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VIOLÊNCIA DIFUSA, MEDO E INSEGURANÇA: AS MARCAS RECENTES DA CRUELDADE
DIFFUSE VIOLENCE, FEAR AND INSECURITY: THE RECENT MARKS OF CRUELTY
VIOLENCE DIFFUSE, PEUR ET INSÉCURITÉ : LES MARQUES RÉCENTES DE LA CRUAUTÉ
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 1, núm. 1, pp. 235-256, 2013
Sociedade Brasileira de Sociologia

Artigos


Recepção: 1 Janeiro 2013

Aprovação: 1 Março 2013

DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.30

RESUMO: O debate sobre violência está presente em todos os espaços sociais, repercutindo de modo diferente nas pessoas e instituições universitárias, sociais, políticas, econômicas, além dos meios de comunicação. O tema torna-se, assim, um desafio para os especialistas de interpretar a nova configuração deste fenômeno, ancorado em largas manifestações e práticas, classificadas como violentas. Atenta-se, do ponto de vista teórico-metodológico, à necessidade de se construir social e culturalmente o fenômeno da violência, nas pesquisas concernentes à violência e aos conflitos sociais, considerando ser esse fenômeno intensivamente permeado pelo modismo e em razão dos apelos da sociedade. Este artigo tenta dar conta de aspectos diferentes que circulam à órbita da temática, tendo como suporte ou inspiração os debates ocorrentes no Brasil, incorporando algumas reflexões já encetadas por mim em outros trabalhos.

Palavras-Chave: Violência, Conflito Social, Manifestações, Práticas.

ABSTRACT: The debate on violence permeates all social spaces, with a range of different impacts on people, universities, and other social, political and economic institutions, as well as communications media. The issue thus poses a challenge to specialists looking to interpret the new configurations of this phenomenon, rooted in large-scale manifestations and practices classified as violent. From the theoretical-methodological viewpoint, the article focuses on the need to socially and culturally construct these phenomena in studies of violence and social conflicts, recognizing that the issue is intensely affected by fluctuations in public opinion and the demands of society. I examine various aspects of the topic, supported or inspired by the debates taking place in Brazil, and incorporating some reflections already initiated by myself in other works.

Keywords: Violence, Social Conflict, Manifestations, Practices.

RÉSUMÉ: Le débat sur la violence est présent dans tous les espaces sociaux, ayant une répercussion différente sur les personnes et les institutions universitaires, sociales, politiques, économiques, ainsi que sur les moyens de communication. Le thème est ainsi, un défi pour les spécialistes qui doivent interpréter la nouvelle configuration de ce phénomène, ancré dans de larges manifestations et pratiques, classées comme violentes. On s’intéresse, du point de vue théorico- méthodologique, à la nécessité de construire socialement et culturellement le phénomène de violence, dans les recherches concernant la violence et les conflits sociaux, en considérant que ce phénomène est intensément traversé par la mode et les demandes de la société. Cet article tente de rendre compte des différents aspects qui circulent autour de la thématique, en prenant comme support ou inspiration les débats qui se produisent au Brésil, et en incorporant quelques-unes des réflexions que j’ai déjà engagées dans d’autres travaux.

Mots-clés: Violence, Conflit social, Manifestations, Pratiques.

É possível assinalar, hoje, o fato de que o debate sobre violência está presente em todos os espaços sociais. A partida de futebol entre as seleções do Brasil e do Chile, no dia 24 de abril de 2013, trouxe um dado inusitado, mas bastante contemporâneo. A equipe brasileira entrou em campo portando uma faixa que expressava: “Por um mundo sem armas, sem drogas, sem violência e sem racismo”. De jogos de futebol, passando por programas de televisão às conversas em locais de trabalho, a palavra violência despertou interesse em todos, repercutindo de modo diferente nas pessoas e instituições universitárias, sociais, políticas, econômicas, além dos meios de comunicação.1 Este aspecto exprime o desafio para os especialistas de interpretar a nova configuração deste fenômeno, ancorado em largas manifestações e práticas, classificadas como violentas. Este artigo tenta dar conta de aspectos diferentes que circulam à órbita da temática, tendo como suporte ou inspiração os debates ocorrentes no Brasil, incorporando algumas reflexões já encetadas por mim em outros trabalhos. Os debates acerca do assunto já foram motivo de vários compêndios e balanços analíticos a respeito do estado da arte na contemporaneidade brasileira.2 São ensaios gestados e elaborados por diferentes motivos, privilegiando categorias analíticas diversificadas, mantendo, no entanto, um caráter acumulativo de um campo temático, possibilitando um acurado acompanhamento da produção acadêmica neste setor do conhecimento.

Esta reflexão está voltada, principalmente, para o entendimento dos significados das práticas classificadas como violentas, bem assim das experiências de insegurança individual e riscos patrimoniais que ensejam a existência de medos sociais.

Ponto destacado em trabalhos anteriores (Barreira, 2008), por exemplo, refere-se à necessidade, sempre presente, de constituir, social e culturalmente, o fenômeno da violência. Se esta percepção teórico-metodológica é em grande parte sacramentada nas Ciências Sociais, que partem das representações como forma de elaboração da vida social, nas pesquisas concernentes à violência e aos conflitos sociais ela se torna crucial, considerando-se ser esse fenômeno intensivamente permeado pelo modismo e em razão dos apelos da sociedade.

Ao longo do tempo, os estudos conduziram-se cada vez mais para o trato respeitante à violência com suporte nos valores. As pesquisas possibilitaram o entendimento de formas diferentes de expressão da violência nas sociedades contemporâneas, trazendo à cena diversas configurações de conflitos sociais e um variado quadro de enfrentamento ou administração de embates interpessoais e políticos (Barreira, 2008).

É possível expressar que minhas primeiras incursões ao tema o trabalharam em seu caráter mais radical, imprimindo ênfase aos crimes de pistolagem ou crimes de mando (Barreira, 1998), bem como aos assassinatos em geral. Isto me conduziu à formulação de um continuum entre conflito e violência, o qual, posteriormente, decidi rever com apoio em um enfoque privilegiando os valores que concedem sentido às práticas de delito e às contravenções.

O recorte, assentado nos valores, fundamenta-se teoricamente nas reflexões de Simmel (1992), quando acentua a expressão indubitável e sociológica do conflito, na medida em que ele é parte fundamental das relações sociais. O autor evidencia a ideia de que toda sociedade necessita de uma quantidade simultânea de harmonia e de desarmonia, amor e ódio, atração e repulsão, negando a existência de situações absolutamente harmônicas indutoras de “pura união”. Os elementos dissociadores ódio e inveja, miséria e cobiça, são também uma via para a unidade. Para ele, o ato de explicitar uma alteração já é uma distensão das forças adversárias. As reflexões de Simmel conferem elementos de inspiração para se pensar como e em quais situações os embates são vividos, sentidos ou explicitados como violentos.

Um aspecto, neste passo evidenciado, é que a temática violência/ conflito recebe força na produção acadêmica no Brasil, principalmente, nas quatro últimas décadas, configurando-se em significativo apelo social e com âncora na luta pelos direitos sociais, políticos e econômicos, o que demarca, em boa medida, uma especificidade.3

O panorama político dos desacatos aos direitos humanos e a fragilidade de cidadania, bem como as desigualdades sociais, impulsionaram, em boa parte, esses estudos.4 Em decorrência de uma simbiose entre crescimento da violência e de apelos sociais, a ilusão do saber imediato (Bourdieu, 1989) dá ensejo à necessidade de que esta temática seja constituída com todo o rigor e imaginação sociológica, com escopo de superar os modismos e a tentação de resposta às demandas sociais.

O ensaio, nesta perspectiva, tentará refletir não só com procedência nos trabalhos já referidos, a respeito do estado da arte, mas considera também como norte alguns eixos analíticos: a violência difusa, ações intensas classificadas como “crueldade” e as novas práticas de sociabilidade, permeadas de medo e insegurança.

Cenários recentes e difusos da violência

A violência não é fenômeno de pouco tempo! Esta afirmação ou máxima está presente em conversas informais, bem como nos embates acadêmicos. A constatação é difundida, em alguns contextos, haja vista a busca de possíveis explicações históricas, servindo também para naturalizar o fenômeno. Sob o espectro institucional, o discurso acerca da recorrência de atos violentos objetiva relativizar ou minorar a ineficácia das práticas estatais, como também exprimir uma tranquilidade ou paz social, em oposição à insegurança reinante. É fundamental ressaltar, entretanto, aquilo que confere especificidade histórica à violência, configurado no fato de que se referem às formas atuais de suas manifestações, provocando mudança nas abordagens sociológicas e, principalmente, configurando novas práticas de sociabilidade.

Para Gilberto Velho (1996, p. 10), no livro Cidadania e Violência:

A vida social, em todas as formas que conhecemos na espécie humana, não está imune ao que se denomina, o senso comum, de violência, isto é, o uso agressivo da força física de indivíduos ou grupos contra outros. Violência não se limita ao uso da força física, mas a possibilidade ou ameaça de usá-la constitui dimensão fundamental de sua natureza.

Atualmente é mais plausível a possibilidade ou ameaça de serem praticados atos violentos, em diferentes contextos e em diversificadas situações, envolvendo um complexo cada vez mais amplo de sujeitos ou agentes sociais. Os lugares seguros e pessoas menos vulneráveis às práticas classificadas como violentas passam por uma quadra de indefinição.5 As vulnerabilidades sociais granjeiam outras dimensões, pois os “lugares perigosos” e as “vítimas preferenciais” se fazem cada vez mais complexos. Os contornos de segurança são sempre mais tênues e indefinidos, mesmo que não se possa negar a existência de “vítimas e lugares preferenciais” de práticas violentas; conquanto os lugares e vítimas sejam delimitados pelo cinturão de pobreza.

As notícias jornalísticas deixam transparecer a vulnerabilidade dos transeuntes, a crueldade das ações, bem como a imprevisibilidade das práticas delituosas, como mostra a reportagem do Diário do Nordeste, Fortaleza, (12/02/2011):

“Jovem é baleado e bandidos impedem socorro”. [...] voltava do trabalho na linha Planalto Ayrton Senna/Parangaba. Quando o ônibus passou pelo Instituto Presídio Professor Olavo Oliveira (IPPOO) I. no Itaperi, dois adolescentes que estavam no veículo anunciaram o assalto. Um deles estava armado com revólver e acabou atirando em Webster. Foi um único tiro, acima do lado esquerdo do peito. Segundo testemunhas, o jovem nem chegou a reagir. A única coisa que teria feito foi olhar para os assaltantes. Ainda de acordo com depoimentos de testemunhas, os assaltantes impediram que a vítima fosse socorrida. Quando Webster foi levado para atendimento médico, já era tarde. O jovem de 16 anos, que matou e que confessou ter atirado na vítima. “Atirei porque ele (Webster) veio pra cima, reagiu”, afirmou. O adolescente disse ainda que está arrependido do crime. “Tava no ônibus indo para a casa de uma sobrinha. Na hora, me deu uma ‘doida’ e resolvi assaltar.” Os casos recentes envolvendo assaltos a ônibus têm deixado passageiros assustados. Somente esta semana, três jovens foram assassinados durante assaltos a transportes coletivos na Capital. O caso de ontem impressiona pela crueldade dos assaltantes.

O “difuso” relaciona-se, claramente, com a possibilidade de que todos, independentemente de sexo, idade ou classe social, possam ser vítimas de práticas classificadas como violentas, presentes em diversificadas situações sociais. O senso comum é perspicaz e irônico, quando propala este lado “democrático” da violência.

Um tipo de homicídio que se propaga amiúde é o uso dos matadores de aluguel nas resoluções de conflitos interpessoais, configurando, claramente, esta violência difusa. As pesquisas que há algum tempo levo a efeito sobre matadores de aluguel e os crimes de pistolagem (Barreira, 2009) conduziram-me a perceber que a grande incidência dessas práticas não é mais no meio rural, ocorrendo principalmente nas grandes cidades. A forma difusa, tal como acontece, aponta um vasto campo de enfrentamento ou administração de pequenas rixas, como brigas de vizinhos e desavenças familiares, incluindo também a administração das disputas políticas e econômicas que definiam anteriormente, em quase sua totalidade, os motivos das contratações dos matadores de aluguel.

Cotidianamente são veiculadas, em jornais, cenas de violência urbana, explicitando a participação de pistoleiros, bem como os seus motivos impulsionadores:

A polícia registrou, entre segunda, 10, e quarta-feira, 12, três crimes contra comerciantes com características de pistolagem, ocorridos na Grande Fortaleza. O último deles aconteceu no Henrique Jorge, quando Antônio Cleonildo de Amorim foi morto a tiros de revolver no bar de sua propriedade. Testemunhas dizem que dois homens estavam em uma moto. (O Povo, Fortaleza, 14/10/2005).

A ampliação do universo das ações praticadas no interior dos crimes por encomenda, com sensível inserção nos conflitos interpessoais, redefine espaços sociais e econômicos para as principais personagens do sistema de pistolagem. Tais práticas me levaram a refletir no tocante às novas configurações das práticas dos matadores de aluguel no âmbito das relações conflituosas.

Os crimes de aluguel, até a década de 80 do século XX, estavam, em grande parte, circunscritos às disputas pela representação política e às questões de terra, mediadas, em bom quinhão, por “brigas de família”. A terra e o voto apareciam como os grandes ingredientes ou feitos ele mentos definidores do uso da pistolagem (Barreira, 1998).

No universo simbólico dos crimes de mando, são configurados dois aspectos: o desaparecimento dos “grandes matadores”, conhecidos pelas “proezas” e dezenas de crimes cometidos, e, atualmente, a proliferação de pistoleiros. A multiplicação de “profissionais” confirma o discurso dos órgãos de segurança, afirmando que “hoje qualquer pirangueiro é pistoleiro”.6

Os pistoleiros surgem e vão ampliando suas ações, naturalmente, nas fissuras de um desordenado monopólio da violência. Os espaços para administração de conflitos interpessoais, políticos e econômicos, que ultrapassam as práticas institucionais, contribuem para a consolidação de uma violência difusa.

A atuação dos matadores de aluguel, nas resoluções dos conflitos interpessoais e de terceiros, evidencia um cotidiano que configura a violência difusa. Nos conflitos interpessoais, como acentuei a pouco, o quantitativo de vítimas é bem mais amplo, podendo atingir um vizinho, uma companheira, um devedor, tendo como fado impulsionador a condição de desafeto do mandante, possível parte de uma cadeia de vingança.

Na realidade hoje, é importante destacar o fato de que não somente os mandantes e os matadores de aluguel são objeto de mutações, mas também as vítimas, não mais adstritas às disputas políticas e agrárias. Essas vítimas vão se configurando como tais, em um contexto contemporâneo, marcado por uma violência difusa no qual se destaca a ação dos matadores de aluguel.

A temática da violência e dos conflitos é cada vez mais instigante, diversificando-se, tornando-se mais complicada e obtendo novas configurações. A violência juvenil, em diferentes situações de classe social, a que se adiciona o tráfego de drogas, ocupa dilatado espaço no terreno de práticas e discursos. O assassinato do índio Galdino, por exemplo, ocorrido em Brasília, em 1997, envolvendo jovens de classe média-alta, ampliou a reflexão sobre a violência juvenil por outro patamar, com novos contornos sociais, sendo incorporados aos estudos outros setores sociais, antes restritos aos trabalhos com jovens negros e habitantes das periferias das grandes cidades. Os estudos respeitantes às práticas juvenis compreendidas como violentas, nas escolas públicas e particulares, tomam, também, um lugar importante nas análises específicas.

O tráfico de drogas agora surge como o grande responsável pelo aumento dos homicídios e pela insegurança reinante, em especial, nos cenários urbanos. A título de exemplo, os órgãos de segurança pública do Ceará apontam o fato de que 90% dos homicídios ocorridos, atualmente, no Estado estão diretamente ligados ao comércio de substâncias ilícitas. Esse tráfico carreia graves problemas no cenário urbano.

Um deles está no fato de os jovens passarem a ser o “braço armado” dos grandes traficantes nas resoluções ou enfrentamentos dos conflitos sociais, principalmente em litígios de cobranças de dívidas.

“Polícia bota na cadeia assassinos que matam em nome do tráfico”. A prisão, na última quarta-feira, de um jovem de 24 anos, no bairro Ellery, pode levar a Polícia Civil, através da sua Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), a esclarecer, pelo menos, 20 assassinatos ocorridos na zona Oeste de Fortaleza desde outubro do ano passado. Prisões como estas estão sendo realizadas pela PM, com o apoio dos organismos de Inteligência, no sentido de estancar a onda de homicídios na Capital cearense e em sua região metropolitana. Desde o início do ano, os setores de Inteligência da Polícia Militar auxiliam a Polícia Civil nas investigações para a captura de bandidos apontados como matadores a serviço do tráfico de drogas. Em geral, são jovens recrutados pelos traficantes de cada bairro para executar os viciados que estão com dívidas ou outros traficantes que tentam tomar o controle dos pontos de vendas de drogas nos bairros da periferia de Fortaleza” (Diário do Nordeste, Fortaleza, 08.04.2013).

A arma de fogo não configura, hoje, somente um instrumento letal, mas também a sua posse delimita um aspecto de poder para o grande traficante e para o jovem que a manipula (Sá, 2010). A grande circulação de arma de fogo, mesmo com as políticas de desarmamento, bem assim com o crescimento das apreensões, por parte dos órgãos de segurança pública, delimita, em boa parte, o aumento das taxas de homicídios. Esse tipo de arma e o comércio de drogas ilícitas configuram, em boa medida, o apanágio do cenário, atualmente, dos homicídios.

Evidencio o fato de que o aumento da violência e das taxas de homicídio não pode ser explicado apenas pelo tráfico de drogas, pois o fenômeno se inserta em um cenário mais amplo, que passa, necessariamente, pela forma de enfrentamento dos conflitos sociais e, mais, especificamente, pela resolução dos embates interpessoais na sociedade brasileira, bem como pela ausência de uma política de segurança pública nacional, mas eficiente e também racional. Um aspecto importante, nestes enfrentamentos, é a substituição da arma branca pelo armamento de fogo como instrumento do crime.7 Tal substituição não só, demonstra o aumento deste tipo de expediente letal, como também a mortalidade das ações.

Um dado relevante, neste cenário, é a diminuição da faixa etária das vítimas destas agressões, apontando, cada vez mais, para a entrada precoce dos jovens no mundo do crime, como agressor e, principalmente, como vítima,8 deixando transparecer, novamente, a vulnerabilidade do jovem neste âmbito de violência difusa.

No interior desta simbiose entre arma, droga ilícita e resolução violenta dos conflitos interpessoais, os massacres constantes nas grandes cidades tomam um lugar alarmante, alvo de desmedida preocupação.9 Ocorrem massacres que envolvem membros de uma mesma família, mas também grupos de crianças e adolescentes. Hoje, não são mais mortes anunciadas, e sim massacres propagados, que não passam por nenhum aspecto de legalidade ou negociação, reproduzindo-se à margem da lei, aparecendo do modo mais cruel possível. Se estes morticínios têm como fulcro comum, para os órgãos de segurança pública, a disputa por pontos do comércio de drogas, as suas repetições ganham, por parte dos meios de comunicação social, uma auréola de banalização da vida, ensejando, no seio da população, uma indignação social. Estas cenas dão azo a um discurso a favor do uso da força ilícita policial: “bandido, marginal tem que ser morto” ou “bandido bom é bandido morto”. As chacinas são também ampliadas, em um cenário de violência difusa, para os mendigos e os moradores de rua. A exclusão social, imposta a uma grande faixa da sociedade, é substituída pela exclusão física, uma inversão de valores em que os pobres, os mendigos, não têm mais direito à vida.

A crueldade e a ampliação de categorias analíticas

O aumento ou a repetição das trucidações, que envolvem componentes de uma mesma família e, principalmente, a escalada crescente de práticas de latrocínios, ampliam as categorias analíticas deste campo. Se, antes, o moto continuo era entre conflito social e violência, atualmente é configurada uma nova manifestação, denominada “crueldade”. Esta categoria, com intenso componente nativo, representa os crimes perpetrados fora de uma lógica explicativa ou de uma justificação social (Arendt, 2000). São ações que se reproduzem sem justificativa no campo dos valores: os hegemônicos e os de contravenção. Alguns crimes violentos, como, por exemplo, os de honra, de vingança associados a disputas familiares, são passíveis de uma elaboração no interior da axiologia social, instituindo razões, agentes e verdades em questão. Já os delitos classificados como de crueldade são, em princípio, situados à margem de um universo justificador, reforçando também a ideia de uma violência difusa no âmbito da explicação sociológica.10

Os crimes, classificados como de crueldade, descortinam outra perspectiva sociológica, diferente das análises cristalizadas nas Ciências Sociais, que visualizavam as ações violentas com base em vítimas crianças, mulheres e idosos, percebidas como preferenciais e vulneráveis.

Os crimes de crueldade estão recorrentemente nos programas televisivos e matérias jornalísticas, de ordem geral de mídia, envolvendo latrocínios, quando a vítima já rendida, havendo inclusive entregado os seus pertences é, em seguida, executada. Como explicar a crueldade dessas ações que escapam ao diagnóstico weberiano da racionalidade?

Adolescentes confessam ter matado garota”. Crueldade. Esse foi o termo usado pela Polícia para explicar o motivo do assassinato da adolescente Andreza Kelly do Nascimento, 15, encontrada morta por estrangulamento, no início da manhã de ontem, na Unidade de Recepção Luis Barros Montenegro, no bairro Olavo Bilac. Em depoimento à delegada Iolanda Fonseca, da Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), duas das três adolescentes que se encontravam no mesmo quarto de Andreza confessaram o crime, inclusive com todos os detalhes de como foi praticado. Uma ação extremamente cruel. A confissão do crime ocorreu durante o interrogatório. “Elas mataram por pura maldade”, resumiu o diretor do DPE. De acordo com o depoimento das duas garotas, o motivo teria sido o fato de que elas haviam jurado de morte outra adolescente com quem haviam brigado no Centro Educacional Aldacir Barbosa, no bairro Antônio Bezerra. Como a “inimiga” não foi transferida, elas juraram matar quem chegasse no quarto delas. Uma das garotas tampou a boca de Andreza com as mãos, enquanto a outra a esganou também com as mãos. Para ter a certeza de que a vítima estava morta, elas ainda disseram no depoimento ter usado um lençol para enforcá-la. Depois, retiraram um pedaço de azulejo da parede e riscaram as costas da Andreza para se certificarem da morte. (Diário do Nordeste, Fortaleza, 28/10/2008).

Diariamente são estampadas notícias, como esta, nos principais jornais, retratando crimes violentos, com a distinção da crueldade. A destacada marca das matérias é o espetáculo, demarcando todos os elementos para se tornar um fato jornalístico – escandaloso, cruel ou inusitado.

As matérias se enquadram nos “episódios cuja repercussão justifica-se – como diz Elisabeth Rondelli – pela revelação de outras questões que não estão propriamente neles”. (1998, p. 146). O conteúdo dos jornais nos possibilita montar uma tipologia de práticas violentas e confrontos interpessoais com suporte em aspectos diferentes: natureza do conflito, pessoas envolvidas, relações de aproximação, lugares onde ocorreram as práticas, armas utilizadas etc.

Importa, nesse sentido, ressaltar como um dos eixos referenciais de análise a produção da violência como dimensão inseparável das representações estabelecidas em seu nome (Wieviorka, 1997). São representações, socialmente elaboradas, veiculadas pelos media, contribuindo para a reprodução de linguagens da violência (Rondelli, 1998).

Jovem é encontrado degolado no Vila Velha”. Um jovem de 20 anos, viciado em droga, acusado de homicídios e envolvido com uma gangue foi morto de maneira cruel no bairro Vila Velha. Otaciano Martins dos Santos era conhecido por Cãozinho do Inferninho. O corpo dele foi encontrado degolado com os olhos furados, dedos decepados e orelhas cortadas e deu entrada, ontem de madrugada, na Perícia Forense. Para a Polícia, Otaciano foi torturado antes de ser executado. O caso está sendo apurado pela Delegacia do 170 Distrito Policial (Vila Velha). A Polícia ainda não sabe quem foram os executores. Sabe-se então que era jurado de morte por uma gangue da Alameda dos Jardins também no Vila Velha”. (O Povo, Fortaleza, 15/07/2012)

Impõe-se chamar a atenção, neste ponto, para o fato de que é um crime, classificado como cruel, ou delimitado, simplesmente, como “ação de crueldade”, em vez de ser definido moralmente, com origem nos sujeitos envolvidos, privilegia a forma como é perpetrado. Trata-se de uma taxionomia que não se contrapõe a uma definição sociológica da violência, no entanto, justapõe aspectos do senso comum e o dado espetacular da configuração de um fato jornalístico.

Medo e Insegurança: novas práticas de sociabilidades

A visibilidade e o aumento da violência e da criminalidade no Brasil e, especialmente, nas grandes metrópoles, mais recentemente nas media e até em pequenas cidades, provocam sensação intensiva de insegurança e medo. Existe preocupação nos estudos acadêmicos em detectar possível relação entre o sentimento de insegurança e o nível de violência. Isto não é plausível. Considero importante esta reflexão, por trazer elementos necessários para o alcance do que é o medo, o medo social e o que representam as distintas respostas individuais e/ou coletivas elaboradas e legitimadas perante a sensação de temor.

Em pesquisa realizada em Fortaleza, sobre Juventude e violência, um jovem habitante da periferia da cidade, analisando esta vivência com o medo, acentua preocupado: “viver com medo é viver pela metade” (Barreira et alii, 1999). Esta comoção de intranquilidade e insegurança configura, em grande parte, as nossas práticas de sociabilidades e passa a fazer parte do nosso cotidiano, alimentado, diariamente pelos meios de propagação coletiva.11

É crescente o destaque, nos estudos sociológicos, da busca de compreensão do medo como aspecto intrínseco do campo da violência, bem como das práticas sociais contemporâneas.

Luzia Fátima Baierl assinala que o medo,

Como sentimento, relaciona-se com os sentidos, com a faculdade ou habilidade que os sujeitos possuem de perceber, analisar e classificar as coisas no mundo real. Ou seja, um conjunto de cenas, imagens, situações e fatos cotidianos despertam sentimentos de alegria, felicidade, ira, paixão, medo, raiva, tristeza, amor, paixão, esperança, etc. Alerta para sentimentos prazerosos ou de espreita e de medo. Diz respeito às formas como as pessoas são afetadas em relação a cenas, situações e acontecimentos (2004, p. 38).

Tuan (2005),12 analisando este fenômeno, colado às reações neurofisiológicas enfatiza no fato de que o medo é

[...] um sentimento complexo, no qual se distinguem claramente dois componentes: sinal de alarme e ansiedade. O sinal de alarme é detonado por um evento inesperado no meio ambiente. [...] Por outro lado, a ansiedade é um pressentimento de perigo quando nada existe nas proximidades que justifique o medo. (2005, p. 10).

Para Tuan (2005), nossas “mentes férteis” produzem curiosidades em que o conhecer leva a mais descobertas, geradoras de mais medo.

É importante destacar, no entanto o fato de que as práticas contemporâneas de sociabilidades levam em consideração as ações de se prevenir e de fugir do perigo, tendo como parâmetro o não conhecido. A admissão aos espaços e códigos sociais desconhecidos leva à insegurança e ao medo, ensejando ansiedades e pânicos. Os espaços sociais passam a ser codificados: seguro – inseguro, tranquilo – perigoso. Nesta perspectiva, o medo é um sinal de alerta que previne as pessoas acerca de perigos, mas é também um elemento propulsor de ansiedades e ações irracionais.

Na inteligência de Baierl, “estudar o medo é avaliar como ele é produzido de maneira singular-coletiva em contextos sociais e individuais historicamente situados”. (2004, p. 48). A autora analisa os medos sociais como um tipo de “medo construído socialmente, [...] que tem sua gênese na própria dinâmica da sociedade. Medo produzido e construído em determinados contextos sociais e individuais, por determinados grupos ou pessoas”. (p. 48).

De acordo com Matos Junior,

[...] os medos sociais não podem ser pensados como categorias estáticas, mas como sentimentos relacionados às noções de espaço e tempo que apresentam diferentes matrizes geradoras. [...] Os medos socialmente e diferencialmente construídos, suas distintas afetações nos indivíduos e coletividades e sua qualidade enquanto sentimento nos leva a perceber que os mesmos não podem ser confundidos com suas reações sociais (2009, p. 107).

Barry Glassner, analisando “histórias inacreditáveis e estatísticas exageradas”, exprime a noção de que,

[...] se o mistério sobre pânicos infundados inclui o fato de como eles são vendidos a pessoas que sofrem perigos reais com os quais se preocupar no caso de temores mais justificáveis a questão é um pouco diferente. Nós temos de ter preocupações com a criminalidade, o consumo de drogas, o abuso de crianças e outras calamidades. A questão é: como nos atrapalhamos tanto a verdadeira e extensão desses problemas? (2003, p. 75).

É valido dizer que o sentimento de insegurança e de medo é uma prática social universalmente constituída. Esta prática, no entanto, é elaborada tendo como substrato o tempo e o espaço. Nesta perspectiva, sua intensidade se configura a partir de situações concretas vividas, em contextos e vulnerabilidades sociais, tal como observou Irlys Barreira (2011):

O medo na cidade pode ser visto como a incapacidade de dominar os códigos de convivência. A forte demanda feita de vigilância, feita às instituições, está presente em vários discursos e denúncias da população. A certeza do ir e vir, que caracterizava a crença no funcionamento das atividades cotidianas é gradativamente substituída pela sensação de vulnerabilidade. (2011, p. 99).

A relação entre violência e medo é representada como um moto continuo entre violência/medo/violência. Nas relações sociais, constituídas pela égide da insegurança e do medo, é destacado o fato de que a violência propicia um medo e este impulsiona mais violência. Neste diapasão, configura-se um círculo vicioso em que a grande meta coletiva, na busca da volta à normalidade social, é romper com este círculo. A este círculo, hoje, é aportada mais complexidade, passando ele a ser analisado como uma espiral, na medida em que a violência proporciona um medo, que se transmuta na necessidade de mais controle e normas mais rígidas, deixando transparecer novas formas de dominação e poder. Estas relações mais complexas socialmente, resultado da existência de práticas violentas e medos, trazem como resultado diferentes formas de manifestações de violência, de mais difícil compreensão e mais custosos situação e controle. As bases de sustentação, no sentido weberiano, ficam sempre mais complexas e de laboriosa extensão. Se o primeiro passo para domar determinadas práticas é o controle e o entendimento de suas bases de sustentação, o fenômeno da violência é revestido de uma capa protetora praticamente intransponível.

Nesta perspectiva efetiva-se

[...] uma pluralidade de normas sociais, algo mais do que o próprio pluralismo jurídico, levando-nos a ver a simultaneidade de padrões de orientação da conduta muitas vezes divergentes e incompatíveis, como, por exemplo, a violência configurada como linguagem e como norma social para algumas categorias sociais, em contraponto àquelas denominadas de normas civilizadas, marcadas pelo autocontrole e pelo controle social institucionalizado. (Tavares dos Santos, 1999, p. 21).

A violência difusa e a sensação de insegurança que marcam profundamente as relações sociais na contemporaneidade portam novas práticas de sociabilidades, bem como outros cenários urbanos. As sociabilidades, atualmente, em grande parte são conduzidas e delimitadas pelo medo e pela sensação de insegurança prevalecente. A violência está adestrando os comportamentos sociais, delimitando o que é possível e o impossível, o permitido e o negado, o proibido e o aceito socialmente. As classificações morais dos lugares perigosos são cada vez mais crivadas de cuidados e proibições, intensivamente constituídas e baseadas em preconceitos, estigmas e estereótipos. Vivencia-se um momento de negação de uma atitude blasé, nomeada por Simmel, caracterizada por um comportamento distraído, indiferente e contemplativo. Hoje o comportamento é assinalado pela atenção e pelo cuidado. A visão atenta e vigilante, bem como o andar preocupado, configura o comportamento da pessoa moderna, contrária à atitude blasé, mesma forma que o cantado e decantado flâneur, de Charles Baudelaire.

Neste campo, tem saliência a ampliação de práticas juvenis que passam a ser divisadas como atos delituosos, passiveis de punição. A intolerância fornece os contornos de práticas diferentes que alçam à grandeza de ações criminais.

Na lição de Michel Misse (2006), a sujeição criminal arrima-se na:

[...] transgressão, cuja criminação é socialmente justificável, desliza para a subjetividade do transgressor e para sua individualidade, reificando-se socialmente como caráter ou enquadrando-o num tipo social negativo. Essa noção parece-me tanto mais interessante quanto maior for a capacidade do poder de definição de antecipar (ou prever) a adequação da incriminação a um indivíduo e de construí-lo como pertencente a um tipo social. Amplia-se a sujeição criminal como uma potencialidade de todos os indivíduos que possuam atributos próximos ou afins do tipo social acusado.(2006, p. 175).

O não respeito à diferença, a intolerância e os preconceitos pautam os espaços de “sociação”, no sentido de Simmel, com o diferente sendo representado como perigoso. Os cenários urbanos são objeto de profundas mudanças em suas estéticas visuais. Os muros altos, as cercas elétricas e as grades pesadas padronizam as arquiteturas urbanas. O diferente é homogeneizado, buscando-se uma segurança privada da família ou individual. É a proteção da vida e do patrimônio que norteia as ações individuais. Estas proteções, em nome de uma segurança, também definem novas práticas de convivências sociais. O medo e a sensação de insegurança permanente levaram as pessoas a posições extremas de busca pelo isolamento e proteção pessoal.

A edificação de condomínios fechados e a elevação dos muros, além da contratação de serviços privados de segurança, passaram a responder a muitos dos anseios das classes médias e altas. Estas “alternativas” são muitas vezes criticadas pelo comodismo e pela ausência de responsabilização individual, em face da situação de crise das formas de convivência social solidárias. As práticas individualistas e as saídas coletivas são confrontadas, bem como as opções particulares e públicas.

Tavares dos Santos (1999) destaca, em suas análises sobre a emergência do fenômeno da violência e os limites da formação política da Modernidade, uma nova morfologia do social

[...] produzida pelo processo de formação da sociedade global que apresenta múltiplas dimensões, as quais podem ser assim sintetizadas: produziram-se, além da metamorfose das classes sociais, outras transversalidades na produção da organização social, tais como as relações de gênero, as relações raciais, as relações entre grupos culturais e entre dispositivos poder-saber (1999, p. 20).

Na sua compreensão,

Desenha-se um espaço social constituído por estruturas, posições e trajetórias de agentes, portanto, complexo e multidimensional. [...] Multiplicaram-se as formas de organização dos grupos sociais, para além dos interesses socioprofissionais, mediante as infindáveis possibilidades de associações, em tomo de interesse de objetivos variados. [...] Desencadeiam-se processos variados de formação e de consolidação do tecido social, por grupos que organizam conflitivamente seus interesses particulares e se articulam em poliformes contratos de sociabilidade. (1999, p. 20).

Nesta perspectiva, são apontadas profundas mudanças nas principais instituições responsáveis pelos processos de socialização, como a família e a escola. Tais instituições são alvo de intensos processos de desinstitucionalização.

É fato que as estatísticas demonstram um crescimento significativo, no Brasil, das taxas de criminalidade em geral e, sobretudo, das relativas aos assassinatos.

É importante para se refletir sobre o fenômeno da violência o fato de que as sociedades ditas “civilizadas” reduziram acentuadamente os crimes que atentam contra a vida – o número de assassinatos é praticamente insignificante, por exemplo, nos países escandinavos, além de conseguirem estabilizar os crimes contra o patrimônio.

No caso da sociedade brasileira contemporânea, a questão fundamental para a análise de um possível comportamento violento é o fato de existir uma tendência delineada de aumento dos índices gerais de criminalidade, tanto para os crimes contra a vida, quanto para aqueles lesivos ao patrimônio, para os últimos 20 anos.

Alguns elementos para pensar a violência difusa

As taxas elevadas de homicídios, bem como os índices de delitos contra o patrimônio, ao que adito a intensa sensação de insegurança e medo, situam na ordem do dia a temática da violência e, especialmente, o vivenciar de uma violência difusa. O volume de perguntas, com uma boa parte sem resposta, intranquiliza a população brasileira, dando concretude a uma possível “cultura do medo”.

Quais são as consequências sociais e psíquicas para as pessoas sociabilizadas com a perpetuação deste quadro de insegurança e medo? Que razões impedem o estabelecimento de um processo de pacificação social?

São perguntas difíceis de responder ou explicar de modo plausível. Foram, em grande parte, no entanto, estas questões que provocaram o interesse de um conjunto diversificado de instituições sociais, políticas e econômicas, em especial, os laboratórios, núcleos e institutos vinculados às universidades, para empreender pesquisas empíricas a respeito do problema do crescimento da violência e suas conexões com a sensação de insegurança e medo.

Toda uma produção de conhecimento baseada em dados quantitativos e qualitativos foi ativada para tentar compreender e explicar o fenômeno da violência e suas conexões com o campo social; uma produção que avança ou aponta para algumas conclusões, podendo ser destacado o fato de que a causalidade da violência jamais decorre de um só fator, mas sempre de um conjunto de determinantes fatores em contextos precisos, social e culturalmente. Um dado novo e bastante explosivo coincide com as diferentes manifestações de práticas de uma violência difusa, as quais produzem barreiras sociais e reforçam os estigmas, tendo como resultado a criação de outras bases de sociabilidades, configurando o intolerável, o perigoso e, principalmente, o incontrolável.

A sensação de insegurança e o medo social no Brasil têm profunda relação com o crescimento dos homicídios e da criminalidade, com a configuração de uma violência difusa, mesmo mantendo o quadro de existência de “vítimas preferenciais” e a classificação de “crueldade” das práticas criminosas. O cenário violento tem, no entanto, uma relação direta, também, com a ampliação do espectro da criminalização de práticas sociais. Colhe, neste plano, uma dimensão paradigmática deste fenômeno a criminalização de práticas juvenis.

O termo “difuso”, trabalhado no artigo, permite qualificar, fundamentalmente, o fenômeno da violência na contemporaneidade, assumindo uma dimensão polifônica, direcionando para uma “sensação difusa de insegurança”, bem como para “difusos medos sociais”. O difuso configura claramente o incontrolável e o imponderável.

O difuso medo social perfaz também instransponíveis barreiras sociais, atingindo diretamente os princípios de cidadania. É importante não negar, entretanto, o fato de que está sendo gestada, no Brasil, uma sociedade mais consciente dos seus direitos, com princípios de cidadania e ampliação dos direitos sociais e políticos.

Finalizando, é importante destacar a ideia de que a compreensão sociológica da violência exige não situá-la em oposição ou polo extremo à pacificação; nem a visão de um provisório continuum, que supõe o seu fim, com origem nalgum momento; tampouco a versão de uma polaridade sociológica que associa a violência a qualquer forma de “a-normalidade”. O conceito de violência difusa agrega-se a uma necessidade de entender a radicalidade dos conflitos na sociedade contemporânea.

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Notas

1 Esta temática foi abordada em uma coletânea organizada por Élcio Batista e por (Barreira & Batista, 2011).
3 O movimento feminista, por exemplo, que de começo tinha como temática a desigualdade social, passou a ocupar-se com as denúncias de violência contra as mulheres. O movimento negro, o movimento de trabalhadores rurais e aqueles de bairros e favelas passaram a situar a violência no centro das atenções. Ao lado dos movimentos sociais, as entidades voltadas para a luta por direitos humanos ocuparam lugar importante na denúncia da situação dos presídios, da violência contra crianças e adolescentes pobres e a recorrência do uso da tortura, por parte dos órgãos de segurança pública.
4 Os estudos atinentes, com algumas exceções, não ocupavam, anteriormente, um lugar central nos trabalhos e nas pesquisas acadêmicas. Nesta perspectiva, é importante reaver alguns autores, como, por exemplo: Gilberto Freyre (1999), Antônio Candido (1975), Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997), Maria Isaura Pereira de Queiroz, Edgar Carone (1969) e Rui Facó (2009), dentre outros.
5 Na antessala de um consultório médico, uma senhora relata, com muita indignação, um assalto sofrido por uma empregada doméstica após receber o seu salário. Logo em seguida, outra senhora interfere, dizendo: “hoje é assim mesmo, os marginais roubam e matam não importa a quem!”
6 “Pirangueiro” é usado no sentido bem explícito de reles, desprezível e mesquinho.
7 Os depoimentos dos profissionais da área da saúde são bastante elucidativos destas mudanças. Para estes, de dez casos que envolviam vítimas de agressões físicas, que entravam nos postos de saúde, das áreas periféricas da cidade de Fortaleza, até a década de 1980, nove ocorrências tinham como instrumento a arma branca e somente um era fruto de arma de fogo. Hoje é literalmente o inverso, sendo nove casos que envolvem a arma de fogo e somente um tem como instrumento a arma branca.
8 Segundo alguns profissionais da área da saúde, até o final do século passado, o atendimento era realizado em pessoas de mais de 30 anos. Atualmente, eles socorrem, com grande incidência, nos postos médicos, principalmente das áreas periféricas das grandes cidades, pessoas (jovens) de mais de 14 anos.
9 Auferem nacional visão pública, noticiados pelos meios de comunicação, os massacres ocorridos na cidade de São Paulo.
10 Ganham notoriedade os assassinatos em série, ocorridos, principalmente, nos Estados Unidos, mas também no Brasil. São assassinatos envolvendo, geralmente, crianças em Escolas, por um livre atirador.
11 Para Barry Glassner, “Toda análise da cultura do medo que ignore a ação da imprensa ficaria evidentemente incompleta” (2003, p. 33).
12 Agradeço a Clodomir Matos Júnior a indicação desses dois autores.


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