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Recepção: 1 Março 2013
Aprovação: 1 Maio 2013
DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.27
RESUMO: O texto discute e critica algumas das versões mais importantes da leitura das classes sociais brasileiras contemporâneas segundo um viés “economicista”. Por economicista entende-se a leitura da realidade social quer parte do postulado, seja implícito seja explícito, de que apenas a consideração dos estímulos econômicos já explica o comportamento social em sua totalidade. Tomam-se os trabalhos de Marcio Pochmann e de Marcelo Nerí como exemplos de leitura economicista, na sua versão marxista e liberal respectivamente e critica-se a unilateralidade e superficialidade deste tipo de perspectiva. Na segunda parte do trabalho, contrapõem-se resultados de pesquisas empíricas nacionais com as classes populares brasileiras de modo a se mostrar as vantagens de um entendimento alternativo. A riqueza da herança teórica e empírica da sociologia crítica é o fio condutor para uma percepção mais rica e multifacetada da realidade social.
Palavras-Chave: Classes, Economicismo, Invisibilidade.
ABSTRACT: The text discusses and criticizes some of the most important readings of contemporary Brazilian social classes from an “economicist” bias. By economicist I mean an interpretation of social reality that sets out from the premise ? implicit or explicit ? that the consideration of economic stimuli by itself is sufficient to explain social behaviour as a whole. Taking the works of Marcio Pochmann and Marcelo Nerí as examples of such an economicist reading, representing its Marxist and liberal versions respectively, the article criticizes the unilaterality and superficiality of this kind of approach. In the second part of the work I contrast these with the findings from national empirical studies with the Brazilian popular classes in order to show the advantages of an alternative understanding. The wealth of the theoretical and empirical legacy left by critical sociology provides the framework for a richer and more multifaceted perception of social reality.
Keywords: Classes, Economicism, Invisibility.
RÉSUMÉ: Le texte traite et critique quelques-unes des principales versions de la lecture des classes sociales brésiliennes contemporaines selon un biais « économiciste ». Par économiciste il faut comprendre la lecture de la réalité sociale qui part du postulat, soit implicite soit explicite, que seul l’examen des stimulations économiques explique le comportement social dans sa totalité. Nous avons pris les travaux de Marcio Pochmann et de Marcelo Neri comme exemples de lecture économiciste dans leur version respectivement marxiste et libérale et critiquons l’unilatéralité et la superficialité de ce type de perspective. Dans la seconde partie du travail, nous avons confronté les résultats de recherches empiriques nationales des classes populaires brésiliennes de manière à montrer les avantages d’une autre compréhension. La richesse de l’héritage théorique et empirique de la sociologie critique est le fil conducteur pour une perception plus riche et multiforme de la réalité sociale.
Mots-clés: Classes, Economicisme, Invisibilité.
O objetivo deste texto é refletir acerca das assim chamadas “classes populares” no Brasil contemporâneo. Toda intervenção no campo das ideias se dá, no entanto, dentro de um contexto já constituído com uma semântica e um conjunto de noções dominantes. Perceber isso é especialmente importante quando se trata da questão mais fundamental para a estrutura e legitimação de toda a ordem social: o tema da produção e reprodução das classes sociais. Não existe questão mais importante para a compreensão adequada de qualquer ordem social posto que: 1) é o pertencimento de classe que nos esclarece acerca do acesso positiva ou negativamente privilegiado a qualquer tipo – material ou ideal – de recurso social escasso; e, 2) dado que a sociedade moderna se legitima na medida em que “aparece” como justa e igualitária, são as justificativas para a desigualdade efetiva entre as classes que formam o núcleo da legitimação social e política que permitem que a sociedade moderna possa ser aceita como justa também pelos injustiçados e humilhados por ela.
Quando dizemos que o pertencimento de classe é a questão mais importante da vida social é porque ela não define apenas o acesso privilegiado a todo tipo de “bem material”, como a compra do carro do ano e do apartamento com varanda. Esse pertencimento pré-decide também o destino dos recursos escassos “ideais” como respeito, autoestima, reconhecimento, “cultura”, prestígio, “charme”, os quais vão permitir, portanto, não só o acesso diferencial a “empregos de prestígio e bons salários”, mas, também, o acesso a certos amigos, à “conquista” bem-sucedida de certo tipo de mulher ou de homem, e a tudo aquilo que desejamos e sonhamos acordados ou dormindo todas as 24 horas do dia. Assim, compreender a produção e a reprodução das classes sociais é a “chave mestra” para o desvelamento do “mistério” do funcionamento da sociedade como um todo.
O problema é que o descobrimento do “mistério” acerca do mecanismo de funcionamento da realidade social tem vários e poderosos inimigos. Todos os interesses e poderes que “estão ganhando” têm interesse na reprodução da sociedade injusta e desigual tal como ela é e a legitimam, por exemplo, dizendo que todo privilégio vem da ideologia da qual trataremos em detalhe mais tarde do “mérito individual”. Todas as propagandas de cigarro ou carro, todos os “Best Sellers” vendidos como romance, 90% dos filmes de grande bilheteria, todas as telenovelas, além de toda a percepção fragmentada da realidade cotidiana que confunde o principal e o secundário e ficam na superfície de toda real compreensão do mundo social também ajudam para a manutenção da opacidade social.
Mas quem termina por fechar o círculo que constrói a nossa “cegueira” acerca do efetivo funcionamento da sociedade são as “ciências da ordem”, ou seja, as “ciências” que cumprem papel semelhante às propagandas de cigarro, às telenovelas, e à fragmentação da consciência cotidiana. As ciências da ordem perfazem 80% ou 90% do que se passa por ciência, seja no Brasil, seja fora dele. As ciências da ordem “imitam” a “ciência verdadeira” apegando-se aos “artifícios de cientificidade”, exemplarmente a partir da “quantificação da realidade” afinal, os números lembram exemplarmente as ciências naturais com equações e gráficos. Mas elas não são “ciências de verdade”, pelo simples fato de que “ciência verdadeira” é apenas a “ciência crítica” desta mesma realidade. Apenas a ciência crítica é capaz de explicitar todos os conceitos que usa – para não contrabandear noções do senso comum comprometidas com a manutenção da ordem – e, desse modo, ser capaz de “reconstruir a sociedade” no pensamento como um todo. É apenas deste modo que podemos restituir a “compreensibilidade” roubada pelos interesses da manutenção e reprodução de todos os poderes que estão ganhando. A ciência social tem que ser crítica da realidade social senão não é verdadeira. Senão ela apenas reflete e reforça com o “prestígio da ciência” os mesmos preconceitos sociais que produzem e reproduzem a dominação social e sua legitimação.
Minha tese é que o tema da produção e reprodução das classes sociais no Brasil o tema que poderia estruturar uma concepção verdadeiramente crítica sobre o Brasil contemporâneo é dominando por uma leitura “economicista” e redutora da realidade social. Por “economicista” eu não imagino – gostaria que fosse ocioso dizer isso, mas infelizmente não é – algo que é atributo de “economistas”. Não estou de modo algum em uma cruzada corporativista que oporia “sociólogos” a “economistas” até porque a maior parte dos meus colegas sociólogos são, eles próprios, ou “economicistas” ou adeptos da desfiguração da realidade social que a fragmentação da disciplina em incontáveis “áreas de interesse” provoca. Mas não são apenas economistas e sociólogos que são economicistas. Toda a realidade social é “economicista” posto que é construída para receber e consumir conhecimento superficial e confundir informação com reflexão.
Iremos escolher dois dos mais eminentes economistas brasileiros para criticar o “economicismo” e perceber suas possibilidades e limites, simplesmente pelo fato de que a economia tornou-se a ciência da ordem “oficial”, inclusive tomando para si temas antes típicos de outras ciências, como o tema das classes e da desigualdade social. Duas razões são decisivas para o novo papel da Economia e dos economistas: 1) a esfera econômica é a esfera social mais “visível” – o que não significa mais importante – nos seus efeitos sobre a sociedade; e, 2)a economia logrou construir para si a partir de sua formalização matemática consequente – uma “aparência” de cientificidade derivada das ciências naturais.
Certamente a Economia tem muito a contribuir para o esclarecimento da realidade social confusa. Mas ela “aparenta” dar mais coisas do que efetivamente dá. Ela promete coisas que não entrega. Aí temos o “economicismo”: uma visão empobrecida e amesquinhada da realidade, como se fosse “toda” a realidade social. Vamos examinar a obra recente de dois dos mais festejados e reconhecidos economistas brasileiros, os professores Márcio Pochmann1 e Marcelo Néri,2 para tentar comprovar nossa hipótese. Se minha hipótese estiver correta, poderemos, na segunda parte deste artigo, a partir da demonstração precisamente daquilo que o “economicismo” esconde ou “não entrega”, reconstruir um diagnóstico mais completo de nossos problemas e desafios do que os que estão disponíveis hoje em dia no debate público brasileiro.
Limites e possibilidades do Economicismo
Ao ler o livro do Prof. Pochmann fui surpreendido com o fato de que este autor, tão sério e competente, ter feito uma alusã03 ao meu livro “Os batalhadores brasileiros: classe média ou classe trabalhadora? UFMG, 2010”, como sendo um daqueles que teriam associado a assim chamada “classe C” ao “conceito de classe média ascendente”.4 Em consideração à capacidade de interpretação do Prof. Pochmann, eu presumo que ele não leu o livro e sequer atentou ao título, o qual já antecipa o debate precisamente contra essas mesmas interpretações as quais ele me vincula, talvez na ânsia de pôr todos os autores que escreveram sobre o tema em uma mesma gaveta. Não existe uma só vírgula em todo o texto coletivo do livro que possa ter levado Pochmann a essa conclusão. O contrário é o caso. Durante todo o livro construímos o conceito de uma “classe trabalhadora precarizada” em formação, utilizando, para isso, tanto trabalho teórico de modo a compreender essa formação como ligada a desenvolvimentos recentes do capitalismo internacional, quanto trabalho empírico qualitativo de trabalhadores do setor de serviços, comércio, agricultura e indústria artesanal de todas as grandes regiões brasileiras. A verdade é que antecipamos em 2010 a conclusão principal do trabalho do próprio Prof. Pochmann dois anos mais tarde: ou seja, em suas próprias palavras, que a suposta classe C na verdade “representa uma reconfiguração de parte significativa da classe trabalhadora”.5
Quaisquer que tenham sido os motivos que levaram Pochmann tanto a ter induzido o seu leitor em erro quanto a não reconhecer que sua tese principal já havia sido formulada antes, não quero, aqui, incorrer no mesmo engano. O trabalho de Pochmann, em seu livro recente, representa para mim uma das análises estatísticas mais preciosas acerca de todo o desenvolvimento das relações de trabalho no Brasil contemporâneo. O fato de ter examinado todo o desenvolvimento recente da estrutura das relações de trabalho no capitalismo brasileiro desde os anos 70 permitiu que Pochmann pudesse perceber tendências de desenvolvimento fundamentais para qualquer análise das relações de classe neste período. Assim, o leitor tem uma ideia clara e bem construída acerca de praticamente todas as variáveis importantes das transformações estruturais do capitalismo brasileiro. Exemplos disso são os estudos sobre a evolução da composição setorial das ocupações, a evolução do saldo líquido médio anual das ocupações geradas, além de uma preciosa análise em detalhe acerca da renovação ocupacional da base da pirâmide social no Brasil nos últimos dez anos, que é o aspecto mais aprofundado em todo o livro.
Ponto talvez mais relevante de toda a pesquisa para os nossos fins aqui é a tese de que todo o movimento positivo da pirâmide social brasileira, na primeira década do século XXI, na verdade envolveu postos de trabalho que se encontram na base da pirâmide social. Nesta, os movimentos mais importantes indicam a criação de quase dois milhões de ocupações abertas anualmente, em média, para os trabalhadores com remuneração mensal de até 1,5 salários mínimos, e de 616 mil postos de trabalho anuais em média, para a parcela de ocupados pertencentes à faixa de rendimento entre 1,5 e 3 salários mínimos.6 Na maior parte de seu estudo, Pochmann se dedica a mostrar em maior detalhe o universo ocupacional precisamente desses trabalhadores.
O trabalho de Neri, assim como o de Pochmann, é também o trabalho de um virtuoso no uso de dados estatísticos. A miríade de dados dos órgãos censitários e de pesquisa do governo é tornada compreensível e agrupada de modo a estabelecer relações estatísticas importantes. Estamos tratando aqui com pesquisadores qualificados, inteligentes e de grande inventividade. Afora uma diferença de “tom”, não existe nenhuma diferença substancial entre a análise estatística de Pochmann e a análise de Neri em seu mais recente trabalho que estou usando para fins de contraposição. Ambos, inclusive, louvam os mesmos aspectos principais destes fenômenos recentes que são, para os dois, a expansão do emprego formal com carteira assinada7 , o potencial de mobilidade ascendente acompanhando de inclusão no mercado de bens e consumo8 e a diminuição da abissal desigualdade brasileira.9 Até os fatores causais dessa mudança são percebidos por ambos do mesmo modo, na medida em que os ganhos de salário real e aumento real do salário mínimo, por um lado, e o sucesso do Bolsa Família e do micro-crédito, por outro lado, são compreendidos como elementos decisivos.
Como a fonte dos dados para os dois é muito semelhante, muito da aparente diferença pode ser esclarecida pelo fato de Pochmann analisar o ganho individual, enquanto a família e seus rendimentos agregados é a unidade básica da análise estatística de Neri.10 Afora isso, as análises de ambos possuem os mesmos pontos fortes e fracos: excelente tratamento estatístico dos dados, por um lado, e carência de qualquer força explicativa mais profunda do fenômeno analisado, por outro. A única diferença efetivamente observável é que Pochmann enfatiza o fato de que estamos falando da base, da classe trabalhadora, do “setor de baixo” da população brasileira, ou seja, repete, “sem citar”, o que havíamos dito antes dele – enquanto Neri enfatiza o caráter “mediano” e ascendente deste mesmo grupo. Ainda que o modo como denominamos os fenômenos sociais seja importante, já que a forma como eles são interpretados socialmente depende disso, não basta, no entanto, “denominar” os fenômenos sociais para compreendê-los.
Efetivamente a construção do conceito de uma “nova classe média” por Marcelo Neri carece de qualquer reflexão aprofundada. Neri simplesmente toma o “rendimento médio” como indicador daquilo que ele chama de classe C ou “nova classe média”. Em seguida – imaginando com isso contornar todas as dificuldades desta noção – diz que não está falando de “classe social”, supostamente para tranquilizar os “sociólogos”, mas sim de “classes econômicas”.11 O conceito de “classe econômica” é absurdo de fio a pavio, já que ou pressupõe que as determinações econômicas são as únicas variáveis realmente importantes para o conceito de classe o que eu suponho que seja efetivamente o caso, ainda que o autor não tenha a coragem de admitir12 – ou, caso contrário, deveria simplesmente se referir a “faixas de renda” e não a “classes”. Esta última opção não é a de Neri, até porque “faixas de renda” não possuem o mesmo apelo no imaginário das pessoas do que “classe”. Ao contrário, Neri usa as tais “classes econômicas” como se fossem “classes sociais” em sentido estrito, já que o ponto decisivo não é o “modo como ele as nomeia”, mas sim o “lugar que elas assumem de fato na sua análise”. É sob este aspecto são elas, as classes sociais, e não as faixas de renda, que são o fundamento central para todas as hipóteses construídas por Neri para “explicar” o Brasil contemporâneo e seus dilemas e desafios.
O problema é que, apesar de sua intenção explícita, a análise de Pochmann não é fundamentalmente diferente da de Neri. Ao contrário, para além das diferenças superficiais já apontadas, Pochmann compartilha de todos os fundamentos essenciais da análise de Neri. Pochmann acrescenta, em relação a Neri, um estudo mais detalhado das “ocupações” que ganharam dinamismo no último momento econômico e confere menos ênfase aos dados de consumo. Assim, poderíamos dizer, utilizando as subdivisões consagradas por Karl Marx acerca da esfera econômica, que Neri pratica um “economicismo” da “distribuição”, enquanto Pochmann pratica um “economicismo” da “produção”. Mas o principal, o “economicismo”, ou seja, a crença explícita ou implícita, de que a variável econômica por si só esclarece toda a realidade social, está presente nos dois autores e contamina todas as suas hipóteses e conclusões.
Assim, ainda que eu concorde com suas críticas, dirigidas provavelmente ao próprio Neri, na introdução do seu livro, não acho que Pochmann acrescente qualquer ponto explicativo decisivo em relação a Neri que possa pô-lo no outro polo do debate brasileiro acerca dessas questões fundamentais. Citemos o próprio Pochmann literalmente:
Em síntese: entende-se que não se trata da emergência de uma nova classe – muito menos de uma classe média. O que há, de fato, é uma orientação alienante sem fim, orquestrada para o seqüestro do debate sobre a natureza e a dinâmica das mudanças econômicas e sociais, incapaz de permitir a politização classista do fenômeno de transformação da estrutura social. 13
Assim como para Pochmann, meu interesse maior é precisamente estimular com “meios do esclarecimento científico” a “politização classista” das transformações sociais no Brasil recente. O que não acredito é que o trabalho de Pochmann – malgrado as preciosas “informações” que o tratamento sério e qualificado dos dados estatísticos proporciona – tenha efetivamente contribuído de forma substancial para este desiderato. Afinal, não é simplesmente apresentando os dados – ainda que muito bem agrupados e esclarecidos – da estrutura ocupacional que se conhece e se compreende algo relevante acerca da dinâmica das lutas de classe do Brasil contemporâneo.
Esse ponto condensa precisamente todo o balanço crítico que gostaria de fazer da obra desses dois autores: ainda que o tratamento estatístico dos dados, seja no nível da produção, como em Pochmann, seja prioritariamente no nível do consumo, como em Neri, seja extremamente bem-feito nos dois casos, proporcionando “informações” valiosas para qualquer “interpretação” que se queira fazer da realidade, em ambos os casos, temos “apenas” isso: informações valiosas para uma “posterior” interpretação. O que os dois autores produzem ajuda a “mapear” um campo “a ser explorado” pelo pensamento reflexivo e interpretativo com o uso de conceitos que permitem, estes sim, problematizar a realidade em toda a sua realidade. Aí estão, em minha opinião, as possibilidades e os limites do “economicismo” e de todo conhecimento estatístico.
Como “informação” preliminar não existe conhecimento mais valioso, tanto que utilizamos, nós mesmos, dados estatísticos de estudos anteriores, tanto do próprio Neri, quanto do próprio Pochmann (e do IPEA), para escolher alguns dos “tipos sociais” de nossa última grande pesquisa qualitativa. Os dados estatísticos permitem o acesso à grandeza e à significação quantitativa dos elementos que informam a transformação dos fenômenos sociais. Daí sua importância fundamental. Interpretar a realidade sem essa ajuda pode ser desastroso. Confundir a apresentação desses dados, no entanto, com uma efetiva “compreensão” da realidade, muito especialmente dos meandros que envolvem a “legitimação do poder simbólico” indispensável para qualquer dominação social bem-sucedida – objetivo que parece estar no centro das atenções também de Pochmann é, para dizer o mínimo, muito ingênuo.
Mas aqui eu não quero apenas “dizer” a crítica. Eu quero enfrentar o desafio de “comprová-la” com o meio típico do debate científico por excelência que é a competição entre argumentos. Isso parece ser óbvio, mas, infelizmente, não o é. Entre nós confunde-se o tempo todo o poder interpretativo dos conceitos com as posições políticas pessoais ou, ainda pior, as posições partidárias dos autores que as enunciam com resultados previsivelmente lamentáveis. Por exemplo, Sérgio Buarque, que no seu livro mais importante, “Raízes do Brasil”14 criou a falsa oposição entre Estado corrupto e mercado virtuoso e o falso tema do “patrimonialismo estatal” como maior problema nacional, construindo as bases ideais modernas de um liberalismo tão cego e perverso quanto o brasileiro, é tido, por ter sido, no final da vida, um dos fundadores do PT, como um escritor “progressista”. O programa do partido liberal/conservador brasileiro mais importante, o PSDB, no entanto, é, no seu núcleo principal de defesa do Estado mínimo e combate às supostas oligarquias patrimoniais, a mais perfeita realização institucional e partidária das ideias de Buarque. Pergunto ao leitor: quem é o Buarque mais relevante, afinal: o cidadão que assinou a ficha de inscrição de um partido de trabalhadores ou o criador de uma ideia que se expandiu por todo o país e se institucionalizou em partidos, órgãos de imprensa, senso comum discutido nas ruas etc.?
O mesmo poderia ser dito de Raimundo Faoro, outra “vaca sagrada” do nosso panteão de grandes pensadores intocáveis, cuja crítica acirra ódios de muitos como se ele fosse um ente acima dos mortais e acima da crítica. Faoro, na verdade, apenas continuou o trabalho de Buarque e influenciou decisivamente a obra de alguns de nossos pensadores conservadores mais eminentes – aqueles que legitimam com meios pseudocientíficos a reprodução de todos os privilégios injustos – como Simon Schwartsmann, Bolívar Lamounier ou Roberto DaMatta. Eu ainda me lembro, adolescente, da admiração que sentia por Faoro como presidente da OAB na luta pela redemocratização do Brasil. Um liberal/conservador lutando contra uma ditadura pode demonstrar notável coragem pessoal, mas isso não torna as suas ideias “progressistas” ou verdadeiramente críticas.
Mas a confusão entre pessoa e obra é fruto da pouca institucionalização da esfera científica e, portanto, da fragilidade do mundo das ideias entre nós. Ainda hoje, a imensa maioria dos nossos intelectuais pensa que quem tem uma boa ideia deve “realizá-la”, e torná-la “prática” no Estado. Como se houvesse um abismo entre “ideia” e “prática”, quando, na verdade, as ideias são “performativas”, ou seja, elas são em si “ação”, e “pensar” o mundo de modo alternativo, ou contribuir no mundo das ideias para uma percepção crítica deste mundo já é, em alguma medida variável, mudá-lo. É por isso que o debate de ideias científicas é a primeira trincheira da luta política e da luta de classe.15 E aí, o que precisamos é de ideias que tenham o poder de “reconstruir” o mundo no pensamento de outro modo de como ele se apresenta à nossa consciência. A relação entre ciência e política não é externa, como se fossem possíveis “posições progressistas” com conceitos ultrapassados e limitados. Ao contrário, a relação é interna à própria ciência e depende da força argumentativa e do alcance interpretativo de seus conceitos.
Para o leitor atento existe um método infalível de perceber, mesmo não sendo especialista, quando ele está diante de uma perspectiva científica crítica – daquelas que reconstroem o mundo confuso em pensamento, lhe conferindo compreensibilidade ou diante de uma abordagem menos ambiciosa e passível de ser colonizada pelas noções de senso comum. É que toda abordagem verdadeiramente crítica tem que prestar conta de seus pressupostos. Um exemplo do nosso tema em discussão pode deixar esse ponto central mais claro. Pochmann critica na introdução de seu livro a abordagem de Neri – ainda que não o nomeie diretamente – porque ela seria “incapaz de permitir a politização classista do fenômeno de transformação da estrutura social.... do Brasil”.16 Concordo em gênero, número e grau com a crítica de Pochmann a Neri. Eu só não concordo com que Pochmann faça aquilo que critica, nem com que ele explique adequadamente o que entende por “estrutura social”.
O que é, afinal, “estrutura social” e, mais importante ainda, o que a estrutura social tem a ver com as “classes sociais”? Por que um estudo tão bem-feito como o de Pochmann acerca da estrutura ocupacional do Brasil nos últimos 40 anos apresenta limites que o deixam próximo do estudo mais superficial de Neri malgrado a intenção de seu autor? E, ainda, como se pode ir além, na verdade muito além, do que ambos os autores ofereceram? Essas são as três questões as quais quero me dedicar a seguir.
Para ir além do Economicismo
Quais são os pressupostos da análise de Pochmann, que ele não explicita, e quais suas limitações para perceber tanto o tema da estrutura social quanto da luta de classes? Pochmann utiliza em seu estudo noções marxistas centrais e é partir do uso consequente dessas noções que ele pretende vislumbrar a “estrutura social” do Brasil moderno e as relações de classes que ela enseja. A noção central de “capital”, definida por Marx, seguindo David Ricardo, como expressão de “trabalho acumulado”,17 servia a Marx precisamente para compreender a “estrutura social” e a dinâmica de classes por ela criada, para além da vaga e fragmentada ideia que temos dela no senso comum. Capital já era, para Marx, um conceito “relacional”, ou seja, o capital só desenvolve suas virtualidades de apropriação de privilégios em uma “situação social” concreta. Assim, a propriedade dos “meios de produção”, capital fixo, produto ele próprio de trabalho acumulado anterior “morto” e materializado nele, define a classe dos capitalistas. A classe dos despossuídos dos meios de produção de seu próprio trabalho tem que vender a única mercadoria que possui, o trabalho “vivo”, para ser empregado e explorado pelo capitalista que recebe um algo “a mais” do que investiu, seja pelos meios de produção que adquiriu, seja pelo trabalho que comprou sob a forma salarial.
Também a “qualificação do trabalho” para Marx é um produto de “trabalho acumulado” anterior. Assim, o valor maior pago ao trabalho mais qualificado, na verdade, pagaria o tempo de trabalho investido na sua formação. Essa diferença na “qualidade” do trabalho seria a principal responsável pela estratificação social interna da classe trabalhadora. E é precisamente o estudo das variações estatísticas da estratificação interna da classe trabalhadora brasileira dos últimos 40 anos que perfaz o cerne do trabalho de Márcio Pochmann.
Ainda que Karl Marx tenha sido um autor genial e o pai de toda a ciência social crítica, as ciências sociais não pararam em 1883 quando Marx morreu. Ao contrário, elas se desenvolveram e se sofisticaram pelo menos a meu ver – a um ponto em que as grandes questões marxistas clássicas puderam ser respondidas de modo muito mais convincente. O conceito central de “capital” , por exemplo, foi desenvolvida por outros autores, como o sociólogo francês Pierre Bourdieu, com um potencial criativo muito mais penetrante, esclarecedor e sofisticado do que seu uso por Marx. Em primeiro lugar, “capital” deixa de ser apenas uma categoria “econômica” , mas passa a incluir tudo aquilo que passa a ser decisivo para assegurar o acesso privilegiado a todos os bens e recursos escassos em disputa na competição social. Ainda que Bourdieu reconheça que o capital econômico é decisivo para assegurar vantagens permanentes nesta disputa, ele não está sozinho.
Para além do capital econômico, uma das maiores descobertas de Bourdieu para a ciência social crítica foi a descoberta da importância, tão central como a do capital econômico, do “capital cultural”. Capital cultural, para Bourdieu, é tudo que aquilo que logramos “aprender” e não apenas os títulos escolares. O “conhecimento”, a “ciência”, já eram fundamentais para Marx, já que a reprodução do capitalismo depende de conhecimento, seja para “qualificar” sua força de trabalho, seja para auferir ganhos em produtividade em inovações técnicas aplicadas aos meios de produção. Mas Marx era um homem do século XIX e pensava o processo de aprendizado como o de um sujeito “já pronto” que “adiciona” certo tipo de conhecimento à sua “bagagem”, como alguém enche um cesto vazio quando vai à feira do sábado. Nesta concepção, o “conhecimento” se aloja na “cabeça” do sujeito e seu corpo é um mero meio para fazê-lo caminhar e segurar a “cabeça” que envolve seu espírito.
Essa é a concepção “cartesiana” do sujeito, que era alta filosofia no século XVII e que hoje é senso comum e base das ciências da ordem. Tanto que Pochmann e Neri, homens do século XXI, usam essas pré-noções como fundamento não explicitado de seus próprios trabalhos. Eles também partem de homens e mulheres já formados que serão agrupados, seja em diferentes “agrupamentos ocupacionais”, no caso de Pochmann, seja em distintos “grupos de renda”, no caso de Néri. Onde reside, nessa discussão dos pressupostos da análise, a “cegueira de toda forma de economicismo”? Para mim, reside no fato de não perceber que a faceta mais importante do “capital cultural” é o fato de ele ser uma “in-corporação”, literalmente, “tornar-se corpo”, de toda uma forma de se comportar e de agir no mundo, a qual é “compreendida” por todos de modo inarticulado e não refletido. O “avanço científico” aqui é a superação da oposição entre corpo e espírito, em que o corpo é pensado como “matéria sem vida” e sem “espírito”, em favor de uma concepção em que o corpo é compreendido como um “emissor de sinais” e como prenhe de significados sociais.18 É precisamente esse “avanço científico” que permite perceber o trabalho da gênese e da reprodução das classes sociais e, portanto, da produção diferencial dos seres humanos que ela constitui para além da “cegueira” da percepção unilateral e amesquinhada da determinação econômica seja na produção seja no consumo.
Esse “avanço científico” que implica a percepção de outro tipo de “capital” fundamental que não apenas o econômico esclarece, inclusive, a própria ação do capital econômico e a sua relação com outras formas de capital. Afinal, o capital econômico jamais está sozinho como a “cegueira economicista” imagina. O ponto decisivo aqui é que os indivíduos são constituídos, em seus limites e possibilidades na competição social, de modo muito distinto dependendo de seu ponto de partida de classe. Esse ponto de partida envolve, basicamente, “três capitais”: o econômico, o cultural e o social. Os dois primeiros são, nas sociedades modernas, os mais importantes.
Assim, uma família de “classe média”, que tem menos capital econômico que a “classe alta”, só pode assegurar a reprodução de seus privilégios – como empregos de maior prestígio e salário seja no mercado seja no Estado se a família possuir algum capital econômico para “comprar” o “tempo livre” dos filhos, que não precisam trabalhar cedo como os filhos das classes populares, para o estudo de línguas ou de capital cultural técnico ou literário mais sofisticado. Isso mostra a importância do capital econômico mesmo para as classes que não se reproduzem majoritariamente a partir dele, como as classes altas. Ao mesmo tempo, a competição social não começa na escola. Para que possamos ter tanto o “desejo”, quanto a “capacidade” de absorção de conhecimento raro e sofisticado, é necessário ter tido, em casa, na socialização com os pais ou quem ocupe esse lugar, o estímulo “afetivo” afinal, nos tornamos “seres humanos” imitando a quem amamos para, por exemplo, a “concentração” nos estudos, ou a percepção da vida como “formação contínua”, em que o que se quer ser no “futuro” é mais importante que o que se é no “presente”.
Os filhos das classes médias, com grande probabilidade, possuem esses “estímulos” emocionais e afetivos, ou seja, possuem esse “capital cultural”, o que irá garantir a sua reprodução de classe como “classe privilegiada” em dois sentidos. Em primeiro lugar, vão chegar como “vencedores” na escola e, depois, no mercado de trabalho e ocupar espaços que as “classes populares” classe trabalhadora e “ralé” - não poderão alcançar; em segundo lugar, reproduzem também a “invisibilidade” do processo social de produção de privilégios – que se realizam na privacidade dos lares – e que podem “aparecer”, posto que sua gênese é encoberta, como “mérito individual” e, portanto, como “merecimento” dos filhos das classes médias. Que o “privilégio” apareça como “merecido” é a forma especificamente capitalista e moderna de legitimação da desigualdade social. A “cegueira” do economicismo é, portanto, dupla: ela é cega em relação aos aspectos decisivos que reproduzem todos os privilégios; e é cega, também, em relação à falsa justificação social de todos os privilégios. Em outras palavras, o economicismo é congenitamente “conservador”, posto que joga água no moinho da reprodução no tempo de todos os privilégios injustos, já que ele não possui meios “científicos” de criticar a ideologia do mérito individual.
Mas os limites do economicismo não param aí. O economicismo é incapaz até de perceber adequadamente o próprio capital econômico. A reprodução das classes altas – que têm no capital econômico seu elemento principal na luta pelos recursos sociais escassos – também depende em boa medida de outros capitais. Por exemplo, um rico sem “capital cultural” de alguma espécie – nem que seja aquela espécie de “cultura” que significa saber os novos lugares “in” no Soho em Nova Iorque, o vinho da hora, ou qual ilha no Oceano Indico é agora a legal para se levar a amante – não é levado a sério por seus pares. Ao “rico bronco” estão vedadas não apenas as importantes relações entre o capital econômico e o capital cultural, o qual possibilita a “naturalidade” a “leveza”, o “charme pessoal”, tão importante no mundo dos negócios como em qualquer outro lugar. Mas a ele estão vedadas também as relações com uma terceira forma importante de capital – ainda que secundária em relação aos estudados anteriormente – que é o “capital social de relações pessoais”.19 É este capital que permite aquele amálgama específico entre “interesses e afetos”, tão importantes para a gênese e reprodução das amizades, casamentos e alianças de todo tipo no interior de uma classe onde a reprodução dos direitos de propriedade é tão decisiva.
O economicismo é, portanto, cego em relação tanto à “estrutura social”, que implica a consideração de capitais que não se restringem ao econômico, como é cego em vista do ponto verdadeiramente decisivo em relação às classes sociais: a forma “velada” e “encoberta” de como as classes sociais são produzidas e reproduzidas. Se o economicismo é incapaz de perceber a gênese e a reprodução das classes, ele é incapaz – pelas deficiências não das “posições progressistas” pessoais de seus defensores, mas pela superficialidade de seu aparato conceitual – de compreender qualquer fato realmente importante em relação à dinâmica das classes sociais. Ele pode até “falar” de classes sociais, mas sua compreensão deste fenômeno tão decisivo e central difere muito pouco da forma como o senso comum (não) percebe as classes. É isso que permite que Pochmann trate apenas do mundo das ocupações e pense estar oferecendo uma análise verdadeiramente compreensiva das relações de classe no Brasil moderno. É isso que permite também Néri falar de “classes econômicas” envolvendo apenas faixas de renda e hábitos de consumo - e achar que está “interpretando” as novas relações de classe do Brasil contemporâneo.
Como Pochmann (nem Néri) sequer põe como problema explicar a produção de seres humanos diferencialmente aparelhados, pela herança familiar que é sempre também uma herança de classe – ou seja, a construção do “capital cultural” específico a cada classe social – para a competição social, então o pressuposto de que estamos tratando com um “sujeito genérico”, igual em todas as classes, é inescapável. Por conta disso, a investigação sobre a estrutura ocupacional não diz nada de verdadeiramente relevante acerca da dinâmica de classes do Brasil moderno porque nada se sabe acerca de sua gênese nem de sua reprodução no tempo.
Pochmann não responde – na verdade, nem sequer atenta – para o fato de que a questão principal para o problema que ele próprio quer resolver é a questão acerca do “por que?” precisamente “aquela classe” está condenada a exercer aquele tipo de ocupação e quais são os fatores que a eternizam nela. Não são as ocupações que criam as classes sociais, como parece pensar Pochmann, mas é o pertencimento a certa classe que pré-decide a “escolha” por certo tipo de ocupação. Mas só um estudo – teórico e empírico – da incorporação dos diversos tipos de “capital cultural” pode esclarecer o tipo específico de socialização que permite, ou melhor, pré-decide, a “escolha” de precisamente àquele tipo de ocupação.
Sem um estudo da “socialização anterior”, que explica a incorporação de certo tipo de capital cultural, tem-se que, necessariamente, pressupor que todos são “iguais”, um “homo economicus” que reage sempre do mesmo modo, um “sujeito genérico”, o qual é, no fundo, o sujeito típico do liberalismo clássico – sem passado, sem socialização prévia e, portanto, sem classe que o economicista engajado compra sem saber. A simples investigação quantitativa do horizonte ocupacional não nos esclarece em nada acerca do que é realmente relevante, ainda que seja uma “informação importante” neste caminho.
O engano de Néri é complementar. Saber que a população brasileira se divide em dadas faixas de renda é uma informação relevante para uma posterior análise das estruturas de classe no Brasil. Mas “apenas” isso. Porque também Néri sequer atenta – a cegueira congênita de toda percepção redutoramente economicista da realidade social que a questão central para o que ele quer saber e não sabe – é porque precisamente aquele porcentual de indivíduos logrou ascender a outros patamares de consumo, enquanto outros permaneceram onde estavam. O tamanho do “bolso” é uma informação preliminar relevante, mas sequer toca no principal. A ciência da sociedade tem como sua questão central saber por que as pessoas se comportam diferencialmente.20 Se sabemos disso, podemos “analisar” e “interpretar” a sociedade, dizer onde estão seus problemas e para onde ela tende ir. Mas não sabemos um milímetro a mais acerca desta questão se conhecemos a magnitude quantitativa das faixas de renda ou da estrutura ocupacional, ainda que essas informações sejam relevantes como informação “preliminar”.
Uma interpretação não economicista das classes populares no Brasil Contemporâneo
Como ir-se além da percepção limitada e superficial do capital econômico e com isso produzir uma percepção verdadeiramente crítica da realidade social brasileira? Esse foi precisamente o desafio que nos propusemos nas duas pesquisas que redundaram em dois trabalhos publicados subsequentemente: um trabalho sobre os “muito precarizados” socialmente, que chamamos provocativamente de “ralé”;21 e o trabalho sobre os “batalhadores”,22 ou seja, os também precarizados socialmente, mas com maiores recursos e possibilidade de ascensão social.
Os dois estudos devem ser analisados de modo combinado: só se pode “compreender” por que alguns brasileiros ascenderam socialmente se compreendemos também as razões que impossibilitaram outros brasileiros de ascender ou de terem tido ascensão menor. Os dois estudos representam, portanto, um esforço de compreender e responder àquela questão central – a única verdadeiramente fundamental – deixada de lado pelo economicismo, seja da produção, seja do consumo: afinal, o que é que faz com que alguns ascendam e outros não? Essa é a questão decisiva, posto que apenas ela pode “compreender” e “explicar” as “razões profundas, tanto da ascensão, quanto da marginalidade social”, algo que os dados e números – que são “informações” importantes, mas, jamais, “interpretações” – por si só jamais poderão fazer.
Isso não significa, obviamente, que o conhecimento estatístico não seja fundamental. Pelo contrário, nós construímos nossos “tipos ideais” das classes populares, nas duas pesquisas, com base em conhecimento estatístico, por um lado, e pelo seu “potencial significativo”, por outro lado. Assim, por exemplo, estudamos as empregadas domésticas, no livro da “ralé”, posto que 18% do trabalho feminino à época era trabalho doméstico. Como quase todas elas eram da “ralé”, que no nosso estudo estatístico especialmente encomendado para este livro abrangia 1/3 da população,23 isso significava que mais da metade das mulheres da ralé exerciam alguma espécie de trabalho doméstico. Neste caso, coincidia “significação estatística” e “significação heurística”. Mas nós estudamos, também, os “catadores de papel e lixo”, por exemplo, não porque eles são estatisticamente relevantes, mas porque seu estudo mostra, de modo especialmente “evidente”, ou seja, uma significação “heurística” , destinada a tornar clara a humilhação social, a fantasia compensatória e o abandono dessa classe presente em várias das ocupações mais humilhantes da “ralé”.
Assim, o conhecimento estatístico é um “meio” e não um “fim em si”, posto que está “a serviço” da necessidade “interpretativa”, ou seja, daquilo que vai permitir reconstruir uma realidade que não é visível a olho nu de modo novo e inédito. O que há de novo e inédito no livro da “ralé” e como ele ajuda a compreender melhor a ascensão social de setores significativos das classes populares, enquanto outros ficaram para trás? A meu ver, o que há de novo e inédito no estudo dos desclassificados brasileiros é, antes de tudo, a percepção de que eles formam uma “classe social específica”,24 com gênese, reprodução e “futuro provável” semelhante. Tanto o senso comum como a ciência dominante entre nós deixam de percebem essa classe “enquanto classe” ao fragmentá-la ao ponto de torná-la irreconhecível. Mas é possível defini-la, seja na periferia das grandes cidades do Sudeste, seja, por exemplo, no sertão do Nordeste, como a classe social reduzida à “energia muscular”, posto que não dispõe – ou não dispõe em medida significativa das pré-condições para a “incorporação do capital cultural” indispensável no capitalismo moderno para o trabalho no mercado competitivo.
Essa classe é, portanto, “moderna” posto que formada pela incapacidade estrutural na sua socialização familiar sempre de classe – de dispor dos estímulos afetivos e das pré-condições psíquicas, cognitivas e emocionais que possibilitam a incorporação do “conhecimento útil” necessário à reprodução do capitalismo competitivo. Como o economicismo, arrogantemente míope, parte do indivíduo sem passado, já adulto e igual a todos e, portanto, sem classe, esta questão central sequer é percebida como relevante, ainda que ela vá decidir, inclusive, que tipo de sujeito econômico será criado pelas distintas heranças de classe. O “capital cultural” é constituído por ambas as coisas: tanto as pré-condições afetivas e psíquicas para o aprendizado, quanto pelo aprendizado em si do conhecimento julgado útil. No caso da “ralé”, a carência e o abandono são tamanhos que a questão principal é a da ausência em maior ou menor medida – dos próprios pressupostos indispensáveis ao aprendizado do papel social de “produtor útil” no contexto da economia competitiva.
É isso também que faz com que essa classe não seja passível de ser confundida com o “lumpenproletariado” marxista, o famoso “exército de reserva do capital”, posto que no capitalismo do tempo de Marx a quantidade de “incorporação de conhecimento” necessária ao trabalhador era mínima, tanto que até crianças podiam realizar o trabalho das tecelagens de Manchester. Com o desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo, no entanto, a incorporação crescente de conhecimento aos meios de produção exige também que quem opera as máquinas – por exemplo, os robôs da indústria automobilística moderna – também seja “perpassado” por uma certa economia emocional e por conhecimento técnico. O trabalhador moderno do setor competitivo tem que ter “incorporado”, ou seja, tornado “corpo”, reflexo automático e naturalizado, tanto a disciplina e o autocontrole necessário ao “ritmo das máquinas”, como o conhecimento para sua operação bem-sucedida.
É esse tipo de “incorporação de capital cultural” que caracteriza as classes trabalhadoras modernas e que reencontramos nos “batalhadores” de nossa pesquisa. A “ralé”, ao contrário – ainda que as fronteiras entre as diversas classes populares na realidade concreta sejam na imensa maioria dos casos muito fluída, pode ser definida, para fins analíticos, como a classe “abaixo” da classe trabalhadora, posto que é caracterizada, para fins analíticos, pela ausência dos pressupostos acima definidos. Isso não significada, obviamente, que esta classe também não seja explorada. Ela o é de modo inclusive muito mais cruel, já que é jogada nas “franjas do mercado competitivo”, condenada a exercer todos os trabalhos mais duros, humilhantes, sujos, pesados e perigosos. Foram esses “trabalhadores tornados precários” que estudamos durante os quatro anos da pesquisa.
A compreensão da profundidade da exploração sistemática desses trabalhadores pelas classes do privilégio no Brasil – as classes médias que incorporam capital cultural raro e sofisticado, e as classes altas que reproduzem, antes de tudo, capital econômico sob a forma de direito de propriedade – foi, talvez, o nosso principal resultado de pesquisa. Isso implica simplesmente “poder perceber” a “luta de classes” no cotidiano de todos nós, onde ela opera de modo velado, “naturalizado” em “práticas” sociais sem discurso e sem articulação consciente, e, por isso mesmo, muito mais eficazes socialmente.
As classes do privilégio exploram esse exército de pessoas disponíveis a fazer de quase tudo. Desde o moto boy que entrega pizza, ao lavador de carros, ao trabalhador que carrega a mudança nas costas, a prostituta pobre que vende seu corpo para sobreviver, ou o exército de serviçais domésticos que fazem a comida e cuidam dos filhos da classe média e alta que, assim, pode se dedicar a estudos ou trabalhos mais rentáveis. É este tempo “roubado” de outra classe que permite reproduzir e eternizar uma relação de exploração que condena uma classe inteira ao abandono e a humilhação, enquanto garante a reprodução no tempo das classes do privilégio.
“Luta de classes” não é apenas a “greve sindical”, ou a revolução sangrenta nas ruas que todos percebem. Ela é, antes de tudo, o exercício silencioso da exploração construída e consentida socialmente, inclusive por abordagens científicas que – malgrado a intenção, como no caso do prof. Pochmann – não dispõe dos meios “científicos” adequados a essa percepção. Não é a reprodução estatística, por mais bem feita, das ocupações brasileiras que vai “permitir a politização classista do fenômeno de transformação da estrutura social... do Brasil”25 no Brasil como é a intenção do Prof. Pochmann. A percepção da “luta de classes” exige os meios cientificamente adequados a isso. Exige tornar visível a formação e a gênese das classes sociais – e, portanto, do conjunto de capitais que irão pré-decidir toda a competição social por recursos escassos – lá onde elas são constituídas de modo muito específico.
Como as classes estão interrelacionadas, é apenas a percepção de sua gênese e de suas relações específicas de reprodução e exploração precisamente como procuramos mostrar que pode aportar conhecimento não visível a olho nu e, portanto, perceber conflitos sistematicamente mascarados. Este é o ponto decisivo. A tese central do livro da “ralé” é que a “luta de classes mais importante” e, ao mesmo tempo, a mais escamoteada e invisível do Brasil contemporâneo é a exploração sistemática e cotidiana dos nossos desclassificados sociais, o que apenas contribui para sua reprodução no tempo. Não existe nenhum “problema real” que seja específico do Brasil e de países em condição semelhante que não advenha do abandono desta classe.26
Usamos o mesmo método no estudo da classe que chamamos de “batalhadores”. Aqui a questão foi tentar perceber como é possível reverter o círculo vicioso de abuso sexual generalizado, instrumentalização dos mais fracos pelos mais fortes, baixa autoestima, baixa capacidade de concentração e autocontrole, etc., que caracteriza o cotidiano de muitas das famílias da “ralé”, e as condenam a uma vida sem futuro e sem esperança. “Ascender socialmente” só é possível a quem logra incorporar as pré-condições que o capitalismo atual pressupõe para a crescente incorporação de distintas formas de conhecimento e de capital cultural como “porta de entrada” em qualquer de seus setores competitivos. A “fronteira” entre “ralé” e ‘batalhadores” a qual é sempre fluída na realidade concreta, embora, analiticamente, para efeitos de compreensão, seja importante enfatizar o contraste está situada precisamente na possibilidade da incorporação pelos batalhadores dos pressupostos para o aprendizado e o trabalho que faltam à “ralé”.
Mas por que falta a uns o que é possível a outros nas fluídas fronteiras das classes populares? A resposta dessa questão exige o passo teórico que tomamos na nossa pesquisa de criticar e complementar o esquema “utilitarista” dos capitais em Bourdieu. Ainda que a versão enriquecida dos capitais em Bourdieu possibilite que se compreenda o “cálculo” e a “estratégia” de indivíduos e classes no capitalismo, o comportamento social não é apenas “utilitário”. As pessoas também precisam dotar sua vida de “sentido”, de onde retiram tanto a autoestima quanto o reconhecimento social para o que são e o que fazem. No estudo das classes populares essa dimensão é fundamental: porque o que se retira dos dominados socialmente não são apenas os “meios materiais”. O domínio permanente de classes sobre outras exige que as classes dominadas se vejam como “inferiores”, preguiçosas, menos capazes, menos inteligentes, menos éticas, precisamente o que reencontramos em todas as nossas entrevistas. Se o dominado socialmente não se convence de sua inferioridade não existe dominação social possível.27
Precisamente para percebermos adequadamente a dor e o sofrimento humanos envolvidos nesta condição, nós acrescentamos – à dimensão bourdieusiana “utilitarista” da teoria dos capitais que não se reduzem ao capital econômico a dimensão “valorativa” do que as sociedades modernas julgam ser a “boa vida”. É a noção “prática” de “boa vida” que define o que é a “virtude” e, portanto, o que perfaz um indivíduo digno de respeito ou de desprezo. Essa dimensão é implícita e não articulada, mas todos nós nos julgamos e julgamos os outros baseados nela as 24 horas do dia. Utilizamos a reconstrução do filósofo social canadense Charles Taylor,29 julgamos socialmente uns aos outros baseados nas figuras do “produtor útil” e da “personalidade sensível”. O “efeito de distinção” produzido pela noção implícita de “personalidade sensível” foi a base do estudo mais brilhante de Bourdieu acerca das lutas de classe na França.30
Nos nossos estudos das classes populares brasileiras, procuramos tornar operacional o conceito de “dignidade” do produtor útil. “Dignidade”, aqui, é um conceito “procedural” e não substantivo, ou seja, ele não “é” um “valor moral específico”, mas um “conjunto de características psicossociais incorporadas praticamente” afetivas, emocionais e cognitivas que fazem com que tanto a “autoestima” pessoal, quanto o “reconhecimento” social sejam possíveis. É essa “seleção prática” que qualquer entrevista de emprego no mercado ou qualquer prova de concurso público procura fazer. É a mesma seleção que fazemos todos os dias acerca de quem apertamos a mão ou de quem evitamos até a usar a mesma calçada. Essa dimensão é tão “encoberta” e “escamoteada” quanto a dimensão dos capitais não econômicos. Daí que a realidade social tenha que ser “reconstruída” de modo novo em pensamento para que faça sentido.
As classes populares não são apenas despossuídas dos capitais que pré-decidem a hierarquia social. Paira sobre as classes populares também o fantasma de sua incapacidade de “ser gente” e o estigma de ser “indigno”, drama presente em literalmente todas as entrevistas. As classes com essa “insegurança generalizada”, como a “ralé” e boa parte dos “batalhadores”, estão divididas internamente entre o “pobre honesto”, que aceita as regras do jogo que o exclui, e o “pobre delinquente”, o bandido no caso do homem, e a prostituta no caso da mulher. A maioria esmagadora das famílias pobres convive com essa sombra e com essa ameaça, como a mãe da prostituta que a sustentava e que dizia à filha em uma discussão: “já fiz de tudo na vida, minha filha, mas puta eu nunca fui”.31 Como o “estigma da indignidade” ameaça a todos, vale qualquer coisa contra quem quer que seja para se conseguir um alívio momentâneo de tamanha violência simbólica.
Assim, as classes do privilégio não dispõem apenas dos capitais adequados para vencer na disputa social por recursos escassos, mas dispõem também da autoconfiança de quem teve todos os cuidados na família, de quem “sabe” que frequentou a melhor escola, que possui a “naturalidade” para “falar bem” línguas estrangeiras, que conta com as economias do pai para qualquer eventualidade ou fracasso, que conta com “exemplos bem-sucedidos” na família. Tudo isso é também fonte de recursos “valorativos” como a “crença em si mesmo”, produto de uma autoconfiança de classe, tão necessária para enfrentar todas as inevitáveis intempéries e fracassos eventuais da vida sem cair no alcoolismo e no desespero, e usufruir do “reconhecimento social” dos outros como algo tão natural como quem respira.
As classes populares, ao contrário, não dispõem de nenhum dos privilégios de nascimento das classes média e alta. A socialização familiar é muitas vezes disruptiva, a escola é pior e, muitas vezes, consegue incutir com sucesso “insegurança” na própria capacidade,32 os exemplos bem-sucedidos na família são muito mais escassos, quando não inexistentes, quase todos necessitam trabalhar muito cedo e não dispõem de tempo para estudos, o alcoolismo, fruto do desespero com a vida, ou o abuso sexual sistemático são também “sobrerepresentados” nas classes populares. Os efeitos desse ponto de partida acarretam que a incorporação da tríade disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo, que está pressuposta tanto em qualquer processo de aprendizado na cola quanto em qualquer trabalho produtivo no mercado competitivo, seja parcial e incompleto ou até inexistente.
Sem disciplina e autocontrole é impossível, por exemplo, se “concentrar” na escola; daí que os membros da “ralé”, que analisamos no nosso livro anterior sobre essa classe, diziam repetidamente que “fitavam” o quadro negro por horas a fio sem aprender. Essa “virtude” não é natural, como pensa o economicismo, mas um “aprendizado de classe”. Por outro lado, sem pensamento prospectivo, ou seja, a visão de que o futuro é mais importante que o presente – não existe sequer a possibilidade de condução racional da vida pela impossibilidade de cálculo e de planejamento da vida pela prisão no “aqui e agora”.
No contexto das classes populares, nosso estudo dos batalhadores se concentrou na determinação das fronteiras que os separam da “ralé”, por um lado, e da classe média verdadeira, por outro. Observamos, por exemplo, fontes importantes de “autoconfiança” individual e de solidariedade familiar baseada na socialização religiosa, temas negados por estudiosos conservadores.35 A religião também pode ser fundamental na redefinição da ética do trabalho de mulheres que o racismo havia condenado ao destino de objeto sexual.36
Assim, do mesmo modo que a não incorporação familiar, escolar e social dos pressupostos de qualquer aprendizado e trabalho moderno é o que produz e reproduz a ralé, os “batalhadores” representam a fração das classes populares que lograram sair deste círculo vicioso. Como as fronteiras aqui são muito fluídas, isso significa que não existe “classe condenada” para sempre. Com condições políticas e econômicas favoráveis, os setores que lograram incorporar, seja por socialização religiosa tardia, seja por pertencerem a famílias comparativamente mais bem estruturadas – malgrado o ponto de partida desvantajoso comum a todas as classes populares – a incorporação das pré-condições para o desempenho do papel social do “trabalhador útil”, podem ascender socialmente.
Além da importância inegável, para classes socialmente tão frágeis, da variável religiosa, procuramos perceber a dinâmica e os efeitos da incorporação, ainda que tardia, familiar e extrafamiliar, dos pressupostos emocionais, afetivos, morais e cognitivos para a “ação econômica racional” nas classes populares. Este é o caminho oposto de toda forma de economicismo que simplesmente “pressupõe” e, portanto, “naturaliza” o “ator econômico universal”, escondendo a “luta de classes” que implica, precisamente, uma incorporação diferencial e seletiva desses pressupostos. A maior parte do livro, inclusive, se dedica a compreender, levando em conta as desvantagens do ponto de partida das classes populares: como se aprende, na “prática”, com erros e acertos, por exemplo, a “ser um trabalhador” ou a calcular e a administrar um pequeno negócio de um trabalhador autônomo?39
O nosso livro tratou da ascensão social, portanto, como um conceito “relacional”. Quando se trata o tema da ascensão de maneira relacional é possível perceber, por exemplo, como a ascensão também traz consigo sofrimento, esforço, assim como o próprio medo de uma possível desclassificação social futura. Se tratamos o tema da ascensão social desta maneira, foi para demonstrar que ascensão não é uma categoria linear de um ponto ao outro, como um “trem social” que se pega de uma classe à outra. Ela não é uma “bala” que vai de um ponto a outro sem encontrar obstáculo. Qualquer entrevista no livro comprova isso. Para levar o conceito a sério, temos que considerar a ascensão social como uma prática em constante reafirmação, um jogo social, cujos participantes são postos à prova a todo o momento com o fantasma da queda social e da desclassificação sempre à espreita.
Mas temos a clara compreensão de que o nosso próprio trabalho foi apenas uma primeira aproximação neste horizonte tão novo e tão desconhecido. Seria muito desejável se os estudos estatísticos bem-feitos pudessem ser associados a trabalhos sociológicos mais refinados para os estudos posteriores dos diversos “ambientes sociais”, os “millieus”40 ou “frações de classe” em movimento na nossa sociedade.
Apenas assim seria possível perceber e ter uma ideia mais clara dos fatores que estão em jogo, tanto na ascensão, quanto na estagnação ou decadência social dos diversos setores das classes populares brasileiras no atual momento do capitalismo mundial.
O que faz uma concepção “triunfalista” das classes populares no Brasil, como a defendida pelo Prof. Marcelo Néri onde apenas ascensão social e “felicidade”41 são percebidos – ser tão cientificamente superficial e politicamente conservadora é precisamente a negação sistemática de sofrimento e da dor do dominado e do humilhado socialmente. Afinal, é apenas conhecendo e reconhecendo a dor e o sofrimento injustos que podemos mitigá-lo. “Enfeitá-lo” e negá-lo é, ao contrário, a melhor maneira de torná-lo eterno. De certo, apenas, a certeza de que um Brasil melhor se faz “olhando nossos problemas e mazelas nos olhos”, difíceis e desafiadores como eles são. Não existe nenhum outro caminho para o aperfeiçoamento individual ou coletivo. A escolha é nossa.
Notas