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NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA NO ENSINO SECUNDÁRIO DE PORTUGAL
NOTES ON THE HISTORY OF SOCIOLOGY IN PORTUGAL’S SECONDARY EDUCATION
NOTES SUR L’HISTOIRE DE LA SOCIOLOGIE DANS L’ENSEIGNEMENT SECONDAIRE DU PORTUGAL
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 1, núm. 2, pp. 131-146, 2013
Sociedade Brasileira de Sociologia

Artigos


Recepção: 20 Novembro 2013

Aprovação: 27 Janeiro 2014

DOI: 10.20336/rbs.45

RESUMO: Esse artigo inicia uma incursão pela história da Sociologia em Portugal para analisar os sentidos a ela atribuídos quando introduzida nos planos de estudos do ensino secundário, em meio ao movimento de redemocratização do país fortalecido em meados da década de 1970. Recorre a entrevistas e, sobretudo, pesquisa documental e bibliográfica, tendo como foco a legislação educacional, manuais didáticos e propostas curriculares oficiais. Aponta que, como no ensino superior, havia a expectativa, entre os cientistas sociais, de que a Sociologia, por um lado, fornecesse aos jovens fundamentos teóricos e métodos de intervenção em uma sociedade em intensa transformação; e, por outro lado, que lhes proporcionasse conhecimentos favoráveis ao desenvolvimento de uma provável formação vocacional, despertando o interesse pelo prosseguimento dos estudos na Área das Ciências Sociais. Palavras-chave: Ensino de Sociologia; Ensino secundário (Portugal); Sociologia (Portugal).

Palavras-Chave: Ensino de Sociologia, Ensino secundário (Portugal), Sociologia (Portugal).

ABSTRACT: This paper discusses the history of sociology in Portugal to analyze the meanings assigned to it when it was included in the curriculum of secondary education for the first time. The article uses interviews, and above all, documental and biographic research, with a focus on educational legislation and textbooks. It shows that, in higher education, social scientists wanted sociology to provide students with theoretical foundations and methods of intervention in a society that was going through political, cultural, social and economic changes, as well as providing the students with knowledge to spark their interest in the Social Sciences and the pursuit of studies in this field.

Keywords: Curriculum, Teaching Sociology, Secondary education, Textbook, Sociology (Portugal).

RÉSUMÉ: Cet article fait une incursion dans l’histoire de la sociologie au Portugal pour analyser les sens qui lui ont été attribués quand elle fut introduite dans les programmes d’études de l’enseignement secondaire, au cours du mouvement de redémocratisation du pays renforcé au milieu des années soixante-dix. Il a recours à des entretiens et surtout à une recherche documentaire et bibliographique, en se focalisant sur la législation éducative, les manuels didactiques et les propositions des cursus officiels. Il relève le fait que, comme dans l’enseignement supérieur, les scientifiques sociaux espéraient que la sociologie fournisse aux jeunes d’une part, des fondements théoriques et des méthodes d’intervention dans une société en transformation intense et, de l’autre, qu’elle leur offre les connaissances favorables au développement d’une probable formation vocationnelle, en éveillant l’intérêt à poursuivre des études supérieurs dans le domaine des Sciences sociales.

Mots-clés: Enseignement de la sociologie, Enseignement secondaire (Portugal), Sociologie (Portugal).

Apresentação

Este artigo recupera aspectos da história da Sociologia em Portugal para iniciar algumas reflexões sobre os sentidos atribuídos ao seu ensino no sistema escolar, quando da sua inclusão, pela primeira vez, nos planos de estudos do ensino secundário. O foco recai sobre o programa de ensino aprovado em 1976 e o manual didático editado pelo Ministério da Educação, de 1978, mas não se furta de tecer algumas considerações sobre os sociólogos e a profissão docente.

O texto é fruto de uma investigação, ainda em curso, sobre a situação da Sociologia no ensino secundário português. Baseia-se em pesquisa documental (na legislação educacional, em programas e manuais didáticos) e bibliográfica, bem como em entrevistas com professores do ensino secundário e superior. A coleta de dados foi realizada nas bibliotecas da Universidade do Minho e da Universidade do Porto, bem como nos arquivos da Associação Portuguesa de Sociologia e do Ministério da Educação e Ciência.

O artigo inicia-se contextualizando a institucionalização da Sociologia a partir, sobretudo, do fim do Estado Novo, em 1974. Em seguida, localiza a inserção da disciplina no ensino secundário .com os despachos 63 e 140/1978), para então analisar o programa de ensino formulado para aquela disciplina com base na leitura de um manual didático de Sociologia editado pelo Ministério da Educação (Portugal, [1978?]). Em seguida, propõe algumas reflexões sobre os sentidos atribuídos ao ensino da Sociologia em um contexto social e político que se pretendia democrático e modernizador. Ver-se-á que, como no ensino superior, havia a expectativa, entre os cientistas sociais, de que a Sociologia, por um lado, fornecesse aos estudantes fundamentos teóricos e métodos de intervenção em uma sociedade que passava por uma série de mudanças no campo político, cultural, social e econômico; e, por outro lado, que proporcionasse aos jovens conhecimentos favoráveis ao desenvolvimento de uma provável formação vocacional, despertando o interesse pelo prosseguimento dos estudos na área das Ciências Sociais.

A institucionalização da Sociologia em Portugal

A consolidação de uma comunidade científica no campo da Sociologia em Portugal remonta a período relativamente recente, posterior a 25 de abril de 1974. Marco do fim do regime autoritário iniciado com o golpe militar de 1926, aquele ano constituiu, no âmbito acadêmico, o ponto de partida de um conjunto de esforços para fomentar estudos sistemáticos sobre a realidade portuguesa, refundando a Sociologia em bases institucionais (Pinto, 2004).

Um dos pioneiros do pensamento sociológico português, Adérito Sedas Nunes (1963, p. 460-461), dizia que, antes de 1974, a situação da disciplina era “muito precária”, com perspectivas limitadas e desfavoráveis de “aquisição de uma sólida e bem definida posição científica”. Segundo José Carlos Ferreira de Almeida (1992, p. 188), além do contexto político de censura, inexistia financiamento para pesquisa na área e, consequentemente, maiores incentivos para a reflexão metodológica e epistemológica. Não havia sequer “a possibilidade de uma real formação em qualquer das ciências sociais ou humanas”: o que se ensinavam eram técnicas sociais, fornecendo preparação profissional com objetivos basicamente práticos, mas não Ciências Sociais; formavam-se consumidores de ciência do social, e não produtores (Almeida, 1968, p. 705-706).

Isso não quer dizer, contudo, que a Sociologia estivesse ausente do cenário intelectual antes de 1974. Quando se refere à década de 1970, Madureira Pinto (2004) alude, por exemplo, à “refundação” ou ao “renascimento” da disciplina, em explícita alusão aos ecos de produção sociológica anteriores à sua consagração institucional nos setores universitários. Como ele, outros autores (Cruz, 1982. Fernandes, 1996) rememoram o final do século XIX para localizar estudos sociológicos de influência positivista já em curso no país e até mesmo a permanência da Sociologia, durante uma década, nos planos de estudos da tradicional Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.1

Entretanto, os antecedentes mais próximos ao processo de institucionalização acadêmica da Sociologia desde 1926 remetem aos anos de 1960. A revista Análise Social, cujo primeiro volume veio a público  em  1963,2  talvez  seja  um  dos  grandes  marcos  desse movimento. Sabe-se, também, da existência, ainda no decênio de 1960, de “novas escolas particulares” do ensino secundário que, para atender às exigências sociais e políticas que emergiam, lecionavam disciplinas da área de Ciências Sociais (Almeida, 1968, p. 701-702).

Quanto ao ensino superior, o título de “licenciado em Sociologia” ou em áreas afins, como “Política Social” e “Ciências Sociais e Política Ultramarina” (Almeida, 1968, p. 701-702), começou a ser oferecido pelo Instituto de Estudos Superiores de Évora em 1964 (Gomes, 2005, p. 95), embora não fornecesse uma formação sólida em Ciências  Sociais4  tais  como  Administração Ultramarina, Agronomia e Silvicultura, Arquitetura, Cavalaria e Artilharia, Direito, Engenharia, Estudos Ultramarinos, Infantaria e Serviço Social (Nunes, 1963).

Sem ignorar essas incursões acadêmicas e os casos, apesar de dispersos, de cadeiras oferecidas no ensino secundário e superior que estabeleciam interlocuções, diretas ou indiretas, com a Sociologia, o fato é que a disciplina estabeleceu raízes no meio universitário e no sistema escolar depois de 1974. A partir dali, desencadeou-se todo um processo para consolidar e expandir os saberes sociológicos e suas práticas profissionais, bem como para formar sociólogos, produzir e divulgar pesquisas, elaborar manuais didáticos e incluir a disciplina no plano de estudos do ensino secundário e superior.

Foi nesse contexto que se criou, em 1974, o primeiro curso propriamente dito de Sociologia, no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE). Cinco anos depois, a Universidade de Évora e a Universidade Nova de Lisboa ofereceram a mesma licenciatura, estendida em 1985 para a Universidade do Porto, em 1986, para a Universidade da Beira Interior, em 1988, para a Universidade de Coimbra e, em 1989, para a Universidade do Minho. No setor privado, foram abertas licenciaturas em Sociologia (no Instituto Superior de Matemática e Gestão, na Universidade Internacional e na Universidade Lusófona), em Ciências Sociais (na Universidade Autónoma de Lisboa) e em Investigação Social Aplicada (na extinta Universidade Moderna) (Almeida, 1999, p. 7). Quanto aos cursos de pós-graduação, os primeiros mestrados foram oferecidos em 1983 pela Universidade Nova de Lisboa e pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa.

A Sociologia, personificada sobretudo na Sociologia da Educação, também foi inserida em outras licenciaturas, com destaque para os cursos de Educação que habilitam seus egressos para a docência no ensino pré-escolar, básico e secundário5 (Abrantes; Mendes, 2010, p. 219).

Ao mesmo tempo em que se expandia no ensino superior, a Sociologia adentrava nos planos de estudos do ensino secundário, compondo os cursos das áreas econômico-sociais e humanísticas e de alguns cursos técnico-profissionais. Ao lado dela, também a Antropologia e a Ciência Política ganhavam espaço no sistema escolar. Essa última, inclusive, possuía um lugar mais consolidado no ensino secundário, herdado de período anterior: segundo o sociólogo  Manuel Carlos Silva,6  já  antes  de 1974,  oferecia-se  a cadeira Organização Social do Estado ao 10º e 11º anos do ensino secundário, transformada em Introdução à Política durante a redemocratização. A disciplina mantinha status um pouco “mais destacado” do que o da Sociologia, talvez porque, nas palavras do sociólogo, estivesse vinculada a uma “Sociologia Política muito empirista”.

Extrapolando o campo do ensino, convém citar a criação de periódicos de divulgação de pesquisas acadêmicas. A pioneira Análise Social, somou-se, em 1978, a Revista Crítica de Ciências Sociais, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, a Sociologia: problemas e práticas, do Instituto Universitário de Lisboa (1986), a Sociologia, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1991), e a Configurações, do Centro de Investigação em Ciências Sociais da Universidade do Minho (2005).

Quanto às entidades científicas, em 1985, foi fundada a Associação Portuguesa de Sociologia (APS). Reunia, então, 30 membros, número que se ampliou para 197 em 1988, 505 em 1992, 916 em 1996, 1.660 em 2000 e 1.966 em 2004.7 Em 1999, Ana Nunes de Almeida (1999, p. 7), presidente da entidade (1994-1998) classificava a APS como a quinta maior associação de sociólogos do mundo, ficando atrás apenas da dos Estados Unidos, Japão, Finlândia  e  Canadá.8  A  APS  organizou  o  primeiro  Congresso Português de Sociologia em 1988, o qual tem mantido, desde então, periodicidade quadrienal.

A introdução da Sociologia nos planos de estudos do ensino secundário

Em Portugal, a inclusão da Sociologia nos planos de estudos do ensino secundário é contemporânea ao seu processo de institucionalização acadêmica, tendo ganhado força de lei em 1978, com a aprovação dos despachos 63 e 140-A/78 (Silva; Ribeiro, 1999, p. 19). A época, tornou-se disciplina de formação específica das áreas econômico-sociais e humanísticas, sendo oferecida no 100 ou no 11 0 ano, com um total de três horas semanais.

No mesmo período, foi integrada aos planos de estudos de cursos técnico-profissionais, como os de Contabilidade, Contabilidade e Gestão, Assistência Social e Educador Social. Em alguns deles, transfigurava-se na forma de sociologias especializadas, como a Sociologia Desportiva e a Sociologia Agrária nos cursos de Gestor / Animador Desportivo e de Indústrias Alimentares, respectivamente (Silva; Ribeiro, 1999, p. 20).

É necessário citar ainda disciplinas relacionadas à Sociologia, como Noções de Psicossociologia e Psicossociologia das Organizações, oferecidas no 12º ano do curso profissionalizante de Administração Pública e no técnico-profissional de Assistente de Gestão (Silva; Ribeiro, 1999, p. 20-21).

Antes mesmo da publicação das resoluções que inseriram a Sociologia na área de estudos econômico-sociais e humanísticos do 100 ou do 11 0 ano do ensino secundário, o programa que orientaria o seu desenvolvimento já havia sido elaborado e entrado em vigor com um despacho da Secretaria de Estado do Ensino Básico e Secundário de 5 de maio de 1976.

Data desse período uma espécie de manual didático (Portugal, [1978?]) editado pelo próprio Ministério da Educação para orientar o ensino da Sociologia. Intitulado Sociologia: 10º ano de escolaridade (Texto de apoio para os 10º/11º anos de escolaridade), foi organizado por Adriano Duarte Rodrigues, graduado em Sociologia, pela Université de Strasbourg, França, e professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Uma das seções do manual didático “Sociologia Rural e Urbana” contou com a colaboração de Carlos Vieira de Faria, licenciado em Ciências Sociais pelo Institut Catholique de Paris e mestre em urbanismo e movimentos sociais pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, também da França.

O manual didático trazia, em dois volumes, uma antologia de excertos de obras importantes do pensamento sociológico relacionados aos conteúdos inscritos no programa aprovado em 1976. Eram textos de apoio antecedidos por uma breve explanação sobre as noções e os conceitos em pauta e precedidos de referências bibliográficas sucintas, com obras fundamentais que pudessem auxiliar o professor e o aluno a prolongar os conhecimentos adquiridos. Os autores enfatizaram seus esforços para “tirar o máximo partido da bibliografia existente em língua portuguesa”, assinalando com um asterisco as obras que julgaram de “leitura mais acessível” aos alunos, mas não se furtaram de indicar textos em francês (Portugal, [1978?], p. 5-6, 53. Silva; Ribeiro, 1999).

O manual delimitava os conteúdos a serem desenvolvidos na disciplina, dividindo-os em quatro grandes capítulos. O primeiro, com o título “O que é a Sociologia”, apresentava uma noção da disciplina, seus objetos de estudo, métodos e técnicas de pesquisa. O segundo capítulo “Conceitos fundamentais da Sociologia geral” versava sobre (1) fenômenos sociais, (2) coordenadas espaciais e temporais da prática social, (3) valores, normas, comportamentos e padrões de cultura, (4) papel e status, (5) socialização, (6) classes sociais e estratificação social, (7) ideologia, cultura e contracultura, (8) produção e reprodução social, (9) formas de sociabilidade e tipos de agrupamento e (10) instituição e organização social. Já no segundo volume, o terceiro capítulo “Algumas sociologias especializadas” incorporava textos sobre a Sociologia rural, urbana, industrial, política, da família e da comunicação social. O quarto capítulo voltava-se para as “Teorias sociológicas e perspectivas hermenêuticas”, abordando o funcionalismo, o estruturalismo, o marxismo e a teoria sistêmica.

Complementava os quatro capítulos, uma coletânea de trabalhos que poderia ser utilizada livremente pelos professores, de acordo com os assuntos e contextos em que estivessem lecionando. Tratava-se de um conjunto de “pequenos trabalhos sobre aspectos particulares da sociedade tradicional” reunidos sob o título “Retratos da sociedade portuguesa” (Portugal, [1978?]).

Como se vê, a proposta para o ensino da Sociologia, naqueles últimos anos da década de 1970, já pressupunha a análise de exemplos concretos da realidade social vivenciada pelo estudante. Todavia, não renunciava ao estudo dos conceitos e teorias sociológicos, tampouco à leitura de autores clássicos:

Constitui igualmente preocupação dominante deste programa o rigor na sistematização dos conceitos de base. Por isso, se tentou acompanhá-los com excertos de autores clássicos, evitando tanto quanto possível substituí-los por textos de divulgação por vezes duvidosa ou, pelo menos, discutível assim como se pretendeu tirar da mente do aluno a ideia de que a Sociologia se reduz a um discurso espontaneísta sem um quadro de conceitos suficientemente clarificado (Portugal, [1978?], p. 3-4).

Entendia-se, assim, ser possível uma seleção de textos adequados à faixa etária dos alunos, capaz de construir um quadro teórico favorável à análise da realidade social portuguesa. Aos professores, caberia a tarefa de diagnosticar as dificuldades dos discentes na leitura dos textos, reformulando a seleção e buscando outras alternativas, sempre que necessário (Portugal, [1978?], p. 3).

Dos sentidos atribuídos ao estudo da Sociologia no sistema educativo às condições de ensino e docência

Na mesma chave que guiava, em grande medida, o campo acadêmico, tinha-se em vista que a Sociologia no ensino secundário forneceria fundamentos teóricos e métodos de intervenção na sociedade portuguesa que se democratizava, abrigava centros industrializados cada vez mais complexos, passava por um crescente processo de urbanização, desde pelo menos a década de 1950, e conhecia uma série de outras mudanças no âmbito político, cultural, social e econômico. Além disso, esperava-se que estimulasse, entre os alunos, uma provável “formação vocacional”, despertando o interesse de alguns deles para prosseguirem seus estudos no ensino superior nas áreas de Ciências Sociais, Antropologia, Ciência Política e, claro, Sociologia. Esses eram os sentidos declarados para a inclusão da Sociologia nos planos de estudos do ensino secundário inscritos no programa de ensino e no manual didático da década de 1970:

A Sociologia deverá fornecer formação e informação fundamentais para os cursos superiores de Sociologia, Antropologia e Ciências Sociais, este último nos ramos científico e de formação de docentes.

Deverá, além disso, constituir suporte, tanto conceptual como operacional, para uma formação vocacional eventualmente orientada para o domínio da intervenção social.

O programa da disciplina pressupõe o estudo e a análise de exemplos concretos da realidade social, de preferência dentro do âmbito da região em que o aluno vive, relacionando-os com o quadro teórico apreendido (Portugal, [1978?], p. 3).

Com efeito, para membros da comunidade comunitária e do novo governo que se estabelecia, depois de anos sob o jugo de governos autoritários que impuseram o “estrangulamento forçado da produção sociológica” (Pinto, 1997, p. 23), nada mais conveniente do que introduzir, na formação dos jovens estudantes, ferramentas que facilitassem a análise racional da realidade. O trecho a seguir, retirado do manual didático editado pelo Ministério da Educação, ilustra bem essas representações e intenções relacionadas ao ensino da Sociologia no sistema escolar naquele momento:

A ausência de uma disciplina de Sociologia nas escolas portuguesas, tanto a nível secundário como superior, até estes últimos anos é aliás um sintoma da mentalidade pré-industrial que tem caracterizado a sociedade portuguesa. Esta mentalidade torna-se agora cada vez mais anacrônica, à medida que transformações profundas atingem as cidades e os campos do nosso país.

[...] A Sociologia fornece de fato fundamentos teóricos e métodos de intervenção, em função de objetivos e escolhas com que o homem se encontra constantemente confrontado no seio da sociedade industrializada. Fornece ainda instrumentos de análise dos sucessos e dos fracassos que inevitavelmente espreitam a prática social, tanto no domínio da administração pública ou da planificação econômica, como no âmbito da criatividade ou da transformação cultural e das mentalidades (Portugal, [1978?], p. 4).

A institucionalização da Sociologia no ensino secundário compôs, então, um conjunto de esforços para formar os “primeiros” sociólogos e inserir a disciplina nos quadros institucionais universitários e escolares, bem como para ampliar a produção de pesquisas e divulgá-las, tornando as Ciências Sociais seus objetos de estudo e seus autores conhecidos.

Não se deve perder de vista, porém, que, desde os primeiros anos em que esteve presente nos planos de estudos do ensino secundário até a atualidade, os sociólogos tiveram pouca ou nenhuma oportunidade de lecionar Sociologia. Isso porque um quadro de habilitações define o perfil de qualificação exigido para que cada cidadão desempenhe determinada atividade profissional. No que diz respeito à profissão docente, o critério é o mesmo e o quadro de habilitações determina quem e qual(is) disciplina(s) os licenciados em diferentes áreas podem ensinar. No quadro de qualificações, as disciplinas são organizadas em “grupos disciplinares” e, para cada um deles, há um ou mais profissionais cuja formação lhes habilita a lecioná-las. Há, contudo, uma hierarquia, dando preferência para alguns licenciados assumirem a função de docente.

No tocante à Sociologia, muitas mudanças marcaram a disputa para definir quem poderia ministrá-la. Em 1979, por exemplo, no grupo de disciplinas do qual a Sociologia fazia parte, os candidatos de primeiro escalão (que tinham prioridade para lecioná-la) eram os portadores de licenciaturas em diferentes cursos de Economia e de Administração de Empresas; no segundo escalão, encontravam-se licenciados em Engenharia Informática e em outros bacharelados e, finalmente, no terceiro escalão, (c) licenciados em Sociologia e Direito (Silva; Ribeiro, 1999, p. 21).

O despacho normativo no 15/1981 de 14 de janeiro revisou o quadro de habilitações e posicionou os licenciados em Sociologia no primeiro escalão, decisão ratificada pelo despacho normativo nº 3/1982, de 14 de janeiro. Contudo, já em 1983, os licenciados em Sociologia que concorreram aos cargos de professor foram posicionados no segundo escalão, para, em 1984, ocuparem o quarto escalão, com a publicação do despacho normativo nº 32, de 9 de fevereiro. Ora, o posicionamento do licenciado em Sociologia no quarto escalão significava, na prática, inviabilizar seu acesso à docência no ensino secundário, visto que “à sua frente se encontram não só uma grande variedade de licenciaturas como também muitos bacharelados e cursos tais como, por exemplo, os cursos de Administração Militar, dos Pupilos do Exército, ou de Administração Naval, da Escola Naval” (Silva; Ribeiro, 1999, p. 21).

Assim, já em 1984, os sociólogos não tinham espaço no ensino secundário sequer para ensinar Sociologia (Almeida, 1999, p. 7). Em 1989, Neves (1989, p. 171) relatava que “desde que haja uma escola com a disciplina de Sociologia, o mais provável é não ser um licenciado nessa área a dar a disciplina”.

Considerações finais

Neste artigo, iniciou-se uma breve incursão pela história da Sociologia em Portugal para propor reflexões, ainda preliminares, sobre a sua presença no ensino secundário. Sugeriu-se que, como no ensino superior, havia toda uma expectativa, entre os cientistas sociais, de que a Sociologia subsidiasse a formação dos jovens estudantes, de tal modo que se mantivessem munidos de fundamentos teóricos e métodos de intervenção em uma sociedade que passava por uma série de mudanças no campo político, cultural, social e econômico. Havia ainda a pretensão de que a disciplina lhes proporcionasse conhecimentos favoráveis ao desenvolvimento de uma provável formação vocacional, despertando o interesse pelo prosseguimento dos estudos nas Ciências Sociais.

A Sociologia foi, de fato, incluída no currículo do ensino secundário e, até hoje, é disciplina de opção de cursos científico-humanísticos de ciências socioeconômicas e de línguas e humanidades.

Entretanto, o ensino secundário não se constituiu como um campo de atuação profissional dos sociólogos. Se, na década de 1970, aquele nível de ensino não absorvia os licenciados em Sociologia – a maioria migrou para o ensino superior, formação profissional, câmaras, recursos humanos e investigação (Neves, 1989, p. 175), hoje a situação não mudou e os graduados em Economia, Filosofia e Direito, nessa ordem, têm prioridade para lecionar a disciplina, estando os sociólogos no quarto escalão.

A Associação Portuguesa de Sociologia tem reivindicado mudanças desse quadro de habilitações. Entretanto, segundo o seu presidente Manuel Carlos Silva,9 as perspectivas de mudanças são escassas. O ensino secundário é um campo profissional muito ambicionado sobre o qual são travadas disputas entre as comunidades científicas e profissionais para definir quem pode ocupá-lo. Por isso, o problema é descrito em termos econômicos e não pedagógicos.

Nesses termos, a docência no ensino secundário, paradoxalmente, não se apresenta – e poucas vezes na história se apresentou – como perspectiva profissional para os estudantes universitários de Sociologia, assim como não se configura como objeto de pesquisa nas instituições de ensino superior.

Referências

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Notas

1 Lecionou-se Sociologia entre 1901 e 1911 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, ano em que a disciplina foi substituída por “Economia Política” (Pinto, 2004, p. 12).
2 Sobre a história da revista Análise Social, ver o depoimento de um de seus idealizadores, Adérito Sedas Nunes (1988). A revista nasceu dentro do Gabinete de Investigações Sociais do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (Pinto, 2004, p. 15).
3 Segundo Almeida (1968, p. 704-705), a nomenclatura “licenciatura em Sociologia”, título oferecido pelo Instituto de Estudos Superiores de Évora, no âmbito dos cursos voltados para a “formação de dirigentes”, era imprópria. A despeito de o ato de aceitar, “pública e oficialmente, pela primeira vez em Portugal, a existência de uma licenciatura com tal designação”, representar um avanço, o curso do Instituto de Estudos Superiores de Évora formava profissionais para dirigirem obras sociais e não especialistas em um ramo da ciência. Almeida (1968, p. 704-705) indicava que, com tal designação, estava-se “a cimentar o tipo de confusões que importaria desfazer, dificultando a consciência da distinção [...] entre “problema social” e “problema sociológico”, perpetuando as amálgamas conceituais conhecimento-ação [...] e agravando a tendência a considerar o sociólogo, na melhor das hipóteses, como puro técnico de inquéritos”.
4 Sobre os cursos e instituições que ofereciam cadeiras de Sociologia antes da década de 1970, ver Nunes (1963, p. 459-460). Entre as cadeiras, o autor cita: Sociologia Geral, em cursos de Engenharia, de Arquitetura e de Serviço Social; Introdução à Sociologia, Metodologia das Ciências Sociais e Seminário de Investigação Social, nos cursos de Administração Ultramarina e Estudos Ultramarinos; História da Agricultura; e Sociologia Rural, no curso de Agronomia e Silvicultura; Introdução às Ciências Sociais, nos cursos de Infantaria, Cavalaria e Artilharia da Academia Militar (Nunes, 1963, p. 459-460).
5 Segundo Abrantes e Mendes (2010, p. 219), constituiu-se um conjunto numeroso de professores de Sociologia da Educação, muitos dos quais sem vínculos, originalmente, com as Ciências Sociais.
6 Entrevista concedida à autora em 5 de janeiro de 2012.
7 Dados em fase de atualização fornecidos pela Associação Portuguesa de Sociologia em uma sociografia dos seus associados.
8 Apenas para fins comparativos, convém pontuar que a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) conta com 1.111 associados (dado de 4 de agosto de 2013), número inferior de filiados reunidos pela Associação Portuguesa de Sociologia em 2004. A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), por seu turno, filia apenas sócios institucionais e não pesquisadores individuais, o que dificulta análises comparativas de Portugal com o contexto brasileiro.
9 Informações obtidas por meio de entrevista semiestruturada, concedida por Manuel Carlos Silva, em 5 de janeiro de 2012, à autora. Manuel Carlos Silva é professor catedrático de Sociologia da Universidade do Minho, presidente da Associação Portuguesa de Sociologia (gestão 2010 a 2012) e lecionou Sociologia, Filosofia, Latim e Introdução à Política no ensino secundário, entre os finais da década de 1970 e início de 1980.


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