Artigos
Recepção: 30 Outubro 2013
Aprovação: 20 Fevereiro 2014
DOI: 10.20336/rbs.41
RESUMO: A história da imaginação sociológica no Brasil contém extenso elenco de criativas e até antecipadoras variantes do que C. Wright-Mills denominou artesanato intelectual. Aqui, o artesanato intelectual teve muito pouco a ver com uma opção epistemológica em face das reduções abstratas da grande teoria. Tem sido muito mais reconhecimento da riqueza de conteúdo de uma realidade singular e densa. O artesanato intelectual é mais do que a mera técnica de obtenção de dados. É uma troca. Não há como utilizar o artesanato sem dar algo em troca do que se recebe. No artesanato, o observador é observado, o decifrador é decifrado. Sem o que não há interação. Sem interação não há como situar e compreender; situar-se e compreender-se no outro.
Palavras-Chave: Imaginação sociológica, Artesanato intelectual, Wright-Mills.
ABSTRACT: The history of sociological imagination in Brazil contains a long list of creative and even precocious variants of what C. Wright-Mills termed intellectual craftsmanship. Here intellectual craftsmanship has little to do with an epistemological choice in response to the abstract reductions of big theory. Rather it is much more concerned with recognizing the richness of a singular and dense reality. Intellectual craftsmanship is more than a mere data collection technique. It is an exchange. There is no way of using craftsmanship without giving something back in return for what is received. In craftsmanship the observer is observed, the decipher is deciphered. Without this there is no interaction. And without interaction, situating and comprehending is impossible; one situates and comprehends oneself through the other.
Keywords: Sociological imagination, Intellectual craftsmanship, Wright-Mills.
RÉSUMÉ: L’histoire de l’imagination sociologique au Brésil comporte un vaste éventail de variantes créatives et même anticipatoires de ce que C. Wright-Mills a dénommé artisanat intellectuel. Ici, l’artisanat intellectuel n’a pas grand chose à voir avec une option épistémologique face aux réductions abstraites de la grande théorie. Il est plutôt vu comme une reconnaissance de la richesse de contenu d’une réalité singulière et dense. L’artisanat intellectuel est plus que la simple technique d’obtention de données. C’est un échange. Il n’y a pas moyen d’utiliser l’artisanat sans rien donner en échange de ce que l’on reçoit. Dans l’artisanat, l’observateur est observé, le décodeur est décodé. Sans quoi il n’y a pas interaction. Sans interaction, pas moyen de situer et de comprendre ; de se situer et de se comprendre dans l’autre.
Mots-clés: Imagination sociologique, Artisanat intellectuel, Wright-Mills.
Inicialmente, eu havia pensado em fazer aqui uma exposição comparativa sobre “O artesanato intelectual na sociologia de Florestan Fernandes e na de Gilberto Freyre” e com esse título este trabalho foi incluída na programação oficial deste congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia. Depois, pensando melhor, entendi que seria mais adequado ampliar a reflexão para além do que o tema poderia dizer com base na obra desses dois autores, de modo que pudesse expor também, de maneira sistemática, minhas reflexões e experiências de muitos anos sobre o tema de que tratou C. Wright-Mills. Inspirado num belo e sugestivo ensaio de Henri Lefebvre, fui mesmo tentado a dar ao trabalho o subtítulo de “Ferramentas da oficina de Lúcifer”, diabólica ideia que prudentemente abandonei.2
É que os artesãos, em idos tempos, mesmo aqui no Brasil, de vários modos eram tidos como parceiros de Satanás, como os alquimistas. Artesãos eram socialmente estigmatizados e não entravam no rol dos homens bons, os dotados da qualidade de nascimento para as funções públicas e do mando. Haviam sido degradados socialmente pelo exercício do trabalho manual quase sempre hereditário, o trabalho que transforma a natureza em coisas úteis. Estavam, por isso, estamentalmente impedidos de ocupar funções nas câmaras municipais, que eram o poder local, por suspeição de que a competência de seu artesanato podia ser oculto benefício de pacto com o tinhoso. Ainda hoje, em muitos lugares do Brasil, crianças muito ativas e desobedientes são definidas como arteiras, o que as remete para os significados antigos da palavra, como o de desordeiro e insubmisso, mas, também, o de brincalhão, o que abusa da ordem, o que viola regras. Arteiro era quem fazia arte, quem criava o produto não natural, quem invadia o âmbito do divino, que era o da transformação das coisas, da metamorfose de uma coisa em outra. Não é casual que os antigos também dissessem dessas crianças que estavam reinando, isto é, indevidamente subvertendo, mandando em vez de obedecer. Monteiro Lobato, aliás, deu a um de seus livros o título de Reinações de Narizinho.
Artesanato, durante muito tempo, encerrou a ideia de competência para fazer coisas que, de outro modo, não podem ser feitas, coisas que nem todos sabem fazer, o que envolve engenho e criatividade. Até a virada do século XIX para o século XX, entre nós, os trabalhadores dos ofícios manuais ainda eram considerados artistas, porque artesãos, porque criavam, o que remetia à arte que ainda havia no trabalho não só produtivo, mas também criativo. Os artesãos passaram de objeto de medo a objeto de respeito. Como tais recenseados, na categoria de artistas e operários, o operário, por sua vez, como uma desqualificação do artista resultante das transformações no trabalho que resultaram na apropriação do saber da produção pelo capital e pelos meios de produção. Uma expropriação de conhecimento, transferido da pessoa que trabalha para a máquina com que trabalha. Não só o capital se apropriando dos meios de produção, mas também, através deles, do saber da produção.
Aqui, no caso da nossa profissão, o tema ainda é o de uma variante da tradição mais geral do artesanato, a da pesquisa sociológica, da atividade intelectual que investiga e desvenda, que cria o dado, que faz da informação bruta um dado sociológico e que transforma o dado em interpretação do dado. A sociologia como um pensar que ainda é um fazer, mas um fazer pensando. A sociologia no âmbito da arte e não no âmbito da coisa. A sugestão da alternativa do artesanato, seja no trabalho produtivo, seja no trabalho intelectual, ganha sentido na significativa distinção que Heller faz entre work e labour, sendo labour o trabalho enquanto necessidade radical, referido à transformação social e não apenas à transformação de coisas3 Aqui, na linguagem da província, distinção entre o operário e o artista, o tempo quantitativo e o tempo qualitativo da atividade, trabalho alienado e trabalho não alienado. Ou, como entende Lefebvre, o reprodutivo e o transformador, a práxis repetitiva e a práxis inovadora.4
Penso que, talvez, devesse ter sido convidado para esta exposição de abertura Celso Castro, organizador da coletânea Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios e autor de sua excelente introdução, “Sociologia e a arte de manutenção de motocicletas”,5 que cobre, justamente, as reflexões do autor que acabou consagrado por seu escrito e por suas sugestões sobre o tema, C. Wright-Mills. Outros autores, brasileiros, têm se interessado por essa peculiar e não conformista contribuição de Mills ao trabalho do sociólogo. Octavio Ianni, em seu curso de Métodos e Técnicas de Pesquisa, na USP, seduzia seus alunos de graduação, no começo dos anos sessenta, e eu era um deles, para a importância do texto de Mills na formação dos jovens estudantes de Ciências Sociais, tanto para a questão da imaginação sociológica quanto para a questão correlata do artesanato intelectual.6 Era uma forma de educar e disciplinar a mente dos candidatos a sociólogo para a importância do modo de ver sociológico no trabalho do cientista social.
Até porque o artesanato intelectual era um recurso “portátil”, acessível aos principiantes como meio de exercício de observações sociológicas rápidas e cotidianas, fora do contexto de projetos de pesquisa mais densos e demorados. Permitia aos estudantes antecipar a prática de pesquisa sem necessidade de vínculo e apoio institucionais, como amadores. Fiz um exercício desses, quando ainda estudante do segundo ano de Ciências Sociais, e aluno de Ianni. Casualmente, visitei o cemitério mais que centenário de Jacareí (SP), ainda do tempo dos barões do café. Ali dei-me conta de que o curso de ciências sociais e, nele, a ênfase nas questões de pesquisa e de método já haviam em mim criado um “olhar sociológico” e despertado uma prontidão para observar sociologicamente mesmo as coisas banais da vida cotidiana. Tildo, então, me parecia pedir a compreensão de seu sentido e busca da explicação sociológica que me permitisse ultrapassar o entendimento de senso comum que me acudia de imediato.
Na visita, notei que em algum momento da história do cemitério fora ele ampliado e o portão de entrada fora deslocado para o extremo oposto de onde estivera originalmente. Ocorrera a substituição da velha alameda de acesso à capela por uma nova, com a correspondente mudança no rol de famílias gradas, que mereceram e já não mereciam o destaque do sepultamento na rua principal. O cemitério sugeria e documentava uma rotação das elites locais ao longo de pouco mais de um século. Tomei notas, conversei com o coveiro e, observações posteriores, em outros cemitérios e conversas com outros coveiros, em Goiás, no sertão da Bahia, no Mato Grosso, revelaram-me que o este é sempre rico depositário de informações sobre costumes e ritos funerários, um etnógrafo da morte.
Com os recursos artesanais de que dispunha, saí do cemitério, uma hora depois, com uma etnografia impressionista e provisória das mudanças na estratificação social de uma comunidade do Vale do Paraíba ao longo de um século. Mudanças sociais ocorridas entre o esplendor do café, no tempo do Barão de Jacareí e da Baronesa de Santa Branca, e o esplendor dos comerciantes de origem libanesa, do tempo do começo da conversão do Vale em região industrial. Agora, os sobrenomes da antiga alameda principal estavam situados no que se tornara a periferia do cemitério, não longe da beira do muro, do lado onde no passado ficavam os escravos e os ínfimos. Aquele cemitério era um documento de histórias de ascensão e decadência social e também da história de um fim de era e começo de outra.
As razões do chamamento de Ianni eram várias, além das que estão no centro do escrito de Mills. Uma delas, poderosa, a de que o artesanato na sociologia de um país como o Brasil ampliava as possibilidades de pesquisa, justamente porque libertava o pesquisador da busca de recursos financeiros, na época escassos, para realização de investigações sobre grande número de temas. Algo que corresponderia, pouco depois, à utopia do pesquisador de “pés descalços”, coisa que muitos já eram, eu tenho sido e muitos de vocês também.
O artesanato respondia e responde bem aos desafios dos pequenos temas, que acabam sendo tão fundamentais na história da sociologia, iluminando aspectos da vida social que na grande pesquisa não se podem ver. Roger Bastide escreveu primorosos pequenos estudos com base nos recursos do artesanato intelectual e nas anotações da caderneta de campo: sobre o mundo onírico do negro e as estruturas profundas de sua identidade,10 O próprio Octavio Ianni reuniu vários e referenciais pequenos estudos, viabilizados por procedimentos artesanais, em Industrialização e Desenvolvimento Social no Brasil.11 Fernando Henrique Cardoso, filiado à mesma tradição da escola de Roger Bastide e de Florestan Fernandes, também produziu trabalhos possibilitados pelo artesanato intelectual.13
Na disciplina de sociologia da vida cotidiana, que introduzi no currículo de graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia da USP, usei o recurso do artesanato intelectual como exercício na formação dos alunos na relação entre teoria e pesquisa. Diferentes turmas em sucessivos anos empregaram esse recurso para fazer pesquisas sobre o sonho, o decoro, o desemprego e a mentira, um tema em cada ano, com base em projetos de pesquisa que escrevi com esse fim, definindo o problema sociológico de cada pesquisa. Em relação aos dois primeiros temas, eles próprios escreveram e assinaram textos que foram reunidos e publicados em livros organizados e apresentados por mim. Os trabalhos relativos ao tema do desemprego e ao da mentira deixaram de ser concluídos e publicados por falta de meios.14 Uma experiência pedagógica em que retomei o que fora próprio da fase de formação de Florestan Fernandes e de seus assistentes e fora própria de alguns momentos do lado autodidático da formação brasileira de Gilberto Freyre e do enraizamento de sua sociologia-antropologia.
Freyre há muito fazia pesquisa nessa perspectiva. Já havia lançado o essencial de sua obra consagrada quando publicou Assombrações do Recife Velho, livro de 1951 que reúne histórias coletadas artesanalmente desde 1929.15 Ainda que, no campo, os relatos sobre assombrações tenham sido coletados por um repórter do jornal em que Freyre trabalhava, a seu pedido, esse livro mostra um detalhe do artesanato intelectual que não se situa propriamente no terreno da explanação, mas no terreno da ordenação do material e da extração das instâncias empíricas que tornam os casos compreensíveis e interpretáveis. É um bom exemplo da importância do artesanato intelectual no trato de um tema que, de outro modo, não chegaria à forma impressa e como texto de sociologia. Ainda que, como nesse caso, para construir uma narrativa documental e não propriamente uma interpretação teórica.
A sociologia também se desenvolve com a elaboração artesanal de narrativas desse tipo, documentos para serem analisados e interpretados, até mesmo por outro pesquisador, quando a multiplicação de indícios mostrar que o tema está finalmente amadurecido e teoricamente dimensionado. Um procedimento que pode ser situado como momento de seleção e elaboração de evidências do que Florestan Fernandes definiu como o das instâncias empíricas relevantes para a explicação sociológica.16
Tanto em Casa Grande e Senzala quanto em Sobrados e Mocambos é claro o recurso a uma variante do artesanato que é a valorização sociológica da memória e do vivencial, o próprio sociólogo como personagem de uma memória de processos interativos pretéritos, de vários momentos de sua socialização para a condição de adulto. Memória não invocada factualmente, mas presente na armadura e nas entrelinhas do texto, como expressão de uma visão de mundo, como fator extra-científico do conhecimento. Ou da memória dos modos de interagir na história dos ascendentes e colaterais dos ascendentes. Uma espécie de reciclagem sociológica dos dados da memória que, de outro modo, se perderiam ou que, até mesmo, nunca seriam alcançados pela pesquisa convencional e quantitativa. O sociólogo, retrospectivamente, até como testemunha de suas próprias ações pretéritas, e depositário da informação histórica, antropológica ou sociológica da circunstância de sua socialização. Isso é possível graças ao que Peter Berger definiu como alternação biográfica, o estranhamento que resulta de rupturas e descontinuidades biográficas.17 É o que permite ao sociólogo o estranhamento, que se poderia dizer durkheimiano, em relação a si mesmo, o ver-se como outro e objeto, em decorrência.
O vivencial de Mills está inteiramente presente nos cânones do artesanato intelectual que propõe. Adotei esse recurso, com proveito, em A Aparição do Demónio na Fábrica, com base em fatos que testemunhei, quando adolescente, na fábrica em que trabalhava nos anos 1950.18 Um tema com escassíssima probabilidade de surgir espontaneamente numa pesquisa de sociologia industrial ou de sociologia do trabalho. É que, no entanto, documentava o quanto de arcaico há no âmago mesmo das relações sociais de uma indústria tecnologicamente ultramoderna, o quanto os fatos menos relevantes da rotina da empresa contrariam a ideologia do progresso subjacente a muitas análises sociológicas nesse campo. O quanto, enfim, o social está atrasado em relação ao tecnológico, gerando uma dinâmica de tensões e crises que não podem ser apropriadamente vistas por uma sociologia divorciada do reconhecimento dos ritmos desiguais do desenvolvimento econômico e social.
Usei a técnica simples de rememorar e escrever detalhadamente tudo de que me lembrava em relação ao episódio, incluindo minúcias sobre o processo de trabalho e as mudanças nele ocorridas em função de substanciais transformações técnicas decorrentes dos novos equipamentos de uma fábrica inteiramente nova que passara a funcionar paralelamente à fábrica antiga, de tecnologia de mais de 20 anos antes.
Ficou-me claro que eu registrara minúcias da situação e até mesmo fizera uma certa problematização interpretativa do que ocorrera durante os próprios dias da tensão decorrente do episódio. Com esses dados, fui à procura de engenheiros, mestres e até do padre chamado a benzer as novas seções para espantar Satanás. Descobri que eu vira o que eles não haviam visto. Só que chamar o padre não se encaixava na memória puramente técnica que tinham do ocorrido. Eu tinha a memória coerente dos fatos que eles não tinham. Eu era o moleque de recados e responsável por servir cafezinho a mestres e engenheiros que compareciam ao escritório do engenheiro-chefe durante os tensos dias da ocorrência. Eu “ouvira todos” nas entrelinhas do meu silêncio e “ouvia tudo” que interessava à minha curiosidade ingênua de subalterno e adolescente do subúrbio. Eu conhecia em detalhes todas as seções e equipamentos da nova fábrica, era o responsável por trocar, todos os dias, nos relógios automáticos, os discos de papel milimetrado para registro das altíssimas temperaturas nas diferentes bocas de fogo do extenso e moderníssimo forno túnel de cozimento dos ladrilhos. Era ali que, na crença das trabalhadoras, o maligno destruía os produtos laboriosamente feitos pelos operários das prensas. Produtos que chegavam às suas bancadas rachados, manchados e quebrados, inúteis. Eu ouvia não só o que fosse de interesse da produção, mas também as vivas narrativas jocosas dos operários sobre a “ignorância” das operárias que haviam visto o demônio num canto da seção de escolha e classificação de ladrilhos, na cabeceira do tabuleiro de seu trabalho, bem perto delas.
Ao fazer o retrospecto, descobri, também, cerca de 30 anos depois, que eu vira o que eles não viram, pois vira através dos olhos delas, nas gozações e comentários que alguns trabalhadores delas faziam. Vira o que engenheiros e mestres não puderam ver, pois bloqueados por uma visão seletiva, técnica e científica, que descarta irracionalidades e irrelevâncias cotidianas. De certo modo, vi a luz de Lúcifer que havia no medo das operárias atingidas por uma brutal aceleração do processo de trabalho e uma consequente sobre-exploração de seu trabalho, agora mais rápido e mais intenso. Pela “via torta” de sua consciência simples e de sua religiosidade extremada, as operárias interpretavam, a seu modo, o que estavam vendo e sentindo e, desse modo, trouxeram a luta de classes para o âmbito de sua cultura supostamente alienada, popular e mística e nessa perspectiva a compreenderam.19
Artesanal é, também, Ordem e Progresso, do mesmo Gilberto Freyre, que, de algum modo, em oposta perspectiva de classe, lembra o recurso utilizado por Karl Marx na sua Enquete Ouvrière, de vários modos também proposta artesanal de pesquisa.20 Investigação mais abrangente do que a do universo relativamente circunscrito de seus dois livros anteriores. Foi um recurso em que o autor se apoiou para dar conta de um universo territorialmente mais amplo com os meios que lhe eram familiares, os do artesanato intelectual.
No grupo de Florestan Fernandes, na USP, era basicamente assim que se fazia pesquisa, o que ele aprendeu com Roger Bastide, de quem fora aluno e assistente. Ainda estudante, orientado por Bastide, Florestan fizera um estudo pioneiro sobre grupos infantis de rua, as troças, de um dos bairros de São Paulo, que seria publicado com o título de As trocinhas do Bom Retiro.21 Fator, aliás, de sua primeira dor de cabeça como sociólogo. Comentava na sala de aula o professor Ruy Coelho, assistente de Fernando de Azevedo, membro do famoso grupo da revista Clima, que saiu como título do trabalho num catálogo da Universidade, por erro do tipógrafo, As trocinhas do Bom Reitor. O que teria deixado o reitor da época intrigado e irritado com o eventual sentido oculto do que ele supunha ser um qualificativo. Florestan valeu-se diretamente de informações colhidas na interaçào com crianças, desenvolvendo técnicas de aproximação e de coleta de dados peculiares e apropriadas, o que não teria sido possível com técnicas convencionais.
Nesse sentido, o artesanato intelectual envolve a invenção de técnicas de pesquisa e de abordagem ajustadas à natureza do tema e do objeto. Na carpintaria, na marcenaria ou na ferramentaria, o artesão-operário com facilidade cria a ferramenta de que carece em face da obra que se lhe pede. Vi isso em minha própria família de carpinteiros, nas lições de casa de meu irmão ferramenteiro, aluno da renomada Escola Técnica Industrial “Getúlio Vargas”, do bairro operário do Brás, em São Paulo, e vi isso inúmeras vezes nas oficinas das fábricas em que trabalhei. Esse é um requisito comum a diversos campos do conhecimento, no geral situados entre a atualidade do mundo da modernidade tecnológica e a tradição do mundo do artesanato, de quando o artesão ainda não fora privado de seu saber, que acabaria usurpado pela engenharia da linha de produção. A sociologia modernosa, a daquela a que a crítica de Mills se dirige, com facilidade desqualifica e usurpa o saber intuitivo, espontâneo e tradicional, que educou muitos dos nossos sociólogos ainda ativos. Aliás, desde Durkheim, em As Regras do Método Sociológico, a sociologia teme o senso comum e com ele colide, descartando uma fonte de saber documental e essencial ao conhecimento sociológico, cuja riqueza assegura em parte, contraditoriamente, a qualidade científica de As Formas Elementares da Vida Religiosa, do mesmo Durkheim.
O artesanato intelectual é comum a outras áreas científicas que não apenas a sociologia. Dele não escapa a famosa história da maçã que, ao cair diante de Newton (e não em sua cabeça) num momento em que revia apontamentos sobre a teoria da gravidade, confirmou-lhe visualmente a hipótese científica. Em memória desse fato tão fora das regras da ciência, uma descendente direta daquela macieira referencial, diante do que foram os aposentos do famoso cientista, adorna com seu verdor de monumento vegetal, a frente do Trinity College, em Cambridge. Não fosse a mente artesanal de Isaac Newton, aquela macieira não teria sua glória e os caminhos de sua descoberta, provavelmente, teriam sido outros.
É útil lembrar a história, verdadeira, da relação profissional entre o carpinteiro negro Vivien Thomas e o cirurgião Alfred Blalock. Thomas queria ser médico. Pobre, acabou como faxineiro do laboratório de Blalock numa universidade do sul dos Estados Unidos. Ao surpreender Thomas, um dia, examinando com interesse objetos e livros do laboratório, Blalock interessou-se por ele e por suas habilidades de carpinteiro, que se revelariam úteis nas pesquisas que fazia. Acabou levando-o consigo ao assumir uma cátedra na prestigiosa John Hopkins University. Quando se apresentou o problema de encontrar um meio de cura da tetralogia de Fallot, a chamada doença do bebê azul, foi Thomas quem criou os instrumentos cirúrgicos que viabilizaram a primeira cirurgia e as subsequentes. No laboratório, nos experimentos com animais, ele já se familiarizara com a anatomia do tórax e do coração. Foi ele quem orientou as mãos de Blalock nessa primeira operação feita diante de uma audiência de horrorizados professores, médicos e estudantes, pois ele era negro e não era médico, e muitos o consideravam apenas um faxineiro. Antes de morrer, Blalock propôs à congregação da John Hopkins que concedesse a Vivien o título de Doutor Honoris Causa, o que foi feito, solenemente.22
Na sociologia, o colaborador é de outro tipo. É aquele que nos diz o que a sociedade é quando nos dá uma entrevista, mesmo que possamos ver, como sociólogos, o que ele próprio não vê, não sabe e não compreende; ou que nos permite invadir sua vida para que o observemos e, por meio dele, observemos a sociedade em que vive. O artesanato intelectual na sociologia, para se viabilizar, pede mais respeito do que o habitual pelas pessoas com as quais conversamos para obter os dados necessários a nossas análises e interpretações, que, muitas vezes, são pessoas iletradas e sábias da sabedoria própria do vivencial. Sobretudo porque pede mais tempo, mais demora na interação entre o pesquisador e seus interlocutores, demora que implica numa certa recíproca invasão da vida do pesquisador por aqueles com os quais dialoga e até mesmo sua ressocialização.23 Não se deve subestimar, nas ciências humanas, a importância do depositário de informações decisivas para o tema que o pesquisador está estudando.
É comum que, nas situações de pesquisa do sociólogo, haja pessoas que são verdadeiras auxiliares de pesquisa. Sobretudo aquelas que podem ser apropriadamente definidas como parassociólogas, as que intuitivamente percebem fatores, causas, contradições, anomalias na estrutura e no funcionamento da sociedade, em particular na sociedade local ou nos grupos sociais. São as pessoas que no grupo estudado conseguem ver objetiva e criticamente a situação em que vivem. São os autores do conhecimento primário que pré-interpreta fatos, situações e ocorrências, material da sociologia do conhecimento de senso comum que toda sociologia deve também ser.24 Todos nós já nos encontramos com pessoas assim e delas nos valemos.
Sinto-me tentado a mencionar aqui o caso de Mary Burns, operária irlandesa, católica e analfabeta, que foi companheira e operária da fábrica de Friedrich Engels, capitalista e protestante.26 ela, com quem morava, cética em relação a suas interpretações sobre a classe trabalhadora, levou-o aos cortiços de Manchester para mostrar-lhe a classe operária de carne e osso. Essa excursão deu a Engels uma visão da classe operária que de outro modo nunca alcançaria. Grã-fino, ele nunca teria conseguido entrar sozinho, sem sofrer violência, nos cortiços em que viviam miseravelmente muitos de seus operários. Engels tinha hábitos da nobreza que a burguesia procurava imitar. Frequentava um típico clube inglês exclusivo. Praticava a caça à raposa, um entretenimento da nobreza, que implicava em grandes despesas, com cavalo, cocheira, cavalariço, trajes e dispêndios cerimoniais. Mary Burns e sua irmã Lizzy, que se tornaria companheira de Engels com o falecimento de Mary, foram suas informantes privilegiadas, informações que ele repassava a Marx. Mesmo assim, Marx teve uma atitude de desapreço por Mary, quando ela faleceu. Depreciou-a como pessoa em comentário a Engels, o que quase levou ao rompimento dos dois. 27 Nem por isso a contribuição antropológica de Mary e Lizzy livrou Marx da concepção distante do real e do cotidiano que tinha da classe trabalhadora. Agnes Heller, que foi assistente de Georg Lukács, numa conferência na PUC, em São Paulo, em 1992, reconheceu que a classe operária de Marx é uma classe operária teórica, filosófica.28 Diversa da do operário cotidiano, aquele que, além de trabalhar, pensa e interpreta, sujeito de consciência social, diversa da consciência teórica. Mais para a antropologia e a sociologia do que para a filosofia.
Frequentemente, mais do que informantes, as pessoas às quais recorremos para conhecer sociologicamente a sociedade que estudamos são nossas colaboradoras, enriquecendo nossa sociologia com sua visão vivencial e crítica. Não raro são pessoas simples e até analfabetas. Tive essa experiência com as crianças que entrevistei no sertão do Mato Grosso e no sertão do Maranhão na coleta de dados para meu livro Fronteira. 29 Elas tinham melhor e mais crítica compreensão das contradições que viviam do que os adultos, seus pais e vizinhos, porque mais atentas e mais surpresas com o descabimento da violência que sofriam na luta pela terra. Elas viam o que os adultos já não conseguiam ver. Um antropólogo português, do fim do século XIX e início do século XX, Adolfo Coelho, que, como linguista foi influente no Brasil, tinha no centro de sua antropologia a premissa de que uma pessoa analfabeta não é uma pessoa ignorante, confusão comum nas ciências sociais.30 A tradição oral dos analfabetos nos trouxe do fundo dos tempos, obras da literatura que, de outro modo, se perderiam e muito do que se tornaria relevante nas chamadas etnociências.
Aos sociólogos e antropólogos, e mesmo aos cientistas políticos, num país como o Brasil, um problema essencial que se põe é o de conhecer antropologicamente os grupos e as categorias sociais que são a referência da sociologia que fazemos. Se, como sociólogos, chegamos ao real por meio deles e, sobretudo, por meio da interpretação que desse real fazem, não há como conhecer sociologicamente sem com eles dialogar e aprender para compreender. São mais do que fornecedores de dados, pois os dados que deles recebemos são dados interpretados e não dados “puros”.
Até a língua cotidiana que falam é diversa, no campo e na cidade, ainda carregada de vocabulário e de palavras nheengatu, que já foi a língua brasileira, mesmo do estamento senhorial da Colônia. Língua que foi proibida em 1727.31 Não é raro que nossos informantes falem em uma língua e escrevam em outra, falem dialeto caipira ou sertanejo e escrevam em português ou que leiam em português pensando em dialeto. Não é incomum, em recuadas regiões do país, que falem simultaneamente as duas línguas, que se desdizem desconstrutivamente, meio de uma consciência crítica popular. Mesmo na população urbana de migrantes e filhos de migrantes, essas duas linguagens podem estar presentes na vida cotidiana das pessoas. Quando as entrevistamos, com quem estamos falando, com uma ou com a outra? Ou com ambas? Qual delas nos fala? Qual delas compreendemos sociologicamente e sociologizamos?
O dialeto caipira e sertanejo tem uma lógica própria, que não se resume à da língua portuguesa. Não conhecê-lo reduz o alcance da conversação que, com grande frequência, é a principal ferramenta do artesanato intelectual do sociólogo e do antropólogo. Já vi situações em que o informante estava dizendo uma coisa e o pesquisador estava interpretando outra.
excelente estudo da linguista Ada Natal Rodrigues sobre o dialeto caipira na região de Piracicaba (SP) contém vários indícios desse desencontro. Em alguns casos, ela usou como referência da entrevista objetos que não fazem parte da cultura caipira, ou que nela são concebidos de outro modo, e que o entrevistado traduziu com o nome de outro objeto da sua cultura, sugerido pelo que lhe estava sendo mostrado.32 Alguns exemplos: a pesquisadora mostrou aos entrevistados a imagem do que ela entendia ser um rio, quatro disseram que era um córrego (córgo), um disse que era uma grota, dois disseram que era um ribeirão, um disse que era córrego e também rio e outro disse que era ribeirão, mas disse também que era tijuco (palavra nheengatu para brejo). A figura que ela entendia ser de uma fogueira foi identificada por cinco como labareda, por dois como caieira (palavra nheengatu), por um como labareda ou fogueira e por outro como labareda ou caieira. É evidente que as palavras de seu próprio vocabulário, as que a pesquisadora aplicava às imagens exibidas, correspondiam à categoria genérica de classificação da figura na sua cultura e na sua língua portuguesa, de professora de linguística, enquanto os entrevistados norteavam-se por outra concepção, privilegiando detalhes elou a estrutura das coisas. O que era para ela uma mesma coisa, podia ser para eles várias ou redutivamente outra coisa. O que para ela era conceito para eles era nome, o que indica maior diversificação de coisas e funções, os objetos dotados de uma polissemia que a cultura dominante despreza porque tende ao genérico do conceitual. Eles, portanto, identificando os objetos representados como produtos de trabalho concreto (e não abstrato) ou mesmo como coisas e objetos na concepção da herança tribal. Um abismo histórico de quase três séculos entre o vocabulário da pesquisadora e o vocabulário dos entrevistados.
Os recursos artesanais da língua reprimida e historicamente banida, sobrevivências do passado colonial, ainda vivas, deveriam ser instrumentos do artesanato intelectual e recurso de uma compreensão enraizada e densa do que de fato é a sociedade brasileira. A sociedade representada por aqueles que se expressam desse modo tende a ser bem diversa da sociedade concebida pelos sociólogos. Com isso, aspectos até decisivos da realidade social ficam completamente fora da análise sociológica e da compreensão que, no geral, temos desta sociedade.
Portanto, as significações são diferentes num caso e noutro. Sendo todas as relações sociais, sociais porque mediadas pelo conhecimento de senso comum, popular, que as explica e as torna compreensíveis, a variação linguística expressa sociedades diversas, ainda que vizinhas e próximas, e nas pessoas desse bilinguismo uma dupla identidade. O sociólogo monolíngue e unidentitário terá sérios problemas para produzir uma sociologia minimamente consistente se não tiver condições de se ressocializar para os valores, concepções e orientações sociais dos grupos que estuda e para a diversidade do país em que vive.
Quase arrisco a dizer que, aqui no Brasil, quem não tem ao menos uma cultura residual da dominância linguística do nheengatu dificilmente consegue fazer uma sociologia que dê conta, de fato, da realidade que investiga e explica. Em outros países, por outras razões culturais, esses problemas também existem. Penso na Itália, que conheço um pouco, além de falar italiano e de ler e escrever nessa língua. É um país de dialetos, em boa parte país de povo bilíngue. Quando um italiano de aldeia nos pergunta se vamos conversar com ele em italiano ou em dialeto, está nos perguntando que código usaremos, tendo em conta que a lógica da língua italiana lhe permite dizer com exatidão algumas coisas e não outras e que o código do dialeto local lhe permite dizer coisas que não conseguiria dizer apropriadamente em italiano. Essas línguas são traduzíveis entre si apenas em certa medida.
Na própria Itália, na Calábria, o antropólogo Luigi Lombardi Satriani estudou o silêncio como indício de mentalidade e como linguagem, o lugar do silêncio na cultura das classes subalternas, um modo de interagir e de dizer quando não se fala.33 Na literatura dos métodos técnicos da sociologia, falar e ouvir é quase uma regra obrigatória, o sociólogo até mesmo concebido como um técnico das artimanhas da fala para extrair das populações que estuda as informações da sociologia que fará. Os muitos silêncios que impregnam a linguagem popular, a fala muitas vezes reticente do homem comum, do homem simples, está longe dessa obsessão dos sociólogos pela fala, às vezes mais por necessidade de ouvir do que de compreender. Uma observação sociológica dependente da intensa comunicação verbal, em países assim, e é o caso do nosso, será sempre uma observação limitada e insuficiente, até mesmo tendenciosa. Nesse sentido, o artesanato intelectual não será criativo e investigativo se não contiver regras de observação mais apoiadas na linguagem do outro do que na fala propriamente dita.
A imaginação sociológica é um atributo que se enriquece com a dupla socialização e a socialização divergente e desconstrutiva que nessa duplicidade há. É o que cria a competência para a alteridade, algo que a sociologia descobriu e incorporou em especial na orientação metodológica de Emile Durkheim, quando estabelece as regras para observação dos fatos sociais como coisas.34 Em outra perspectiva e por implicação, o tema reaparece em Mannheim, na análise do “problema da inteligentsia socialmente desvinculada”.35 Em orientação mais microssociológica, pode-se ver aí uma sugestão de função metodológica da desvinculação, um modo de ver na perspectiva do outro decorrente da específica socialização desvinculadora do sociólogo de uma situação de classe social. São momentos de transição cumprida no tempo de uma única geração, na experiência de uma mesma pessoa. É nesse sentido que pode ser importante o recurso artesanal do diário do pesquisador e de sua autobiografia. É um modo de dialogar objetivamente consigo mesmo. É uma forma de utilizar a própria memória, as próprias lembranças e esquecimentos como fontes de dados sociológicos, para que um autor se situe socialmente e compreenda sociologicamente sua circunstância. E desse modo se capacite para observar o outro e o social. Isso agudiza a percepção e a compreensão do pesquisador, sobretudo pondo-o de sobreaviso para compreensão de detalhes e ocultações dos temas que estuda. Na sociedade, nem tudo é audível nem visível, o que justamente faz da sociologia uma ciência das ocultações que dão sentido ao aparente. É do que tratamos quando dirigimos nossa pesquisa para as questões da alienação e da anomia, conceitos relativos a duas expressões de silenciamento e de ocultamento sociais.
Nesse sentido, o artesanato intelectual, na sociologia, é bem mais do que um elenco de técnicas de investigação baratas. E, sobretudo, uma visão da sociologia através de uma visão de mundo. É expressão de uma concepção do outro e muito mais do que instrumento de uma conversa com o outro. É uma conversa com a humanidade do outro que resulta na definição da humanidade do próprio sociólogo. Ninguém faz sociologia impunemente. Ninguém sai ileso do trabalho de sociólogo. Quem resiste ao assédio transformador do real sucumbe, como sucumbe sua sociologia na indigência dos subsignificados, das subinterpretações, das fantasias anticientíficas que podem ser bonitinhas, mas são ordinárias.
O artesanato intelectual é mais do que a mera técnica de obtenção de dados. Não é uma técnica, é uma troca. Não há como utilizar o artesanato sem dar algo em troca do que se recebe. No artesanato, o observador é observado, o decifrador é decifrado. Sem o que não há interação. Sem interação, não há como situar e compreender; situar-se e compreender-se no outro.
Um outro aspecto relevante do artesanato intelectual na sociologia é o da prontidão. Ele tem conexão direta com a competência para a observação sociológica em todas as circunstâncias que se apresentem. A sociologia da grande teoria, de que fala Mills, depende de planejamento e de tempo antes que o pesquisador possa ir a campo. Não comporta a possibilidade e mesmo a necessidade da prontidão para o trato da ocorrência súbita e inesperada, que pode se esgotar na sua própria urgência, antes que o pesquisador possa investigá-la.
A sociologia brasileira já foi mais atenta à importância da prontidão do que o é hoje. Talvez porque quando da disseminação do pensamento sociológico entre nós houvesse uma curiosidade reprimida em relação ao que éramos. Isso pode ser notado facilmente em Gilberto Freyre, em sua voracidade para descrever sociologicamente tudo que se apresentasse diante dele. Quase se pode dizer que nada escapou ao seu interesse, da culinária ao erotismo. Ele tematizou aspectos da realidade social que a sociologia mais formalista das sociedades referenciais e dominantes tardou em reconhecer como sociologicamente significativos. Foi o que enriqueceu sua obra, com detalhes quase barrocos, que uma sociologia sem essa prontidão não examinaria, levada pela secura própria da mentalidade quantitativa, mesmo quando não se trata de explanações sobre quantidades.
É, provavelmente, por aí que se pode situar, em favor de Freyre, a questão suscitada por Maria Lúcia G. Pallares-Burke sobre a apropriação que, em Casa Grande & Senzala, ele faz da tese de seu colega na Colúmbia, Rüdiger Bilden.36 Embora nada justifique o gesto de Freyre, que em sua biografia fica como um débito de conduta. Um dos aspectos a se considerar nessa questão é o da prontidão de Freyre para ver o que o sociólogo estrangeiro e desenraizado levaria tempo enorme para perceber e compreender, se é que o conseguiria. Embora seja Bilden o pai da ideia, seus poucos escritos remanescentes parecem distantes da visão que do tema podia ter quem, como Freyre, foi socializado na cultura da casa-grande. Freyre via na interpretação de Bilden o que o próprio Bilden não podia ver: as peculiaridades e significações de uma realidade que não é suficientemente compreendida “de fora”. A casa-grande e a complexa relação que a atava à senzala e à escravidão era uma instituição dominada por valores da intimidade, um mundo fechado, marcado por sutilezas e ocultações sociais que ficaram na personalidade básica de brancos e negros. Invisíveis, portanto, à observação que não fosse demorada e ressocializadora. No Brasil, Bilden ficou poucos meses, com a interpretação já feita, construída em longos meses de pesquisa em bibliotecas americanas, especialmente a de Oliveira Lima. Freyre podia ver facilmente o que estava subjacente à tese de Bilden, os nexos vivenciais das relações sociais no contexto do universo criado pela casa-grande; ele conhecia os cheiros, os sabores, os pequenos gestos cotidianos, o que na prática era inacessível aos estranhos e estrangeiros.
O que tem sido apontado como o principal defeito da obra de Freyre, o de ser mais uma sociologia da casa-grande do que da senzala,37 pode ter sido, também, sua maior virtude: o domínio do código das invisibilidades contidas no que era um mundo, mais do que um recinto. Casa-grande e senzala se determinavam reciprocamente. O muito de cumplicidade que escamoteava as tensões e a violência constitutiva dessa relação se expressa justamente no imaginário que dessa relação a obra de Freyre é a melhor expressão.
Para mim, um dos bons exemplos da importância do artesanato intelectual para a prontidão foi a situação de emergência de um movimento milenarista eclodido em Minas Gerais, no município de Malacacheta, em abril de 1955. Os moradores de um bairro rural chamado Catulé, negros e muito pobres, que haviam se convertido ao Adventismo da Promessa, entraram num estado de exaltação mística na Semana Santa daquele ano. Uma crise de liderança e a incerteza de sua condição de meeiros em terra alheia os levaram a supor que se aproximava o momento do fim dos tempos, em que seriam arrebatados por Elias, numa carruagem vinda do céu. Temendo o demônio que poderia ameaçá-los nessa hora liminar, derradeira e decisiva, mataram quatro de suas crianças que choravam e alguns animais, o que motivou alguém a escapar e a chamar a polícia. Uma pequena equipe multidisciplinar, reunindo o sociólogo Carlo Castaldi (do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos), a psicóloga Carolina Martuscelli e a antropóloga Eunice T. Ribeiro, da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, com os meios de que dispunha e um auxílio do INEP, foi para o local e realizou entrevistas e testes projetivos durante um mês. Os estudos resultantes dessa investigação de emergência começaram a ser publicados no mesmo ano na revista Anhembi, de Paulo Duarte. Depois foram republicados num volume da Editora Anhembi.38 Não fosse a prontidão e os meios artesanais de que dispunham os pesquisadores, o acontecimento ficaria disperso no vago noticiário dos jornais e não teria sido objeto de estudo e interpretação “no calor da hora”, como se diz.
As situações socialmente inesperadas, as ocorrências repentinas e surpreendentes, são carregadas de informações sociológicas que não se manifestam nas situações recorrentes, de plácida repetição de modos de ser e de pensar. De certo modo, Harold Garfinkel, nos seus experimentos etnometodológicos,39 abriu um campo de obtenção de conhecimento sociológico, ao criar repentina e artificialmente situações de anomia que desafiam as pessoas comuns a inovar socialmente para refazerem a ordem rompida e em crise. A prontidão espontânea, no entanto, pode permitir ao sociólogo fazer observações muito mais ricas do que as desses experimentos, pois as situações anômicas envolvem significações outras que não as que podem ser observadas em condições propriamente experimentais. O aparato sociológico favorece não só a compreensão da restauração da ordem, mas também a da inovação, a da reinvenção da sociedade, o que é próprio de movimentos messiânicos e milenaristas, densamente atravessados pelo imaginário da esperança.
Gino Germani, no esclarecedor Prólogo à edição mexicana de A Imaginação Sociológica, de 1961, situa o livro e, portanto, o ensaio sobre o artesanato intelectual, na transição “de uma fase artesanal a uma fase industrial da investigação” sociológica.40 O que parece uma postura conciliatória para favorecer Mills em face às hostilidades que, por fatores vários, o alcançavam e minimizavam naquele momento. Favorecer, também, no que parecia radical insurgência de Mills em relação aos autores da “grande teoria”, em particular Talcott Parsons, e da pesquisa quantitativa, como Paul Lazarsfeld. Mas a via escolhida por Germani para apresentar à América Latina a edição mexicana do livro trazia implícita a suposição de que a postura de Mills correspondia a um momento meramente transitório da história da sociologia. Parsons era, afinal, a grande figura de referência da sociologia americana e o mais influente autor do que da sociologia americana chegava a outros países, como o nosso, desde Teoria e Estrutura Social, de Robert K. Merton. Aliás. Florestan foi, nesse livro, citado por Merton e era amigo de Parsons, a quem convidou para uma conferência na Faculdade de Filosofia da USP, em agosto de 1965, e que o receberia em Harvard com grande deferência, segundo depoimento de Roque Laraia, que lá estava.
Aparentemente, a obra de Mills sobre o artesanato intelectual não parece ter causado particular impressão em Florestan Fernandes, já que ele mesmo se familiarizara com o artesanato intelectual de Roger Bastide e tinha sua própria larga experiência de artesania. Em seu grupo, o pesquisador que mais se identificou com essa obra metodológica de Mills foi mesmo Octavio Ianni. Eu diria que foi quem levou a sério as implicações dessa reflexão de Mills porque a situou na perspectiva dialética, indo além do didatismo que a caracteriza. Muito mais porque a situou do que como uma sociologia num certo sentido alternativa à sociologia convencional e aparatosa, como eventualmente podia ser considerada a sociologia dependente de grandes recursos financeiros e de patrocínios. Orientação que, dizia-se, já numa perspectiva política e ideológica, não raro estabelecia limitações e condições ao trabalho do pesquisador e da ciência em nome de interesses que não eram os seus e sim de grupos econômicos ou grupos de poder. E também porque o artesanato intelectual envolve o pesquisador muito mais profundamente na sua temática e lhe permite lidar com a inteireza dos processos sociais enquanto processos históricos e cotidianos ao mesmo tempo.
O modo como Ianni difundiu entre seus alunos a concepção que tinha Mills do trabalho intelectual deixava em aberto um amplo campo de reflexão no âmbito da sociologia do conhecimento, com implicações teóricas e metodológicas, muito além da mera técnica de pesquisa. Como também assinala Celso Castro na apresentação de sua coletânea, o artesanato intelectual de Mills tem sentido numa perspectiva muito ampla, porque envolve a trajetória de vida, o modo de ser e a visão de mundo do sociólogo. O artesanato percorria a biografia e o cotidiano de Mills, desde o morar até o comer. Portanto, para ele, o artesanato intelectual tem uma dimensão totalizadora e faz sentido enquanto meio de uma sociologia que trabalha com o pressuposto da totalidade da situação social e do processo social.
Há uma dimensão insurgente na proposta de Mills, o que se evidencia ria, de modo alegórico, num filme de 1970, R. P. M, em que Anthony Quinn faz o papel de um professor de sociologia numa universidade americana, na época da revolta estudantil de 1968, em que ele atua como negociador. Num certo momento, ele aparece com um exemplar de Social System, de Parsons. Essa alusão ao livro mais emblemático de Parsons, que Mills havia desancado em A Imaginação Sociológica, é indicativa de quanto, na crise, a obra parsoniana se revelava uma sociologia da ordem, vencida pelas circunstâncias da rebelião juvenil. Tornara-se, na alusão do filme, mera nota de rodapé. As vezes a sociologia, como nesse caso, pode tornar-se instrumento de uma injustiça, ao menos de um linchamento simbólico, instrumentalizada até mesmo sem a participação e a vontade de um autor.
O cenário mais amplo da repercussão do livro de Mills e de sua proposta metodológica permite compreendê-lo como um texto aglutinador de orientações interpretativas que não estavam necessariamente nem em suas motivações nem em seus propósitos. Estava na lógica do método. O ensaio sobre o artesanato é relativamente modesto, exageradamente didático, o que sugere que o próprio autor não tinha a devida clareza sobre a incidência social e política possível de sua concepção daquela técnica sociológica. Ou seja, não tinha o propósito e a pretensão que hoje nela se vê, num saudável reencontro de uma sociologia de novas problematizações com uma sociologia que tateava nos caminhos ainda incertos de uma ciência relativamente liberta de convenções, na época, cada vez mais rígidas. O artesanato intelectual de Mills tinha o alcance libertador de um reencontro do pensamento sociológico com suas raízes nos clássicos, uma revitalização da imaginação sociológica. Isso não lhe tira o mérito nem fecha o caminho para a compreensão dos desdobramentos de sua proposta mesmo em âmbitos que não considerou. De certo modo, o texto de Mills deve ser compreendido muito mais como texto que dá sentido não só ao que ele era e fazia, mas também ao que muitos outros pesquisadores faziam nos Estados Unidos e em outros países.
Penso que a densa obra sociológica de Robert A. Nisbet, um dos maiores sociólogos americanos, dá mais sentido à proposição de MiIls do que a que o próprio Mills poderia sugerir. Seu primoroso ensaio sobre A Sociologia como forma de arte, de 1962, é a grande chave para se compreender não só textos como o de Mills,41 mas também os de outros autores, que se situam numa linha de pensamento que foi marginalizada pelo primado do quantitativo e das fragmentações geradas pela divisão do trabalho, decorrentes, nas ciências sociais, de pressupostos disseminados pela mentalidade própria da grande indústria.
A sociologia de Nisbet localiza as ideias-elementos do pensamento sociológico não na tradição da ciência, mas na tradição da arte, como uma das expressões no Romantismo,42 com todas as peculiaridades da criação do conhecimento própria da arte. Por esse meio, a sociologia é uma das expressões do Romantismo e do conflito de ideias que ganhou sentido como reação aos valores e concepções da Revolução Industrial e da Revolução francesa. Nisbet situa a gênese da sociologia no universo da reação romântica a essas revoluções históricas e socialmente fundantes, as da razão e da técnica. Portanto, a sociologia como modo de pensar diverso e oposto ao modo de pensar engendrado pela cultura da indústria e da produção fabril. As ideias-elementos da sociologia são próprias do pensamento conservador, pré-moderno, referidas a concepções artísticas do homem e da sociedade, em oposição às concepções lineares da razão. Essas ideias se expressam em conceitos polarizados, antinômicos: comunidade-sociedade, autoridade-poder, status-classe, sagrado-secular, alienação-progresso.43 A concepção de totalidade contra a concepção de fragmento, a de pessoa contra a de indivíduo. Concepções da mesma extração da de imaginação sociológica e de artesanato intelectual de Mills.
As chamadas ciências duras trabalham com uma concepção objetiva da relação sujeito-objeto. O tempo do objeto é aí um tempo lentíssimo em comparação com o tempo histórico, e mais lento ainda em relação ao tempo social e à temporalidade do fragmentário. As ideias-elementos da sociologia, pré-modernas, reação conservadora à coisificação da pessoa e das relações sociais, repõem a dimensão de totalidade do real, o objeto como um todo cambiante e dinâmico, que é não só coisa, mas também mistério. Tanto o mistério do possível quanto o do oculto. A sociologia concebida aí como busca permanente do que se esconde para compreender o que se vê e se revela. Nessa busca é que a sociologia se propõe não só como conhecimento apoiado na observação objetiva, mas também como criação dos meios da observação em função da dinâmica do objeto. É esse o âmbito privilegiado da imaginação sociológica.
A imaginação sociológica envolve competência científica para dialogar interpretativamente com o imaginário social. É nesse sentido que frequentemente a literatura é uma referência que pode fazer a ponte entre a ciência e o imaginário de determinada população a ser estudada. A diferença da sociologia em relação à literatura, quanto a certos temas e estilos, é que compreende objetivamente o que na obra literária é compreendido imaginariamente. A literatura faz mais concessões a esse imaginário. Uma sociologia refratária a esse diálogo, sociologia de desbastamento e de enquadramento, de imaginação sociológica pobre, mutila o real, porque o despoja da poesia, do drama, da tragédia e, sobretudo, do possível e da esperança que no possível há.
Não é incomum que a poesia já esteja na palavra do entrevistado. Em muitas regiões, em especial na roça, ainda há um estilo barroco de falar, de dizer as coisas, na boca de pessoas iletradas, pessoas que não foram, pela escola e pela escolarização, enquadradas numa concepção formal e instrumental da linguagem. Nas populações rústicas, a metáfora é comum, é meio de situar o que está sendo dito numa trama maior de significações. Há nela um imaginário norteador. Zé Alagoano, um dos entrevistados de Geraldo Sarno no documentário Viramundo, de 1965, diz:
O analfabético, não, é assim que nem saúva quando corta um gal• ranchinho aqui, né, e põe na testa e sai levando de frente assim, né. Mesmo assim é o analfabético; igualmente uma formiga. Leva tudo na testa que nem saúva. Se ele entra numa cidade assim, ele não vai olhar ni nome de rua nem nada, porque num sabe ler. Vai perguntando a um e outro, feito doido. Eu ando igualmente a saúva. Entro num canto assim, meto o peito na frente, se sai bem, sai, se me sai mal é mesma coisa. Se estiver errado voltarei pra trás, se não estiver seguirei pra frente. Eu comparo eu mesma coisa que uma saúva, essas formigas de roça...44
Há, sem dúvida, conformismo nessa concepção do migrante impotente em face de um mundo que muda e, ao mesmo tempo, o abandona, que dele quer unicamente sua força de trabalho, mas não a poesia de sua metáfora. A arte, o cinema, o documentário de Sarno, é que lhe dará a palavra e nela reconhecerá o direito de dizer a poesia que atravessa sua visão de mundo, seu sentimento do mundo. Ir para a frente é a alternativa da realidade que o capturou, mas recuar e tentar outra via é a alternativa de quem não sucumbiu.
A sociologia brasileira que nos anos cinquenta estudava as resistências à mudança, um tema forte na antiga Sociedade Brasileira de Sociologia, queria entender a opção popular pela permanência, contra a mudança. Não levava em conta que a mudança era para muitos mudar para perder-se, os destinatários da mudança condenados ao imobilismo de uma saúva cumpridora do destino demarcado pelo mercado de trabalho. A sociologia desconhecia a legitimidade da opção conservadora e até mesmo a tradição conservadora como fonte de crítica social e de consciência do muito de socialmente destrutivo que há no moderno. Esse era o ponto de partida que o real lhe abria e que os sociólogos não viam.
A modernização da agricultura foi, provavelmente, a mais violenta e destrutiva intervenção econômica e política na vida das populações tradicionais que, no entanto, haviam desenvolvido sua própria concepção de mudança e de inserção no mundo moderno. A sociologia rural foi cúmplice de mudanças que modernizaram economicamente, mas lançaram na miséria, no desamparo e na anomia milhões de brasileiros.45 Cortiços e favelas foram a contrapartida dramática do desenraizamento de multidões de trabalhadores rurais e do ajustamento socialmente excludente num mundo urbano patologicamente degradado. Ao mesmo tempo, os sociólogos propunham a educação sociológica, nas escolas normais, como enquadramento dos retardatários da história e não como esclarecimento em relação ao desbloqueio do possível. No fundo, o privilegiamento da mudança social, nessa perspectiva, propunha a mudança contra o possível.
Ao contrário do que sugere Mills e no geral os que fazem a opção pelo trabalho artesanal na sociologia, o artesanato intelectual não esgota suas possibilidades no âmbito da investigação. Não é mera técnica de pesquisa. Elas se estendem ao âmbito da exposição, ao estilo de expor e de explicar. A tentação da exposição relatorial empobrece a apresentação dos resultados da pesquisa e, no meu modo de ver, até mesmo reduz o alcance da explanação, da explicação sociológica. A intensidade dramática da anomia no meio negro, em A Integração do Negro na Sociedade de Classes, de Florestan Fernandes, não está propriamente nos dados coletados, mas na artesania da articulação e exposição dos dados. Assombrações do Recife Velho, de Gilberto Freyre, é narrativa que reteve a dimensão teatral dos fatos narrados na pesquisa, o que no fim das contas permitirá que o livro seja também apresentado como peça de teatro.46 0 mesmo posso dizer de A Aparição do Demónio no Catulé, de Carlo Castaldi, Eunice T. Ribeiro e Carolina Martuscelli, da USP, estudo transformado em peça de teatro pelo dramaturgo Jorge Andrade, montada por Antunes Filho, em 1964, no Teatro Brasileiro de Comédia, com o título de Vereda da Salvação. No mesmo ano e com o mesmo título, foi convertido em filme por Anselmo Duarte. Já a dimensão literária de Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido, inspirou em parte A Marvada Carne, filme de 1985, de André Klotzel. Clóvis Bueno e Paulo Betti, em 2005, fizeram Cafundó, filme inspirado na vida do curandeiro negro João de Camargo, de Sorocaba, e baseado num dos capítulos de Mudanças Sociais no Brasil, de Florestan Fernandes, que apresenta os resultados de uma pesquisa de quando ainda era aluno de Roger Bastide. Textos, portanto, que, na exposição dos resultados da pesquisa sociológica, retiveram e incorporaram sociologicamente a dimensão propriamente teatral ou poética das narrativas de seus entrevistados.
Num caso, o próprio sociólogo, Douglas Teixeira Monteiro, viu e compreendeu, separadamente, o sociológico e o teatral e deles tratou em textos separados. Ele fazia pesquisa no Norte do Paraná, sobre pequenos proprietários em crise e em processo de desenraizamento. Tanto observou e registrou as mudanças sociais envolvidas na situação, quanto o fenômeno religioso que as acompanhava. Os dados da primeira perspectiva foram trabalhados num texto publicado na Revista Brasileira de Estudos Políticos e os da segunda deram origem a uma peça teatral premiada pelo Serviço Nacional de Teatro. Aqui, claramente, o pesquisador enquanto tal não conseguiu manter no texto sociológico a dinâmica do imaginário do grupo estudado. Sua sensibilidade literária induziu-o, no entanto, a separar a literatura da ciência, expressão de uma sociologia ainda de marcas positivistas claras.47 Mas conseguiu perceber, ele mesmo, no trabalho de campo o que, em outros casos, como os indicados antes, só os teatrólogos conseguiram perceber – a poesia e o drama residuais dos textos propriamente sociológicos e antropológicos.
Quando o sociólogo faz pesquisa redutiva e de enquadramento em conceitos, ignora e descarta o imaginário da vida social, limita a observação ao factual e elimina da interpretação sociológica o que é propriamente belo e artístico, a estética do imaginário, isto é a consciência social. Se viver é perigoso, imaginar é necessário. Foi Carlos Rodrigues Brandão, entre nós o antropólogo e poeta mais sensível a essa dimensão da pesquisa em ciências sociais, quem chamou a atenção para a estrutura poética do primeiro capítulo de O Capital, de Karl Marx. Convém lembrar que Marx quis ser poeta e que a suposta má qualidade literária de sua poesia foi criticada por seu pai, que o desaconselhou a seguir adiante. Brandão, como esclarece, simplesmente reordenou as frases do texto para nele descobrir um poema sobre o trabalho, que ali havia. Esse poema, “A trama da rede”, é um dos belos capítulos de seu livro Diário de Campo – A Antropologia como Alegoria.48 Em vários momentos de sua obra, Marx ressalta a poesia do real para dar-lhe a significação que tem. Vemos isso nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, em O Capital, nos Grundrisse. No fim das contas, a contradição fundante da sociedade contemporânea é a que se estabelece entre a dureza da produção no trabalho explorado, o homem possuído pela coisa que produz, e a poesia do próprio trabalho enquanto instrumento de criação e do possível. A relação capitalista é uma relação que opõe o sonho à privação; não é apenas uma relação de exploração econômica. É nessa oposição que está o fundamento da consciência crítica, que, sem poesia, seria impossível.
Há, nesse sentido, mais sociologia em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, do que no Censo de Minas Gerais, de 1950. Há muito mais gente envolvida na coleta de dados do Censo do que na coleta de dados de Rosa, observador solitário, disciplinado e sensível. O Censo sistematiza quantitativamente tendências numéricas do movimento populacional. Ele nos diz qual a distribuição etária da população, sua condição econômica, a proporção dos gêneros, sua localização espacial. Quantifica o que o senso comum já sabe. Reduz o todo ao tempo do atual, aplaina discrepâncias, harmoniza curvas estatísticas. Põe ordem no supérfluo. Já Rosa decifra os mistérios do viver dividido, expõe os avessos da sociedade, desconstrói as harmonias censitárias, arranca o demo das profundezas do acontecer, revela-lhe a intimidade, as ocultações do vivido, seu lugar no desenrolar da vida e na trama da existência, expõe as formas do falso, o poder do imaginário e o imaginário do poder. E, no fim, descobre que o Danado, desafiado por um pactário, não existe nem vive embaixo de árvore maligna onde supostamente se espoja no limiar de ontem e hoje. O Cão habita dentro de nós, de onde nos ameaça e nos governa na peleja entre Deus e o diabo. Se o agente censitário foi a campo para enquadrar a população nas categorias de uma análise previamente configurada, Rosa foi a campo com seu artesanal caderninho de anotações, acompanhando um magote de tropeiros, para ser enquadrado nas categorias do pensar dos gerais, o senhor sabe. Foi encontrar o diabo do entendimento no meio do redemunho, para de Lúcifer receber a luz da compreensão da sociedade dos contrários, na desocultação do que os poderes enterram nas profundezas do desconhecimento. Foi a campo ouvir, aprender e anotar, ainda que viver (e pesquisar) seja muito perigoso, o senhor sabe.
Notas