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O TRABALHO INTELECTUAL SOB A ÓPTICA DO ARTESANATO E A CIDADE COMO CAMPO DE PESQUISA
INTELLECTUAL WORK FROM THE VIEWPOINT OF CRAFT WORK AND THE CITY AS A RESEARCH FIELD
LE TRAVAIL INTELLECTUEL SOUS L’OPTIQUE DE L’ARTISANAT ET LA VILLE COMME CHAMP DE RECHERCHE
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 1, núm. 1, pp. 285-308, 2013
Sociedade Brasileira de Sociologia

Artigos


Recepção: 1 Fevereiro 2013

Aprovação: 1 Abril 2013

DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.32

RESUMO: A ideia de tomar a cidade e suas potencialidades de registro em forma de arquivo, tendo como referência o conceito de artesanato intelectual de Wright Mills, fundamenta o objetivo deste artigo. A articulação entre artesanato e espaço urbano supõe pensar a cidade como um imenso potencial de criação de arquivos nos quais se propagam experiências cotidianas associadas a processos micro ou macrossociais. O texto apresenta reflexões sobre o sentido de artesanato intelectual de Wright Mills, cotejando suas ideias com a experiência pessoal de pesquisa da autora, realizada no contexto urbano. O princípio do artesanato intelectual permite também refletir sobre as condições atuais do trabalho acadêmico do sociólogo.

Palavras-Chave: Espaço Urbano, Artesanato Intelectual, Wright Mills.

ABSTRACT: The idea behind this article is to approach the City as an archive, taking as a reference point Wright Mills’ concept of intellectual craftsmanship. The connections between craft and urban space allow us to consider the city’s immense potential for creating archives in which everyday experiences associated with micro or macrosocial processes are propagated. The text presents explores Wright Mills’ notion of intellectual craftsmanship, combining his ideas with my own personal research experience, conducted in an urban context. The principle of intellectual craftsmanship also enables a reflection on the current conditions of the academic work of sociologists.

Keywords: Urban Space, Intellectual Craftwork, Wright Mills.

RÉSUMÉ: L’idée de prendre la ville et ses potentialités de registre sous la forme d’archive, ayant comme référence le concept de l’artisanat intellectuel de Wright Mills, fonde l’objectif de cet article. L’articulation entre artisanat et espace urbain suppose penser la ville comme un immense potentiel de création d’archives dans lesquelles se propagent des expériences quotidiennes associées au processus micro ou micro sociaux. Le texte présente des réflexions sur le sens de l’artisanat intellectuel de Wright Mills confrontant ses idées avec l’expérience personnelle de recherche de l’auteur, réalisée dans le contexte urbain. Le principe de l’artisanat intellectuel permet aussi de réfléchir aux conditions actuelles du travail académique du sociologue.

Mots-clés: Espace urbain, Artisanat intellectuel, Wright Mills.

No momento em que estudante de ciências sociais, nos idos de 1970, li o texto de Mills denominado artesanato intelectual em sua obra, A imaginação sociológica, tomei suas reflexões de forma mais pragmática: lições sobre o como fazer para realizar uma investigação sociológica. Só posteriormente percebi que o artesanato não era exclusivamente uma forma de organizar o material empírico, constituindo-se também na afirmação de uma perspectiva metodológica e teórica associada a um regime de trabalho e um tempo. O sentido do artesanato intelectual em Wright Mills como arquivo especializado da produção acadêmica supõe a sociologia como um ofício, um senso útil para a aplicação do método e da teoria como partes interdependentes de uma totalidade.

Uma releitura sobre o sentido de artesanato intelectual em Wright Mills, cotejando suas ideias com a experiência pessoal de pesquisa da autora, realizada em contextos urbanos parece interessante, evidenciando proximidades e distanciamentos nas formas de construção de arquivos que se efetivam ao longo do tempo.

A perspectiva do artesanato intelectual como exercício do labor acadêmico permite também refletir sobre as condições atuais do trabalho de investigação do sociólogo. O artigo inicia com a apresentação do pensamento de Mills sobre o artesanato intelectual, expondo em seguida a elaboração de arquivos tendo a cidade como referência. Reflete, finalmente, sobre as condições atuais de elaboração do trabalho acadêmico.

Mills e a tecelagem dos arquivos na prática artesanal

O autor relaciona vida e trabalho como práticas indissociáveis, considerando que a atividade intelectual é, sobretudo, uma laboriosa construção processual, impondo aos seus interlocutores dedicação e organização. O sociólogo teria o cuidado com a mente e com a tessitura das ideias, comum nos escritores que, ao contrário do homem moderno, valorizam as menores experiências, guardando-as em seu artefato memorial para transformá-las em texto. A ideia de artesanato emerge, portanto, na reflexão de Mills como central e fundante para o fazer permanente do intelectual, que alia passado e presente como pontas unidas pelo fio da experiencia cotidiana.

No sentido de conferir praticidade às suas ideias, Mills sugere ao sociólogo a construção de um arquivo no qual seriam escritas elaborações sistemáticas, sob a forma de um diário, sendo este veículo de inscrição da necessária e permanente reflexão que acompanha a tarefa acadêmica. O arquivo expressaria a junção entre o que o intelectual está fazendo e o que está vivenciando na condição de sujeito inscrito em um tempo e espaço. Permitiria a captura de pensamentos marginais, ou ainda prematuros, servindo de controle para evitar repetições no trabalho. Trechos anotados, conversas e sonhos, enfim, escritos vários acerca de situações observadas serviriam de material para o exercício cotidiano da reflexão.

A relevância intelectual das anotações estaria, portanto, associada a uma experiência direta e permanente. O pensamento, ao ser cultuado em forma de escrita, faria com que vivências aparentemente insignificantes ganhassem densidade. Sempre que experimentamos, dizia Mills, sensações significativas sobre acontecimentos ou ideias, devemos registrá-las e, ao fazer isso, tornamos as formulações expressivas e conectadas de modo produtivo. Dessa maneira, seria cultuado o hábito de escrever, pois, dizia ele, para que o pesquisador torne viva a atividade intelectual “não é possível manter desembaraçada a mão”. A escrita desenvolveria a capacidade de explicitação das ideias, viabilizando a experiencia guiada no circuito entre mão e cabeça que configura a experiência artesanal.

O arquivo, composto de anotações teóricas e assuntos provenientes de fontes variadas, fundamentou-se, por outro lado, na crítica de Mills dirigida àqueles que não punham um espírito crítico diante de informações já catalogadas. Contra a suposta evidência dos registros, o caráter sociológico da pesquisa deveria englobar sucessivos estudos capazes de relativizar os dados de visibilidade imediata. Percepções gerais sobre aspectos interessantes do tema em foco incluiriam observações sobre suas formas de expressão e tendência histórica.

Opondo-se à dissociação entre o dado empírico e a pesquisa teórica, o autor propunha uma análise baseada na história das ideias. Crítico da pesquisa empírica separada da reflexão teórica, o autor centrava seus ataques ao “empirismo abstrato” que caracterizava, sobretudo, o arcabouço teórico de Talcott Parsons. Mills constatou que o bom trabalho na ciência social não poderia ser feito apenas com investigação empírica claramente delineada. Pensando a pesquisa como processo, o autor afirmava que a decisão sobre o que estudar, tendo por base um conjunto de registros, não poderia ser tomada enquanto o material não fosse retrabalhado sob o prisma de hipóteses gerais. Hipóteses a serem construídas por cada investigador, segundo sua experiência e formação teórica.

Percorrendo leituras, anotações e questionamentos, Mills indagava a respeito do modo como a imaginação poderia ter seu livre curso. Uma imaginação instrumentalizada seria transformada em registro de ideias ou dados, sem a exclusão das inúmeras possibilidades de abordagem de um tema. Crítico do que nomeava empirismo abstrato, Mills não abdicava do saber sociológico que diferenciava, por exemplo, o intelectual e cientista social, do jornalista.

A imaginação sociológica capacitaria seu possuidor a compreender o cenário histórico mais amplo de inscrição dos acontecimentos e seu significado para a vida íntima e carreira exterior de inúmeros indivíduos. (Mills, 1969, p. 11). Consistiria a imaginação sociológica na capacidade de passar de uma perspectiva pontual a outra mais abrangente e estabelecer uma visão da sociedade em sua totalidade: as articulações possíveis entre biografia e história. Seria no curso da imaginação sociológica fundamentada em uma solidez teórica que se ligariam fatores aparentemente desconexos da vida cotidiana.

A imaginação sociológica teria uma dimensão cumulativa, sendo fruto de um trabalho feito na combinação e adensamento de ideias. Trabalho também realizado por meio de pesquisa feita nos arquivos, dotada de certa aleatoriedade: as pastas contendo informações poderiam ser misturadas sob novos conteúdos, viabilizando o emergir repentino de temas não subordinados a um planejamento prévio.

A busca das palavras e o registro dos vários sentidos a elas atribuídos, as muitas possibilidades de classificação e a construção de tipologias, baseadas em subtemas, permitiriam operacionalizar a imaginação à moda de um caleidoscópio. Nesse modo de organizar os dados entrariam como parte da pesquisa os dicionários, discursos provenientes de várias fontes e interlocuções e pontos de vista classificados em categorias capazes de emprestar visibilidade a esquemas ainda não evidentes no curso inicial da investigação.

Os diagramas enquanto modelos prévios de organização das informações permitiriam pensar com maior clareza dados inicialmente desconexos, sendo as classificações categóricas elaboradas segundo características comuns à gramática cruzada da imaginação. A comparação, por contraste, auxiliaria na formulação de tipologias, isolando pontos comuns e classificando perspectivas diferentes. A exposição de percepções antagônicas facilitaria também a visualização de convergências e nuances importantes na descrição e delimitação dos objetos de investigação.

Além do mais, pontuava sabiamente Mills, seria importante contrastar pontos de vista de forma a colher os vários ângulos possíveis no tratamento de um objeto. Nesse sentido, estar a par da literatura sobre a questão em foco e saber identificar os “adversários” e “amigos” detentores de todos os pontos de vista existentes sobre uma temática em julgamento seria de grande relevância.

O controle de uma escala tipológica, na condição de preceder às estatísticas, estaria submetido ao crivo da imaginação do pesquisador, sempre crítico na busca de sobrepor as ideias aos números. A título de exemplo, indagava Mills: “que aspectos deveriam ter as aldeias analfabetas, considerando-se uma população de trinta milhões de habitantes?” (Mills, 1969, p. 231).

A dimensão cultural incrustada nos dados empíricos permitiria eliminar a exclusividade conferida à informação estatística; está sempre subordinada ao curso da imaginação e das evidências históricas.

No propósito de compreensão dos elementos antecedentes dos dados empíricos, Mills propunha a comparação de casos segundo uma escala temporal. Considerava importante direcionar o olhar para o momento histórico da ocorrência de questões da pesquisa no curso da civilização, tendo em vista a busca de chaves para o entendimento sociológico.

A inteligibilidade e a clareza seriam também fundamentais no decurso do trabalho intelectual. O autor criticava tanto o jargão sociológico como o culto à escrita difícil. Afirmava assim a importância de levar em conta, de antemão, a que público o texto se dirigia, imaginando a necessidade de um discurso dotado de interlocução, não feito exclusivamente para os pares.

A ideia do trabalho intelectual como labor, daí o sentido metafórico do artesanato, consistiria no exame e reexame de um arquivo feito de anotações e rascunhos que conformariam um pequeno mundo organizado com base em tópicos e temas. O intelectual artesão deve “viver nesse mundo construído e saber o que é necessário: ideias, fatos, ideias, números, ideias (....) Assim descobriremos e descreveremos fixando os tipos para a ordenação do que foi descoberto” (Mills, 1969, p. 239).

O caráter relacional dos itens e os sentidos acionados no decurso do registro de situações e experiências formariam uma espécie de modelo funcional. “Pensar e lutar para impor ordem e ao mesmo tempo abarcar o maior número possível de aspectos” (Mills, op. cit, p.240). Por esse motivo, postulava o autor sobre a necessidade do tempo de elaboração das ideias, tendo em vista não ser possível parar de pensar sobre um tema demasiadamente cedo, antecipando a maturação dos dados. Tampouco deixar que o pensamento continuasse sem uma diretriz temporal, indiferente à necessária sistematização periódica de conteúdos. O próprio amadurecimento das ideias conduziria à descoberta do tempo ideal de organização e exposição pública do conhecimento acumulado.

As formulações de Mills não podem ser tomadas como um manual de metodologia, considerando-se que a imaginação sociológica de cada pesquisador conduziria o curso de sua investigação. Tampouco essa imaginação assumiria a condição de virtude pessoal do pesquisador, sendo a sociologia uma ciência explicativa do funcionamento do mundo social a exigir fundamentação teórica interpretativa dos fatos sociais.

A ideia de artesanato intelectual insurgiu-se também contra a rigidez das metodologias convencionais. Tecer os fios do pensamento supunha que a teoria e metodologia se curvassem diante da prática experiente do artesão. A tessitura desses fios exigiria também a inserção dos registros de ambientes microssociais em totalidades mais abrangentes. A sociologia viabilizaria o pensamento comparado fundado nas estruturas sociais do qual emergiria a articulação entre biografia e história.

A autonomia moral e política da produção sociológica estaria também fundada na construção de um arquivo não submetido a agendas institucionais. Sob a força da imaginação e do compromisso, o arquivo seria um produto da experiência permanente do fazer intelectual.

As ideias de Mills possuem também pontos de semelhança com a perspectiva de investigação em Becker (1993), para quem é importante “um modelo artesanal de ciência, na qual cada trabalhador produz as teorias e métodos necessários para o trabalho que está sendo feito” (Becker, 1993, p. 12). Insurgindo-se contra uma perspectiva de pesquisa à moda de um receituário, Becker também valorizava a orgânica conexão entre dados empíricos e explicação teórica.

As ideias de Mills inspiraram muitos intelectuais, servindo hoje de referência para se pensar sobre as formas contemporâneas de construção de arquivos de pesquisa, considerando-se a vigência de constrangimentos temporais e as disposições institucionais que interferem nas possibilidades e limites do fazer artesanal.

Tendo por base a cidade como espaço potencial de registro de experiências cotidianas, exponho, a seguir, o modo com fui construindo um arquivo de pesquisas na área urbana. São arquivos que delimitam o modo como venho alimentando investigações, tomando a cidade como palco fundamental de anotações e registros sistemáticos. A experiência fornecerá subsídios importantes a uma reflexão posterior sobre as formas contemporâneas de produção do conhecimento na área de ciências sociais.

A cidade como palco de arquivos

O espaço urbano como local onde se propagam experiências cotidianas associadas a processos micro ou macrossociais constitui um imenso potencial de registros de pesquisa

Apresento meu arquivo com base em dois subconjuntos, assim classificados: rituais da política na cidade e cidade como apresentação e representação. Trata-se de informações sistematizadas ao longo do tempo, que foram se configurando sem planejamento prévio, sendo organizadas na medida em que um conjunto de leituras conjugava-se a investigações mediadas por suportes institucionais.

O olhar inspirador de Mills permite-me revisitar arquivos que foram embalados por circunstâncias variadas. O percurso delineado entre um sentido aleatório e outro mais diretivo conduziu a organização de registros e publicações cujos conteúdos serão apresentados a seguir.

Rituais da Política na cidade

O conjunto de informações voltadas para o registro de eventos e/ou rituais associados a dinâmicas eleitorais deu origem ao arquivo que teve o espaço urbano e a política como pano de fundo. Considerei que, no momento das eleições, os rituais de campanha operavam no contexto urbano por meio de delimitações espaciais que davam contorno às disputas. As zonas de reconhecimento e pertencimento de candidatos efetivavam, em plano mais amplo, a materialização metafórica da “política em movimento”. A que “saía do centro urbano, percorrendo as ruas”, construindo neste trajeto atos de legitimação no sentido de Weber (1994).

Constatei também nas anotações sobre os rituais que suas marcas no espaço citadino, cada vez mais frequentes, englobavam, além de processos de disputa eleitoral, distintos formatos. Seria possível classificar os rituais sob o prisma da contestação, da competição e da consagração de esferas instituídas do poder. As expressões de protesto, notabilizadas em marchas,1 caminhadas e outras manifestações, apontavam a visibilidade como um dos elementos estratégicos de afirmação de demandas e interações estabelecidas entre distintos atores sociais no espaço público.

Na ocasião de construção desses arquivos, a rede de pesquisa articulada ao Pronex denominada Antropologia da Política2 influenciou a abordagem e catalogação das informações, apontando os rituais e eventos como chaves de leitura para interpretar as formas de exibição pública de práticas políticas associadas a linguagens e manifestações simbólicas.

O registro dos rituais na cidade era, sobretudo, evocativo de lugares. A presença da política no contexto urbano não ocorreria sem a existência de um conjunto de significações transmutadas em ícones citadinos: o centro da cidade como lugar de marcação de eventos, os bairros populares como espaço de visitação dos políticos e a construção potencial de “clientelas”, evocadas no momento de realização de comícios.

A cidade como contexto no qual as coisas “eram vistas”, porque memorizadas e ressignificadas por meio de narrativas jornalísticas, constituiu, no registro das informações catalogadas, um palco de múltiplos rituais presentes na vida contemporânea. Tratava-se de um espaço de consagração de práticas políticas ou expressão do que designei de panorama móvel das campanhas políticas (Barreira, 1998).

Os registros organizados em diferentes segmentos enfocaram campanhas eleitorais em várias conjunturas, separadas segundo uma base de leitura de jornais e programas televisivos, nos quais foram catalogados discursos, comícios, caminhadas e outros eventos.

As campanhas políticas em suas ritualidades foram indutoras de concepções sobre a cidade presentes em classificações (cidade saudável, cidade democrática, cidade dividida etc.). Também práticas que expressavam, de modo visível, a ocupação dos espaços: a política caminhando, se fazendo massa, realizando a ideia de conquista como simbologia afirmadora do poder.

Nessa configuração, a periferia da cidade, ou seja, os bairros populares, eram constantemente nomeados como locais de “esquecimento” por parte dos políticos, tornando a presença de potenciais representantes, nas diversas campanhas, uma espécie de promessa de inversão da situação. Tal como acontecia nos povoados de cidades interioranas, segundo o trabalho de pesquisa de Heredia e Palmeira (1995),3 os bairros da periferia das metrópoles representavam, nas situações observadas, espaços de aglutinação de demandas, virando espécies de “centro” da disputa eleitoral.

Em termos de organização dos dados, considerei o momento das campanhas como constituição de um novo traçado geográfico que ligava simbolicamente as zonas afastadas de áreas urbanas centrais. Os ônibus, que transportam os animadores de campanha, saindo dos comitês ou do centro da cidade, as caminhadas e os eventos exemplificaram o reordenamento de percursos configurados por essa geografia eleitoral.

Minhas reflexões de pesquisa voltaram-se principalmente para a análise dos rituais da política, observando os momentos eleitorais sob a perspectiva dos valores e símbolos que subsidiam as práticas de representação. A análise dos rituais encontrou fundamentos na percepção de que eventos que ocorriam no cotidiano das manifestações políticas não constituem meros adornos. Antes de tudo, integram o “fazer política”, reproduzindo elos entre o que costuma ser designado de poder e sociedade.

Elegendo a importância do hiato que os processos políticos tentam recuperar no tempo das escolhas eleitorais, as anotações do arquivo voltaram-se para analisar o conjunto de alegorias e encenações expressivas de estratégias próprias da dinâmica eleitoral. Estratégias que permitiam, nesses momentos especiais, atualizar valores, classificar e assinalar distinções, presentes não só no campo da política brasileira, mas também em outras esferas da vida social.

A classificação de rituais segundo lugares e de acordo com formas de apresentação, especificidades dos eventos de campanha, inaugurações, visitas e reuniões formatou um conjunto de dados com possibilidades de explorações diversas. Uma leitura dos ritos urbanos permitiu observá-los como atos de construção simbólica da cidade e da política. Nesse sentido, os rituais políticos na cidade e os rituais da cidade encontraram espaços de complementaridade, compondo um arquivo de múltiplas entradas e possibilidades analíticas.4

A cidade como apresentação representação

A cidade como apresentação e representação constituiu um recorte de pesquisa que emergiu como desdobramento do arquivo anterior.

As alusões à cidade, presentes em momentos eleitorais municipais, já haviam sinalizado um primeiro olhar sobre o espaço urbano como instância de representação discursiva. No âmbito de campanhas políticas, os candidatos prometiam benefícios para a cidade, sendo esta apresentada por meio de imagens que se opunham, balizadas pela concorrência. Uma das maneiras de falar da cidade referia-se ao aspecto problemático da vida urbana, acompanhado de críticas à desigualdade ou à ineficácia de serviços públicos, além da carência de moradia. Contrária a essa versão, postulantes a cargos de representação ligados à situação apresentavam a cidade modificada por intervenções realizadas e obras que “necessitavam de continuidade”. Um passado problemático elou um futuro promissor pareciam compor a lógica discursiva de pleiteantes municipais, interessados em expor estratégias de persuasão e adesão.5

Um segundo momento de incursão no tema da cidade como objeto de discursos e representações caracterizou-se pela constatação de que as imagens alusivas à cidade poderiam integrar um escopo mais abrangente e menos recortado ao tempo da política. Emergiu dessa percepção um novo conjunto de hipóteses e possibilidades analíticas voltadas para pensar a cidade como objeto de discursos e memórias variadas no tempo.

Elegendo o tema “narrativas da cidade” como chave de leitura, contendo representações diversas sobre o espaço urbano, não restritas ao momento eleitoral, a pesquisa incorporou inicialmente visões de intelectuais, jornalistas e gestores sobre as transformações de contextos citadinos.

A cidade como local indutor de representações teve outros acréscimos teóricos e empíricos realizados com base na observação da maneira como o passado e o presente eram evocados em propostas de valorização do patrimônio, com acenos à criação de zonas de preservação histórica em Fortaleza.

Os registros sobre Berlim, em 2001, conferidos pela bolsa de estudos Capes/DAAD, auxiliaram na definição de um escopo de investigação. A capital da Alemanha, marcada no passado pela contingência de disputas ideológicas entre memórias, permitiu uma incursão interessante sobre o tema das narrativas. Apresentar Berlim aos visitantes no momento de abertura da Alemanha para o restante da Europa, após a queda do muro, ensejou discursos que passaram a fazer parte das estratégias de exportação de imagens, enriquecendo a temática de investigação. Esta, agora voltada para entender o modo como cidades eram apresentadas aos outros, os turistas.

A construção de arquivos contendo guias, sites, postais, e discursos tendo como chave de leitura o tema denominado por “narrativas de cidades” prosseguiu com novos acréscimos, tendo como suporte o acordo Capes/Cofecub, realizado em 2001/2002, entre a Universidade Federal do Ceará e Université Lumière Lyon II (França). A investigação em Lyon voltou-se para analisar a construção da imagem da cidade, acompanhada dos processos de requalificação viabilizados em seu centro histórico. As narrativas registradas na ocasião atentaram para a apresentação desse espaço urbano como expressão regional do patrimônio, significativo na história do Continente Europeu.

Em Lisboa, um estágio de pós-doutorado efetivado em 2008, por um período de seis meses, permitiu acrescentar e consolidar informações sobre as “narrativas da cidade” percebidas em diferentes dimensões. Impressos sobre a cidade (antigos guias e roteiros), assim como representações elaboradas por turistas, percepções sobre bairros específicos da capital portuguesa explicitadas por moradores (Alfama) deram fortes subsídios para o desenvolvimento das investigações anteriores.

A participação na rede Brasil-Portugal de estudos urbanos6 envolvendo a Universidade de Coimbra, a Universidade Federal de Sergipe e UFC consolidou um espaço institucional de amadurecimento teórico das ideias da pesquisa, viabilizando troca de reflexões e experiência entre pesquisadores.

As práticas de apresentação da cidade e os discursos orquestrados em torno de uma racionalidade turística passaram, assim, a inspirar um lugar de pesquisa mais direcionado, agregando-se, aos poucos, a incursões feitas em minha própria cidade, Fortaleza. O que parecia uma organização de dados feita de forma pontual integrou um conjunto articulado de registros capaz de dar densidade ao arquivo.

A chave de leitura interpretativa da cidade, feita com base no conceito de narrativa, também subsidiada pela bolsa de pesquisa do CNPq, traduziu, portanto, a uma investigação de longa duração, entremeada por intervalos que, longe de arrefecerem a sistematização das observações, foram acrescentando, ao longo do tempo, novos subsídios analíticos.

A pesquisa direcionando o olhar para a apresentação de cidades por meio de narrativas e o modo como elas sedimentavam usos e interferências no espaço urbano, associando-se a processos culturais e políticos, constituiu a principal forma de organização e sistematização das informações.

O material foi organizado em três eixos analíticos. O primeiro deles foi baseado no exame de guias, catálogos e folhetos turísticos indicativos do modo como as cidades eram apresentadas. Retóricas da espacialidade, de natureza mais ou menos utilitária, associadas a estilos literários, compuseram um conjunto de narrativas voltadas para a apresentação de espaços urbanos.

A circularidade entre narrativas e suas apropriações nativas consistiu no registro de discursos elaborados sobre as cidades por visitantes e profissionais dedicados à prática de roteiros turísticos. A ideia de circularidade permitiu aglutinar tanto a ritualidade dos roteiros de visitação, como a produção e difusão de imagens iconográficas, a exemplo de cartões postais em Fortaleza.

A terceira classificação do material pesquisado incluiu momentos contextuais significativos de construção de narrativas. Neles foram enfocados experiências concretas de efervescência de discursos baseados na defesa de espaços urbanos “ameaçados”, contendo alusões a políticas de preservação de patrimônio. A visibilidade de situações peculiares postas no cenário público por diferentes atores sociais, incluindo a imprensa e a elaboração de programas de preservação, propiciava a observação de narrativas permeadas de representações sobre o passado, presente e futuro. “Bairros históricos”, em tal configuração, assumiam um caráter de metonímia, virando a expressão de uma totalidade citadina.

Considerei na reflexão sobre o material da investigação a economia interna dos materiais impressos (linguagem, destinatário e autoria), verificando a construção literária de roteiros expressivos das narrativas de cidades.

A exposição genérica desses arquivos que subsidiaram parte significativa de minhas pesquisas não pretende de forma alguma erigir-se em modelo, sobretudo supondo-se que a organização de qualquer mate rial de investigação compõe-se de circunstâncias, interesses e possibilidades efetivas de incorporação de dados segundo fontes teóricas variadas. Em tal perspectiva, as experiências individuais, os aportes teóricos e as oportunidades institucionais interferem fortemente no exercício da investigação.

Se a diversidade de registros encontra-se associada à experiência e trajetória individual da pesquisadora, é importante também pensar sobre a cidade como tela de referência teórica e empírica: um imenso laboratório de práticas sociais que inspirou o saber sociológico desde seus primórdios. A cidade pensada como totalidade é, na realidade, a conjunção de dinâmicas históricas, sendo considerada uma rede de interações ou projeção no espaço de relações sociais 7 . Os cenários urbanos singularizam trocas, sociabilidades, inserção e exclusão, assim como zonas fronteiriças de sociabilidade (Simmel, 1971). Os processos de troca, as transações efetivadas em vários contextos da vida urbana e as experiências de sociabilidade no espaço público oferecem condições para o registro de investigações nas quais vão estar presente processos culturais de diferentes ordens.

Os arquivos aqui expostos sinalizaram também o fato de que as cidades são objeto de discursos caracterizados por formulações diversas e tentativas de conceber o espaço urbano dotadas de sentido, totalidade e pluralidade. Apontaram a recriação e construção do espaço urbano em sua expressão simbólica, contribuindo para formar imagens de cidades associadas a cronologias, apropriações do passado e práticas culturais e políticas.

Seja na condição de registro de processos macrossociais, ou vivências cotidianas que supõem lugares, atores e dinâmicas específicas, a cidade pode ser percebida como um imenso laboratório de inscrições de eventos na qual se torna possível a prática artesanal do fazer sociológico. Fazer que se encontra atualmente submetido a oportunidades institucionais, constrangimentos temporais e experiência individual do pesquisador. O artesanato intelectual move-se nesse campo relacional complexo.

O artesanato intelectual hoje: Tempo, oportunidade e tensões institucionais

O exame dos registros de pesquisa apresentados suscita uma reflexão sobre as condições atuais de produção intelectual, atentando para as possibilidades e os modos efetivos de construção de arquivos. É importante ressaltar que a produção de investigação em formato de rede expressa atualmente uma forma de elaboração articulada do conhecimento, implicando em trocas, interações contínuas e possibilidades de acumulação do saber especializado. Este, menos baseado no sentido de originalidade individual e mais fundamentado no amadurecimento progressivo de ideias que se processam coletivamente.

Os seminários, congressos e outros eventos que caracterizam hoje a forma de produção e difusão do conhecimento na área de ciências sociais apontam para a elaboração permanente de sínteses de investigação, supondo potencialidades de arquivos em permanente alimentação.

Trata-se da vigência de um conjunto de oportunidades não isenta de restrições de ordem institucional.

Revendo meus arquivos posso observar que as demandas institucionais dos financiadores impuseram prazos, nem sempre condizentes com o fazer artesanal, oferecendo, por outro lado, oportunidades ricas de pesquisa. Sob o crivo de um tempo institucional associado a pautas de editais e relatórios, o artesanato também teceu seus fios. Emaranhados, por vezes, mas cumulativo e bastante socializado em redes de investigação. A perspectiva de um pesquisador mais coletivo que se comunica em redes vem conferindo ao conhecimento uma difusão ímpar, auxiliando na feitura e registros de classificações de informações.

Percebe-se também, no âmbito da construção do saber, uma tendência à especialização do conhecimento sob a influência dos espaços profissionais e instituições que demandam especializações e competências. Nesse sentido, o grande desafio é aliar os conhecimentos específicos com a história construída das ciências sociais e seus múltiplos enriquecimentos. Os cientistas clássicos da área de ciências sociais foram ricos analiticamente porque ampliaram suas reflexões para além do estoque disponível de investigação.

Talvez um dos grandes dilemas postos hoje para as ciências sociais seja a possibilidade de associar a cumulatividade do conhecimento com as ofertas institucionais que simultaneamente definem oportunidades de acesso, mas, ao mesmo tempo, pontuam a agenda do pesquisador. A permanência do pensamento crítico que singularizou as ciências sociais desde os seus primórdios pode se tornar vulnerável face alguns dos constrangimentos institucionais que implicam na indução de temáticas.

O modo atual de produção do conhecimento traz também mudanças na pesquisa, muitas vezes orientada por um ideal de utilidade. Nas últimas décadas, já percebemos, nos formulários dos pareceristas de projetos de pesquisa, indagações sobre a aplicabilidade do conhecimento como um dos requisitos positivos na avaliação dos mesmos. Trata-se de uma aplicabilidade que pode sugerir uma direção utilitária, nem sempre condizente com as formas de investigação das ciências sociais. Nessa direção, Bruno Latour (1994; 1997) refere-se, por exemplo, à existência de redes sociotécnicas que se articulam a um conjunto complexo e múltiplo de pesquisadores, cientistas, técnicos das agencias financiadores, empresários e membros da sociedade que interferem na formulação e construção de problemas. Se esse fato esteve mais historicamente presente nas ciências exatas e naturais, hoje constitui também uma demanda presente na área de ciências sociais. Impõe-se, nesse contexto, a reflexão sobre a autonomia do conhecimento, assim como a disputa por hegemonia no espaço do saber científico.

É importante mencionar que a percepção de Mills sobre o trabalho acadêmico, segundo a lógica do fazer artesanal, opunha-se também à dimensão pragmática da investigação. Segundo Mills, uma das piores coisas que acontecem ao cientista social é só sentir a necessidade de escrever um projeto de investigação por ocasião de solicitação de fundos. Também referia-se Mills, de forma negativa, ao que denominava de empirismo abstrato: a pesquisa submetida aos parâmetros da técnica que imprimiria uma forma e um ritmo de produção. Em oposição, Mills convocava o domínio da maturidade de pensamento exigida no tratamento dos processos complexos da vida social. Trata-se de pensar sobre o tempo como um dos elementos definidores da produção intelectual.

Tempo e artesanato

As experiências individuais e as oportunidades institucionais interferem hoje fortemente no exercício da investigação, criando tensões entre as exigências da difusão da pesquisa e a maturação das informações.

Nesse sentido, vale a pena refletir sobre a temporalidade na produção intelectual. O sentido de artesanato pressupõe a dimensão laboriosa do fazer em tempo lento, a tessitura de atos avessos à condição de reprodução em série. Nessa perspectiva, a pesquisa se aproximaria da arte, evidenciando uma autoria, ou trabalho dotado de individualidade.

A tecelagem, já evocada por Benjamin8 para pensar sobre a prática da narrativa, remete a um outro momento da história no qual a escuta, o trabalho e o seu produto transitavam em um circuito interdependente. Em concepção semelhante, readaptada ao tempo presente, Sennett (2012) tendo por base a figura do artífice, analisa a produção baseada no artesanato, afirmando o vínculo substancial entre mão e cabeça capaz de auxiliar no desenvolvimento de habilidades sofisticadas: o amadurecimento no hábito e no aprendizado lento.9 O argumento do autor é o de que o animal laborens é também capaz de pensar, estando o pensamento e o sentimento conectados ao processo do fazer.

A habilidade artesanal “designa um impulso humano básico e permanente, o desejo de um trabalho bem-feito por si mesmo (Sennet, p. 19)”, construindo o elo entre polos supostamente antagônicos, como a mente e o corpo, o pensamento e a ação, a teoria e a prática. Supõe, concretamente a prática artesanal o trato com o meio ambiente, a engenharia e o conjunto amplo de práticas sociais no mundo contemporâneo. O tecelão antigo, exemplificado em Hefesto, deus dos artífices, encontraria uma expressão moderna nos usuários de programas de computação com código aberto (Linux), capaz de viabilizar uma participação publica da comunidade baseada na busca de qualidade e acesso.

O sistema operacional Linux poderia, na percepção de Sennett, ter ajudado Mills em seu propósito de valorização da participação da comunidade na experimentação do trabalho artesanal. Tomando a metáfora da oficina, Sennett pensa na possibilidade de funcionamento de laboratórios científicos sob o prisma da colaboração, no qual pessoas de diferentes habilidades trabalhariam em função de problemáticas comuns.

Pensar o trabalho intelectual sob a ótica do artesanato traz enormes desafios considerando as condições efetivas de elaboração da pesquisa e as descontinuidades entre o tempo de investigação, de exposição e de escrita. Mills referia-se, por exemplo, à necessidade de construção de marcadores temporais importantes. Trata-se da separação entre o que designava “contexto da descoberta”, ainda marcado pela individualidade do pesquisador, e “contexto da apresentação” submetido a uma forma coletiva e objetiva de difusão da investigação.

É importante ressaltar que o texto de Mills sinaliza uma temporalidade. O momento no qual o intelectual ruminava suas ideias um pouco mais afastado das premências atuais provenientes de “desencaixes” entre tempo e espaço, para usar uma expressão de Giddens (1991), suscitados por demandas de trabalho condicionadas a avaliações institucionais.

O arquivo contemporâneo do intelectual é composto de atividades didáticas, participação em seminários, congressos e demandas múltiplas. Trata-se de experiências que imprimem uma velocidade nem sempre compatível com a suposta maturação das ideias. O fazer artesanal é atualmente submetido a uma agenda na qual escritos vivem a descontinuidade das exigências de exposição e publicação.

Por outro lado, o momento da escrita do texto de Wright Mills sobre o artesanato intelectual precede ao uso sistemático do computador, hoje instrumento cotidiano utilizado no trabalho intelectual. A forma de elaboração e classificação de arquivos sugeridos por Mills pode potencialmente materializar-se na organização dos dados de pesquisa com o auxílio da informática, permitindo maior agilidade às notas de pesquisa segundo critérios amplos de classificação.

No entanto, se hoje temos a posse fácil da máquina e, com isso, “ganhamos tempo”, as formas de produzir também exigiram uma velocidade que, muitas vezes, esbarra no momento necessário de maturação. Os editais que impõem a feitura de projetos submetidos a cronogramas e as avaliações de produtividade parecem tornar anacrônicas as ideias de Mills a respeito da maturação teórica. Trabalhamos hoje com ritmo e agilidades nem sempre conformados ao registro permanente e crítico das experiências cotidianas produzindo alguns desencaixes. Percebo o desencaixe em vários planos: o tempo da escrita e o tempo da difusão do conhecimento; a descontinuidade entre atividades do trabalho acadêmico que impedem a alimentação contínua de arquivos; enfim, a separação entre as obrigações didáticas, a escrita, a pesquisa e as atividades referentes ao cumprimento de funções técnicas e burocráticas. É importante ressaltar que arquivos são perpassados por esses desencaixes acomodados por estratégias de aproveitamento de oportunidades nem sempre viabilizadas.10

Em tais condições, não seria exagerado afirmar a existência de um modo de produção do conhecimento que é indissociável das demandas institucionais, pondo em evidência uma relação complexa entre a ampliação de oportunidades de financiamento e as tensões da avaliação segundo exigências permanentes de produtividade.

A escrita sociológica contemporânea constitui a afirmação de um campo de saber próprio de um mundo cada vez mais movido pela tecnologia e regido pelo prisma das oportunidades. Se as ciências sociais do início do século XX emergiam em uma dinâmica propositiva, hoje a autonomia das ciências sociais efetiva-se em um contexto diferente, criando outras problemáticas mais complexas do que aquelas a que Weber (1968) referia- se quando buscava diferenciar o mundo intelectual do mundo político.

Visando a preservação de autonomia do conhecimento, Bourdieu (1989) refletiu na mesma direção sobre a necessidade de preservação de um específico campo do saber das ciências sociais, fundamental para o desenvolvimento do conhecimento na área. Em seu escrito sobre o ofício do sociólogo (Bourdieu, 1999), sem se ater à ideia mais concreta de elaboração de um arquivo, apresentou uma teoria prática da sociologia conjugada ao questionamento sobre as imagens do senso comum e as rupturas necessárias com o profetismo. As dificuldades de exercício do ofício estariam justo na distância entre o que se impõe como óbvio e o que deve ser reformulado sobre o crivo da reconstrução do problema sociológico.

As complexidades contemporâneas do trabalho acadêmico suscitam um ordenamento da difícil equação que polariza constrangimentos de agendas e oportunidades institucionais. A vigência de redes interativas do conhecimento constitui um ganho evidente propiciado pelos apoios institucionais.

A postura teórica e metodológica de Wright Mills tornou-se clássica, sendo também de uma atualidade surpreendente, convocando a uma reflexão crítica sobre o modo de se fazer sociologia, desde suas potencialidades heurísticas. Se a perspectiva de artesanato em Mills supõe uma maneira ideal de produção do conhecimento, não totalmente condizente com os tempos atuais, as referências fundamentais sobre o cultivo permanente da sensibilidade e o modo de organização das ideias permanecem como bússola. Uma indicação e alerta para se pensar sobre o fazer cotidiano do cientista social.

Referências

Alencar Chaves, Christine (2000) A Marcha Nacional dos Sem-terra: um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/NuAP, Coleção Antropologia da Política.

Barreira, Irlys Alencar F. (1998), Chuva de Papéis. Relume-Dumará. Rio de Janeiro.

Barreira, Irlys Alencar F. (1997), A cidade em close up-imagens e apropriações do espaço em campanha eleitoral.

Benjamin, Walter. (1986), Magia e Técnica, Arte e Política. Col. Obras escolhidas, Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense.

Bourdieu, Pierre. (1989), O poder simbólico. Lisboa: Difel.

Bourdieu, Pierre; Chamboredon, Jean Claude; Passeron, Jean Claude (1999), A profissão do sociólogo, preliminares epistemológicos. Vozes: Petrópolis.

Giddens, Anthony. (1991), As conseqüências da modernidade. Unesp: São Paulo.

Latour, B. e Woolgar, S. (1997). A vida de laboratório: a produçào dos fatos, científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

Latour, B. (1994), Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: editora 34.

Lefebvre, Henri. (2000), La production de L ‘espace. Paris: Anthropos.

Mills, C, (1969), A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar editores.

Palmeira Moacir; Heredia Beatriz. (1995), Os Comícios e as Políticas de Facções. Rio de Janeiro: Anuário Antropológico, n. 94.

Sennett, Richard. (2012), O artífice. Rio de Janeiro: Record.

Simmel, Georg. (2001), “A metrópole e a vida mental” in Fortuna Carlos (org), Cidade, Cultura e Globalização. Oeiras, Portugal: Celta.

Simmel, Georg. (1986), Sociología 2 Estudios sobre las formas de socializacíon. Madrid: Alianza Editorial.

Weber, Max. (1986), Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix.

Weber, Max. (1994), Economía y Sociedad, Esbozo de Sociología Comprensiva. México: Fondo de Cultura Económica, V. l.

Notas

1 Sobre o uso de marchas como expressão simbólica, ver Alencar Chaves, (2000).
2 O Núcleo de Antropologia da Política (Nuap/Pronex), direcionou seus objetivos na análise das interseções entre a “política”, percebida de modo nativo, associada a outros domínios da vida social e cultural, incorporando etnografias de eventos, situações, rituais, dramas e processos sociais. O Nuap/Pronex, sob coordenação geral do Professor Moacir Palmeira (Museu Nacional/UFRJ) teve diversificada inserção institucional, permitindo a publicação periódica de livros contendo o produto final de várias pesquisas.
3 Palmeira, M. & Heredia, B. “Os comícios e a política de facções”. Anuário Antropológico/94. Rio de Janeiro: 1995.
4 Parte significativa desse material de pesquisa foi publicada no livro Chuva de Papeis, ritos e campanhas eleitorais no Brasil, Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1998.
5 Explorei essa ideia em pesquisa sobre campanhas eleitorais municipais da qual resultou o artigo Barreira, Irlys (1997), A cidade em close up – imagens e apropriações do espaço em campanha eleitoral.
6 A rede de pesquisa foi coordenada por Carlos Fortuna do CES da Universidade de Coimbra e Rogério Proença Leite da Universidade Federal de Sergipe.
7 Tal como pensou Lefebvre (2000) sobre a dinâmica da vida urbana na sociedade moderna.
9 O paradoxo dos danos que o homem inflige a si mesmo nas coisas que produz, a exemplo da bomba atômica e do mito de pandora, são retomados pelo autor, considerando a capacidade de repensar as coisas materiais e suas práticas concretas de forma não dicotômica. Criticando a supremacia da fala e do pensar sobre o trabalho em Hanna Arendt, Sennett fundamenta seu argumento na capacidade de se fazer bem as coisas, sob a óptica do trabalho artesanal (Sennett, O Artífice, 2012).
10 Falo, por exemplo, da possibilidade de ministrar cursos sobre temas de pesquisa, da apresentação de trabalhos de investigação em congressos e das formas de tentar fazer coincidir os processos maturação e escrita de arquivos submetidos aos calendários de financiamento e avaliação de produtividade.


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