiras fabricam bilros com caroços de buriti ou espinhas de peixe, também a Sociologia pode produzir conhecimento através de pequenos achados do cotidiano. Em algumas pesquisas, tenho deitado mão de listas telefônicas, grafites, mensagens de pacotes de açúcar, rumores, fofocas, apelidos, anúncios publicitários ou adesivos com ditos colocados nos vidros traseiros dos automóveis (Pais, 2010). São fragmentos do cotidiano deste tipo que me permitem, de forma imprevista, esboçar muitas pesquisas. Digo bem: esboçar pesquisas. Na lógica de descoberta, vale mais o esboço do que o projeto. O bom artesão entende a importância do esboço (Sennett, 2008), na medida em que está receptivo às contingências e limitações do processo produtivo, que, desse modo, é um campo de metamorfoses. O real cria problemas, mas também oportunidades criativas. Na lógica demonstrativa, quando levada ao extremo pela Sociologia de pendor mais positivista o que se questiona é tudo o que se pressupõe. Todo o projeto é feito de conclusões prematuras. A obsessão pelos resultados previstos, ainda a alcançar, impede descobertas imprevistas, descobertas de terreno. Por isso, o bom artesão assenta o seu valor na experiência ‑ na experiência de trabalho e na experiência de vida.

O trabalho do artesão dialoga com a sua trajetória de vida. Aliás, a vida é um gerúndio, muito mais que um particípio: um faciendum muito mais que um factum, uma existência profundamente ancorada a experiências sensíveis ou assimiladas. Por que Susan Sontag se insurge contra a interpretação? Porque a cultura contemporânea é uma cultura de excesso, de sobreprodução, amortecendo as nossas faculdades sensoriais. Antes de tentar perceber o que a realidade significa é necessário mostrar “como é que o é”. Ou seja, há que se recuperarem os sentidos, mergulhar sociologicamente no cotidiano, aprendendo “a ver mais, ouvir mais, sentir mais” (Sontag, 2004, p. 32). Como o que se experimenta como pessoa se projeta na produção de conhecimento sociológico? Através da captura de pensamentos marginais: “várias ideias que podem ser subprodutos da vida diária, trechos de conversa ouvidos na rua” (Mills, 1965, p. 212) e por aí fora. Tildo vai parar aos ouvidos da almofada onde se urde a prática artesanal da produção sociológica. Mills sugere a constituição de arquivos onde se anotem observações, interrogações e ideias, de modo a que se desenvolvam hábitos de autorreflexão. Esse foi também o método sustentado por Paulo Freire (1997, p. 98) ao defender a curiosidade espontânea:

Um ruído, por exemplo, pode provocar minha curiosidade. Observo o espaço onde parece que se está verificando. Aguço o ouvido. Procuro comparar com outro ruído cuja razão de ser já conheço. Investigo melhor o espaço. Admito hipóteses várias em torno da possível origem do ruído. Elimino algumas até que chego a sua explicação.

Todas as rendas têm um ponto inicial chamado trocado. O ponto de partida é o chamamento do movimento dos bilros do qual resulta uma multiplicidade de cruzados e torcidos, variadíssimos pontos que diferenciam as rendas entre si (Girão, 1984, p. 13). A criatividade se esboça nos padrões dos tecidos e nos lanços de linhas e figuras geométricas: ziguezagues, linhas cruzadas ou quebradas, quadrados emparelhados com losangos, numa diversidade de pontos: barata, tijolo, besouro, aranha, carreira de filó, ponto de ló, batuque, rengalho, pano aberto, fechado, traçado... (Girão, 2002, p. 94). Qual é o ponto de partida da Sociologia como artesanato intelectual? É, claramente, a interrogação sociológica, os enigmas do cotidiano que nos impelem à sua decifração (Pais, 2009). Já no terreno de pesquisa, o ponto de partida se dá num terreno de trocas, de reflexividade, de comutação. O trocado é a intersubjetividade que, como atrás se sugeria, ocorre cotidianamente no domínio da comunicação e da interpretação.

O social situado, com a sua trama de interações, é a nossa almofada de afazeres onde se sentam os rendilhados da vida social. Mas o questionamento desta não se esgota em meros beliscos de interpretação microssociológica. Há que se ter em conta os moldes sociais, os chamados piques, que nos permitem ver como o social se reflete na vida dos indivíduos, nos fios sociais que eles vão tecendo em interação. Para a Sociologia somente há fatos dentro de um marco conceptual específico. Aliás, o mesmo se passa na vida cotidiana corrente. As ocorrências do cotidiano aparecem incorporadas em estruturas de congruência e significado, aplicadas pragmaticamente à vida cotidiana, que Schutz (1966; 2001, p. 224-235) designava de tipificações: mapas de significação tipificada que se relacionam com padrões tipificados de comportamento, mas também com trajetórias de vida feitas de ziguezagues, linhas cruzadas ou quebradas, turning points, relações emparelhadas numa diversidade de redes sociais. As tipificações que a Sociologia encontra na vida cotidiana, in situ, são as que Schutz designa de construções de primeira ordem, a partir das quais se chega às de segunda ordem, as do universo conceptual sociológico (Natanson, 1986). Ou seja, os conceitos sociológicos devem ser laboriosamente trabalhados numa relação de inteligibilidade com as intenções significativas que dão sentido às interações cotidianas. Os dados sociológicos têm de se adequar a contextos de significado, os que brotam das experiências do cotidiano. Por isso mesmo, a máxima sabemos mais do que conseguimos explicar guia a imaginação, não apenas na produção do conhecimento tácito (Polanyi, 1983, p. 4), mas também na produção do conhecimento sociológico.

Bilrar textos e ideias

Na produção sociológica, tudo o que se guarda nos ouvidos da almofada, vertido das escutas do cotidiano, tende a ser convertido em textos analíticos. A escrita é também uma produção artesanal como, aliás, muitos escritores o reconhecem. Gabriel Garcia Márquez, num discurso pronunciado em Cartagena das Índias, não teve pejo em confessar que sua criatividade se confinava ao cenário de um quarto na companhia das 28 letras do alfabeto (os seus bilros) e das ferramentas de qualquer artesão: os dedos da mão (Martínez, 2009, p. 18). As estratégias para lidar com “a angústia da página em branco” remetem, na opinião de alguns escritores portugueses, para uma prática de artífice. Margarida Vale de Gato confessa: “o texto é um barro fresco que eu estou sempre a transformar.” (Silva, 2010, p. 23). João Tordo reforça a ideia da arte da escrita como um processo de transformação e aperfeiçoamento: “Prefiro sempre fazer uma primeira versão em bruto, a argamassa do livro, e depois, quando acabo, refazer tudo, capítulo a capítulo” (Silva, 2010, p. 24). E como chegam as ideias? Elas surgem tão espontaneamente que urge pousá-las no papel para que não fujam. Hélia Correia afirma: “Sou capaz de escrever páginas inteiras dos meus romances em cadernos pequenos, em rebordos de revistas ou no que seja. Quando a ideia para um texto se intensifica, não a quero perder por nada e uso o que houver” (Silva, 2010, p. 22).

Na produção artesanal da Sociologia, observações do cotidiano julgadas relevantes por uma sensibilidade teórica que se adquire muito mais pela experiência do que pelos manuais devem também ser anotadas no que esteja mais à mão: fichas, guardanapos de papel, agendas ou faturas de restaurante. Os ouvidos da almofada, onde a produção sociológica se processa, de bom grado acolhem pensamentos, ideias e dados em que se baseia a reflexão sociológica. Não é má ideia guardar sempre no bolso do casaco um pequeno bloco para anotações ou um diário de campo, como também propunha Wright Mills. Em sua biografia, quando Patrick Collinson (2011) foi indagado sobre o método de investigação que usava, acabou por confessar que não tinha nenhum método, apenas um caixote com um monte de informações selecionadas. Na verdade, o seu método consistia em examinar tudo o que remotamente pudesse considerar relevante para as suas pesquisas.

A recuperação de pedaços de tecido de outros trabalhos de costura é prática corrente das tecedeiras de colchas. Mas a coleta e arrumação dos materiais é feita com critério, obedecendo a sistemas de categorização apropriada, na base da experiência cotidiana, de um conhecimento prático. Nossos alunos tendem a sentir dificuldades na transposição para a prática da pesquisa empírica dos ensinamentos que absorvem dos manuais de Sociologia sobre os procedimentos de definição de categorias porque lhes falta esse conhecimento prático. Entre as tecedeiras de colchas, a organização dos materiais em categorias é criteriosa, sob inspiração do que lhes “vai na cabeça”. Embora, como outros artesãos, não disponham de uma linguagem que ascenda a sofisticadas abstrações e generalizações, o certo é que o que as tecedeiras produzem não é alheio ao que lhes “vai na cabeça” por sucessivas mediações da experiência cotidiana.

Ponho dentro de sacos todos os pedaços de tecido que a qualquer momento me poderão ser úteis. Quando já tenho uma quantidade considerável, começo a classificá-los. Depois, separo-os por diversas caixas, tal como se se tratasse de um arquivo (...). Colo uma etiqueta em cada uma delas e anoto a cor dos tecidos, ou então escrevo: quadrados, listras ou a forma dos motivos, quando os pedaços já foram cortados [...]. Sei sempre aquilo de que preciso para fazer o que me vai na cabeça (Cooper; Buferd, 1977 apudBecker, 2010, p. 216).

Toda a minha casa está habitada por centenas de fichas com anotações e outras em branco à espera de inscrições. Também no porta-luvas do carro o que lá guardo não são luvas, apenas documentos e fichas para anotar observações ou ideias que me surgem na cabeça, ao avançar, pachorrentamente, nas filas engarrafadas de trânsito. Quando reúno boas coleções de fichas separo-as por diferentes montes de categorias ‑ isotopias, como as define Hiernaux (1997) ‑ que vou estendendo pela mesa de trabalho, para melhor mergulhar em profundidade na informação reunida. O processo baseia-se na descoberta de afinidades entre os conteúdos das fichas, que passo a acasalar como o fazem as tecedeiras de colchas ao tecerem-nas com pedaços de tecidos que vão juntando por afinidade ou contraste de cores. A comparação do ofício intelectual ao das costureiras (Ortiz, 2010, p. 178-198) remete, justamente, a traços partilhados de um semelhante labor artesanal: uma experiência de execução; operações de corte e recorte; alinhamento de bainhas ou de ideias.

Nesse trabalho de composição, quando procuro sequenciar as fichas de trabalho como prenúncio de um relato ou argumento, surgem-me questionamentos que vou anotando para futuras reflexões. Os ensaios analíticos devem ser guiados por uma indispensável sensibilidade teórica, sob pena de se afogarem numa acumulação incongruente de dados. Só assim é possível inscrever as “ideias que nos vão na cabeça” (imaginação sociológica) no processo de produção de conhecimento. Mas atenção aos usos perversos da teoria: é preferível ser ágil em processos de teorização do que ter a cabeça cheia de teorias, isto é, de ideias feitas a que teimosamente nos agarramos. Fazer teoria é diferente de usá-la como um produto ou, pior ainda, como um credo. A qualidade de um pesquisador vale mais por sua sensibilidade às exigências específicas de um problema do que por uma fidelidade cega a teorias usadas com rigidez e acriticamente.

Os mundos da arte, incluindo os do artesanato, estão sujeitos a sistemas de convenções, protocolos consensualizados de formas de agir, modos de fazer compartilhados que caracterizam hábitos de trabalho. (Becker, 2010, p. 58-79). Contudo, na prática artesanal de pesquisa que toma o cotidiano como alavanca do conhecimento, as reconstruções descritivas da realidade derivam de uma vinculação do prescritivo (de ordem teórico-metodológica) ao situacional (decisões estratégicas tomadas no decurso de um processo de investigação). A desconfiança de Nisbet (1976) para com aquelas teorias que se apresentam como um conjunto didático de princípios e corolários de caráter abstrato, formal e totalizador radica na sua semelhança a uma versão primitiva da metafísica. Daí o alerta que nos faz para o uso ingênuo e ritualista da prova na produção sociológica. A ânsia demonstrativa não legitima a validade absoluta das teorias que se usam. Se estas falham em explicar a realidade o problema não é, certamente, da realidade.

Um ganho em “pensar sobre o papel” (Wolcott, 2009) é o de fugirmos aos excessos de erudição, às citações sem nexo, à hipertrofia teórica. O lamento feito há mais de meio século por Mills (1965, p. 234) mantém-se atual: “Em muitos círculos académicos, hoje, quem tentar escrever de forma simplesmente inteligível é condenado como ‘simples literato’ ou, pior ainda, ‘simples jornalista’”. Escrever de forma ininteligível continua a conferir status enquanto Sociologia bem escrita é identificada como ‘bom jornalismo” (Hirsch, 1999). Esquece-se que a linguagem serve para comunicar. Por isso mesmo, a entrevista direta e presencial é um instrumento tão valorizado pela Sociologia. Dar à língua é uma forma artesanal de comunicação, um mergulho da coisa narrada na vida do narrador para logo depois sair dele como narração: “Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (Benjamim, 1987, p. 205).

A Sociologia nada perde em seguir algumas das técnicas descritivas usadas pela literatura. Procedimentos narrativos como os de Henri James, Dostoyevsky, Proust ou Joyce permitem-nos aceder indiretamente a aspetos secretos e sutis da vida cotidiana. Aliás, a constituição da Sociologia como um domínio científico não a impediu, desde as suas origens, de se inspirar em temas, estilos e impulsos criadores próprios da literatura, da pintura, da música, enfim, de múltiplos recursos do domínio artístico. É desse modo que se podem ler riquíssimos retratos sociológicos de tipos ideais (o burguês, o operário, o intelectual) ou paisagens sociais (as multidões, os pobres, as fábricas, as tribos). Por isso mesmo, Nisbet (1976) fala-nos da Sociologia como uma forma de arte. Contudo, a Sociologia não reproduz o visível, apenas torna visível a realidade. Mas há que se saber decifrar, apurando um modo de olhar que, na lógica da prática artesanal da pesquisa, não pode deixar de ser etnográfico (Wolcott, 2008). É suspeitosa a Sociologia que olha para o social como um espectador indiferente, de uma indiferença marcada por “frialdade”, bem evocada por Adorno (1995) quando identificava a passividade que procede de uma pretensa neutralidade axiológica. Isto não significa que a Sociologia se deva transformar num ensaísmo superficial e especulativo, alheio ao rigor metodológico (Cataño, 1995). Deslizes provocados por excessos de entusiasmo ou negligência são uma permanente ameaça, e nem deles Mills se livrou quando a sua “imaginação sociológica” deu largas a uma tendência ficcionista, como no livro que escreveu sobre a revolução cubana (Mills, 1960) ou nas cartas, escritas do Rio de Janeiro, a um imaginário colega russo (Mills, 2000). Característica do artesanato intelectual, a vigilância epistemológica sobre a produção do saber é, sobretudo, um saber ser um severo crítico de si mesmo.

Na prática artesanal de pesquisa há uma ética de trabalho que reflete uma atitude de vida. Veja-se o que define a reputação de um bom artesão. Tomando o exemplo das rendeiras, a sua arte não é apenas um simples trabalho de mãos, é, sobretudo, obra “de mãos inteligentes, dominadas pela consciência de haver de realizar um trabalho caprichoso e capaz de ser elogiado” (Oiticica, 1966, p. 31). Daí o reconhecimento e a admiração pelo trabalho virtuoso: “Gosto dessa muié/ Porque ela é muié formosa/ Faz um bilhete bem feito/ É uma renda dificultosa...” (poeta desconhecido, apudHollanda, 2002, p. 5). Também na Sociologia as questões do método não aparecem dissociadas de uma vocação assente em princípios éticos, de uma ética da responsabilidade como Max Weber (1989) a designaram. Quando Mills (2009, p. 76-80) discutia o ethos do sociólogo como artesão, o que o preocupava era, justamente, uma ética de trabalho, um modo de vida: o sentido do trabalho realizado, a satisfação intrínseca com o que se produz, a espontaneidade criativa sobrepondo-se à estereotipização banalizada, a experiência do vivido como vínculo do concebido, o conhecimento dos enredos da produção do social como estratégia de fuga às armadilhas da alienação. Por aqui também passa a imaginação sociológica cujo ethos não pode dissociar-se de uma responsabilidade social (Hironimus-Wendt; Wallace, 2009).

Qual o futuro da prática artesanal de pesquisa? Se o futuro é sombra do passado, vale a pena não perder de vista o paralelismo com o artesanato. O que se constata é que, com o industrialismo e a sua crescente inserção nos circuitos comerciais, o artesanato transformou-se numa produção em série, num produto kitsch. O kitsch tornou-se parte integrante do sistema de produção mecânico, alastrando por domínios das culturas erudita e tradicional, apropriando-se delas, falsificando-as, inscrevendo-as nas engrenagens de uma reprodução massificada. Haverá na Sociologia um equivalente kitsch? Talvez, principalmente quando se empolam distâncias em relação ao que se observa para alcançar um suporte de pretensa objetividade; quando se apela a sofisticados testes estatísticos para legitimar interpretações duvidosas; quando se usa uma linguagem esotérica só ao alcance de quem a fala; quando uma falsa erudição se pretende afirmar num rol de citações sem nexo nem sentido; quando a adaptação subordinada impede a criação insubordinada. Veja-se o que se passa com alguns repentistas sertanejos. O respeito às métricas poéticas consagradas, ou ainda os versos de algibeira que se têm à mão para dar ares de uma genuína improvisação, podem transformar as regras num objetivo em si mesmo. Quando tal acontece, a criação poética pode perder o seu encanto e naturalidade, convertendo-se num produto de automatismos (Soler, 1995, p. 104-106). O mesmo acontece quando a imaginação sociológica se acomoda à zona de conforto de inquestionáveis protocolos metodológicos e teóricos (Bohm; Peat, 1989). Neste caso, pode surgir uma interferência negativa com o livre jogo da mente, essencial no processo de criatividade. Na arte, como na ciência, seguem-se rotinas convencionais, mas a originalidade pressupõe desprendimentos circunstanciais em relação aos moldes convencionais. A arte do artesanato como a da produção sociológica está na sua capacidade de se exceder, de conseguir alcançar resultados distintos dos previstos (Mounce, 1991). Quanto mais se concebe o método como uma sucessão rígida de passos, mais decisões se tomarão sem nos apercebermos dos seus efeitos perversos (Kriz, 1988, p. 131). Por outro lado, as técnicas sociológicas de pesquisa não devem ser objeto de uma exaltação fetichista: elas são apenas um valioso instrumento de trabalho, um meio que não deve ser convertido num fim em si mesmo; caso contrário, a realidade estudada tornar-se-ia um artefato das técnicas usadas para a sua compreensão. O rigor metodológico não é incompatível com a imaginação sociológica.

Rematando

No prólogo do seu conhecido livro sobre o artífice, ao discorrer sobre a concepção shakespeariana de que “cada um é criador de si mesmo”, Sennett mostra-nos que a ideia do artesanato vai muito para além do trabalho manual especializado. Ela é aplicável a quem trabalha no campo da programação informática, da medicina, da arte e, certamente, da Sociologia. E isto por quê? Por duas razões. Em primeiro lugar, porque o artesanato representa, segundo Sennett, um impulso duradouro e básico que se expressa no desejo de realizar bem uma tarefa. Daí deriva um sentimento de orgulho no trabalho realizado, a consciência de um bom desempenho e de um compromisso ético. Em segundo lugar, porque o trabalho do artesão assenta no domínio que ele tem do processo de produção. Por isso, Mills (1965) propõe a reabilitação do “artesão intelectual despretensioso”, o que vai aprendendo com o que cria e o que vai criando com o que aprende, pois para o artesão as rotinas não são estáticas, evolucionam, ajudando-o a progredir, na base das suas experiências cotidianas. As tramas da criatividade passam por essa aprendizagem processual e reflexiva. Quem cria aprende com o que vai criando. É esse conhecimento prático, do cotidiano, que permite que o mesmo avance quando se mira ao espelho do que vai produzindo. Assim acontece na produção artesanal da Sociologia, em que o conhecimento é resultado de artes de pensar, de questionar e de fazer, cuja matéria-prima é uma espécie de barro social. Em sua forma mais bruta e realista, esse barro é o cotidiano, fonte de revelação do social.

E porque assim é, na nossa almofada de trabalho – nos seus ouvidos ‑ há que guardar as falas do dia a dia, apanhadas em contextos naturalísticos, pujantes de significado, produtoras de sentidos. As palavras são artefatos de subjetividade ao serem tricotadas nas interações cotidianas. Como nos sugere Mills (1965, p. 215), “dar simplesmente nome a uma experiência vivida nos convida a explicá-la”. Os nomes dão dessa forma origem a conceitos sensibilizantes (Blumer, 1969). Há que se ver como os nomes rodopiam sentidos no linguarejo da vida cotidiana. O conhecimento do cotidiano não existe fora da intersubjetividade, por isso mesmo é um conhecimento socialmente partilhado, quer se expresse em linguagem, significados simbólicos ou em códigos de conduta. Se o objeto da Sociologia é o social e se não há social sem indivíduos, como poderia a Sociologia desprezar o cotidiano? A Sociologia do cotidiano centra-se nos indivíduos para melhor dar conta de como o social se reflete na vida deles, mas sem perder de vista a historicidade do cotidiano (Heller, 1972; Lefebvre, 1981; Martins, 2002; 2008; 2011), que nos permite compreender como as sociedades dos indivíduos se transformam por força conjunta de estruturas sociais e predisposições individuais.

A sociedade dos indivíduos começou a ser valorizada a finais da Idade Média, com a prática de dissecação de cadáveres, o ritual da confissão religiosa, a difusão do espelho. O próprio traje aparecia estreitamente ligado ao íntimo, pondo em evidência etapas da vida, distâncias entre os sexos, distinções entre as classes sociais, hierarquias de moralidades. Fortaleceu-se então a vontade individual de distinção. A “invenção de si mesmo” requereu o aprendizado do cerimonial e da etiqueta (Ariès; Duby, 1985-87). Mas se a Sociologia do cotidiano se centra nos indivíduos e suas interações, não pode deixar de ver como o social se traduz na vida deles. Este é um dos grandes desafios na prática artesanal da pesquisa: o de trabalhar, articuladamente, com moldes (teóricos e conceituais) e práticas sociais (experiências de vida). Para tanto, há que se reivindicar uma historicidade do cotidiano. Aliás, as formas da experiência têm sido crescentemente trabalhadas no campo da história social em cuja oficina se restauram manuais de civilidade, romances de costumes, diários, álbuns de fotografias, correspondência pessoal, documentos que possibilitam novas formas de conceber o social (Lepetit, 1995). Paralelamente, a compreensão das estruturas sociais tem vindo a contemplar, crescentemente, as manifestações culturais da vida cotidiana: a alimentação, o vestuário, os corpos, a intimidade, os afetos, as sociabilidades, os ruídos, os odores, os consumos, os lazeres, as emoções, os sentimentos. Não como uma inventariação de curiosidades anódinas e triviais, mas com uma única preocupação, a da compreensão do social. De que modo? Cerzindo estruturas e açào, processos e experiência.

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