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SOCIÓLOGOS DO FUTURO: NEOARTESANATO INTELECTUAL E ENGAJAMENTO POLÍTICO
SOCIOLOGISTS OF THE FUTURE: INTELLECTUAL NEO-CRAFTSMANSHIP AND POLITICAL ENGAGEMENT
SOCIOLOGUES DU FUTUR : NÉOARTISANAT INTELLECTUEL ET ENGAGEMENT POLITIQUE
SOCIÓLOGOS DO FUTURO: NEOARTESANATO INTELECTUAL E ENGAJAMENTO POLÍTICO
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 1, núm. 2, pp. 113-129, 2013
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepção: 18 Novembro 2013
Aprovação: 15 Janeiro 2014
DOI: 10.20336/rbs.44
RESUMO: Este texto parte de uma questão: o que é ser aprendiz de Sociologia em um tempo de incertezas? Nos últimos anos, os jovens estão vivendo um tempo de instabilidade, no qual houve a precarização do trabalho e a vivência do labirinto da vida. Passam a experimentar a fragmentação, a vulnerabilidade, alguns o enclausuramento e a morte. Torna-se, portanto, importante relembrar a imaginação sociológica, a arte da descoberta e a necessidade de construir uma explicação para as novas formas do social posicionada no contexto da mundialização da sociedade. O processo da investigação nas Ciências Sociais pode ser entendido como um ato de criação de conhecimento sobre a realidade social, orientado por uma fecunda relação entre a teoria, a observação e a interpretação. Desde a sociologia clássica, alguns axiomas do pensamento sociológico podem ser identificados, cujas múltiplas combinações conceituais permitem delinear algumas características do momento teórico da Sociologia Mundial. Os elementos do pensamento sociológico – investigação científica, engajamento político e imaginação sociológica – foram se forjando em uma tensa e estimulante inserção na perspectiva do espaço tempo social, unindo o rigor investigativo e o pensamento crítico aos processos de transformação social. Aparece urgências em uma época de tecer utopias no espaço – tempo não linear, no difícil encontro de experiências inovadoras, a fim de simular, ou antecipar, a reconstrução dos laços sociais, dos afetos e das paixões. Tempos em que renasce a esperança pelo labor sociológico dos jovens.
Palavras-Chave: Juventude, Produção Sociológica, Incerteza, Metodologia de Pesquisa.
ABSTRACT: This text sets out from a question: what does it mean to be an apprentice of Sociology in a time of uncertainties? Young people today are living in a period of considerable instability With work becoming more precarious and life ever more of a labyrinth. They experience fragmentation and vulnerability, and some enclosure and death. In this context it is important to recall the sociological imagination, the art of discovery and the need to construct an explanation for the new forms of the social emerging from the globalization of society. The investigative process in the Social Sciences can be understood as an act of creating knowledge about social reality, guided by a fertile relationship between theory, observation and interpretation. A number of axioms of sociological thought can be identified from classic sociology onwards that, combined conceptually in multiple ways, allow us to delineate various contemporary theoretical dimensions of World Sociology. The elements of sociological thought – scientific investigation, political engagement and sociological imagination – were forged within a tense and stimulating immersion in social space-time, combining investigative rigour and critical thought With processes of social transformation. Urgent issues appear in a period of utopias interwoven in non-linear space-time, in the difficult encounter of innovative experiences, With the aim of simulating, or anticipating, the reconstruction of social ties, affects and passions. Times in which hope is reawakened through the sociological work of the young generation.
Keywords: Youth, Sociological production, Uncertainty, Research methodology.
RÉSUMÉ: Ce texte par d’une question : qu’est-ce être apprenti en sociologie en temps d’incertitude ? Au cours de ces dernières années, les jeunes vivent un temps d’instabilité, connaissent la précarisation du travail et se débattent dans le labyrinthe de la vie. Ils font l’expérience de la fragmentation, de la vulnérabilité, et, pour certains, de l’enfermement et de la mort. Il devient donc important d’en revenir à l’imagination sociologique, à l’art de la découverte et au besoin de construire une explication à ces nouvelles formes du social positionnée dans le contexte de la mondialisation de la société. Le processus de l’enquête dans les Sciences sociales peut être compris comme un acte de création et de connaissance sur la réalité sociale dès qu’il est guidé par une relation féconde entre théorie, observation et interprétation. Dans cette sociologie classique, on peut identifier certains axiomes de la pensée sociologique dont les multiples combinaisons conceptuelles permettent de saisir quelques unes des caractéristiques du moment théorique de la Sociologie mondiale. Les éléments de la pensée sociologique – enquête scientifique, engagement politique et imagination sociologique – se sont forgés en une insertion intense et stimulante dans la perspective de l’espace – temps social, unissant la rigueur investigatrice et la pensée critique à des processus de transformation sociale. Des urgences surgissent à l’heure de tisser des utopies dans l’espace temps non linéaire dans la difficile rencontre d’expériences innovatrices afin de simuler ou anticiper la reconstruction de liens sociaux, d’affects et de passions. Temps où renaisse l’espoir par le travail sociologique des jeunes.
Mots-clés: Jeunesse, Production sociologique, Incertitude, Méthodologie de recherche.
O que é ser aprendiz de Sociologia em um tempo de incertezas? Nos últimos anos, os jovens estão vivendo um tempo de instabilidade, no qual houve a precarização do trabalho e a vivência do labirinto da vida. Passam a experimentar a fragmentação, a vulnerabilidade, alguns o enclausuramento e a morte.
O tempo social move-se por uma aceleração virtual, permeado por uma tensão entre o tempo cíclico e o tempo imaginário do futuro, pois não vivemos mais o tempo linear. A cultura moderna foi montada pela ideia de tempo evolutivo, da noção de progresso, do evolucionismo cultural que passou à sociologia com Spencer. Isso não existe mais: vivemos em tempos não-lineares (Pais, 2011).
Mas não apenas o mundo está em crise, a ciência também. Se acompanharmos a filosofia das ciências desde Bachelard, Khun, Feyerabend, Morin, Boaventura, Gonzalez Casanova e outros, todos se definem por uma epistemologia pós-cartesiana. Ou seja, a ideia de ruptura epistemológica e a noção subsequente de Boaventura pela qual deveríamos exercer uma dupla ruptura epistemológica, não apenas em relação ao senso comum, mas, em seguida, ruptura com o conhecimento científico para criar um novo senso comum (Sousa Santos, 2000, 2003, 2009). Ou seja, o processo de construção do conhecimento passa pela ruptura epistemológica, pela revolução científica e por uma reflexividade sobre a própria ciência.
Relembrar a imaginação sociológica é assinalar uma nova sensibilidade, a arte da descoberta e a necessidade de construir uma explicação para as novas formas do social posicionada no contexto da mundialização da sociedade (Barreira, 2003). Emerge, então, uma nova postura intelectual na qual a busca da explicação do social passa pelo prazer do texto e pelo uso das novas metodologias informacionais, forjando um neoartesanato intelectual na contemporaneidade. Alguns passos são importantes para desenvolver tal tarefa.
2. A construção do objeto
O processo da investigação nas Ciências Sociais pode ser entendido como um ato de criação de conhecimento sobre a realidade social, orientado por uma fecunda relação entre a teoria, a observação e a interpretação. O passo fundamental na produção crítica do conhecimento sociológico consiste na distinção epistemológica entre o objeto real e o objeto científico, ou a passagem de uma questão social a uma questão sociológica.
A questão social tem sido, desde o nascedouro das Ciências Sociais, o acicate do pensamento sociológico, desde as primeiras pesquisas sobre a pobreza nas grandes cidades europeias, por Engels e Le Play, ou sobre as transformações do campesinato no processo de acumulação primitiva do capital, em Marx. Todavia, a questão social é apenas um momento instigador, pois é preciso que haja a metamorfose dessa questão social em uma questão sociológica, a fim de que possamos ultrapassar o imediato da percepção social e das visões ideológicas que toldam a descrição e a interpretação sociológica da sociedade.
Pensar o trabalho sociológico, deste modo, implica assumir o questionamento da prática do sociólogo, e, no que se refere à investigação, implica a interrogação permanente sobre as condições e limites do emprego das noções e conceitos, da validade de seu uso e da utilização dos métodos e técnicas de investigação em função de cada objeto de pesquisa.
Nossa orientação epistemológica tenta apreender o conhecimento em seu movimento, pela prática da descoberta. Supõe um “novo espírito científico”, que se define pela criação e produção de noções e conceitos capazes de construir verdades relativas, por um procedimento de incessante aproximação da verdade dos processos, dos detalhes e dos sonhos que constroem o social.
O conjunto de operações intelectuais assim desenvolvidas permitirá o reconhecimento dos obstáculos epistemológicos presentes nas teorias disponíveis sobre um determinado objeto científico, sejam obstáculos provenientes do senso comum, sejam advindos de um antigo conhecimento vulgarizado.
Em segundo lugar, tenta-se valorizar o erro como fundamento das verdades relativas, pois parte-se do primado do conhecimento como um processo de retificação permanente, o qual caminha por uma ruptura contínua, sempre colocando em causa os princípios de construção do sistema teórico. Há, portanto, um privilegiamento da lógica da descoberta em relação à lógica da prova, pois se trata de uma atitude científica que se orienta pelo desconhecido e que ousa afirmar o “por quê não” das alternativas explicativas.
O objeto científico é o resultado de um processo de trabalho, protagonizado por um sujeito coletivo de conhecimento, o qual envolve elementos teóricos e práticos, processo pelo qual o objeto científico, confrontado com os objetos reais, deverá ser conquistado, construído e constatado (Bourdieu et alii, 1972).
Conquistado, em primeiro lugar, face ao senso comum e contra as pré-noções formadas pela percepção social. Tal procedimento também se ergue contra a sociologia convencional, esse pensamento vulgar que foi o pensamento científico de ontem; ou, muitas vezes, o dogmatismo fácil, até mesmo produzido por uma militância generosa, que tende a toldar nossa capacidade de apreensão dos dinamismos da sociedade e a se cristalizar em representações ideológicas. Trata-se, aqui, de partir e, depois, de ultrapassar o “problema social” ou a “questão social”, sem nunca esquecê-la, a fim de, mais tarde, poder reencontrá-la, explicada, enquanto questão sociológica.
Em segundo lugar, o objeto científico precisa ser construído. Isso na definição provisória do objeto, constituindo um sistema de relações pela interação recíproca entre estrutura e ação, pela qual dimensões do objeto real são organizadas pelo conhecimento teórico, de modo a atingirmos o objeto científico, o problema sociológico. Aqui está o núcleo do trabalho sociológico, o senso da problematização, a capacidade intelectual de levantar questões tanto para o social - questões produzidas pela história e pelas lutas sociais de nosso tempo - quanto para o sociólogo que sobre elas se debruça. A dupla errância do sociólogo consiste em um caminho de problematizações, de formular hipóteses, ou seja, de enumerar respostas prováveis e provisórias, mas possíveis e necessárias, às questões da investigação e da interpretação sociológica.
O terceiro momento é o da constatação: trata-se de efetivar a verificação das hipóteses elaboradas acerca do objeto científico, mediante o recurso da experiência, definida como uma relação que se estabelece entre o teórico e o objeto real, operacionalizada pelos métodos e técnicas de investigação, os quais não são senão “teorias em ato” (Bachelard, 1990). Esta operação supõe o exercício da vigilância epistemológica em seus três graus: a atenção sobre os fatos e acontecimentos relevantes para o objeto científico; o cuidado com a aplicação rigorosa dos métodos de investigação e de interpretação; enfim, a vigilância reaparece quando ela julga os métodos em si mesmos, como um momento de seu próprio procedimento de apreensão do real.
O conjunto de operações intelectuais assim desenvolvidas permite o reconhecimento dos obstáculos epistemológicos presentes nas teorias disponíveis sobre um determinado objeto científico. Pensar o trabalho sociológico desse modo implica assumir o questionamento da prática do sociólogo. Essa orientação epistemológica tentar apreender o conhecimento em seu movimento, mediante a prática da descoberta. Supõe um “novo espírito científico”, que se define pela criação e produção de noções e conceitos capazes de construir verdades relativas, por um procedimento incessante (Bachelard, 1984).
As transformações dos padrões de cientificidade nas ciências humanas, dinamizadas pelas transformações sociais recentes, resultaram em um elenco de questões teóricas, marcadas por ambiguidades, tensões e dinamismos, as quais compõem um horizonte intelectual criativo e estimulante para o trabalho dos cientistas sociais.
3. As heranças do pensamento sociológico
Conhecer em Sociologia significa descobrir o invisível, aquilo que ainda não foi percebido como fenômeno social. Perceber não é apenas uma operação cognitiva, consiste em mostrar a tensão entre a razão e a paixão na Sociologia, cuja episteme foi desenvolvida na virada do século XIX para o século XX enquanto uma terceira cultura, em face da literatura e da ciência natural, para tentar explicar a modernidade. Recentemente, Boltanski propôs uma analogia entre o romance policial, a psiquiatria e a sociologia, irmanadas em uma busca, mediante a enquete, de uma realidade escondida sob o real (Lepenies, 1996; Boltanski, 2012).
Como reencontrar no pensamento sociológico elementos para estabelecer essa possibilidade da investigação nas Ciências Sociais? Como encontrar ferramentas para desenvolver o processo de investigação e interpretação sociológico em nosso tempo?
Devemos a Wallerstein uma síntese da herança clássica do pensamento sociológico, expressa em axiomas (Wallerstein, 1999):
Axioma 1 – A realidade dos fatos sociais: existem grupos sociais que têm estruturas racionais e explicáveis, as quais poderiam ser analisadas pelos conceitos de fato social, divisão do trabalho social, anomia e efervescência. Esta é contribuição de Emile Durkheim.
Axioma 2 – A historicidade dos conflitos sociais: todos os grupos sociais contêm subgrupos que estão dispostos em uma hierarquia, estão em contradição uns com os outros, e disputam o poder em uma sociedade, o que poderia ser explicado pelos conceitos de mercadoria, mais valia, acumulação de capital e violência estrutural. Temos aqui a obra de Karl Marx.
Axioma 3 – A existência de mecanismos de dominação para conter os conflitos: na extensão em que os grupos/estamentos contêm seus conflitos, é em larga parte porque subgrupos de baixa posição atribuem legitimidade para a estrutura de autoridade do grupo nos setores que permitem ao grupo sobreviver. Max Weber nos legou para interpretar tais processos os conceitos de ação racional, tipos de dominação, legitimidade e racionalização.
Talvez possamos, agora, identificar na Sociologia contemporânea uma série de novos axiomas do pensamento sociológico, a partir do ponto de vista da conflitualidade:
Axioma 4 – O produto da reconstrução sociológica da realidade é um conhecimento sintético que se funda em procedimentos empírico-indutivos de observação e interpretação. Trata-se da construção do conhecimento sociológico mediante o entrelaçamento de conceitos clássicos frente a novos objetos sociológicos. Os métodos operam com a construção de tipos: no método da compreensão, o tipo ideal (Weber); no método objetivo, o tipo médio (Durkheim); e no método dialético, o tipo extremo (Marx). Tal contribuição nos foi deixada por Florestan Fernandes (Fernandes, 1960, 1967)
Axioma 5 – A possibilidade das ciências humanas deu-se no momento em que se alinhou à positividade do viver, do produzir e do falar, a representação que os homens fazem desta positividade. A Sociologia começa por uma reflexão sobre o binômio regra e conflito, sendo que Michel Foucault nos legou os conceitos de saber – poder, de sociedade disciplinar, de governamentalidade e de práticas de si para explicar a modernidade (Foucault, 1975, 1976, 1997, 2004).
Axioma 6 – A computação passa a ser considerada um elemento central do processo cognitivo, pois “devemos completar o cogito ergo sum cartesiano por um cogito ergo computo ergo sum”, escreve Edgar Morin, o qual entende o conhecimento como uma relação construtiva a partir de princípios e regras que permitem constituir sistemas cognitivos articulando informações, signos, símbolos na solução de problemas teóricos e práticos (Morin, 1986, 1994).
Axioma 7 – O rigor dos processos de construção do objeto de investigação fornece a demonstração multidimensional e relacional da realidade social, em postura que Pierre Bourdieu define como estruturalismo genético. Tal sociologia reflexiva nos traz os conceitos de campo, de habitus e de superação da antinomia saber acadêmico/inserção política, vivenciando sociologicamente a “miséria do mundo” (Bourdieu, 1973, 1979, 1993, 2002).
Axioma 8 – A produção da sociedade realiza-se por lutas sociais, fragmentárias e parciais, e por movimentos sociais, eivados de historicidade, totalidade e identidade, ambas essas formas reafirmando a ação de sujeitos coletivos, escreve Alain Touraine (Touraine, 1973, 2007).
Axioma 9 – O objeto da Sociologia, no fim do século XX, passou por uma mutação para a sociedade global, a qual redefine os processos, relações e estruturas, sobre raças e classes sociais, em um novo “labirinto da sociedade latino-americana”, nos deixou a clarividência de Octavio Ianni (Ianni, 1992, 1993, 2000).
Axioma 10 – Sobre os três pilares que fundaram a explicação da modernidade – regulação, mercado e comunidade – a ciência e o direito modernos privilegiaram os dois primeiros, restando o pilar da emancipação como tarefa de democracia infinda das epistemologias do sul, desafia Boaventura de Sousa Santos (Sousa Santos, Crítica e Epistemologias do Sul, 2009).
Axioma 11 – As redes sociais de comunicação introduzem um novo poder na sociedade contemporânea, potencializado pelas tecnologias da informação, as quais chegam a forjar novíssimos movimentos sociais (Castells, 1999, 2009).
Axioma 12 – A sociedade está composta por processos e conflitos agrários e urbanos, explicáveis a partir de uma sociologia da historicidade da vida cotidiana, mediante a pesquisa empírica rigorosa, visual e orientada teoricamente, desde a fronteira ao subúrbio, nos ensina José de Souza Martins (Martins, 1991, 1994, 2013)
Muitos outros axiomas certamente poderiam ser adicionados, tarefa a exigir um trabalho coletivo. Deste conjunto inicial de ferramentas, em múltiplas combinações conceituais significativas, emergem algumas características do momento teórico da Sociologia mundial.
A primeira característica do movimento teórico atual localiza-se na crítica ao modelo positivista de cientificidade, colocando em questão vários de seus elementos: a recusa da relação externa entre sujeito-objeto; o abandono dos determinismos e da unicausalidade; e a crítica ao evolucionismo cultural e à ideia de progresso (Gonzalez Casanova, 2004).
A segunda característica é uma explicitação da relação poder-saber pelo desvelamento das implicações operativas que as diversas ciências humanas tiveram desde sua emergência, no século XIX vinculando-as aos dispositivos de poder-saber, pois afloram enquanto tecnologias dos poderes na sociedade capitalista.
A terceira marca distintiva dos estudos atuais em ciências humanas é que as epistemologias pós-cartesianas, orientadas pelo indeterminismo, pela probabilidade e pela figura dos fractais, vêm a configurar um novo padrão epistemológico, orientado pela transdisciplinaridade e pela sustentabilidade (Baumgarten, 2008). Passa-se a aceitar o componente subjetivo no processo de conhecimento nas ciências humanas, o inconsciente e a contratransferência (Teixeira, 1991; Devereux, 1998); temos agora fenômenos complexos e multidimensionais; e aceitamos combinatórias de conceitos capazes de serem úteis a nossas pesquisas, mesmo que oriundos de distintas teorias gerais.
Em quarto lugar, a capacidade dos pesquisadores em incorporar ao trabalho cotidiano as possibilidades abertas pelas metodologias informacionais que, ao superar a antinomia qualitativo – quantitativo, revolucionam o modo de cognição da sociologia.
Poderíamos, então, combinando criativamente ferramentas conceituais, desenvolver um saber transdisciplinar, envolvendo as ciências sociais e as demais ciências e humanidades, para interpretar certas dimensões fundamentais da realidade social: sobre as estruturas e as práticas sociais, os processos e as relações sociais, as diversas morfologias sociais e instituições, e as representações coletivas e lutas sociais.
4. As metodologias informacionais
Vivenciamos um momento profícuo de transformações no trabalho sociológico, no qual a lógica da crítica, a perspectiva da descoberta cientifica e o espírito criativo foram alterados pela constituição das coletividades científicas informacionais. Os microcomputadores, os programas aplicativos, as bases de dados, as redes, a rede mundial da internet, produziram mudanças no tempo, no espaço, na memória, na observação e na interpretação, ou seja, nos modos de trabalho dos cientistas sociais, nos pesquisadores e nos estudantes.
Existe um uso contumaz das metodologias de investigação, quantitativas ou qualitativas; em alguns, há imersão nas metodologias informacionais; mais raramente, encontra-se a reflexão epistemológica sobre a metodologia nas ciências sociais. Esta alternativa residiria na constituição pelas coletividades informacionais de núcleos de atividades sociológicas e informacionais (Lima, 2004, p. 305).
O desafio intelectual é questionar em que medida essas teorias em ato, essas ferramentas do processo cognitivo, acarretam novas implicações para a lógica da investigação e da explanação nas ciências sociais. Ou seja, a perspectiva da criatividade envolvendo as ciências sociais pode ser potencializada pelas metodologias informacionais: um neoartesanato intelectual. Cabe refletir sobre esta novidade.
Em primeiro lugar, a construção das categorias compreensivas especificadas, seriais ou hierarquizadas – com base nos alvos intelectuais da pesquisa é condição necessária para converter a navegação no ciberespaço em viagem orientada de largo curso a fim de, realizada a condição de operar com conceitos, se chegar a informações e explicações sociológicas pertinentes, local e globalmente pois a internet é um espaço social, uma economia redistributiva virtual (Poster, 2001).
Em segundo lugar, o estudo sobre redes sociais aparece em número crescente. Os métodos de análise de redes sociais incluem medidas de centralidade, identificação de subgrupos, análise de papéis, teoria dos gráficos, e análise estatística baseada em permutas. Contém ainda, rotinas de análise matricial e análise multivariada. Podem ser gerados dois resultados: um resultado textual e um conjunto de dados, composto por uma ou mais matrizes, que podem ser realimentadas no programa para novos procedimentos. O segundo possibilita a modelagem estatística e oferece recursos para métodos descritivos que permitem a constatação de grupos coesos (cliques) e regiões (componentes, cores), para análises de centralidade, de redes a partir de uma posição determinada no espaço social.1
Em terceiro lugar, a elaboração dos diagramas da modelagem cognitiva ou mapas cognitivos, de forma a registrar relações de sentido e possibilitar ao pesquisador – pela superposição de dados quantitativos e de informações discursivas, em contextos espaço-temporais delimitados – reconstruir as relações de significado, demonstrá-las e desenvolver a interpretação sociológica.2 Em outras palavras, estamos nos referindo à elaboração de cartografias simbólicas, um diagrama que assinala as posições e as relações das dimensões cognitivas dos agentes sociais, ou seja, a modelagem das categorias relativas à memória, percepção e ao conhecimento do mundo social. As cartografias sociais e simbólicas possibilitam organizar e hierarquizar as representações sociais e as relações múltiplas que entre elas se estabelecem, em um campo social. (Sousa Santos, 2000, p. 204). De modo recíproco, tais representações sociais expressam, simbolicamente, as práticas e experiências sociais, políticas e culturais dos agentes sociais em um campo social determinado (Lechner, 2002, p. 27).
Em quarto lugar, a análise de mensagens qualitativas não-estruturadas pode ser realizada mediante alguns programas, entre eles o NVIVO10. Este aplicativo produz um ambiente informacional no qual se pode criar, gerenciar e explorar ideias e categorias, minimizando as rotinas de trabalho e maximizando a flexibilidade da análise, para descobrir novas possibilidades analíticas. Este programa realiza uma análise de conteúdo qualitativa de discursos: a noção básica “Nós” ou Categorias significa recipientes para ideias, juízos prováveis, sobre as informações. Residem, neste ponto, a reversibilidade e a flexibilidade da ferramenta, pois permite leituras desde o nível mais geral ao nível particular, deste ao singular do senso comum ou das denominações no mundo vivido – e reciprocamente do singular ao particular e ao nível geral (Richards, 2002).
Em quinto lugar, a análise de dados estatísticos e séries temporais, um procedimento utilizado desde a sociologia clássica para objetivar a realidade social, adquire novas facetas mediante a análise multivariada, a construção de clusters e a análise de correspondência, como pode ser visto nas obras de Pierre Bourdieu.
Neste sumário, pode-se perceber o quanto a linguagem informacional permite a superação de antigas antinomias, pelo uso combinado e aplicado de diversos métodos quantitativos e qualitativos de pesquisa, e pela transformação de qualquer material em fonte de dados e informações, configurando um padrão de trabalho científico que poderíamos denominar de sociologia informacional.
Nos procedimentos da sociologia contemporânea, residiria a disseminação de um habitus de pesquisa, marcado pelos seguintes elementos: dúvida metódica e questionamento dos objetos, métodos e hipóteses do trabalho científico; utilização da informática em todos os momentos do processo de trabalho sociológico; disciplina do cotidiano da pesquisa; organização flexível do trabalho; lugar para o questionamento e a criatividade; e responsabilidade social inelutável. Resta, para as instituições de ciências sociais, um longo trabalho de formação para ampliarmos a imaginação sociológica neste mundo de incertezas.
5. Novos desafios para a Sociologia
As transformações sociais e as urgências da vida coletiva fazem com que os grupos sociais solicitem os saberes em ciências humanas para explicar os processos sociais e históricos. Isso implica no estabelecimento de uma nova relação entre o saber em ciências humanas e as diferentes modalidades de exercício de poder, relação de convivência e de diálogo.
Supõe, também, uma afirmação de prestação pública de contas, de responsabilidade pública e de obediência à ética, por parte dos professores e pesquisadores praticantes das ciências humanas, tanto pela importância social de seu saber quanto pelo poder que seu discurso e sua ação passam a exercer nas coletividades humanas.
O afluxo de jovens às instituições acadêmicas e científicas demonstra o quanto a Sociologia vem sendo reconhecida pela sociedade brasileira como um saber construtor de uma autoconsciência crítica da realidade social (Freyer, 1944). Os elementos do pensamento sociológico – investigação científica, engajamento político e imaginação sociológica – foram se forjando em uma tensa e estimulante inserção na perspectiva do espaço-tempo social, unindo o rigor investigativo e o pensamento crítico aos processos de transformação social.
Estamos em uma época de tecer utopias no espaço-tempo não linear, no difícil encontro de experiências inovadoras, a fim de simular, ou antecipar, a reconstrução dos laços sociais, dos afetos e das paixões.
Ainda que em uma era de incerteza, estamos em tempos de viver a vida como tensão criativa, possibilidades de tempos de liberdade advindos da participação dos jovens nas ruas e nas redes sociais. Cresce a possibilidade da sociologia renovar-se, ao ser praticada como saber reflexivo e prática transformadora, a enorme esperança nos sociólogos do futuro.
Referências
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Notas