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ARTESANATO DO SABER NA IDEIA DE UNIVERSIDADE: COMPARAÇÕES INTERNACIONAIS
KNOWLEDGE CRAFT IN THE IDEA OF THE UNIVERSITY: INTERNATIONAL COMPARISONS
L’ARTISANAT DU SAVOIR DANS L’IDÉE DE L’UNIVERSITÉ : COMPARAISONS INTERNATIONALES
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 1, núm. 1, pp. 175-204, 2013
Sociedade Brasileira de Sociologia

Artigos


Recepção: 1 Março 2013

Aprovação: 1 Maio 2013

DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.28

RESUMO: As universidades contemporâneas são fruto de uma longa tradição: desde as academias platônicas da antiguidade, das primeiras universidades na Idade Média e da reformulação da sua concepção por Schleiermacher e Humboldt no início do século XIX, estendem-se experiências institucionais que colocaram a pesquisa e o ensino, no seu nível mais complexo, no centro das suas atenções. A universidade massificada contemporânea parece, em muitos dos seus aspectos, incompatível com a ideia inicial de universidade; nesta situação, com a quantificação da qualificação, rankings internacionais tentam reordenar o campo da ciência e da formação de jovens cientistas, com resultados por vezes óbvios, por vezes duvidosos. As experiências universitárias brasileiras compartilham a tradição universitária europeia e, por serem tardias, confrontam-se, sobretudo, com os problemas da sua última fase: a universidade em expansão quantitativa.

Palavras-Chave: Universidade, Pesquisa, Ensino, Humboldt, Rankings.

ABSTRACT: Contemporary universities are the result of a long tradition: from the Platonic academies of Antiquity, the first universities of the Middle Ages and the reformulation of their design by Schleiermacher and Humboldt at the start of the nineteenth century, institutional experiences were developed that placed research and teaching at their most complex level at the centre of their attentions. The contemporary mass university seems, in many aspects, incompatible with the initial idea of the university: in this new situation, with the quantification of qualification, international rankings attempt to reorder the field of science and the training of young scientists with sometimes obvious and sometimes dubious results. Brazilian university experiences have evolved from the European university tradition and, being more recent, primarily confront the problems of its last phase: the university in quantitative expansion.

Keywords: University, Research, Teaching, Humboldt, Rankings.

RÉSUMÉ: Les universités contemporaines sont le fruit d’une longue tradition : depuis les académies platoniciennes de l’antiquité, les premières universités du Moyen Age et de la reformulation de leur conception par Schleiermacher et Humboldt au début du XIXe siècle, les expériences institutionnelles qui ont mis la recherche et l’enseignement à un niveau plus complexe, au centre de toutes leurs attentions, s’étendent. L’université de masse contemporaine semble, par beaucoup de ses aspects, incompatible avec l’idée initiale de l’université ; dans cette situation, avec la quantification de la qualification, les rankings internationaux essaient de réorganiser le champ de la science et de la formation des jeunes scientifiques, avec des résultats tantôt évidents, tantôt douteux. Les expériences universitaires brésiliennes partagent la tradition universitaire européenne et parce que tardives, elles se voient confrontées surtout aux problèmes de sa dernière phase : l’université en expansion quantitative.

Mots-clés: Université, Recherche, Enseignement, Humboldt, Rankings.

Precursores: as academias

Quando começa a história das universidades? Apesar do uso do termo “Universidade” já no século XI, parece a sua história mais longa ainda, pois o termo “academia”, que frequentemente se confunde com o termo “universidade”, conhecemos desde a antiguidade grega. Em 387 a.C. Platão, depois do estilo informal e dialogal do seu mestre Sócrates de filosofar (informal, pois este nem tinha escola nem deixou textos escritos com suas ideias), inovou e comprou um terreno, na verdade um pequeno bosque, em Atenas, e construiu lá a primeira academia: Ἀκαδήμεια. O nome academia deriva-se do nome desse bosque, consagrado ao Heros attico Akademos. Desde 387 a.C. chamamos, então, os alunos de Platão de “acadêmicos”.

A academia se tornou um lugar sui generis do pensamento grego e conseguiu sobreviver dentro da cultura do império romano até a teologia cristã se tornar hegemônica. Até 268 a.C. o currículo abrange as seguintes disciplinas: metafísica, ontologia, teoria do conhecimento, dialética, ética, teoria do estado, geometria, astronomia, cosmologia, física e filosofia teológica. A partir de 268 a.C. começa uma nova fase da academia, cujos líderes (escolares) radicalizam as técnicas da disputatio e da dúvida metódica; críticos dizem que, de forma tardia, venceram os sofistas, que levaram a academia a um ceticismo meramente retórico. Em 86 a.C. os romanos, sob comando de Sulla, devastam o bosque da academia. Com isso, depois de uma tradição de quase 300 anos, a academia sucumbe definitivamente, cujas fundações podemos visitar ainda hoje. No século V temos uma tentativa de reerguer a academia platônica, mas o cristianismo já tinha se tornado religião de Estado e os neo-platônicos, como Proklos, tornam-se um fenômeno importante, todavia isolado, na história do pensamento ocidental. Tentativas de reanimar a ideia da academia platônica conhecemos desde o séc. XV, mas a repetição da história do pensamento grego foi impossível, voltando a antiguidade para a pauta europeia na forma dos seus autores, com Aristóteles em primeiro lugar. Na verdade, esse processo já tinha seu início três séculos antes, com a fundação das primeiras universidades europeias a partir do século XI.

As universidades medievais

A primeira “universidade” foi fundada em Parma, na Itália, no ano 1065. Então num tempo que estamos acostumados de chamar Idade Média1. Cento e nove anos depois, em 1175, seguem as universidades de Bologna e Modena e, a partir daí, acontecem várias fundações em diferentes países, ou melhor, cidades, da Europa. Pádua (1222), Napoli (1224), Siena (1240), Macerata (1290) na Itália; na França, Paris (1175) e Toulouse (1229); na Espanha, Salamanca (1218), Valladolid (1250); em Portugal, Lisboa (1290) e Coimbra (1290); na Inglaterra, Cambridge (1229), Oxford (1249); na Alemanha, com um certo atraso, Praga (1348), Viena (1365), Heidelberg (1386), Colônia (1388), Erfurt (1392). A Alemanha, por enquanto no fim da fila, conseguiu até o fim do século XVIII fundar quase 50 universidades e assumiu a partir daí, na Europa, a liderança no campo da formação acadêmica institucionalizada. Com isso, a Alemanha alcança um número de universidades que ficou praticamente constante até os meados do século vinte. Somente a partir de 1950, com o surgimento da universidade das massas, esse número dobrou mais uma vez.

As primeiras universidades tinham pouco mais do que 200 estudantes e uma dúzia de professores. O século vinte, na sua primeira metade, já conhece universidades grandes com 2000, 3000 ou até 4000 alunos, números que nos parecem hoje minúsculos, pois, não raro, uma universidade ultrapassa atualmente o número de 40000 alunos matriculados. Em todas as estatísticas internacionais podemos identificar esse salto quantitativo: nos EUA, já nos anos 50, e nas duas décadas seguintes em todos os países do mundo. O termo “universidade massificada” ou “universidades das massas” surge e, é hoje uma referência recorrente que sinaliza uma profunda mudança na concepção e realidade daquilo que chamamos universidade.

As primeiras universidades desenvolveram-se num contexto religioso, mais precisamente no contexto da igreja católica. Com isso a faculdade de teologia tinha uma posição de liderança sobre as demais, a faculdade jurídica e a da medicina. Mais tarde surgiu a faculdade das artes liberais, que era, por sua vez, o nascedouro da faculdade da filosofia e das ciências matemáticas e naturais. As universidades sempre oscilaram na sua dependência dos poderes clericais ou estatais e, não obstante, conseguiram com mais ou menos sucesso ter reconhecidas sua autonomia e seu direito à autoadministração. A ideia da liberdade da pesquisa e do ensino era, desde o início, vinculada à ideia da universidade, liberdade que frequentemente era garantida pela própria igreja. Também as formas, digamos didáticas, das universidades dos séculos 12 e 13 eram, surpreendentemente, para alguém que se acostumou de ver nestes séculos a idade das trevas, aberta. Lectio e disputatio, a leitura com a seguinte disputação sobre o sentido daquilo que foi lido, promoveram a discordância argumentativa e encontravam seus mestres em homens como Tomás de Aquino, professor visitante na Universidade de Paris, e seu contemporâneo Eckart, professor convidado da mesma instituição. Nomes como Abalaerd, Duns Escotus e outros testemunhavam que as universidades medievais tinham luz própria e seus protagonistas, bastante coragem para enfrentar tanto a ignorância humana como doutrinas consagradas.

Muitos dos nossos costumes acadêmicos têm nos séculos 13 e 14 sua origem. Os nossos títulos magister artium, o mestre das artes livres, ou o doctor philosophiae, o título que também o doutor em sociologia recebe, remontam a esse tempo. E, quem diria, uma defesa de uma tese de doutorado acontece nas formas que herdamos da universidade medieval e da Santa Inquisição, na época frequentemente composta por membros da faculdade de teologia e examinadores externos vindos de Roma ou da metrópole mais próxima. Defendemos uma tese porque estamos sendo questionados ou, por vezes, atacados pelos representantes da doutrina oficial. Defender-se bem era importante nestes tempos, como sabemos; dominar a retórica, a lógica, o argumentum e as técnicas da disputatio podia decidir sobre seu futuro. A coragem de enfrentar os outros e os poderosos, o mainstream, como diríamos hoje, os universitários herdaram dos seus ancestrais, dos acadêmicos. Sócrates, acusado de perturbar a ordem pública e de seduzir os jovens, preferiu aceitar a sentença, o suicídio através do envenenamento, em vez de abdicar das suas teses.

Este compromisso, às vezes beirando o fanatismo; este compromisso que os acadêmicos, os intelectuais, têm com a busca da verdade, com a defesa da tese certa, permeia a história das universidades de forma particular. “A verdade”, termo tão démodé nos tempos atuais, persegue os universitários, também quando estes deixam de persegui-la. O mundo da ciência, que ganhou contornos cada vez mais nítidos junto com o desenvolvimento institucional das universidades, não é o mundo da fé, nem da autoenganação e muito menos da mentira. A verdade fascina tanto o religioso como o cientista, mas é para este último uma eterna busca de algo que ele nunca vai alcançar plenamente. Aproximações e probabilidades deixam a verdade transparecer, mas são somente isso: aproximações e probabilidades. Também o correto, que os colegas das ciências exatas por vezes confundem com a verdade, não resolve o dilema do nosso universitário. A verdade, essa estrela que guia a caminhada do pesquisador, fica sempre fora do alcance das nossas mãos e das experimentações científicas. A relação que os acadêmicos têm com a verdade é sempre uma relação de busca. Quem começa a defender verdades em vez de teses deixa de ser um acadêmico e torna-se um ideólogo. O ideólogo sabe o certo e promulga isso como se fosse o verdadeiro. O ideólogo sabe que o pré-conceito é sempre dos outros, e coloca a ideia da justiça ou da igualdade no lugar onde o cientista somente opera com a dúvida metódica, herdada de Sócrates e Descartes. Mas assim pode perguntar alguém: a verdade então não existe, ela é relativa, ela é eventualmente uma construção? E assim respondemos: a estrela no firmamento não existe? Ela existe. Existem coisas que nós não alcançamos, mas que existem; existem coisas que nós não construímos, mas que nos antecedem e que nos transcendem. E a verdade é uma dessas coisas, uma estrela, um guia, algo que transcende os fatos e as estatísticas.

Pois as universidades medievais, centros da disputa entre leituras diferentes, entraram com o formalismo da escolástica tardia, no fim do séc. 14, numa fase de declínio que somente o renascimento e a reforma conseguiram superar, para dar lugar a um novo ciclo de certa passividade, no fim do séc. 17 e início do séc. 18, ao ponto que Paolo Rossi (1997/2001), no seu estudo histórico sobre o nascimento da ciência moderna na Europa, pode dizer: “A ciência moderna nasceu fora das universidades...” (Rossi, 1997-2001, p. 10).

Fundações de universidades de um novo tipo (Kaufmann, 1888; 1896) começaram a superar a estagnação quando a pesquisa empírica, os experimentos e as observações ganharam status privilegiado. Assim, com as universidades de Halle (1694) e Göttingen (1736), onde as ideias do iluminismo marcaram toda uma geração, viu-se o início de uma nova época da história das universidades. O coroamento dessa concepção de universidade, iluminista e científica, é a fundação da universidade de Berlin, em 1810, sob liderança decisiva de Wilhelm von Humboldt.

A universidade de Schleiermacher e Wilhelm von Humboldt

Já em 1808, Friedrich Schleiermacher tinha preparado o terreno com a publicação do seu estudo programático “Pensamentos ocasionais sobre universidades no sentido alemão” (Schleiermacher, 1808), argumentando a favor de uma distinção entre escola, universidade e academia. A escola seria a convivência dos mestres com os aprendizes; a universidade seria a comunidade dos mestres com os Gesellen (os aprendizes avançados) e a academia, finalmente, seria a união dos mestres com os mestres. Aí, na academia, é o lugar onde os mestres da ciência produzem obras, que contribuem para o progresso do conhecimento. Somente as obras que trazem novidades deveriam ser expostas a um público maior, deveriam ser publicadas. As escolas, na base dessa hierarquia, devem estar sob liderança de pessoas cientificamente formadas, mas elas mesmas devem se abster da produção científica. Todavia, a escola tem a tarefa nobre de preparar os jovens para a ciência, na medida em que ela apresenta todo horizonte do conhecimento, com suas diversas disciplinas, e introduz, na sua versão ginasial, o pensamento sistemático e abstrato. A matemática e a gramática seriam as disciplinas com a maior vocação para introduzir o aluno no pensamento metódico.

A universidade representa para Schleiermacher a unidade institucional de todas as ciências; ela é o lugar da totalidade do conhecimento. Nela desenvolve-se no estudante a capacidade de pesquisar e de inovar por conta própria. Ainda assim ela é preparo e exercício, não obstante, no nível da ciência contemporânea. Bem no espírito da sua época, i.e. do idealismo alemão, Schleiermacher vê na universidade o lugar do despertar da ideia do conhecer, da consciência da razão como princípio norteador do homem culto (Schleiermacher, 1808, p. 34). No processo pedagógico revelam-se cada vez mais os talentos e vocações. No início, quando o aluno ainda está em formação dos seus interesses e habilidades, devem ser oferecidas as múltiplas formas do conhecimento para possibilitar escolhas posteriores já mais específicas. Para os alunos e estudantes que não mostram a vocação e a habilidade científicas deveria ser aberto o caminho, não menos honroso, na direção das artes técnicas ou manuais, tão necessárias para a sociedade como a ciência. A academia, finalmente, é somente para poucos. Schleiermacher recomenda, para a Alemanha de 1808, uma ou no máximo duas dessas academias.

Na época de Schleiermacher existiam nas universidades da Alemanha quatro faculdades, eram elas: a teológica, a jurídica, a da medicina e a filosófica. Os estudantes eram submetidos aos exames finais, correspondendo ao grau de Magister Artium e Doctor, mas tinham plena liberdade de compor, por conta própria, seu currículo. Apesar dos desvios de conduta frequentes dentre uma minoria dos estudantes que abusaram de tal privilégio, Schleiermacher defende com fervor a liberdade acadêmica, necessária para formar um espírito científico autônomo em cada um. Com a mesma convicção defende a autonomia da universidade em relação ao Estado, independência igualmente importante para garantir o desenvolvimento científico sem restrições, em exercício livre das faculdades científicas. No escrito de Schleiermacher de 1808 anunciam-se as ideias e reformas propostas por Humboldt que deveriam definir os rumos das universidades alemães durante todo século XIX até o início do século XX, com consequências para a ideia e realidade da universidade além das fronteiras da Alemanha, que nesta época, vale lembrar, ainda nem existia como Estado nacional, mas enquanto conglomerado de dúzias de territórios independentes.

Humboldt, o fundador da Universidade de Berlin que carrega até hoje seu nome, representa como ninguém uma ideia da universidade que, apesar de quase irreconhecível nas universidades de massa de hoje, definiu idealiter e realiter o lugar onde a ciência moderna encontrou um espaço sui generis. É conhecido que a reforma humboldtiana não abriu mão do ideário iluminista, situando-se, assim, ainda longe de um racionalismo e materialismo radical que mais tarde tomou conta da maior parte das ciências, que nasceram, não obstante, em outro contexto. Humboldt dedica a sua universidade “Ao Bem, ao Belo e ao Verdadeiro” e, desse modo, compromete a ciência moralmente (ao Bem), esteticamente (ao Belo) e filosoficamente, para não dizer transcendentalmente (ao Verdadeiro).

Quais eram as principais ideias de Humboldt sobre a universidade?

Humboldt, que nunca visitou uma escola pública ou particular, pois foi educado por professores privados em casa, já falava grego e latim com treze anos de idade. A elas se associaram durante sua vida outras línguas, que estudou sistematicamente, construindo em vários estudos e publicações os fundamentos da linguística contemporânea. Wilhelm von Humboldt era o irmão mais velho de Alexander von Humboldt, um dos mais ilustres pesquisadores da América do Sul, conheceu pessoalmente Goethe e Friedrich Schiller, com quem teve durante anos contatos amigáveis intensos, e foi profundamente moldado pelos ideais do iluminismo. Politicamente pode ser visto como um liberal, pois defendeu na sua atuação administrativa e diplomática a liberdade como a condição fundamental da evolução humana e do progresso da ciência. Sem muito êxito no plano político, pois suas ideias contrastavam com o espírito restaurativo da monarquia prussiana da época, deixou, não obstante, um legado importante: a reforma prussiana do sistema de educação e, no seu topo, a fundação da Universidade de Berlin em 1810.

Seguindo a proposta de Humboldt, foi introduzida a escola elementar de três anos, seguida pelo ginásio com duração de dez anos e que deveria preparar o jovem para a universidade. Central na concepção de Humboldt era manter a universidade livre da influência ou dependência tanto do Estado como das igrejas. Interesses empresariais, também, deveriam ficar longe dessa universidade, comprometida com uma ciência entendida como valor próprio. O ideal de formação e educação de Humboldt (Bildungsideal) abrangeu mais do que um mero currículo do conhecimento dos fatos mais importantes ou das técnicas investigativas mais apropriadas; Humboldt almejava uma educação do estudante no espírito científico, comprometido com a busca da verdade e ideais éticos e estéticos, cujas fontes Humboldt localizava na antiguidade grega e romana. Educação universitária implicava também na formação da personalidade do estudante, na medida em que ele era induzido a absorver a cultura dos burgueses da época, que se desempenhavam para superar as restrições dos homens comuns, sejam eles de origem aristocrata ou popular, oferecendo-se como nova elite. Essa elite burguesa agiu na consciência, que estava no topo, porque merecia estar lá. Expandindo essa concepção para a universidade, o mundo empresarial, a carreira militar e praticamente qualquer outro campo da vida social, o desempenho individual tornou-se o critério para sucesso e insucesso da vida individual. Característica dessa concepção, da qual herdamos sem dúvida a valoração positiva do desempenho, era um amálgama de elementos inovadores e ao mesmo tempo conservadores. Entre iluminismo e antiguidade foi construída uma ponte imaginária, que suportou enquanto instituição, e digamos, curiosamente, a marcha vitoriosa das ciências modernas do século XIX e do início do século XX.

Nos tempos de Humboldt, a filosofia tinha se emancipado do seu papel de “servidora da teologia” e se tornou a “mãe das ciências”, criando assim um clima de, diríamos hoje, interdisciplinaridade, que facilitava a evolução das jovens ciências, sejam elas naturais ou humanas. Um breve olhar na formação de grandes nomes das ciências confirma a versatilidade destes em vários campos do saber. Marx (filosofia, economia), Freud (medicina, psicologia), Weber (direito, economia, sociologia) e, como já é notória, a inclinação dos físicos relativistas e quânticos para a filosofia como Heisenberg, Einstein, Born, Planck – todos formados nas universidades humboldtianas.

Sabemos com Weber que as intenções de um ator são uma coisa e os resultados dessa mesma ação são frequentemente outros. Será que a reforma universitária de Humboldt tem um efeito colateral não intencionado? Será que a ênfase e a posição de destaque que Humboldt deu à faculdade de filosofia contribuíram decisivamente para o boom da universidade alemão no séc. XIX e para a onda de novidades (inclusive de prêmios Nobel) no início do séc. XX? Será que a autonomia dessa universidade tanto da igreja como do governo criou a base de uma pesquisa primeiro livre e posteriormente desenfreada, abrindo as portas para todas as possibilidades técnicas? Antes de discutir o ideal da universidade humboldtiana no contexto do nosso tempo, consultando autores como Karl Jaspers, Manfred Eigen, Hans-Georg Gadamer e Jürgen Habermas, queremos deixar claro que Humboldt enfatizava na sua reforma três princípios básicos da universidade, sendo eles: 1) a liberdade da pesquisa e do ensino; 2) a unidade da pesquisa e do ensino; 3) a primazia da educação cultural (Bildung) sobre a formação profissional.

A ideia da universidade: Karl Jaspers

Em 1946, Karl Jaspers apresenta uma “ideia da universidade”, que tenta enfrentar a crise, para não dizer a destruição, da universidade alemã durante o “terceiro Reich” (1933-1945). Jaspers reativa a herança humboldtiana, buscando numa argumentação conservadora chão firme para defender a ideia de uma instituição que tinha provado pouco tempo antes sua absoluta incapacidade enquanto defensora da liberdade do pensamento. Para ele, na tradição de Humboldt, a universidade não é o lugar da mera instrução de habilidades técnicas. Como lugar da ciência, a universidade vive de uma postura cientifica que inclui “a capacidade, a favor do conhecimento objetivo, de suspender as próprias valorações por um momento, de poder abstrair do partido próprio, da própria vontade momentânea, a favor de uma análise imparcial dos fatos” (Jaspers, 1946, p. 34). A educação científica, não obstante, não é um mero treinamento do conhecimento sistemático, ela vai além, para Jaspers, na medida em que a postura científica exige a comunhão de valores. Com outras palavras: a educação científica universitária é formação para a razoabilidade (Bildung zur Vernunft). Essa razoabilidade inclui a disposição para a autocrítica, a consciência dos limites e da temporalidade do conhecimento e uma vontade incansável de querer saber. O saber absoluto, todavia, fica fora do alcance desse empreendimento e, não obstante, aquilo que transcende os fatos singulares e os delimitados campos cientfficos, ilumina o horizonte da pesquisa e protege-a contra um perder-se na “infinitude das variedades” (Jaspers, 1946, p. 27).

No seu entendimento da universidade Jaspers subordina a pesquisa e o ensino à formação ou educação para uma postura dedicada à busca da verdade, no espírito da razoabilidade. Assim são três as tarefas da universidade: pesquisa, ensino e educação (Jaspers, 1946, p. 38). Sublinhamos: a terceira função é a educação e não a extensão. Com essa ênfase na formação de uma postura (!) científica, Jaspers esperava dar a resposta adequada à experiência totalitária recente, que por um lado mostrou que habilidades técnicas, e a inteligência científica correspondente, podem ser manipuladas para qualquer finalidade, e que o enfraquecimento dos valores humanistas abriu as portas para um desastre civilizatório sem precedentes.

Humboldt, Jaspers e seus críticos face à universidade de massas

No início do século XIX menos do que 1% dos alunos da mesma idade estudavam numa universidade. Essa percentagem cresceu vertiginosamente nas últimas décadas, ao ponto de que hoje, na Alemanha, estudam 39% dos alunos do mesmo grupo etário. Aliás, com equilíbrio entre os dois sexos. A relação entre o número de 38.000 professores e dos quase dois milhões de estudantes é – nesse país onde universidades particulares formam uma exceção – de 1:52, e na área das ciências humanas, de aproximadamente 1:100. Com isso, temos sete vezes menos professores por estudante na área das ciências humanas do que nos tempos de Humboldt. Uma análise do desenvolvimento dos salários dos professores também mostra uma clara tendência: nos anos vinte, um professor universitário ganhava dez vezes mais do que a média dos assalariados; nos anos cinquenta e sessenta, cinco vezes mais; nos anos setenta; 2,5 vezes mais; e hoje, somente 1,6 vezes mais do que a média (Hesse, 2008).

No Brasil, um país com mais do que o dobro da população da Alemanha, temos em 2010 0 número de 6,7 milhões de estudantes universitários, dos quais a grande maioria, a saber 74%, estuda em universidades particulares. No Brasil, cerca de 52.000 professores dão conta de 190.000 estudantes no nível de mestrado e doutorado. O que significa, para o nível de pós-graduação, uma relação de 3,5 professores por aluno; uma relação aparentemente muito melhor do que na Alemanha, que, todavia, precisa ser relativizada, pois o tempo de ocupação dos professores na pós-graduação é somente parcial.

Hans-Georg Gadamer aponta como problema principal das universidades, tanto na Alemanha como em escala mundial, a “explosão das massas” (Gadamer, 1988, p. 10), que transformou radicalmente a existência acadêmica e não encontrou até hoje uma resposta institucional adequada. Neste contexto, o sucessor na cadeira de Karl Jaspers da universidade de Heidelberg e aluno de Martin Heidegger identifica três problemas principais: a) o fim da universitas scholarum, da comunidade acadêmica propriamente dita com sua relação estreita entre alunos professores; b) o fim da universitas literarum, da unidade e do diálogo entre as diversas ciências, lideradas pela filosofia; e c) o fim da res publica literaria, da “vida no mundo das ideias”, dos livros, das bibliotecas, da literatura. Uma solução para esses problemas fica fora do alcance das reflexões de Gadamer. Ele recomenda, todavia, uma redefinição da liberdade acadêmica sob condições das hiperinstituições massificadas e estimula a busca de novos “espaços de liberdade”, onde um pequeno universo acadêmico contribui para a construção de “novas solidariedades” (Gadamer, 1988, p. 22).

Wolf Lepenies vê exatamente na perda da função orientadora da filosofia e da faculdade de filosofia para a universidade algo decisivo e algo especialmente incisivo para a universidade alemã, que de fato afastou-se gradualmente e cada vez mais da sua inspiração humboldtiana. Com uma extraordinária contribuição para várias áreas científicas ainda no início do século XX, o que também se espelha nas estatísticas dos ganhadores do prêmio Nobel, e vinculada a nomes como Einstein, Max Planck, Heisenberg, Max Weber, Martin Husserl e outros, podemos constatar uma ruptura sem volta, na década dos anos trinta até os anos cinquenta/sessenta, quando “explodem as massas” (Gadamer, 1988). O próprio Martin Heidegger, que, em 1927, com a publicação de Ser e Tempo, conseguiu mais uma vez elevar a medida da tradição filosófica da Alemanha, tornou-se, na retrospectiva, o último “grande filósofo” alemão com impacto internacional de uma linha que vai de Leibniz, Kant, Schelling, Schopenhauer, Nietzsche, até Husserl e muitos outros; Heidegger, então, pode ser visto como uma expressão involuntária dessa mudança. “A ciência não pensa” é seu lacônico comentário sobre a universidade enquanto empreendimento em que pesquisadores ocupadíssimos, assim diz Heidegger, “fazem demais e pensam de menos”.2 Pois orientação esperavam seus leitores e alunos em vão, a por ele propagada “autenticidade” era um conceito vazio e assim fraco demais para afirmar valores civilizatórios ocidentais, inclusive acadêmicos, quando mais precisávamos.3

O eclipse da razão (Horkheimer) no século XX tem algo a ver com a expectativa exagerada de que o homem poderia resolver todos os seus problemas racionalmente. Antes do ceticismo de Weber que “jogou água no vinho” desse otimismo, as jovens ciências da sociedade (Condorcet, Comte, Marx) contribuíram muito para uma crença na razoabilidade do homem. A historização, a relativização e a “desnaturalização” são as armas com as quais a ciência desmistificou o mundo. Ela somente esqueceu, concordando com uma colocação de Lepenies, (Lepenies, 1988, p. 63), de aplicar estes instrumentos a si mesma. Que o mainstream das ciências sociais comunga com este problema até hoje mostram os grupos de pressão acadêmicos, que denunciam certos fenômenos sociais como sendo meras construções culturais, mas não percebem que eles mesmos e suas “causas justas” são passageiros, de valores somente relativos e estranhos. A sociologia que se ofereceu na fase pós-guerra como substituta da filosofia enquanto disciplina orientadora não conseguiu devolver a unidade à universidade, que se perdeu. A disciplina Sociologia 1, oferecida no Brasil para estudantes de Odontologia, Educação Física e Contabilidade, além de muitas outras, evoca hoje frequentemente a pergunta: por que temos que estudar sociologia?

Para Jürgen Habermas, alguém que tenta, como Karl Jaspers, reerguer a ideia humboldtiana de universidade, não passa de um “espírito defensivo de uma crítica cultural hostil à modernização” (Habermas, 1988, p. 141). Para ele, as leis da modernização social também afetam o desenvolvimento das universidades; a consciência tradicional teria somente um valor compensatório. Não obstante, ele afirma, enquanto as universidades ainda mantêm um mínimo de unidade interna e o vínculo com o mundo da vida, “a ideia da universidade não pode estar totalmente morta” (Habermas, 1988, p. 149). Principalmente as formas comunicativas, da argumentação científica mesmo, garantiriam os processos de aprendizado na universidade e sua unidade. “As disciplinas científicas constituem públicos disciplinares internos e somente nessas estruturas podem manter sua vitalidade. Os públicos disciplinares juntam-se e se desdobram em eventos abertos para toda a universidade” (Habermas, 1988, p. 169). Habermas, como muitos dos seus colegas, oscila por um lado entre a rendição à tendência dos “sistemas” de envolver a universidade no processo da modernização, massacrando os “mandarins”, os professores catedráticos dos velhos tempos e, por outro lado, entre a esperança de poder encontrar ainda nessa mesma universidade uma comunicação aberta e disputas discursivas com argumentos surpreendentes. “As portas estão abertas, em qualquer momento um novo rosto pode aparecer, um novo pensamento entrar” (Habermas, 1988, p. 170).

As universidades brasileiras: indicadores de produtividade

As universidades contemporâneas são fruto de uma longa tradição: desde as academias platônicas da antiguidade, das primeiras universidades na Idade Média e da reformulação da sua concepção por Schleiermacher e Humboldt no início do século XIX, estendem-se experiências institucionais que colocaram a pesquisa e o ensino, no seu nível mais complexo, no centro das suas atenções. A universidade massificada contemporânea parece, em muitos dos seus aspectos, incompatível com a ideia inicial de universidade; nesta situação, com a quantificação da qualificação, rankings internacionais tentam reordenar o campo da ciência e da formação de jovens cientistas, com resultados por vezes óbvios, por vezes duvidosos. As experiências universitárias brasileiras compartilham a tradição universitária europeia e, por serem tardias, confrontam-se, sobretudo, com os problemas da sua última fase: a universidade em expansão quantitativa.

O uso de indicadores para a avaliação de desempenho tem um efeito curioso. Na situação antes da introdução dos indicadores, elas têm sim um certo valor, pois expressam tendências e probabilidades, captadas de forma quantitativa, já que o desempenho, enquanto fenômeno empírico, também deixa rastros quantitativos. Assim, um grande autor produz sempre, com alto grau de probabilidade, um certo número de páginas, exatamente quantificáveis. Também um hospital, eficiente, bem equipado e dispondo de excelentes profissionais, reduz o número de óbitos por mil pacientes ao mínimo; esta relação é exatamente mensurável e enquanto dado estatístico, comparável com o desempenho de outros hospitais. Não obstante, perdem os indicadores seu valor informativo quando são introduzidos com o intuito de gerenciar ou até otimizar o desempenho daquilo que medem.4 Na situação post rem sabem os atores que estão sendo monitorados quantitativamente e adaptam seu comportamento à nova situação. O professor, que é um bom professor, mas também quer ser um grande autor, começa a produzir um certo número de páginas, pois não é este número de páginas produzidas que caracteriza o grande autor quantitativamente? O resultado é, obviamente, que o pequeno autor e o grande autor vão aparecer na estatística no mesmo nível de produtividade, ao ponto que até o grande autor (que também sabe que está sendo avaliado quantitativamente) começa a escrever mais do que queria. Essa corrida quantitativa aumenta o estresse dos envolvidos, tanto do grande como do pequeno, mas não transforma o último em um autor importante.

Indicadores de produtividade e rankings internacionais

Parece fácil mostrar as consequências por vezes absurdas dos indicadores de produtividade, como estão sendo usados, também, nas universidades brasileiras de hoje. No entanto, o que colocar no lugar deles? Existem indicadores qualitativos? Como posso medir a importância de um artigo, se não através do seu “impacto” medido pelo citation index? Como vou qualificar a importância de uma revista em detrimento de outra, se eu não sei que essa é A1 e a outra B2? Como vou argumentar que um programa de pós-graduação é mais importante do que o outro, se não produzo estatísticas da sua produção quantitativa? Como vou saber que uma pessoa sabe mais do que a outra se não estou sendo informado pelo cartão de visita que ela possui título de doutor? Esse título de doutor é, sim, apesar de ser muito antigo, um indicador de qualidade. Quem possui um título de doutor sabe mais do que os outros. Ou alguém se atreve a afirmar o contrário?

A discussão sobre os indicadores de produtividade se torna mais difícil ainda quando percebemos que, dentre os maiores críticos desses indicadores, encontramos, via de regra, aqueles que têm pouca participação na vida acadêmica. Será que a crítica nasce, nestes casos, da própria incapacidade de alcançar os ideais da academia que ela mesma se impõe? Será que a crítica ao “produtivismo” é um anti-intelectualismo às avessas?

O campo acadêmico é hoje, i.e., em tempos de uma universidade massificada, obscuro, cheio de contradições e cruzado por interesses mais diversos. Não obstante, não queremos fugir de levantar algumas “teses” sobre a situação muito peculiar da universidade brasileira de hoje.

Se consultarmos os rankings das universidades mundiais podemos constatar que, entre os primeiros 50 colocados, encontramos poucas universidades que não sejam anglo-saxônicas. Poucas universidades da Europa continental, menos da Asia, uma ou outra da América Latina e praticamente nenhuma da África estão no topo. Ampliemos a faixa para as primeiras 300 ou 500 universidades e podemos ver que o continente norte-americano está representado por aproximadamente igual número de universidades de ponta como o continente europeu, seguido por jovens universidades asiáticas, e por algumas da América Latina. Entre elas sempre a USP e a Universidade Nacional Autônoma do México. Com isso. o Brasil está literalmente fora dos circuitos internacionais acadêmicos, referente à pesquisa e ensino de qualidade.


Tabela 1
Ranking das melhores Universidades do mundo

A universidade Jiao Tong, de Shanghai, classifica no seu ranking 1000 universidades, dos quais somente 500 entram no grupo da classificação final. O ranking existe desde 2003 e é um dos mais diferenciados; não obstante, não é livre de distorções. Nesse contexto, o forte peso atribuído às publicações das revistas Nature & Science leva a uma sobrevalorização de artigos na área das ciências exatas e de língua inglesa, em detrimento de publicações em outras línguas e principalmente na área das ciências humanas. A exclusão de institutos de pesquisa não universitários, como o Max-Planck-Institute da Alemanha, distorce a real distribuição da pesquisa de ponta entre os países.

Outros rankings consideram os critérios mais variados e incluem, p.e., o prestígio das universidades dentre os pesquisadores e os estudantes, colecionando “notas” dadas por estes; outros excluem os méritos antigos e se concentram somente no desempenho dos últimos anos; outros destacam a qualidade de ensino em detrimento da pesquisa e medem a facilidade de acesso a bibliotecas, restaurantes universitários e moradia; outros destacam o grau de internacionalização do corpo docente e a demanda internacional pelos estudantes, e assim por diante. As universidades nacionais frequentemente sobem de posição quando grandes jornais ou institutos de pesquisa criam rankings das universidades do próprio país; determinados departamentos ou disciplinas também podem subir isoladamente no ranking, quando apresentam uma média acima das outras áreas da própria universidade. É necessário, então, cautela e uma análise aguda da metodologia aplicada quando se trata de rankings universitários. É uma comparação crítica entre vários rankings é sempre indicada. Não obstante, podemos verificar grandes tendências que reencontramos em praticamente todos eles. Primeiro, a supremacia das universidades norte americanas, em especial da Harvard University, quando se trata do topo da lista. Segundo, uma concentração das melhores universidades, quando se trata das primeiras trezentas colocações, na América do Norte e na Europa. Terceiro, a língua inglesa é, hoje, para as universidades, o que o latim era alguns séculos atrás: a língua universal das ciências. Isso significa o seguinte para o corpo docente: quem não publica na língua inglesa está fora dos circuitos acadêmicos mais badalados. Quarto, podemos constatar uma presença crescente de universidades asiáticas, principalmente do Japão, da China e da Coreia do Sul.

A situação de destaque dos norte-americanos se confirma quando usamos outros parâmetros para medir a capacidade inovadora das universidades e de institutos de pesquisa não-universitários, fora do Brasil frequentemente vinculados a grandes empresas. Indicador comum aqui é o número de patentes registradas. Entre os BRICS, somente a China alcança nível europeu, ainda assim muito atrás dos EUA, do Japão e da Alemanha.


Gráfico 1
Regime internacional de patentes em países selecionados

Em outro ponto, frequentemente ouvimos que os problemas no sistema educacional brasileiro resultam dos poucos investimentos no setor. Uma comparação internacional mostra que essa avaliação é incorreta. Conforme se pode observar em alguns dados, o Brasil investe 5,1% do seu PIB na educação. Com isso, o país está à frente da Alemanha e do Japão, e ligeiramente abaixo dos EUA, da França e do Reino Unido. Temos que constatar que o Brasil gasta proporcionalmente tanto para seu sistema educacional quanto os países mais competitivos.


Gráfico 2
Gastos em educação, pesquisa e desenvolvimento em relação ao PIB

Não obstante, na área da pesquisa podemos ver um significante desvio do Brasil no padrão destes países: com 1,1% do seu PIB investido em pesquisa, o país investe menos do que a metade dos EUA, Coreia do Sul, Alemanha e Japão. Assim, concluímos: o Brasil tem um desequilíbrio forte entre gastos destinados à educação e aqueles destinados à pesquisa, o que explica em parte a baixa produção de patentes e novidades.

No campo da biotecnologia, área que deveria interessar ao Brasil por causa da sua superfície arável extraordinária e da sua alta biodiversidade, podemos ver os resultados da falta de investimento em pesquisa, que se encontra, por exemplo, numa posição ligeiramente à frente da Irlanda e um pouco abaixo da Nova Zelândia.


Gráfico 3
Investimentos em biotecnologia em relação ao PIB

No Brasil, os gastos para pesquisa concentram-se tradicionalmente na mão do Estado. Nos países mais competitivos temos uma forte participação também do setor privado nestes investimentos, o que não constamos no Brasil. Falta então desempenho das empresas brasileiras? Digamos que sim e não, pois o Brasil pratica uma das mais altas taxas do mundo sobre as atividades empresariais, dividida entre vários impostos diretos e indiretos, o que explica em termos a falta de motivação das empresas em contribuir ainda mais para tarefas não diretamente produtivas. Além do mais, temos no Brasil um empresariado acostumado com a forte dependência do orçamento da união, além de ser asfixiado por uma burocracia pouco eficiente, com exceção da bem-organizada máquina da receita federal. A baixa taxa de investimento em pesquisa, seja de origem pública ou privada, condena o país a uma situação de imobilidade que não corresponde ao seu lugar de sexta economia mundial.

Esse breve olhar sobre o descompasso entre investimentos altos em educação e os baixos investimentos em pesquisa, com as consequências de ocupar um dos últimos lugares quando se trata do registro de patentes, nos remete novamente às universidades. Parece que Brasil pensa as suas universidades a partir da graduação, lugar do ensino, e não a partir da pós-graduação, lugar do ensino e da pesquisa. O potencial de pesquisadores que o Brasil conseguiu concentrar nos anos 80 e 90 em algumas pós-graduações dos maiores centros urbanos do país está sendo usado muito abaixo do seu potencial, ou já evaporou através de aposentadorias, frequentemente precoces, ou está sendo ocupado sem necessidade no ensino de graduação. Na verdade, a pesquisa no Brasil só funciona bem onde os pesquisadores estão longe da graduação, como na EMBRAPA, no ITA, no INPE, no Museu Emílio Goeldi e em outras poucas instituições desse perfil. A situação se torna dramática quando nos lembramos que a grande maioria dos estudantes brasileiros estuda em instituições particulares, que vegetam academicamente longe de qualquer pesquisa digna desse nome. Sabemos que entre as universidades particulares também existem exceções, como uma ou outra PUC, ou como no caso da antiga Universidade Cândido Mendes com seu IUPERJ, que contribuiu bastante para as ciências sociais no país, até entrar em crise.

Numa situação em que um país, representado por seu Ministério da Educação e do Ministério da Ciência e Tecnologia, atrai praticamente todos os pesquisadores para o setor estatal, as universidades federais, sem abrir espaço institucional adequado para a pesquisa, não surpreende que os resultados sejam esses: poucas patentes e inovações, poucas citações e pouca presença em circuitos internacionais, e, em compensação, muita redundância e irrelevância.

No campo das ciências humanas enfrentamos, além desses problemas estruturais e institucionais, problemas que têm sua origem no plano curricular dos cursos e da orientação ideológica de muitos dos seus professores, que parecem não conseguir descobrir novidades porque têm sua cabeça estacionada em algum lugar dos anos sessenta ou setenta. As faculdades das ciências humanas na Europa e nos EUA passaram, já no fim da década de setenta, pela “crise do marxismo” e trabalharam-na academicamente, ao passo que seus pares na América Latina ignoraram tal crise e ainda, mesmo depois que essa crise tenha se tornado dramaticamente prática com o desmoronamento da União Soviética e a abertura econômica da China, preferiram repetir velhas crenças em vez de pesquisar novas realidades e perspectivas. A substituição parcial de ideologias marxistas por ideologias mais novas, promovidas por grupos de pressão oriundos do campo da militância feminista, homossexual ou racial, não mudou uma situação caracterizada por estreitamento temático da pesquisa, pobreza de domínio bibliográfico, uso distorcido dos métodos empíricos e alta redundância argumentativa. Ao invés de ser lugar da reflexão sobre a política, as ciências humanas no Brasil, com poucas exceções, tornaram-se palco da política. Assim, não surpreende que os últimos grandes nomes das ciências sociais brasileiras datem dos anos 30 do último século ou tenham, hoje, uma idade além da aposentadoria compulsória. Nas últimas décadas, nada que se destaque.

Um outro aspecto, vinculado com este primeiro, pode eventualmente contribuir mais ainda para a compreensão do dilema em que as universidades brasileiras, e em especial as humanidades, se encontram. Este aspecto tange diretamente ao título que escolhemos para o nosso texto: “a ideia da universidade...”. Parece-me que cada vez menos pessoas sabem o que era ou o que ainda é uma universidade. Pois, até aceitando uma larga escala para definir a suas características desejadas, alguns elementos nunca podem faltar, sem descaracterizar a sua essência por completo. Quem questiona as definições mais clássicas, para não dizer burguesas, da universidade, vai concordar, assim esperamos, pelo menos com isso: a universidade é o lugar da ciência. Essa ciência ensinada e cultivada na pesquisa é a razão de ser dessa instituição. Quando a ciência e as práticas civilizatórias exigidas por ela não têm mais espaço, podemos chamar de “universidade” algo tantas vezes que nós queiramos, mas esse “algo” nunca vai ser uma universidade. Assim, é estranho dizer isso, temos que expressar claramente que a universidade não é um lugar para analfabetos. Quando ouvimos que existem estudantes que nem dominam sua língua materna, não sabem escrever nem se expressar corretamente, resta somente uma possível reação: redirecionar os analfabetos para cursos de alfabetização. A universidade não é o lugar para isso. E, a propósito do analfabetismo: em comparação internacional os altos gastos para a educação não correspondem com a taxa ainda alta de analfabetos adultos. Como mostram pesquisas comparativas, o Brasil tem quase 10% de analfabetos adultos; o número é perto de 2% na Argentina, que gasta o equivalente ao Brasil no quesito educação, e quase 6% na China, que investe somente pouco mais do que 2% do seu PIB na educação. Resultado: no setor de educação, o Brasil gasta comparativamente muito e gasta mal. Ou existe alguma outra explicação para isso?


Gráfico 4
Relação entre investimento sem Educação, proporcional ao PIB, e taxa de analfabetismo

A função social da universidade

No contexto da reflexão sobre a universidade e seu papel enquanto instituição de ensino e pesquisa, surge a pergunta: a universidade não tem uma função social? É evidente que, como qualquer outra instituição, a universidade possui uma função social, e essa função é bem específica. Ela consiste basicamente em ser um lugar institucional que assume funções que outras instituições não podem cumprir; ela fornece à sociedade profissionais altamente qualificados que esta necessita para seu pleno funcionamento. Tudo o que uma outra instituição pode resolver não cabe à universidade. Ela, a universidade, é o lugar da ciência e da formação de profissionais que precisam da ciência para exercer adequadamente sua profissão. Assim, é típico para a universidade formar médicos e fazer pesquisa na área da medicina, formar professores de matemática, biologia, filosofia etc., pois esses professores vão ser divulgadores dessas ciências no futuro.

A ânsia de resolver na universidade problemas sociais que vão além dos problemas da ciência e da formação de pessoas em um restrito número de profissões gerou a tendência de sobrecarregar a universidade brasileira e de colocar em risco o adequado exercício da sua função social específica. A já mencionada distorção de pensar a universidade a partir da graduação se juntou com a tendência de tentar resolver problemas que não cabem à universidade, mas, neste caso, ao ginásio ou ao segundo grau. Estamos hoje numa situação em que fazemos frequentemente na universidade o que antigamente aconteceu no segundo grau. Desse modo, a universidade não é o lugar para aprender inglês; o estudo do inglês deve acontecer muito antes, no segundo grau ou até no ensino fundamental, quando o cérebro ainda absorve com facilidade outros idiomas. Na universidade se espera que o estudante já domine a língua inglesa (e não somente ela), para poder ir além do alcance da sua língua materna nos seus estudos bibliográficos e, eventualmente, em intercâmbios internacionais futuros.

É necessário tirar uma parte do peso das universidades, que tentam sem sucesso compensar deficiências das etapas anteriores do sistema de ensino. Está na hora de devolver para o ensino fundamental e para o ensino médio os problemas cuja solução tem aí o seu lugar. Sem um excelente segundo grau, não existem universidades que mereçam esse nome. É incompreensível para um observador externo que o governo do Brasil aumente o número de vagas nas universidades sem garantir candidatos competentes para elas e, então, fazer das universidades o palco de políticas compensatórias que somente camuflam as deficiências do sistema educacional que precede a universidade.

Lógico e necessário seria começar com uma reforma pré-escolar abrangente, que se estenda naturalmente para o ensino básico, para percorrer o ensino médio e para nos dar os frutos na hora do vestibular. Que isso demore quinze anos ou mais? Sim, demora, mas é dessa forma que países com mais desvantagens iniciais do que o Brasil resolveram seus problemas.

Além de transferir para as universidades parte das tarefas do segundo grau e, em sequência, para a pós-graduação as tarefas da graduação, as universidades sofrem de outra sobrecarga oriunda de um entendimento distorcido de formação profissionalizante ou técnica. A universidade não é o lugar da profissionalização técnica aquém do nível das engenharias. Para a profissionalização técnica, as sociedades contemporâneas dispõem de escolas e cursos específicos, com alguns elementos teóricos e muitos exercícios na prática, inclusive com a participação na rotina empresarial ou artesanal. Provavelmente estamos aqui frente a um problema central: o Brasil carece de uma forte tradição artesanal, ao ponto que até a palavra portuguesa “artesanal” nos remete às feiras turísticas onde ambulantes vendem o artesanato. Mas não estamos falando sobre vasos de barro ou chapéus de palha. O artesão, o construtor das catedrais medievais, é o elemento-chave no processo do desenvolvimento (técnico) das sociedades contemporâneas. Onde ele existe, e ele existe também fora da Europa, como no Japão, desenvolvem-se sociedades técnica e economicamente em pouco espaço de tempo. O Brasil não tem clareza sobre suas deficiências no plano das competências técnicas e, em consequência, dá erroneamente ênfase a uma formação universitária abstrata, que aparentemente resolve tudo. Na realidade, não se conquista em muitos cursos de graduação nem competência teórica e nem competência técnica. A universidade então, para poder exercer as suas funções específicas, precisa devolver as expectativas de ser o lugar da profissionalização técnica e deixar Claro que outras instituições e práticas profissionalizantes são necessárias para formar os artesões de hoje. Estes técnicos podem ter a certeza que são, no mínimo, tão importantes para a sociedade quanto os cientistas.

Referências

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Souza, Jessé. (2000), A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: Editora da UNB.

Notas

1 Para uma análise diferenciada da Idade Média, em especial sua cultura intelectual, recomendamos: LE GOFF, Jacques (1957/1995). Os intelectuais na Idade Média. São Paulo: Editora Brasiliense. E, do mesmo autor: LE GOFF, Jacques (1964/2005). A civilização do ocidente medieval. Bauru, SP: EDUSC.
2 “Nós fazemos demais e pensamos de menos”. Heidegger, M. (1954/1992); “A ciência não pensa”. Heidegger, M. (1954/1994).
3 Veja a crítica sagaz e por vezes exagerada de Theodor W. Adorno (1964/1969).
4 Charles Goodhart, já em 1975, mostrou essa problemática na área do planejamento macroeconômico (Goodhart, 1975).


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