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REVISITANDO OS FUNDAMENTOS DAS MODERNIDADES PERIFÉRICAS: DÁDIVA, MERCADO E PACTO COLONIAL
Paulo Henrique Martins
Paulo Henrique Martins
REVISITANDO OS FUNDAMENTOS DAS MODERNIDADES PERIFÉRICAS: DÁDIVA, MERCADO E PACTO COLONIAL
REVISITING THE FOUNDATIONS OF PERIPHERAL MODERNITIES: GIFTS, MARKETS AND THE COLONIAL PACT
REVOIR LES FONDEMENTS DES MODERNITÉS PÉRIPHÉRIQUES : DON, MARCHÉ ET PACTE COLONIAL
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 1, núm. 1, pp. 257-284, 2013
Sociedade Brasileira de Sociologia
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RESUMO: As particularidades das modernidades nas atuais sociedades pós-coloniais na América Latina se explicam a partir da análise do caráter paradoxal dos pactos coloniais. Tais paradoxos resultam da variedade de lógicas instituintes do imaginário sócio-histórico da colonização, em particular aquelas da dádiva e do interesse mercantil, que influíram sobre os processos de desenvolvimento periféricos. Diríamos que a colonialidade contribuiu com seu próprio artesanato para a configuração da sociedade global e que ela continua sendo importante para entender certas particularidades do desenvolvimento do capitalismo e das possibilidades de reação altersistêmicas ao capitalismo no sistema-mundo.

Palavras-Chave: Modernidade, Colonialidade, Artesanato, Sociedade Global.

ABSTRACT: The specific forms assumed by modernity in contemporary postcolonial societies in Latin America can be explained through an analysis of the paradoxical nature of colonial pacts. These paradoxes result from the variety of logics informing the sociohistorical imaginary of colonization, in particular those of the gift and market interest, which have heavily influenced processes of peripheral development. We could say that coloniality contributed its own craft to the configuration of global society and that it continues to be important in terms of understanding specific features of the development of capitalism and the possibilities for altersystemic responses to capitalism within the world system.

Keywords: Modernity, Coloniality, Craft, Global Society.

RÉSUMÉ: Les particularités des modernités dans les sociétés postcoloniales actuelles de l ‘ Amérique latine s’expliquent à partir de l’analyse du caractère paradoxal des pactes coloniaux. De tels paradoxes résultent de la variété des logiques instituantes de l’imaginaire sociohistorique de la colonisation, en particulier celles du don et de l’intérêt mercantile qui ont influencé les processus de développement périphériques. Nous dirons que la colonialité a contribué avec son propre artisanat à configurer la société globale et qu’elle reste encore importante pour comprendre certaines particularités du développement du capitalisme et des possibilités de réactions alter systémiques au capitalisme dans le système monde

Mots-clés: Modernité, Colonialité, Artisanat, Société globale.

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REVISITANDO OS FUNDAMENTOS DAS MODERNIDADES PERIFÉRICAS: DÁDIVA, MERCADO E PACTO COLONIAL

REVISITING THE FOUNDATIONS OF PERIPHERAL MODERNITIES: GIFTS, MARKETS AND THE COLONIAL PACT

REVOIR LES FONDEMENTS DES MODERNITÉS PÉRIPHÉRIQUES : DON, MARCHÉ ET PACTE COLONIAL

Paulo Henrique Martins
Associação Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais, Brasil
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 1, núm. 1, pp. 257-284, 2013
Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 1 Maio 2013

Aprovação: 1 Julho 2013

Lógicas da colonização e choques culturais

Nossa reflexão sobre as modernidades em sociedades como as latino-americanas e a brasileira no interior do sistema-mundo (Wallerstein, 2004, 2011) se baseia no desenvolvimento recente das teses pós-coloniais e descoloniais (Dussel, 1993, 2005; Lander, 2005; Quijano, 2000, 2005; Mignolo, 2005, Santos, 2008; Grosfoguel, 2010), que apontam para a importância de se rever a sociedade global a partir de uma pluralidade de contextos (pós-colonialidade) e de se desconstruir os mitos e crenças que fundam o eurocentrismo como esfera teleológica do desenvolvimento humano (descolonialidade). Enfim, as Ciências Sociais têm o desafio de entender as particularidades e diferenças de modelos de desenvolvimento e de experiências de modernidades nos territórios periféricos e este texto objetiva trazer algumas reflexões nesta direção a partir das singularidades dos processos coloniais. As teses descoloniais ou décoloniales,1 em particular, avançam na crítica radical à utopia moderna do crescimento econômico ilimitado, recusando a ideia da colonização como um processo unidirecional produzido pela expansão do movimento eurocêntrico. O reconhecimento da diferença não é um valor secundário, mas, ao contrário, um passo decisivo para se entender as variadas e conectadas formas de organização das modernidades-mundo.

Um dos primeiros autores a se posicionar explicitamente sobre o assunto foi o palestino E. Said (1979), quando demonstrou que a orientalização foi uma perspectiva construída pelo Ocidente para explicar a presença do diferente num contexto de dificuldades do europeu em lidar com a força da cultura “oriental”. De fato, tal reconhecimento do diferente se realizou na ótica da dominação colonial e por uma hierarquia axiológica que coloca em lugar prioritário os atributos do eurocentrismo – como aqueles da pretensa superioridade da raça branca, da dominação masculina, do cristianismo e do racionalismo cartesiano – sobre os atributos de culturas não europeias. Outros autores, desde então, passaram a trabalhar com a tese das múltiplas modernidades (Eisenstadt, 2001; Quijano, 2005; Schmidt, 2006), buscando diferenciar ocidentalização e modernidade e compreender os diferentes processos de modernização do sistema-mundo.

O reconhecimento da existência de diversos modos de tecer o moderno dentro do processo de Ocidentalização do mundo é muito relevante para se entender as novas modalidades de questionamento e de reorganização da vida social neste contexto de reajustes do sistema global. Há um texto emblemático para ilustrar esta complexidade da emergência do moderno a partir da consideração do elemento colonial, a saber, 1492. O encobrimento do Outro: a origem do mito da modernidade, escrito por E. Dussel. Neste livro, o autor questiona a tese de que a modernidade é um fenômeno exclusivamente europeu, buscando demonstrar a importância da relação dialética entre europeu e o não europeu. Dussel propõe, então, a afirmação de uma alteridade do Outro, de modo a incluir aqueles que foram negados pelo processo colonial e sugere igualmente se pensar a transmodernidade como projeto mundial de libertação (Dussel, 1993: 187).

Falar de múltiplas modernidades implica de imediato adotar noções estratégicas como aquelas de tradução (conversão ou adaptação de ideias e imagens entre lógicas culturais diversas), zonas de contato (espaços de confrontação e de negociação entre atores pertencentes a imaginários sociais e históricos diferentes) ou hibridismo (mescla de elementos culturais diversos), que vêm sendo divulgadas por pensadores pós-coloniais (Bhabha, 2010; Santos, 2008), contribuindo para repensar as teorias dos conflitos a partir dos “choques culturais” introduzidos pela colonialidade. Os momentos fundadores da colonização planetária nos permitem ver a importância sócio-histórica desses choques culturais que tiveram lugar em diversas zonas de contatos2 abertas pela conquista da Asia, África e América, e como tais choques contribuem para o entendimento da pluralidade de modernidades emergentes nos últimos séculos. Estes choques culturais influenciaram fortemente a direção da colonização: os mecanismos de produção de identidades e de valorização de etnias e gêneros, a formação do poder burocrático colonial, a constituição das hierarquias de reconhecimento, a apropriação e distribuição dos territórios e das riquezas naturais e humanas. Os momentos iniciais da fundação do pacto colonial revelam, em especial, a complexidade dos elementos religiosos, culturais, linguísticos, políticos e econômicos que intervieram na construção social da realidade e que explicam as especificidades interculturais de cada situação concreta.

A intensidade e o ritmo dos choques culturais variaram paralelamente à diversidade das experiências coloniais e à intensidade do confronto ideológico que daí resultou. As ações colonizadoras em regiões como a China, a Índia, o Egito, o Havaí e o Brasil mostram a presença de choques culturais e econômicos comuns que se referem contraditoriamente ao discurso da uniformização planetária do Ocidente, o qual, para alguns, transformou-se em uma máquina social sem controle (Latouche, 1989). A ideia de múltiplas modernidades tem relação, logo, com a reação do Outro encoberto pelo Ego europeu (Dussel, 1993), que se revelou por reações bastante diferentes ao projeto de ocidentalização, obedecendo às particularidades históricas de cada sociedade e cada cultura. Há, logo, dois movimentos paralelos a serem registrados que explicam a dialética das modernidades plurais: o do impacto da conquista eurocêntrica sobre as culturas locais a partir da lógica de colonialidade, e, no lado contrário, aquele das reações e impactos culturais inversos das periferias sobre o centro, o que alterou inclusive a configuração cultural deste a partir da introdução de especiarias, gastronomias, tecnologias e referências culturais diversas.

Cada contato cultural entre europeus e não europeus desencadeou experiências peculiares de intercâmbios materiais e reconhecimentos ritualizados; de hibridismos que são conectados, mas cujos elementos nem sempre são redutíveis entre si. Tomemos apenas um caso do processo colonial, o da “América Latina”, cuja enunciação é uma violência semântica contra os povos originários ao eleger o navegante Américo Vespúcio e a etnia dos ladinos como marcas territoriais e políticas (Martins, 2012). Assim, em algumas situações do processo da colonização ibérica no novo território inicialmente chamado de “Índias” antes de tornar-se “América Latina” – o impacto colonizador consistiu na eliminação – por meio de violência física ou violência cultural – de séries inteiras de populações indígenas, como foi verificado em países como Argentina, Chile e Brasil. Em outras situações, entretanto, como nos Andes peruano, equatoriano e boliviano, ou na Guatemala e no México, os autóctones conseguiram preservar suas memórias e tradições, apesar da violência colonizadora, e isto constitui hoje um fator importante de mobilização política e cultural. Em outras partes do planeta, sobretudo no contato com civilizações antigas e consolidadas, como Índia, China e Japão, os europeus enfrentaram dificuldades importantes para a expansão colonial. Caso emblemático é o dos portugueses no Japão, onde foram rechaçados inúmeras vezes pelas nobrezas militares locais, sem conseguirem estabelecer, por te, as bases da colonização ibérica naquela região asiática. Em cada um desses momentos, o que se verificou foi o deslizamento semântico do conceito de Europa no movimento de estruturação do sistema “centro-periferia” (Dussel, 2005, 47).

A seguir, vamos nos deter na apreciação da colonização na América Latina para poder compreender mais de perto algumas particularidades do processo de colonialidade. Esta reflexão não tem apenas valor heurístico, sendo importante para se compreender a natureza do poder e da dominação na atualidade das sociedades pós-coloniais na região.

A aventura colonial nas “Índias”: dádiva, religião e mercado

Os primeiros encontros entre os conquistadores ibéricos e as comunidades originárias dos territórios das “Índias” são muito relevantes para se entender os sentidos da colonização nesta parte do mundo que chamamos de América Latina. A aventura colonial encerra informações que são muito importantes para a compreensão teórica do pacto colonizador nessas sociedades do Sul e tais informações podem ser sintetizadas em três noções centrais: dádiva, religião e mercado.

Para melhor entender a importância desta teorização sobre a natureza das novas zonas de fronteiras fundadas pelo impacto colonial, é preciso integrar uma abordagem mais aprofundada das relações de força aqui presentes, a qual apenas pode ser compreendida através da análise dos sistemas de troca e de dádiva, como discutiremos mais à frente. Através da dádiva podem-se identificar os choques culturais que refletem as presenças de dois imaginários antagonistas: por um lado, o imaginário racionalista europeu, baseado na separação ontológica entre Homem e Natureza; 3 ; por outro lado, o imaginário expressivo e holístico dos povos originários, que identifica uma relação orgânica entre o ser humano e a natureza ambiental e espiritual. Neste último imaginário, Cultura e Natureza são categorias ontológicas que se misturam e nele o ser humano apenas organiza sua identidade no mundo enquanto for capaz de interagir dialogicamente com os demais seres vivos, como as plantas e os animais. Ou seja, não há separação ontológica entre cultura e natureza e, por isso, há um sistema simbólico integrado e muito expressivo, formado por diversas classes de seres que interagem ritualmente na organização do mundo. O ser humano constitui, neste imaginário, apenas uma dessas classes de seres (Viveiros de Castro, 2004).

Nossa hipótese é, assim, que não se pode compreender a verdadeira importância sócio-histórica do contato cultural4 fundador do pacto colonial na América Latina caso não superemos dois reducionismos teóricos. O primeiro reducionismo procura limitar o processo colonizador na América Latina a um empreendimento econômico e exportador, desvinculado dos elementos culturais e históricos particulares. Esta leitura limitada da realidade negligencia o que nos ensinaram Mauss e Polanyi sobre as relações complexas da economia com outras determinações sociológicas e antropológicas e também sobre o entendimento da economia de mercado como um fato cultural historicamente delimitado.5 A aventura colonizadora não pode ser compreendida apenas pelas abordagens econômicas tradicionais propostas pela sociologia europeia, que tem privilegiado as determinações mercantilistas na organização do processo de colonização. Porém, também é importante não cair em outra leitura simplificada, na qual se substitui a determinação econômica por qualquer outra determinação monodimensional, como é o caso do estruturalismo lévi-straussiano, que substitui o determinismo materialista pelo determinismo cultural e simbólico. Todo determinismo tende ao essencialismo, negligenciando o valor instituinte da ação humana ou as “lutas dos homens”, termo usado por C. Lefort na crítica a estruturalismo ainda no ano de 1951 (Lefort, 1979).

Outro reducionismo ideológico representa o momento colonizador como o confronto entre uma civilização pretensamente avançada e uma série de sociedades “selvagens” e inferiores, cujas imagens excitaram os primeiros conquistadores e alimentaram o imaginário eurocêntrico durantes séculos. Este raciocínio leva à conclusão perversa sobre a unilateralidade da modernidade que já denunciamos no início do artigo, a saber, a de que a modernidade é sempre europeia e que a formação das sociedades coloniais foi, sobretudo, o resultado direto da força civilizadora dos conquistadores. No entanto, esta conclusão superficial não resiste ao confronto com a realidade empírica que nos é revelada pelas narrativas da colonização. Naqueles momentos iniciais da colonização planetária, foram observados impactos significativos de caráter intercultural em várias partes do globo. Isto é testemunhado, por exemplo, por M. Sahlins, ao descrever o contato entre os ingleses comandados pelo Capitão Cook e os indígenas do Havaí (Sahlins, 2003), ou por T. Todorov, em sua análise do confronto entre espanhóis e populações ameríndias (Todorov, 1988).

Na América Latina, a força militar dos conquistadores certamente contribuiu para a fragmentação dos sistemas sociais locais, incluindo os de civilizações mais avançadas, como os astecas, no México, e os incas, no Peru. No entanto, essa fragmentação não implicou automaticamente a eliminação dos sistemas sociais, culturais e religiosos locais. Estes sobreviveram de diversas maneiras aos impactos culturais e militares exógenos, seja pela busca de preservar o espírito da tradição, como observamos nos povos do altiplano boliviano e peruano, seja por experiências sincréticas e híbridas, que são bastante visíveis nas manifestações artísticas e religiosas e nas tecnologias do cuidado. O reconhecimento do valor político e cultural destas reações é hoje exaltado na escola colombiana de sociologia por autores que propõem uma ecosofia da sabedoria, ou seja, o propósito de repensar o mundo da vida a partir da valorização da festa e da dissidência estética, as quais ressignificam as formas sociais coloniais em novas lutas da cidadania (Restrepo, 2010).

No desenvolvimento deste artigo é, então, importante apresentar as interpretações teóricas reducionistas para melhor compreender a natureza complexa das relações entre capitalismo e colonização, entre lógica mercantilista e lógica simbólico-religiosa da dominação colonial. Nesta direção, observamos que as realidades das zonas de contatos foram palcos de gestos de amizade rapidamente substituídos por gestos de protestos e de recusa do outro e vice-versa. Ou seja, se num primeiro momento o modelo de dominação implantado pelos conquistadores obedecia a uma pluralidade de lógicas, num segundo momento ela se desdobrou em um movimento de tensões e conflitos, revelando a luta pela hegemonia do modelo cristão-mercadológico europeu. Em suma, a colonialidade evoluiu nas tensões entre dádiva, religião e mercado.

A dificuldade dos estrangeiros europeus em aceitar os rituais sacrificiais das etnias locais teve sua contrapartida histórica nas resistências e nas tentativas de preservar memórias e tradições. Pesquisas revelam a importância das resistências políticas e culturais ao poder colonial por parte das populações originárias ou adaptadas. Na dança, na música, na religião, na preservação de memórias ou de rituais secretos e comunitários reproduzidos em aldeias indígenas ou em antigos “quilombos” se observa a presença atualizada da tradição não-ocidental. Do mesmo modo, economias não monetárias baseadas na reciprocidade e na dívida, que existiam antes da chegada dos conquistadores, também continuam a se reproduzir hoje, como mostra Emília Ferraro a partir do caso equatoriano (Ferraro, 2004).6

A complexidade deste contexto do pacto fundador do processo colonial exige, assim, a adoção de uma perspectiva teórica mais complexa, que facilite entender os rumos das modernidades periféricas entre o interesse mercantil, por um lado, e a variedade de motivos culturais e de reações políticas que estiveram presentes e que se reproduzem nas zonas de contato e nos espaços de tradução semiológicos, por outro. Neste sentido, entendemos que a crítica pós-colonial se enriquece com o diálogo mais amplo com a abordagem antiutilitarista que sugere considerar a relação entre motivações econômicas e não econômicas (Caillé & Chantal, 2010). A associação da crítica desde o Norte com aquela desde o Sul (Martins, 2012) facilita se formularem soluções teóricas interessantes para o alargamento da base analítica do processo de colonialidade. Aqui, é preciso lembrar que o paradigma da dádiva permite a síntese destas abordagens, na medida em que facilita a compreensão da pluralidade de motivos para a ação na própria descrição da troca de bens e da circulação de objetos que constituem o “fato social total”. Assim, a dádiva aparece como central para esta revisão teórica, na medida em que ajuda a ressituar a troca mercantil em um quadro de troca “total” mais largo e regido por uma série de razões que ultrapassam a lógica econômica (Mauss, 1999).

O paradigma da dádiva e a crítica teórica ao evento colonial

O paradigma maussiano da dádiva (Godbout & Caillé, 1992; Caillé, 2000, 2005, 2009; Godbout, 2000, 2007; Martins, 2005 e 2008) aparece como uma abordagem decisiva para a desconstrução teórica do pacto colonial e para fazer avançar a crítica descolonial. Os estudos sobre a dádiva permitem a organização de uma abordagem transdisciplinar da ação que nos leve a considerar a empresa colonial como algo mais complexo que o simples interesse mercantilista. O paradigma da dádiva permite revelar as características do pacto colonial originado a partir do choque entre o imaginário eurocêntrico do conquistador e o imaginário cosmocêntrico das populações autóctones e revela, também, a importância deste pacto para o entendimento do pós-colonial hoje. Para que a dádiva seja integrada como uma referência teórico-metodológica central neste esforço de esclarecimento das origens míticas da colonização, é preciso demonstrar que o pacto colonial ainda constitui uma violência epistêmica contra as culturas locais, independentemente dos contextos históricos particulares. Essa violência, explica Castro Gomes (2005), é a negação da diferença, que foi justificada por uma norma religiosa (o bem cristão contra o mal pagão) e uma norma econômica (o interesse mercantil e monetário contra a economia de troca não monetária).

O sistema da dádiva valoriza a moral do interesse para a valorização da prática social, mas o inscreve num campo mais amplo de motivações que inclusive incluem modos diversos de interesse (materiais, políticos, psicológicos, espirituais) e sentidos também variados (interesse por mim e interesse pelo outro), ampliando o entendimento do processo de associação. Ela explica que esta redução sistemática da prática social ao único jogo do interesse utilitário é insustentável, pois tal reducionismo deixa escapar, definitivamente, o essencial daquilo que importa aos humanos já que “é porque aspiram mais a ser reconhecidos que a acumular que os homens não são redutíveis à figura utilitarista do homo economicus” (Caillé, 2009: 5). Esta capacidade de compreender que a ação humana é regida por diversas determinações paradoxais (interesse x desinteressamento7 e obrigação x liberdade) nos convida a ver no processo colonial um campo ampliado de construção discursiva, que combina fatores econômicos imbricados com outros culturais e religiosos. E, ao nos debruçarmos sobre os rituais do pacto fundador, percebemos de imediato que a dádiva foi a condição necessária para organizar o contato cultural entre os europeus e os povos originários. Os diversos rituais estabelecidos nas zonas de contato inicialmente figurados pelas trocas de facas e anzóis por penas coloridas de pássaros tropicais ou por milho e outros alimentos, foram decisivos para se criar um espaço de tradução de ideias e de promoção de diálogo entre as partes. Mas a revelação dos rituais sacrificiais veio a constituir mais tarde um impedimento não traduzível entre os antagonistas, abrindo o caminho para a repressão militar e religiosa conduzida pelos conquistadores contra as populações locais.

O paradigma da dádiva tem um papel importante na reinterpretação das modernidades, uma vez que contribui para destacar os elementos simbólicos, a diversidade dos motivos do comportamento humano e a pluralidade de racionalidades que intervieram no imaginário colonialista e que se reproduzem ainda hoje. A associação do paradigma da dádiva com as teorias pós-coloniais (Martins, 2010) permite igualmente uma maior compreensão teórica do processo colonizador na medida em que desmascara o mito da superioridade cultural da Europa (alvo da crítica pós-colonial) e o mito da anterioridade absoluta das determinações econômicas na colonização (alvo da crítica antiutilitarista) para revelar esta complexidade geopolítica do panorama mundial. Esta abordagem ajuda a entender como os pactos de poder e dominação geraram sentimentos de inferioridade entre os povos oprimidos nas sociedades coloniais, os quais ainda hoje se reproduzem nas práticas culturais dos subalternos. A releitura dos fatores econômicos com variáveis mais amplas, tendo em conta os fatores simbólicos, morais, culturais e religiosos, abre um novo olhar sobre a natureza dos sistemas de dominação coloniais e pós-coloniais, tanto na perspectiva histórica como sociológica e antropológica. Esta releitura esconde também certo interesse arqueológico, pois se trata de desenterrar os vestígios do próprio mito colonial para revelar as tradições que foram perdidas, abandonadas ou reprimidas.

A desconstrução crítica da cultura capitalista e colonial requer, por conseguinte, uma compreensão mais complexa tanto de sua significação imaginária e moral escondida por trás do discurso econômico (crítica antiutilitarista), quanto dos motivos que levaram as sociedades oprimidas a reagir para preservar suas memórias e tradições (crítica pós-colonial). Certamente, isso exige uma reinterpretação dos acontecimentos para captar signos e informações que nos pareçam decisivos para o entendimento da passagem de um primeiro momento de simetria relacional e de ritualizações amigáveis entre os grupos antagonistas para um segundo momento assimétrico, no qual prosperaram as guerras, os extermínios e as políticas de subalternização. Assim, se a lógica mercantilista explica a ambição materialista dos europeus, ela absolutamente não esclarece a intensidade da guerra e a crueldade da dominação escravagista que se materializou em um segundo momento. A mercantilização não explica, por exemplo, as extremas desigualdades sociais de hoje, que mascaram preconceitos variados de etnia e gênero. As desigualdades sociais e econômicas escondem, de fato, dispositivos racistas coloniais atualizados pelo poder colonial e que buscam separar os brancos dos não brancos (negros e povos originários). Há dispositivos racistas que foram organizados para valorizar etnicamente os conquistadores, assim como há políticas religiosas discriminatórias implicadas em impor o universalismo do deus cristão sobre outras divindades não cristãs.

O racismo que justifica a desigualdade econômica e social se revela por uma abordagem descolonial desconstrucionista e reconstrucicionista nas perspectivas da teoria e da prática da dádiva – que articula antiutilitarismo e pós-colonialismo.8 É preciso denunciar com os teóricos pós-coloniais a visão excessivamente eurocêntrica da modernidade, que contribui para naturalizar a dominação colonial pela hierarquia “racial” que separou colonizadores brancos, de um lado, e colonizados não brancos, de outro9. Pois este racismo ajudou, explica-nos Quijano (2005), a fundar a dominação mercantil e marcou a complexidade do processo colonial, a qual dificilmente pode ser explicada pelos modelos abstratos dos economistas e sociólogos da modernização. É preciso considerar, com os antiutilitaristas, que a crítica do capitalismo não deve limitar-se à denúncia da simplificação da racionalidade utilitarista e calculista voltada para o processo mercantil.

O entendimento da complexidade das múltiplas modernidades nascidas do contato entre europeus e não europeus exige que se integre uma crítica moral importante da lógica da acumulação capitalista, de modo a se revelar os mecanismos patológicos que estão presentes na mentalidade do homem egoísta. Para esses autores, a crítica anticapitalista deve começar a partir do interior, desde seus fundamentos morais e ideológicos utilitaristas. Assim, a teoria antiutilitarista da ação avança em várias direções para iluminar, a partir da crítica moral do capitalismo, aspectos importantes das sociedades modernas relacionados às motivações objetivas e subjetivas para a ação. Tais motivações atravessam igualmente os planos do trabalho, da organização fabril, da burocracia, da família, da política, da religião, entre outros (Chanial, 2008).

A teoria antiutilitarista da ação, inspirada na dádiva e também reforçada pelo entendimento da realidade enquanto um emaranhado de múltiplas conexões causais que exigem um interminável trabalho de modelagem das racionalidades (Weber, 1979; Kalberg, 2010), permite visualizar a complexidade das trocas de bens simbólicos e materiais entre os conquistadores e as populações locais. Ela facilita explicar como essas trocas evoluíram em duas direções: de um lado, a repulsão à dádiva comunitária sacrificial que compunha a vida espiritual dos ameríndios; de outro lado, a emancipação da dádiva patrimonialista inspirada na tradição feudalista europeia, que foi a base do Estado colonial que se organizou ao longo do processo colonial.

O pensamento crítico, pós-colonial e antiutilitarista, centrado na dádiva, tem que considerar os elementos externos e internos do pacto colonial para emancipar sua crítica moral. Deve considerar as conexões entre os fatores históricos, linguísticos, religiosos e culturais que condicionaram a colonização como um acontecimento histórico e globalizado, com uma variedade de arranjos que explicam as múltiplas faces da modernidade. Este entendimento descolonial das particularidades do choque cultural, econômico e militar do poder colonizador sobre a constituição específica de cada sociedade colonial é fundamental para sinalizar o caráter autoritário dos pactos de poder estabelecidos e as características das reações anticoloniais durante o processo de ocidentalização do mundo, desde o início e até hoje.

Assim, além da busca desenfreada do capitalismo mercantil por riquezas naturais – ouro, prata e madeira –, verificou-se, igualmente, no plano da subjetividade um progressivo processo de negação radical da condição humana dos indígenas pelos conquistadores, sendo esta a base da emergência de um poder autoritário colonial. As religiosidades do Outro foram progressivamente recusadas por diversas razões, sendo uma das mais importantes a recusa dos europeus à presença da dádiva sacrificial humana e do canibalismo. A rejeição radical do Outro na América Latina – sobretudo povos originários e africanos adaptados – foi a condição para o surgimento daquilo que Quijano chamou de “colonialidade do poder”, ou seja, uma violência epistêmica útil para a organização de uma hierarquia de dominação ao mesmo tempo religiosa e mercantilista. Através dessa hierarquia, os modernos europeus promoveram as diferenças raciais entre europeus, negros, índios e mestiços (Quijano, 2005: 228), distinguindo entre eleitos e subalternos, escravos e não escravos. Ao mesmo tempo, estavam lançadas as bases para outros processos de tradução do moderno, que passavam a incluir o diferente, o excedente, o barroco, revelados pelo pluralismo religioso, pelas resistências culturais, pelas memórias e saudades que marcam as modernidades periféricas.

Origens da modernidade na América Latina: entre dádivas e anti-dádivas

O momento da conquista é central para a compreensão dos traços característicos do pacto fundador da colonização, particularmente as expectativas e os sentimentos dos protagonistas das zonas de contato.

Os relatos da época revelam que a ambição mercantilista se justificava na crença religiosa e a expectativa de redescoberta do paraíso perdido era algo que inflamava os sonhos dos conquistadores. Assim, o termo novas Índias, por exemplo, não é neutro, revelando a importância da metáfora “Índia” no imaginário mercantilista, militar e religioso europeu. A abertura de novas rotas pelo Oeste parecia decisiva para encurtar o caminho até a Índia e seu imaginário de especiarias. Neste contexto, a palavra Brasil é a síntese de uma expectativa mítica bastante forte entre os navegadores da época,10 e que era um motivo importante para viajar por regiões desconhecidas. Podemos, assim, propor que os contornos do pacto colonial foram traçados em dois momentos. Inicialmente, os conquistadores e os nativos fizeram circular presentes de forma recíproca. Em uma segunda etapa, os conquistadores reprimiram e rejeitaram as culturas e as comunidades locais.

Primeiro momento do pacto instituinte da modernidade periférica: admiração e perplexidade

As diferenças ontológicas entre os imaginários ameríndio e europeu foram minimizadas em um primeiro momento pelo fascínio da novidade e pela necessidade de estabelecer as bases da nova zona de fronteira. Mas este fascínio já era, ele próprio, a primeira expressão de um choque cultural que seria seguido por vários outros. Nesta primeira fase, os conquistadores acreditavam na redescoberta do paraíso cristão perdido, e os indígenas, com sua nudez e espontaneidade, se enquadravam perfeitamente no mito original.11

A perplexidade estava por toda parte nos primeiros contatos dos viajantes com os nativos. Os relatos da chegada dos portugueses ao Brasil confirmam a admiração dos mesmos pelo ambiente paradisíaco em que estes povos indígenas viviam. A ambição capitalista e o espírito militar se misturavam ao sentimento religioso.12 O escrivão do rei, Pero Vaz de Caminha, que estava na frota de Pedro Alvares Cabral, que chegou a Porto Seguro em 1500, exclamou: “eles não são circuncidados, mas apesar disso eles são como nós” (Castro, 2009: 97).

Nesses momentos iniciais, as generosidades escondiam expectativas diversas. O imperador Montezuma, no México, por exemplo, tinha sentimentos bastante ambivalentes em relação aos recém-chegados. Por um lado, ele temia a ameaça deste acontecimento; por outro lado, ele os saudava, porque a tradição falava do retorno do antigo rei Quetzalcóatl (Mahn-Lot, 1990: 34).13 Os próprios europeus temiam a experiência do desconhecido. Era preciso ser prudente – do ponto de vista militar – e respeitoso do ponto de vista dos sentimentos cristãos face à descoberta do paraíso. Diversos registros relatam esta descoberta.

No caso brasileiro, Pero Vaz de Caminha, escrivão do rei de Portugal, sublinha que, quando os portugueses atravessaram um rio (em uma praia ao sul do atual estado da Bahia), os autóctones se misturaram a eles de uma forma muito natural. “Então eles (os povos locais) ofereciam arcos e flechas e manifestavam seu desejo pelos capuzes de linho ou por qualquer outra coisa a ser dada”, diz ele (Castro, 2009: 101). De sua parte, o holandês Hans Staden lembra que os índios trouxeram muitos alimentos, produtos de caça e pesca, que eles trocaram por anzóis (Hans Staden, 2009: 51). No caso do México, os historiadores confirmam eventos similares. O imperador Montezuma, por exemplo, enviou, diversas vezes, emissários com presentes, especialmente joias, aos conquistadores espanhóis e pediu a seus artistas para fazerem retratos dos navios e dos marinheiros (Mahn-Lot, 1990: 31-33).

No entanto, à medida que os rituais religiosos indígenas foram sendo desvendados, os europeus passaram da simpatia à antipatia, da dádiva à antidádiva, da presumida inocência ao condenável “pecado mortal”. De fato, a bíblia de Jerusalém nos explica que se inicialmente houve um estado de inocência original, este foi violado pelo pecado, o que foi punido pelo deus colérico. A descoberta dos rituais de sacrifício dos ameríndios pareceu confirmar esta hipótese, e um dos fatos que mais contribuíram para anular a imagem paradisíaca foi o canibalismo, que é mais conhecido como antropofagia. Este ritual de devoração do corpo humano foi observado em diversos lugares, como entre os Binderwurs da índia central, os Papua da Nova Guiné e em várias tribos do novo continente americano. É uma prática muito antiga na história da humanidade. Aliás, a devoração da carne humana ou não humana não era algo particular aos ameríndios. Goya, no seu célebre quadro “Saturno devorando a un hijo”, relembra esta tradição mítica grega em que Chronos (Saturno na tradição romana), criador do tempo, devorava seus filhos, cumprindo assim a função simbólica da devoração de tudo que existe, inclusive o ser humano, pelo tempo.14

O cristianismo substituiu o sacrifício humano pelo sacrifício de animais, como vemos nas narrativas de Moisés e, mais adiante, o elemento sacrificial, na tradição católica, passou a ser representado pelo uso do vinho substituindo o sangue do inocente sacrificado (Cisto). No fundo, este ritual sacrificial revela a presença de um complexo sistema de dádivas pelo qual os seres humanos buscam dar aos deuses suas provas de lealdade e coragem em troca de proteção física contra os inimigos e contras os flagelos naturais como secas e inundações. O horror da Europa cristã face ao sacrifício pagão certamente remete a padrões arcaicos. Mas o fato é que eles se viram moralmente atingidos pela descoberta deste tipo de ritual sacrificial, que revelava uma lógica de dom agonístico, e começaram a enxergar os nativos como indivíduos sem alma.

Os conquistadores acharam terrível a possibilidade de um ser humano ser sacrificado em uma competição agonística em que o troféu era a canibalização do inimigo. Mas para além de seu caráter repulsivo (para a cultura cristã), há no ritual antropofágico um aspecto sacrificial relevante a ser considerado, pois, como explica Caillé, o sacrifício é a possibilidade de encenar uma “causalidade propriamente simbólica que afirma a sua primazia sobre a causalidade física” (Caillé, 2000: 138). Se aceitarmos essa primazia, veremos que por trás desse ritual há uma celebração do poder dos vencedores, dos guerreiros mais fortes, que contribuía para atualizar o antagonismo cultural prevalecente e os modos de celebração da experiência religiosa.

O fato é que a revelação dos rituais antropofágicos gerou reações por parte dos conquistadores e dos religiosos jesuítas que acompanhavam as frotas. Os relatos atribuídos a um viajante holandês, Hans Staden (2007), que aportou como aventureiro em meados do século XVI, sugerem a importância de se entender a antropofagia, no Brasil, pela perspectiva da dádiva, pela importância da demonstração da coragem neste mundo para se obter a proteção dos deuses. Explica aquele viajante que os seres humanos sacrificados eram, em geral, aqueles inimigos mais combatentes e corajosos e não os mais fracos, não se devorando o corpo do inimigo covarde, pois, acreditavam eles, a devoração lhes permitiria receber a alma do inimigo valoroso. Havia, então, aqui, algo de respeito e admiração pelo outro e também a crença que esta alma nobre viria enriquecer a força espiritual e física dos devoradores. Este exemplo nos revela a complexidade das zonas de contato e das traduções dos esquemas simbólicos dos antagonistas no jogo da colonização. A associação entre religião e dádiva é, assim, fundamental para explicar os dispositivos de reconhecimento mútuo instalados inicialmente pelos dois lados através das trocas de presentes e de signos destinados a estabelecer um diálogo intercultural nas zonas de contatos da colonização e para explicar certos traços atuais das populações subalternas.

A partir desses testemunhos, podemos concluir que este primeiro momento revela uma tensão ambígua de reconhecimento mútuo a qual foi materializada por gestos simpáticos e por presentes que escondiam presságios, temores, mas também obrigações (religiosas) e interesses (mercantilistas). Logo, estas trocas de presentes não eram totalmente desinteressadas, mas revelavam também as obrigações religiosas com relação à significação do desconhecido nas zonas de contato. Deste ponto de vista, os dois lados estavam interessados na criação de códigos de tradução linguísticos a fim de canalizar os choques culturais e poder construir um diálogo e um conhecimento recíproco. Tratava-se de organizar alianças possíveis entre universos culturais muito diferentes. Assim, a troca inicial de presentes foi impulsionada por esta curiosidade de conhecer uns aos outros, de como regular o contato cultural, como dialogar com o desconhecido. Mas quando essas trocas ultrapassaram os limites permitidos pelos choques culturais, passou-se da paz à guerra.

Segundo momento do pacto instituinte da modernidade periférica: a traição da confiança

O segundo momento de instituição do pacto colonizador se revela pela intransigência dos cristãos em relação ao que eles consideravam “paganismo”, que é uma interpretação equivocada, pois toda cultura humana conhecida tem uma inspiração no sagrado. Ou seja, na prática havia o confronte de imaginários religiosos distintos: um cristão, o outro, não-cristão. Frei Vicente do Salvador (2008), que escreveu, em 1627, tratado importante sobre a história do Brasil, narra um fato curioso, o de um nativo que foi pego dando bênçãos com o ritual católico da água benta e que, por isso, foi deportado para os calabouços do reino de Portugal. O que horrorizou os padres foi a ousadia de um indivíduo sem alma tentar imitar rituais próprios a indivíduos com almas. Assim, a guerra religiosa e militar conduzida pelos estrangeiros contra os nativos se fez pelas armas, mas também pela cruz, ou seja, pelas estratégias de conversão dos locais ao cristianismo, o que escondia representações etnocêntricas e hierárquicas e a recusa do imaginário holístico ameríndio.15 Para os europeus, o sacrifício humano, muito difundido entre os indígenas, era um limite intransponível. A descoberta destas práticas nos rituais ameríndios levou os recém-chegados a reações emocionais e punitivas e à busca de destituir os autóctones de sua condição de humanos.16

Progressivamente, a lógica colonialista mudou de direção. Ao ritual sazonal e limitado do sacrifício humano ameríndio opôs-se o ritual ilimitado da vingança e do terror. Por conseguinte, a negação da dádiva agonística e sacrificial resultou na produção de uma cultura autoritária que existe ainda hoje (Chauí, 2000) e que reduz os “outros” a seres inferiores e subordinados e que marca a organização do poder colonial e patrimonial. A zona de contato inicialmente criada de modo espontânea pelas trocas de presentes e gentilezas foi progressivamente substituída pela ação militar e religiosa voltadas para a destruição das culturas nativas. Assim, a história da colonização é, por toda parte, uma história de massacres, torturas e humilhações. Tildo isso feito em nome do deus cristão e do deus capitalista.

Os nativos, que foram representadas inicialmente como pagãos angelicais, foram ressignificados no imaginário dos conquistadores como pagãos diabólicos. O sentimento de bondade se transformou em um sentimento de rejeição, de tal modo que a lógica militar e mercantilista passou a redefinir o papel do cristianismo na aventura colonial e na organização das modernidades periféricas. O desdobramento dos acontecimentos impactou também sobre o pacto colonizador envolvendo militares e religiosos. Assim, progressivamente, a Igreja Católica teve de se adaptar à lógica militar da colonização para preservar seu espaço de poder.

Os nativos, por sua vez, responderam aos conquistadores dentro dos limites tecnológicos e militares possíveis. Passou-se da paz à guerra e a empresa colonial entrou numa fase de repressão das culturas locais pelas forças estrangeiras visando a construir um sistema de dominação de base hierárquica e patrimonialista. O segundo momento foi marcado então por um choque cultural de grande amplitude que abalou o itinerário da colonização ao longo dos séculos. A recusa pelos europeus do sistema cosmogônico e da dádiva agonística ameríndia - que era o cimento da vida comunitária local - significou, na prática, a traição da confiança mútua que havia sido esboçada em um primeiro momento. Os locais tampouco entenderam a insistência dos conquistadores em forçá-los a adorar o deus cristão, rejeitando seus rituais e crenças, e as práticas sincréticas revelam as tentativas de manter suas tradições nos limites possíveis do imaginário colonial e pós-colonial.

Tildo isto confirma o interesse da discussão da passagem de um primeiro momento de reciprocidade positiva através de presentes, a um momento de saques e escravização dos povos indígenas e de repressão de seu sistema simbólica e cultural que marcou a história da colonialidade até os dias atuais. Os eventos confirmam, sobretudo, o entendimento que a empresa colonial não pode ser reduzida à mera motivação econômica, exigindo um entendimento mais complexo do pacto social e cultural que funda o processo colonizador, pois há uma relação direta entre crença religiosa, interesse mercantil e poder político na organização da colonialidade ibérica.

Além do reconhecimento da importância de uma abordagem multidisciplinar da colonialidade é particularmente relevante lembrar que o pacto colonial resultou numa hierarquia moral, em que os colonizadores passaram a ser os organizadores do processo civilizatório e os colonizados ficaram na condição de populações humilhadas a serviço da empresa mercantil. A humilhação cultural é um elemento que impede a emergência da cidadania republicana como a conhecemos, pois retira do indivíduo a possibilidade de ter voz e vez. Por isso, ainda precisamos realizar algumas reflexões sobre o tema da traição antes de concluir para entendermos mais claramente como a dádiva originária comunitária foi subvertida, dando lugar a uma lógica colonial que é estruturalmente perversa.

Esta operação de eliminação da dádiva original pela traição por parte dos conquistadores pode ser exemplificada por três relatos: a traição do imperador asteca Montezuma pelo espanhol Cortéz, no México; a traição do inca Atahualpa pelo espanhol Pizarro, no Peru; e a traição das comunidades Tupiniquim e Tupinambá pelos franceses e portugueses, no Brasil.

A traição da confiança teve lugar em toda parte. Em Tenóchtitlan, hoje Cidade do México, os espanhóis foram acomodados como convidados do imperador na casa de seu pai. Mas, em seguida, Cortéz fez de Montezuma seu prisioneiro, obrigando-o a jurar lealdade ao rei Carlos V e a dar-lhe os tesouros imperiais. Em Cajamarca, no Peru, Pizarro convidou Atahualpa para uma reunião. Quando este chegou ao local do encontro, o conquistador aprisionou Atahualpa e forçou-o a enviar emissários para os quatro cantos do império para coletar ouro e prata. Tanto em um caso como no outro, a covardia dos conquistadores foi mascarada pela indignação moral.

No caso mexicano, a prisão de Montezuma foi precedida por manifestações de indignação de Cortéz diante da presença de instrumentos diabólicos no templo sagrado. No caso do Peru, o dominicano Valverde quis forçar Atahualpa a aceitar a fé cristã no momento em que este se encaminhava ao encontro de Pizarro. Segundo relatos, o imperador inca recusou a ordem, jogou a Bíblia por terra e, em seguida, foi acusado de sacrilégio. Neste momento, os soldados que se encontravam escondidos surgiram, mataram sua guarda e o fizeram prisioneiro (Mahn-Lot, 1990: 40 e 53). No Brasil, os portugueses e os franceses jogaram com a lógica do canibalismo, incentivando os índios a sacrificar os prisioneiros do campo inimigo. Fazia-se o jogo da traição para se apropriar mais facilmente das riquezas naturais e para explorar mão de obra indígena. Essas traições permitiram a criação de outro tipo de dom, cristão e aristocrático, hierárquico e exclusivo.

Note-se que a traição da confiança - que significa a rejeição da dádiva tradicional -, foi seguida pela instituição de mecanismos de humilhação e de destruição das tradições, traços culturais e crenças coletivas da comunidade. Essa traição também nos permite compreender a natureza das ações repressivas dos colonizadores ao longo dos séculos, por um lado, e a intensidade das forças sociais que buscam libertar-se neste momento de repressão cultural, simbólica e política, por outro lado. É preciso considerar o fato de que o pacto colonial e a expansão territorial da dominação mercantilista tiveram lugar após o surgimento de uma espécie de dádiva desigual ou perversa, pela qual os traidores se tornaram novos doadores e os traídos, donatários. A perversão da dádiva é a operação em que o falso donatário inicial (o conquistador, no caso latino-americano) se torna doador legal, construindo um novo sistema de doação a partir da apropriação unilateral e traiçoeira dos recursos materiais e simbólicos (terras, plantas, minerais etc.) e pelo uso da força física para submeter o outro. A perversão se materializa em dois registros: a escravidão do antigo doador legítimo e a substituição da confiança pela humilhação como valor central do processo de colonização. O dom patrimonial perverso está na origem de uma cultura de inferioridade que ainda hoje marca grandemente a vida das populações subalternas nessas regiões que foram obrigadas a dar suas riquezas, seus corpos e suas vidas para reproduzir um sistema de mando que lhes era estranho.

Pela traição da confiança e a rejeição do dom comunitário, aqueles que não tinham nenhuma terra, os europeus, surgiram como os proprietários e aqueles que eram possuidores de terras, os povos originários, tornaram-se seus escravos e subalternos. No caso latino-americano, esta passagem sinaliza a formação das elites crioulas e mestiças, que foram responsáveis pela criação de sistemas de dominação autoritários ao longo dos séculos.

Conclusão

Para finalizarmos nossa reflexão, gostaríamos de lembrar que a efetivação de uma crítica teórica descolonial, ao mesmo tempo antiutilitarista e pós-colonial, e inspirada na dádiva que esclareça os fundamentos sociológicos das modernidades múltiplas nas antigas periferias, deve considerar alguns pontos.

Primeiramente, a criação de zonas de contatos no momento da conquista foi inicialmente possível graças ao sistema de dádivas, isto é, de trocas de presentes, gentilezas e gestos amistosos entre os europeus e os povos originários, o que reforça a tese de que a primeira lógica instituinte da vida social é a livre associação entre os seres humanos. A dádiva existe em toda parte, lembra-nos Mauss (1999), e este momento de colonização é um exemplo concreto do valor desta afirmação. Os choques culturais do momento inaugural da colonização revelaram os contatos inevitáveis entre diferentes imaginários sócio-históricos: o holístico ameríndio, de um lado, e o imaginário dualista cristão, de outro. Estes choques explicam especialmente o jogo e as tensões existentes entre três lógicas que estão presentes nas origens do pacto colonizador e do processo de modernização periférico: a lógica mercantilista, a lógica da dádiva patrimonial, baseada na dívida hierárquica cristã, e aquela do dom agonístico e comunitário, baseado na dívida sacrificial ameríndia. Os relatos nos mostram a presença de um dom pagão agonístico e comunitário, de um lado, e um dom e cristão e aristocrático, do outro, em permanente tensão até os dias de hoje, interferindo sobre a organização do poder estatal e sobre a apropriação e distribuição das propriedades e riquezas coletivas.

Em seguida, é necessário enfatizar que o pacto colonial foi estabelecido em dois momentos: inicialmente, o conquistador estava encantado pela descoberta do paraíso perdido cristão, que era uma referência simbólica do imaginário da colonização; depois, os europeus rapidamente abandonaram a hipótese simpática do paraíso perdido e atacaram as populações locais para subalternizá-las. Esta readaptação das táticas dos colonizadores cristãos lhes permitiu conciliar o objetivo econômico e o objetivo espiritual da colonização. Podia-se matar, escravizar e humilhar sem problemas de consciência moral, pois tratava-se de aplicar um certo “direito natural” forjador de uma hierarquia moral que separa homens de almas (cristãos) e homens sem alma (não cristãos), o que leva a diferentes níveis de valorização e reconhecimento moral dos indivíduos e grupos sociais.

É preciso também deixar claro que, na perspectiva da dádiva, esta passagem do momento paradisíaco ao momento da humilhação significou uma traição da confiança dos povos indígenas pelos conquistadores, o que tem impacto sobre o caráter racista da miscigenação, que marca a manifestação da modernidade periférica nesta área de colonização. A quebra de confiança rompeu com a troca espontânea de dádivas e abriu caminho à fase mais cruel da colonização na América Latina, quando os colonizadores reprimiram o dom comunitário agonístico e sacrificial que ali existia para impor a lógica cristã e mercantil. Mas este processo adquiriu feições complexas devido às reações anticoloniais e também por causa das traduções particulares que os povos originários e outros escravizados fizeram da cultura do dominador, reinaugurando manifestações estéticas e políticas particulares.

Para concluir, devemos lembrar que, em lugar do dom comunitário rejeitado, os conquistadores impuseram um sistema de dádiva patrimonialista hierárquico, dedicado a beneficiar os aliados do Rei (de Portugal e Espanha) e a Igreja Romana. Trata-se de uma dádiva perversa, pois sua afirmação foi feita através da repressão dos sistemas culturais e religiosos tradicionais, através da apropriação da riqueza e da terra, e pela subalternização das populações locais. Através da dádiva patrimonial, os colonizadores tomaram o lugar dos autóctones como doadores da aventura colonial. E as populações locais, que eram os doadores de fato, tornaram-se donatários.

Por isso, podemos concluir que a apropriação dos bens dos autóctones (riquezas naturais, materiais e culturais) pelos conquistadores inaugurou a implantação de um dom menor, patrimonialista, que foi fundamental para a organização das relações patriarcais de dominação e para o estabelecimento do poder colonial, em primeiro lugar, e do Estado moderno, posteriormente. Assim, o forte elemento de desigualdade presente nas sociedades latino-americanas é, em larga medida, influenciado por uma hierarquia moral que funda uma distância tida como intransponível no interior da lógica colonial. Porém, a sociedade global, reorganizando as modernidades centrais e periféricas em um campo transnacional, no dizer de Dussel (1979), tem contribuído para reações alter-sistêmicas importantes, que apontam para a ruptura do pacto colonial fundador e para a emergência de novos pactos que valorizam a multiplicidade de expressões identitárias e as lutas sociais por reconhecimento e por igualdade nos planos nacional e transnacional.

Material suplementar
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Notas
Notas
1 O termo decolonial se inspira daquele francês décolonial. A. Quijano prefere usar este termo à descolonial que, no seu entender, está limitado por um entendimento cronológico do colonial. Diferentemente, o termo decolonial expressa mais claramente a noção de desconstrução, que também revela a força da filosofia francesa contemporânea de Foucault, Derrida, Deleuze e outros nas abordagens pós-coloniais. Neste texto, logo, quando falamos de pós-colonial, estamos nos referindo não a uma cronologia depois da colônia, mas a um pensamento crítico que visa desconstruir a colonialidade, seguindo uma tendência em expansão nos estudos pós-coloniais (Martins, 2012).
2 Segundo o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, a teoria pós-colonial não pode limitar a definição da noção de zona de contato aos encontros de totalidades culturais como o fazem diversos autores. É preciso também, explica ele, trabalhar com as diferenças culturais particulares e compreender que estas, em um determinado espaço-tempo, podem entrar em competição para dar sentido a certa orientação de ação (Santos, 2008: 130).
3 Esta representação dualista ainda tão viva hoje no imaginário europeu moderno foi resultado da concepção cristã de um mundo organizado a partir da separação a priori entre, por um lado, deus – que havia criado as coisas – e o homem (humano) – que havia sido criado por deus, mas que não era deus – e, por outro, a natureza – que não era uma expressão divina, mas que poderia ser objeto de manipulação pelo divino através do homem (Lander, 2005: 24-25). Não é nosso objetivo aqui aprofundar esta discussão crítica do dualismo ontológico da cultura europeia e de seu objetivismo científico, pois isto já foi feito diversas vezes por vários autores, e de forma magistral por Merleau-Ponty em seu Phénoménologie de la Perception (Merleau-Ponty, 1945). Nos limites da abordagem pós-colonial que discutimos aqui, desejamos simplesmente sublinhar que esta dualidade constitutiva do imaginário europeu influenciou decisivamente o choque cultural na aventura colonial. As zonas de contato então estabelecidas foram abaladas por olhares e sorrisos, mas também por expressões coléricas, agressões físicas e ações sanguinárias. A questão era saber como dar continuidade a uma aventura, a do Ocidentalismo, que iria influenciar os destinos de todos aqueles implicados.
4 Não podemos esquecer igualmente a importância de Roger Bastide na exploração dessas zonas de contato. Suas pesquisas consagradas às relações interétnicas e aos fenômenos religiosos afro-brasileiros foram decisivas para problematizar uma etnologia que praticava a “superstição do primitivo”. Ver sobre este assunto os todos do colóquio sobre Roger Bastide, ocorrido em Cerisy-la-Salle em 1992 (Laburthe-Tolra, 1994). Do mesmo modo, não podemos negligenciar a contribuição de M. Weber para a construção de enfoques multi-históricos e pós-coloniais com sua tese das múltiplas racionalidades da ação social, permitindo entender que a realidade é constituída por várias lógicas que não são redutíveis entre si (Weber, 1979; Kalberg, 2010).
5 Segundo Mauss (1999) e Polanyi (1944), a operação mercadológica é sempre determinada por fatores culturais, tanto nas sociedades tradicionais, quanto nas sociedades modernas.
6 No campo acadêmico, pode-se dizer que as interpretações utilitaristas e econômicas restritivas do processo colonizador – agricultura de exportação, formação da burocracia colonial, trabalho escravo, entre outros – são importantes, mas muito limitadas para explicar a complexidade do imaginário sócio-histórico da colonização. Os esforços de aculturação dos locais sempre geraram reações contrárias importantes, como vemos hoje com os movimentos sociais e culturais que questionam profundamente o eurocentrismo, como os movimentos indígenas e ambientalistas.
7 Na apresentação do artigo de A. Caillé, intitulado “O Dom entre Interesse e “Desinteressamento”, que foi lançado na coletânea Polifonia do Dom, 012anizada por P. H. Martins e R. Campos (Editora, da UFPE, 2006), os organizadores explicam já no rodapé inicial que a palavra désintéressement, em francês, significa desprendimento de todo interesse pessoal. Os termos mais próximos para representá-la no português são altruísmo, generosidade e desprendimento. A palavra desinteresse, no nosso vernáculo, é, porém, ambígua, pois tanto significa desprendimento e generosidade como falta de interesse. Para contornar a dificuldade que seria gerada por esta última interpretação, nos defrontamos com duas alternativas: uma delas usar a palavra desprendimento que se aproxima do sentido original do termo, em francês. Mas nesse caso, perde-se algo que é fundamental para se compreender o pensamento neomaussiano de Alain Caillé, a saber, que embora tal desprendimento revele uma certa espontaneidade desinteressada, ele continua, todavia, de algum modo vinculado ao interesse –, não mais apenas o interesse em (instrumental), mas o interesse por (outro). Assim, para preservar o sentido original do termo decidimos empregar o neologismo desinteressamento, de modo a permitir ao leitor compreender a carga semântica da expressão original.
8 E. Lander explica que o trabalho de desconstrução constitui um esforço extraordinário introduzido pelos teóricos pós-coloniais em diversos espaços e a partir de diversas possibilidades temáticas: a crítica feminista, os subaltern studies, a crítica africana da modernidade, a crítica latino-americana da colonialidade, entre outros (Lander, 2005: 23). A estas teorias é preciso somar a produção do MAUSS (Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais), que foi fundado em 1981. Tal crítica inspira vastamente a construção deste texto.
9 Neste sentido, é preciso notar a existência de uma série de pesquisas em curso neste momento, cujo objetivo é a desnaturalização do eurocentrismo. É importante constatar que muitas dessas críticas são produzidas a partir da crítica teórica de diversas experiências colonizadoras como aquelas da Asia (Said, 1979; Chaterjee, 2008; Spivak, 2005), da África (Memmil, 1985; Fanon, 1965; Gilroy, 1993) e da América Latina (Schlosberg, 2004; Lander, 2005; Quijano, 2005; Escobar, 2008), entre outras. Isso é importante a fim de desnaturalizar a crença, partilhada entre os economistas e os sociólogos da modernização, de que a experiência do colonizador seria, por princípio, superior às experiências dos colonizados. Essas novas teorizações estão trazendo um novo entendimento da modernidade e da relação entre capitalismo e colonialismo, o que é importante para o aprofundamento da crítica do capitalismo como modelo cultural e moral.
10 A palavra Brazil oculta a presença de um mito muito difundido à época da pré-colonização e que evoca a existência de um mundo bem-aventurado. As tradições fenícias e irlandesas tinham consagrado a existência das ilhas da Bemaventurança, que se encontrariam a oeste do mundo conhecido. Os fenícios as chamavam Braaz e os monges irlandeses, Hy Brazil (Chauí, 2000). Entre 1325 e 1483, os mapas registravam a Insulla de Brazil a oeste dos Açores. A carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal quando da chegada da frota comandada por Pedro Alvares Cabral em 1500 reflete este clima de admiração naturalista associado à ambição mercantilista dos conquistadores: “Vista desde o mar, esta terra nos parece muito grande e é cheia de florestas. Nesta terra, não podemos saber ainda se há ouro, prata ou qualquer outra coisa de metal ou de ferro. Mas a terra parece ter um clima agradável com ventos frios e temperados como aqueles de Entre-Douro e Minho” (Castro, 2009: 115).
11 Diversas vezes, o imperador asteca Montezuma enviou seus representantes aos espanhóis de Cortéz para lhes oferecer presentes e assim lhes perguntar se os estrangeiros eram a encarnação de Quetzalcóatl, cujo retorno era esperando desde tempos imemoriáveis (Mahn-Lot, 1990: 34).
12 Pero Vaz de Caminha conta que as pessoas eram tão inocentes e despidas de crenças, que se poderia rapidamente convertê-los ao cristianismo se aprendêssemos sua língua (Castro, 2009:111)
13 Esta crônica sobre o retorno dos deuses também foi observada no caso da chegada dos ingleses ao Havaí. O capitão Cook foi inicialmente saudado como um deus ancestral aos olhos dos religiosos locais (Sahlins, 2003: 10). Depois, passou a ser questionado entrando em conflitos que o levaram à morte.
14 Certamente todas as formas de canibalismo e também de devoração de seres vivos deveriam ser interditadas, favorecendo uma cultura mais ecológica. Infelizmente, a cultura gastronômica europeia contribuiu para naturalizar a devoração a tal nível que hoje fica difícil se encontrar restaurantes vegetarianos. Porém, no que diz respeito à questão do canibalismo sacrificial indígena, o que intriga não é somente a reação anticanibalista, mas a atitude autoritária e reacionária dos colonizadores face às culturas locais. Eles atacaram e rejeitaram fortemente as tradições culturais indígenas em nome do deus cristão, e a recusa do dom sacrificial deu lugar a um massacre militar e a uma repressão religiosa de grandes proporções. Não podemos minimizar este fato, pois esta rejeição está na base da cultura secular da humilhação dessas nações e também em reações culturais e políticas importantes neste momento no continente latino-americano.
15 Sobre esta hierarquia moral nascida neste instante fundador, Marilena Chauí explica que ela se legitima em uma teoria do direito natural que considera o mundo um produto de um deus legislador e supremo que organizou os seres hierarquicamente, segundo seu grau de perfeição e de poder. Consequentemente, a escravidão dos negros e dos índios foi um resultado “natural” da separação entre deus e os diabos na ordem colonial do mundo (Chauí, 2000: 63-66).
16 Entre os ocidentais, o sacrifício tornou-se o efeito acidental ou desejado de ações de racionalização e de planificação de um mundo perigoso por excelência. Suprimiu-se sua dimensão mágica e ritual para reforçar seu lado utilitarista: sacrifica-se ou não o outro em função dos interesses do mercado ou dos dogmas morais que condicionam a vida social e cultural.
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