Artigos
JUVENTUDE, IGUALDADE E PROTESTOS
YOUTH, EQUALITY AND PROTESTS
JEUNESSE, ÉGALITÉ ET MOUVEMENTS DE PROTESTATION
JUVENTUDE, IGUALDADE E PROTESTOS
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 1, núm. 2, pp. 205-230, 2013
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepção: 03 Novembro 2013
Aprovação: 19 Dezembro 2013
DOI: 10.20336/rbs.47
RESUMO: O artigo se refere à conferência proferida no XVI Congresso Brasileiro de Sociologia, em Salvador. Nele, busco analisar as jornadas de Junho de 2013, ocorridas em todo o Brasil, ä luz do debate sobre desigualdades, classes sociais e juventude. Para tanto, foram incorporados resultados de várias pesquisas, quantitativas e qualitativas, realizadas em diferentes períodos. O argumento do texto procura recuperar, ainda, a discussão sobre opções de políticas públicas e suas consequências para as condições de Vida das populações, mais especificamente, a brasileira. Nesse sentido, questiona os limites do foco no aumento de crédito e consumo, sem respectivo investimento em bens e serviços públicos e universais. Em última instância, se vincula ao debate sobre modelos de desenvolvimento, justiça social, diretos e cidadania.
Palavras-Chave: Protestos, juventude, classes, justiça social, desenvolvimento.
ABSTRACT: The article derives from a paper given at the 16h Brazilian Congress of Sociology in Salvador. In the text I look to analyze the days of protests of June 2013 that took place throughout Brazil, in light of the debate on inequalities, social classes and youth. In the process I cite findings obtained by various quantitæ tive and qualitative studies undertaken at different periods of time. The text’s argument also looks to recuperate the discussion on public policy options and their consequences for the living conditions of populations, more specifically the Brazilian population. To this end it questions the limits of the focus on increasing cledit and consumerism without respective investment in public and universal goods and services. Finally the article engages with the debate on models of development, social justice, rights and citizenship.
Keywords: Protests, youth, classes, social justice, development.
RÉSUMÉ: L’article se réfère à la conférence donnée par l’auteur lors du 16ème Congrès brésilien de Sociologie, à Salvador de Bahia. Il s’attache à analyser les Journées de juin 2013 qui ont eu lieu dans tout le Brésil, à la lumière du débat sur les inégalités, les classes sociales et la jeunesse. Pour ce faire, les résultats de plusieurs recherches, quantitatives et qualitatives, réalisées à différentes époques, y ont été incorporés. L’argument du texte cherche à récupérer, encore, la discussion sur les options de politiques publiques et leurs conséquences sur les conditions de vie des populations, plus spécifi quement, la vie brésilienne. En ce sens, le travail remet en cause les limites de l’accent mis sur l’augmentation du crédit et de la consommation sans investissements en retour dans les biens et les services publics et universitaires. En ultime instance, le texte se rattache au débat sur les modèles de développement, sur la justice sociale, les droits et la citoyenneté.
Mots-clés: Protestations, jeunesse, classes, justice sociale, développement.
O momento em que este texto começou a ser elaborado, a partir da conferência realizada no XVI Congresso Brasileiro de Sociologia,1 caracterizou-se como uma ocasião muito especial, uma vez que o congresso da SBS coincidiu com o meu retorno de um período sabático no exterior de oito meses. Por este motivo, escolhi começar o artigo remetendo a este momento de saída do Brasil. Em 5 de dezembro de 2012, viajei para os Estados Unidos da América, dando início ao pós-doutorado na UCLA, com uma proposta de pesquisa que questionava a emergência da chamada nova classe média brasileira; em especial no que vinha sendo veiculada no Brasil de que as distâncias sociais estavam sendo superadas. Na minha perspectiva, esse debate estava pautado por uma concepção estreita de modelo de desenvolvimento econômico, focado na construção de um “Brasil grande”, nos moldes do nacional-desenvolvimentismo da década de 70. Uma visão de desenvolvimento assentada, quase exclusivamente, na geração de renda e promoção do consumo de bens individuais, sem a respectiva atenção a investimentos na produção, na infraestrutura e em serviços públicos de qualidade. Em resumo, sem que houvesse esforços empreendidos no sentido de construir um projeto coletivo de nação.
Mas, apesar de minha crítica e descontentamento com este modelo, eu nunca poderia prever os acontecimentos que tiveram lugar em junho do ano seguinte. Assim como outros colegas, com quem muitas vezes troquei impressões informais ou dialoguei através de estudos baseados nas análises de classe, me sentia muito isolada nessa postura crítica, tendo em vista que a população brasileira parecia viver uma feliz comunhão com os destinos político, econômico e social que o governo vinha desenhando.
Portanto, fui tão surpreendida com os protestos de junho como qualquer outro cidadão brasileiro. Posso afirmar que a experiência de viver aquele momento longe do Brasil foi muito interessante e intensa. Eu e outros colegas brasileiros, que, nesse período, também eram pesquisadores visitante nos Estados Unidos, trocamos muitas impressões e debatemos de forma constante e diária o que se passava no Brasil. Gostaria de mencionar especificamente os professores Richard Miskolci (UFSCAR) e Lena Lavinas (UFRJ), que estavam em San Francisco e Princeton, respectivamente. Nossas fontes de informação consistiam em qualquer tipo de notícia que chegava para nós, através da leitura diária dos jornais online ou mesmo de blogs, mídias sociais e mensagens de colegas e familiares que permaneciam no Brasil.
Acredito que essa experiência foi muito importante para nós e, embora geograficamente distantes, nos sentíamos muito próximos do Brasil. Estar fora do país me permitiu olhar para o que acontecia de um ângulo diferente; este distanciamento, mesmo que não planejado, me auxiliou a captar diferentes interpretações, que chegavam dos mais diversos meios e formas, com tempo e espaço suficientes para elaborá-las e refletir sobre elas. Não havia seleção ou pressão de uma corrente de análise ou outra, somente um grande estranhamento em relação ao ardor e à rapidez com que se produziram interpretações taxativas e de finitivas sobre aqueles acontecimentos e os rumos que eles tomariam.
Foi exatamente naqueles dias turbulentos que a organização do congresso da SBS me pediu um título para a conferência. Coincidentemente, durante o período na Universidade da Califórnia, Los Angeles, finalizei dois estudos sobre juventude no Brasil. Por isso, me senti bastante atraída por reunir três elementos, que estiveram no foco das minhas preocupações nos últimos meses. Juventude, o tema de dois textos recentemente concluídos; igualdade, a questão que pauta minha agenda de pesquisa há alguns anos; e protestos, preocupação que ocupou horas e dias de meu período sabático.
Os protestos de junho de 2013 provocaram muita surpresa e inspiraram várias interpretações em relação a suas causas; por este motivo, não quero oferecer mais uma interpretação. Meu objetivo é, simplesmente, discutir temas já presentes na minha agenda de pesquisa à luz desses acontecimentos que, dada sua importância para a sociedade brasileira, envolveram todos nós, que nos dedicamos à Sociologia.
E por que a Sociologia, em especial? As sociedades modernas criaram várias instâncias autorreflexivas e a Sociologia é delas; nossa disciplina se constitui, precisamente, como uma ciência especializada nessa reflexividade. Essa é a sua especificidade, sua vocação e seu desafio, e é por isso que, muitas vezes, a Sociologia se confunde com o diagnóstico do presente, justamente por seu interesse pelo debate sobre temas contemporâneos, em particular aqueles que remetem às mudanças.
Entre as muitas posições apresentadas para “explicar” os protestos de junho, parece ter prevalecido aquela que defende que a diminuição das desigualdades, com correspondente transformação da sociedade brasileira em uma sociedade de classe média, teria criado expectativas de consumo e bem-estar muito além das possibilidades de nossa conjuntura. De inspiração toquevilliana,2 essa interpretação foi compartilhada por analistas de diversas orientações teóricas e ideológicas.
No entanto, passados o calor da hora e a perplexidade, vale a pena recuperar alguns elementos importantes para compreender as insatisfações expostas pelos diferentes segmentos da sociedade brasileira que saíram às ruas.
Gostaria de chamar atenção, primeiro, para a imagem que o Brasil refletia naquele momento, tanto para os próprios brasileiros como para o exterior.
O Brasil, apontado como uma potência emergente, considerando como indicador o PIB3 figurou em 2011 como a sexta maior economia do mundo, ultrapassando o Reino Unido. Ainda que tenha sido por um breve período, já que a queda do PIB em 2012 rebaixou nossa economia no ranking mundial, o Brasil era visto como uma das grandes promessas de desenvolvimento econômico e, principalmente, como um modelo de sucesso na luta contra as desigualdades. Um mal que nos persegue há séculos.
Por esse motivo, tamanho descontentamento da população em relação às condições de vida em um país tão bem-sucedido, que já estava sendo propagandeado como um país de “classe média”, causou, sem dúvida, o estarrecimento de muitos, dentro e fora do Brasil. Talvez seja esse o motivo de ter vigorado como primeira hipótese para compreender os protestos a de que, ao alcançar padrões de vida e consumo elevados, a população passou a desejar mais. E este foi, por motivos evidentes, a explicação propagada pelo governo e seus apoiadores. A curva de Kuznets teria, enfim, nos alcançado.
No entanto, os gritos que ecoavam nas ruas repetiam demandas muito antigas e bem conhecidas da população brasileira há várias décadas. Aqueles que, como eu, participaram de protestos nos anos 1980, ouviam as ruas de hoje como ecos do passado; na pauta estavam, novamente, saúde e educação, públicas e universais.
Associados a isso, os protestos do século XXI têm como alvo, também, a corrupção, uma questão que sempre aparece nas opiniões e percepções dos brasileiros sobre o sistema político, basta analisar as várias pesquisas de opinião que incluem o tema, mas que ganhou uma nova dimensão com o julgamento e condenação de personagens públicos vinculados ao governo.
Porém, nesse ponto, é importante relembrar que os protestos que se espalharam por várias cidades do país tiveram como estopim uma manifestação contra o aumento das tarifas dos transportes públicos em São Paulo, que foi impulsionada por estudantes e reuniu vários segmentos da sociedade. É fundamental, contudo, registrar que protestos contra aumentos de tarifas já vinham ocorrendo em Natal, Porto Alegre e Goiânia; mas sem a mesma repercussão. A repressão foi violenta e trouxe, para o coração da maior metrópole brasileira, a brutalidade policial tão bem conhecida nas periferias e favelas. As imagens e os relatos chocaram o Brasil e o mundo, mas este foi somente o primeiro choque.
Rapidamente, os protestos passaram a ser lidos como um movimento da classe média tradicional, insatisfeita com as mudanças ocorridas no país que apontavam para perda de privilégios e maior igualdade de oportunidades. Nesse ponto utilizei o termo de “classe média tradicional” para distinguir o grupo que pode ser compreendido como uma classe média em termos ocupacionais, educacionais e de estilo de vida, daquele grupo que tem sido chamado de “nova classe média” por alguns estudiosos e pelo governo, a partir de uma definição baseada, exclusivamente, em percentil da distribuição de renda.4 Nesse esquema de categorias, teríamos quatros grupos de renda ou, segundo alguns economistas, classes sociais: E = abaixo da linha da pobreza (definida como R$2,00/dia); D = entre a linha da pobreza e a mediana; C = entre a mediana e o décimo percentil de renda; AB = décimo percentil de renda. Desse modo, o grupo C, nomeado “nova classe média” seriam os 40% que se encontram abaixo do décimo percentil e acima dos 50% mais pobres. Esse intervalo, por definição, é estático em proporção e ao longo do tempo; mas pode incluir um número maior ou menor de pessoas. De qualquer forma, o significado de pertencer ao grupo C varia de sociedade para sociedade, tendo em vista que as distribuições de renda não são uma constante entre as economias mundiais.
Mas a grande contradição desta interpretação dos protestos estava, precisamente, nas demandas colocadas, que apontavam para a ampliação de direitos e melhoria de bens e serviços públicos e universais, como transporte, educação e saúde. Nada que de longe remetesse a algum tipo de privilégio para a tão criticada classe média tradicional.
Não bastasse isso, pelo volume e capilaridade das manifestações, não era possível, de forma alguma, caracterizar os protestos como pertencendo a um grupo social específico. Claro que os jovens são o motor das manifestações, mas isso é verdade no Brasil como no resto do mundo; portanto, não há novidade alguma aqui. Os jovens, por sua energia, generosidade, ímpeto e desprendimento, são o grupo que, em geral, se dispõe a empreender esforços de movimento e mudança.
Por isso, ao pensar no título dessa conferência, decidi usar o termo igualdade em lugar de desigualdade, porque queria dar um tom positivo a esse momento tão significativo para o Brasil. Os três elementos que compõem o título são, na minha perspectiva, extremamente positivos. Além disso, os jovens, principais agentes das manifestações que se estendem pelo país desde junho, vêm demandando maior igualdade e não somente nas condições de vida e oportunidades, mas, também, de participação e liberdade.
Quero enfatizar que a desigualdade continua sendo a marca mais profunda da sociedade brasileira e ainda não foram traçadas políticas capazes de abalar sua estabilidade.
Nos últimos 19 anos, que correspondem ao período de 1992 a 2011, a desigualdade de renda, medida pelo índice de Gini, exposto no gráfico abaixo (gráfico 1), mostra decréscimo constante.5 Ainda que isso possa representar um avanço, é importante salientar que o decréscimo foi de modestos 0,07 pontos, e ainda continuamos figurando entre os países mais desiguais do planeta. Considerando apenas a chamada “década inclusiva” (Neri, 2012), a diferença permanece em 0,06 pontos, longe de ser, portanto, um indicador de que a igualdade brasileira tenha levado à consolidação de uma sociedade de “classe média”.
Dessa forma, é importante reconhecer que a concentração de renda no Brasil é resistente e profunda, considerando que os 10% mais ricos têm renda média domiciliar per capita 12,7 vezes maior do que os 50% mais pobres, um quadro de desigualdades de renda só superado por Honduras, Colômbia e Bolívia.
Mas a agenda do país para combater as desigualdades se sustenta, fundamentalmente, na transferência direta e condicional de renda; um programa de orientação do Banco Mundial, preconizado por Milton Friedman e que tem como foco transferir recursos monetários para que os indivíduos possam, privadamente, consumir bens e serviços. A transferência direta de renda tem, ainda na perspectiva liberal, a virtude de aquecer o consumo, o que traz efeitos positivos para a economia de mercado. Diante desse quadro, não é de se estranhar o desgaste e a saturação desse modelo, que não garante a construção um sistema de segurança social público integrado e, consequentemente, torna distante a perspectiva de um futuro mais igualitário nas oportunidades e condições de vida.6
Os efeitos positivos imediatos que um programa de transferência direta de renda pode gerar esbarram em limites muito claros, vinculados ao tipo de bens e serviços que estão ao alcance dos diferentes grupos de renda. Um sistema orientado para o mercado resultará, fatalmente, em uma clivagem entre os tipos de serviço acessíveis às pessoas de acordo com seu poder aquisitivo. Isso nos coloca diante de uma realidade que estratifica, reproduzindo desigualdade; uma vez que os serviços consumidos pelos diferentes grupos sociais são, também, distintos na acessibilidade e na qualidade.
Ao mesmo tempo, é importante ponderar que a renda alcançada, muitas vezes, é aplicada no consumo de serviços que, em um estado de bem-estar social, seriam públicos, universais e gratuitos, como educação e saúde. Um jogo de soma zero ou, em alguns casos, negativa.
A própria Secretária de Assuntos Estratégicos da Previdência (SAE), com base na pesquisa “Vozes da Classe Média”, demonstra que este é o destino dado aos ganhos do grupo de renda C, definido por este órgão como “classe média”. No entanto, este órgão governamental parece avaliar como positiva a contratação destes serviços e bens no espaço das empresas privadas:
A classe média brasileira está crescendo e essa fatia da população quer acesso aos mesmos serviços que os ricos, mesmo que tenha que pagar por isso. É o que mostra o estudo Vozes da Classe Média, divulgado nesta quinta-feira (20) pela SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos) da Presidência da República. Com o aumento de renda, a classe média tem como prioridade gastar seu dinheiro com o que a classe alta normalmente gasta, como é o caso dos planos de saúde e escolas particulares. Em 2009, 14% dos estudantes de classe média estudavam em escolas privadas, quatro vezes mais que a classe baixa (3%). O número ainda é menor que a classe alta, que tem 59% dos seus estudantes em escolas particulares, mas tem crescido muito, de acordo com o estudo. No caso da saúde, no mesmo ano em questão, 24% da classe média já pagava por consulta e tratamentos de saúde, quase cinco vezes mais que a classe baixa. O estudo mostra que além da disponibilidade de recursos com o crescimento de renda, em dez anos a renda da classe média cresceu 3,5%, essa população gosta mais dos serviços privados porque acredita na maior qualidade deles.7 (grifo meu)
Nesse ponto, vale a pena recuperar a citação de Titmuss (1964:110; apudLavinas, 2013): “A maior conquista positiva que resultou da criação de serviços sociais diretos e universais em ‘espécie’ tem sido a erosão das barreiras discriminatórias formais. Um padrão de serviço aprovado publicamente, independentemente da renda, classe ou raça, substituiu o duplo padrão que invariavelmente significava serviços de segunda classe para cidadãos de segunda classe”.
De acordo com essa perspectiva, a eficiência do Estado de Bem-Estar Social está, exatamente, na garantia de benefícios públicos para todos os cidadãos, independente do status, renda ou de sua contribuição. Desse modo, parte do princípio de que a igualdade anda pari passu com o universalismo e a incondicionalidade. E a literatura mostra que, quanto mais universalizado é o sistema de proteção social, maiores são seus efeitos redistributivos. Em contrapartida, a seletividade tem efeitos bem menores, tanto na distribuição de bem-estar, como na promoção de uma sociedade mais integrada. Dessa forma, é possível apontar como modelos destes dois tipos de alternativas: os Estados Unidos, que priorizam a focalização, e os países escandinavos, que adotam maior universalização nas políticas e serviços públicos (Lavinas, 2013).
Não há dúvida de que as demandas apresentadas pela população brasileira nas ruas apontam, justamente, para essa questão. Entre as muitas bandeiras levantadas nas marchas de junho, estas eram constantes nas centenas de cidades onde ocorreram os protestos. Não por acaso, elas permaneceram na agenda das manifestações que se seguiram a junho e se estendem, até os dias de hoje, em algumas localidades.
As desigualdades têm múltiplas causalidades e, portanto, tratar um fenômeno tão complexo unicamente sob a lente da renda demonstra incapacidade de compreensão dos desafios que se impõem a quem, sinceramente, busca superá-los.
Por isso, o modelo de desenvolvimento adotado no Brasil, focado, quase exclusivamente, na geração de renda e consumo de bens individuais, sem o respectivo aprimoramento e investimento em infraestrutura, tecnologia e inovação e políticas públicas universais, não é resposta suficiente e, tampouco, eficiente para combater as desigualdades.
A incapacidade de enxergar a contradição entre os níveis de segmentação e carência da sociedade brasileira e a imagem de um país em pleno desenvolvimento com uma crescente igualdade de classes parecem ter impedido atores fundamentais nesse cenário de perceber os claros sinais que já vinham sendo enviados por grupos e movimentos sociais ligados à defesa de direitos, mesmo antes daquele mês de junho.
No caminho traçado para um projeto de desenvolvimento nos moldes do século passado, pouca atenção era dada aos golpes sistematicamente desferidos contra direitos de minorias, como indígenas, LGBTs e mulheres. Vistos como pequenas insatisfações, computadas na conta de grupos específicos em detrimento de uma agenda social mais ampla, estes movimentos parecem não ter sido compreendidos como atores plenos cuja demanda é por igualdade e justiça.
Soma-se a isto a enorme dificuldade de pressão destes grupos, que está diretamente ligada ao enfraquecimento, na última década, de alguns movimentos sociais organizados, ou porque tiveram suas agendas capturadas pelo Estado, ou porque foram, eles próprios, incorporados ao Estado.
Impossível deixar de observar, também, que ocorreram mudanças significativas e permanentes na forma de organização política da sociedade civil. Não é por acaso que surge, a partir dos protestos contra o aumento dos transportes públicos, um movimento linear e sem liderança, com grande capacidade de aglutinação via internet, e que desafiou a compreensão de todos nós, acostumados a um modelo mais tradicional de mobilização.
Mas eu não pretendo aqui discutir o tema dos movimentos sociais, porque não é meu objeto de pesquisa e, no Brasil, temos um grande número de sociólogos dedicados a este tema que podem, com mais propriedade, tratar de suas articulações e desdobramentos. É relevante observar que têm ocorrido protestos em vários países, por motivações distintas, e que esta característica internacional merece atenção. No entanto, meu objetivo não é fazer um estudo de movimentos sociais, mas destacar o ponto de convergência que mobilizou as pessoas no primeiro momento dos protestos no Brasil.
Mesmo que a agenda fosse múltipla e diversa, se estendendo por questões tão variadas, como demarcação das terras indígenas, combate à corrupção, demanda por serviços públicos e universais e rejeição de projetos apelidados “bolsa estupro” e “cura gay”, é importante notar que foi o aumento da tarifa de transportes urbanos coletivos o catalisador dos protestos que se espalharam pelo país.
O epicentro das insatisfações era a mobilidade urbana, que pode ser traduzida como ocupação do espaço das cidades, e se constituiu como primeira bandeira a ser levantada na sequência de protestos a que assistimos se espalharem por centenas de cidades brasileiras. A explicação pode estar no fato de ser este um problema que incide sobre toda a população; contudo, é fundamental enfatizar que o espaço é estratificado e segmentado por classes, tanto do ponto de vista físico-geográfico, como do ponto de vista simbólico. Portanto, mal distribuído, desigual e injusto.
Para falar sobre esta questão, gostaria de recuperar a pesquisa qualitativa que realizei em 2008, em parceria com Pedro Paulo Oliveira. O estudo, com base em grupos focais de jovens entre 16 e 24 anos no Rio de Janeiro, teve como objetivo apreender a percepção de desigualdades e justiça social. A metodologia utilizada foi a de grupos focais, selecionados por faixa etária (16-18, 19-21, 22-24), por estrato social (jovens de classe baixa, moradores das favelas-periferias da cidade e estudantes de escola pública, e jovens de classe média, moradores da zona sul carioca e estudantes de escolas particulares).
No entanto, só recentemente retomamos essa pesquisa para finalizar o artigo enviado para publicação na revista Interseções, do PPCIS da UERJ.8 Embora naquele momento o debate em torno da definição do grupo de renda C, batizado de “nova classe média”, não estivesse colocado nem na academia, nem na mídia, ao reler as transcrições, foi possível capturar representações e definições em relação a essa questão. Assim, transcrevo a seguir trechos da dinâmica com jovens de classe popular e jovens de classe média.
Hoje em dia é considerada uma pessoa de classe média, uma pessoa que tem um micro-ondas em casa, um computador, uma geladeira boa, duas, três televisões dentro de casa, isso eu acho que qualquer pobre pode ter. Eu trabalhava na zona sul e uma vez uma senhora esteve lá falando que a empregada dela tinha as mesmas coisas que ela tinha dentro da casa dela, duas televisões, uma TV a cabo, micro-ondas, DVD, computador... tinha a mesma coisa que ela tinha dentro de casa, a questão é zona sul, zona norte. (classe popular 22-24).
Essa questão de classe já é discriminada há séculos atrás, e conforme o tempo só vai se agravando: o carro que você usa, o supermercado que você faz suas compras, dependendo do supermercado, até o mesmo produto, o preço é diferente, dependendo do bairro, o bairro que você mora diz qual é a sua classe. (classe popular 22-24).
Eu entendo que sejam diferentes classes na sociedade. Tipo. Vou dar um exemplo: a localidade onde a pessoa mora. Tem a classe social da zona sul de um jeito e na zona noite de outro, e na baixada fluminense... (classe popular 19-21).
Até determinado salário é classe média baixa, classe média alta e classe média... Nem tanto por onde mora. Eu entendo pela renda da pessoa, da família, em geral (classe popular 19-21).
Os hábitos das pessoas, o meio que ela vive. (classe média 22-24).
Eu acho que classe social não está ligada só a dinheiro. Como o nome diz, está ligada à sociedade que você vive, a religião, se você pratica algum tipo de esporte, a sociedade daquele esporte que você pratica ou então uma faculdade, no caso dele [indicando outro membro integrante da dinâmica), de Educação Física, mas depende do meio das pessoas que você convive, não só dinheiro. (classe média 16-18).
Eu concordo com ele, acho que hoje em dia é tudo muito dividido, por exemplo, uma pessoa que tem dinheiro só vai estudar em colégio particular, então uma criança não tem esse acesso, você já convive com isso. Por exemplo, garotos de pais ricos passam o final de semana em um clube, já o pessoal de uma classe mais baixa vai para a praia, então não tem muito esse contato, as pessoas desde crianças já são meio que autoexcluídas, são separadas, porque é o meio que eles convivem, de repente por influência dos pais, isso tudo vai selecionando. (classe média 19-21).
Analisando os resultados dos grupos focais, é possível observar que a renda não consiste em um componente prioritário na definição de classe. Os jovens que participaram da dinâmica relacionaram classe social, principalmente, ao local de moradia, mostrando que a espacialidade é significativa para a atribuição de um lugar social. Mas esses jovens reconhecem, também, que a segregação se estende à escola, aos locais de lazer, entre outros espaços não compartilhados. Os entrevistados parecem não reconhecer a universalização do crédito e do consumo – com pleno acesso a objetos tais como celular, micro-ondas, computador, entre outros – como universalização de oportunidades e, portanto, promotora de igualdade de classes.
Portanto, não há por que se espantar que, em uma sociedade tão desigual e segregada,9 na qual muitas vezes recorremos às forças de segurança do Estado para circunscrever as populações carentes a espaços específicos das cidades, a luta pela mobilidade tenha sido o motivo inicial dos protestos. De fato, essa insatisfação já é expressa em situações de quebra de transportes públicos que ocorrem no dia a dia das metrópoles, de forma espontânea e sem efeito cumulativo.
Mas nada como um megaevento para colocar em xeque o lugar de cada cidadão no espaço urbano e, consequentemente, no espaço social, uma vez que estes não estão dissociados. O Brasil lançou-se a abrigar os dois maiores eventos esportivos mundiais, o Mundial de Futebol e as Olimpíadas. O governou ofereceu como apólice para a FIFA, um país emergente com classe média exuberante e democracia consolidada, e como apólice para o povo, a promessa de que a obsolescência da infraestrutura urbana estava com os dias contados, e, com isso, a promessa de uma vida social menos segregada.
Mas o caos urbano, velho conhecido das grandes cidades, foi se agravando, em parte, pela política governamental de incentivo ao consumo desenfreado de automóveis como fator de crescimento e, com o início da Copa das Confederações, o palco dos protestos foi transferido das praças e avenidas para as arenas esportivas onde ocorriam os jogos. Os estádios, protegidos por aparato militar digno de tempos de guerra, tornaram-se inalcançáveis para o cidadão comum, aquele que sempre foi o protagonista mais apaixonado e fiel do futebol brasileiro.
O Brasil e o mundo assistiram a uma batalha por espaço e direito à cidade, travada por cidadãos inconformados por terem que seguir os riscos e quadrados estabelecidos por seus governantes. Circulou pelo mundo, em fotos e vídeos, uma imagem quase inacreditável: a do povo brasileiro, que tanto se orgulha de ser pentacampeão de futebol, reunido em volta dos estádios, não para comemorar as vitórias da seleção nacional, mas para reclamar seu lugar e sua identidade.
Em lugar dos gritos de gol, o povo entoava nas ruas pedidos por transparência nos gastos públicos direcionados para a copa do mundo, por investimentos em saúde e educação, bem como, pelo combate à corrupção. Emblemática foi a reação dos manifestantes à vitória da seleção brasileira sobre a seleção japonesa, ecoando: “Ei Japão, trocamos nosso futebol pela sua educação!” A FIFA, com razão, não se sentiu bem-vinda no Brasil durante aquele período. As entidades, junto com o governo federal, foram os alvos das maiores críticas.
A resposta do poder público chegou através da desmedida brutalidade policial, que, antes aplicada somente aos moradores das periferias, se abateu sobre todos. O desrespeito aos direitos fundamentais de expressão, de ir-e-vir e à integridade física, tão comum nas favelas e bairros da periferia, é apresentado aos moradores do asfalto e das zonas centrais das cidades. As imagens causaram grande indignação, ainda que a violência policial nas manifestações tenha sido significativamente mais branda do que a cotidianamente vivida nas comunidades carentes. Afinal, como faziam lembrar os comentários nas redes sociais, nas favelas e periferias as balas não são de borracha.
Nesse sentido, cabe expor alguns dados sobre vitimização de jovens, com os quais me deparei ao escrever o capítulo sobre demografia do livro “Youth in the BRICS Countries” organizado, no Brasil, por Tom Dwyer.
O campo de estudos da Sociologia que se dedica à análise da violência e segurança no Brasil é muito amplo e internacionalmente reconhecido por seu trabalho; portanto, não caberia entrar aqui em análises mais detalhadas dos dados. O objetivo, ao apresentar essas informações, é apenas destacar a crise de segurança em que nosso país (e, sobretudo, nossas metrópoles) está mergulhado há décadas. As mortes por causas externas de homens jovens, particularmente negros, que no Brasil têm características epidêmicas, já podem estar afetando a distribuição populacional.
Trago essas informações para argumentar que, embora parte significativa da sociedade brasileira não saiba e os governos prefiram ignorar, existe uma parcela da população jovem exposta à violência e, portanto, não se intimida facilmente diante dela, já que vive submersa nesse tipo de sociabilidade. Por isso, para surpresa de muitos, alguns manifestantes, naquela Copa das Confederações, desafiaram as limitações espaciais impostas pelo Estado e romperam as grades e muros que cercavam os estádios. Os confrontos se acirraram e produziram vítimas. Vivendo a ilusão da justiça e da democracia, havíamos esquecido que elas não habitam as periferias e, lá, a convivência entre jovens e violência é cotidiana.
Ainda assim, o questionamento sobre a origem das insatisfações populares prosseguia. De onde vinha tanto descontentamento, se os pobres nunca foram tão beneficiados? Se o Brasil estava, finalmente, se convertendo em uma sociedade de classe média?
De novo, o recurso à tese de que a ascensão social produziu expectativas e desejos por mais ascensão prevaleceu. Precisamos reconhecer que a ideia de que mobilidade ascendente pode gerar conflitos sociais é uma tese nova; para falar francamente, é uma tese novíssima.
Os estudos na área demonstram que a ascensão social tende a acomodar conflitos; seja pela melhoria efetiva das oportunidades em relação ao passado, do próprio indivíduo ou de seus pais; seja pela famosa teoria de Hirschman (1973), denominada “efeito túnel”, na qual a experiência geral de mobilidade, quando aumenta as chances de ascensão de classes na sociedade como um todo, gera percepção positiva nos indivíduos e diminui a insatisfação com as desigualdades, a partir das expectativas de sua própria chance de ascensão.
Para explicar sua teoria, Hirschman utiliza a seguinte imagem:
Suponha que estou dirigindo em um túnel de duas pistas, ambas indo na mesma direção, e entro em um engarrafamento sério. Nenhum carro se move em qualquer pista, tanto quanto eu posso ver (o que não é muito longe). Eu estou na faixa da esquerda e me sinto abatido. Depois de um tempo, os carros na pista da direita começam a se mover. Naturalmente, meu espírito se anima consideravelmente, pois sei que o congestionamento foi superado e que a vez da pista em que estou andar, certamente, virá a qualquer momento. Mesmo que eu esteja parado, ainda assim, me sinto muito melhor do que antes por causa da expectativa de que eu deverei, em breve, estar em movimento’ (Hirschman, 1973, p. 545).
O problema das interpretações que surgiram para explicar a insatisfação da sociedade brasileira é que elas não são, de fato, teses sobre classes, embora tenham se apropriado do conceito. Para esses analistas, a mobilidade de classes é apreendida, simplesmente, a partir do aumento de renda e, especialmente, do consumo. Esquecem que não é possível falar em mobilidade de classes considerando apenas estes dois elementos, porque os ganhos em renda não se traduzem, necessariamente, em igualdade de oportunidades ou chances de vida, alvo das análises de mobilidade de classe.10
Analisando o esquema de classes EGP11 (tabela 1), é possível indicar que não houve mudança significativa na estrutura de classes no Brasil. Vasta literatura nas áreas de Sociologia e na Economia vem apontando que o aumento das vagas no mercado de trabalho tem se concentrado em ocupações de baixa qualificação, prioritariamente no setor de serviços e com baixo rendimento, uma vez que cerca de 90% dos empregos formais estão na faixa de até três salários-mínimos. Aliás, a baixa qualificação do trabalhador brasileiro, e aqui retomamos a questão da educação, tem sido apontada como uma das dificuldades encontradas para o desenvolvimento de uma economia moderna, com inovação industrial e tecnológica.
Importante enfatizar que as categorias não-manuais, que se aproximam mais da concepção de classe média, se mantiveram na ordem de 32% da população masculina com idade entre 24 e 60 anos, considerando os anos de 2002 e 2009. E considerando apenas este segmento não-manual, chegamos à seguinte tabela (tabela 2):
Da mesma forma, é interessante recuperar aqui, também, pesquisas qualitativas que estamos realizando na região metropolitana do Rio de Janeiro. Há pouco mais de um ano, iniciamos um projeto que reúne alunos e professores da UFRJ e da UERJ, que se baseia em entrevistas com pessoas que se enquadram no grupo de renda C, que tem sido denominado de “nova classe média”. Apesar de ainda estarmos na fase de análise das entrevistas, foi possível observar que, apesar de reconhecer ganhos na capacidade de consumo, a maioria dos entrevistados não se identifica como classe média e, quando o fazem, definem classe média como aquela que tem acesso a um padrão de consumo básico.
A maior parte dos entrevistados não se identificou como classe média, para a qual eles atribuem características como: escolaridade elevada, localidade de moradia em bairros afluentes e centrais da cidade, moradia própria e acesso à cultura. Nesse sentido, a classe média é vista pela “nova classe média” como sendo aquela que acumula bens, vive nos bairros mais valorizados das cidades e tem acesso a serviços que a camada mais pobre da população, na qual em geral os entrevistados se incluem, não tem. Os demais ou não se identificaram com nenhuma classe ou definiram como “classe média” aquela que “não passa necessidade”, ou seja, estaria acima da linha da pobreza.
Entrevista 1: Sonia, trabalhadora no comércio, 48 anos, Saracuruna.
Entrevistador: Você acha que pertence a qual classe social?
Sonia: A pobre mesmo!!! [risos]
Entrevistador: Pra você o que é classe social?
Sonia: É a pessoa ter um bom imóvel, pessoa instruída, viajada.
Eu vejo por esse lado.
Entrevistador: Pra você o que é ser classe média?
Sonia: É assim, morar no Flamengo, Botafogo, Tijuca. Não sou eu!
Eliane, costureira, 45 anos, Vigário Geral
Entrevistador – Você acha que pertence a qual classe social?
Eliane – Eu? Hum... A pior que tem.
Entrevistador – A pior que tem? Por quê?
Eliane – Sou pobrona, pobretona. Tenho nada. Não tenho carro, não tenho casa. Pra não dizer que eu não tenho nada tenho meu pai, minha mãe, meu filho e meu esposo.
Entrevistador – Você gostaria de estar numa outra posição? Eliane – Hm, quem não gostaria?
Entrevistador – E pra você, o que é classe social?
Eliane – Hm, o que é classe social? A pessoa melhorzinha, assim, de vida, né? Tem um pouquinho mais do que aquela... Classe média. Classe média é o quê? Pessoa que não tem nada? Não. Eu sou o quê? Classe o quê? Eu? Classe média, classe ruim, o quê? (risos)
A distância entre as classes no Brasil é imensa e, se considerarmos a ausência de serviços e equipamentos, públicos e universais, compartilhados pelos diferentes estratos sociais, é possível argumentar que não há expectativa de transpor essa distância que, ao longo de nossa história, tem sido construída por escolhas políticas equivocadas.
A educação, não por acaso, aparece como tema central nos discursos dos entrevistados das diferentes classes médias, a nova e a tradicional, bem como no repertório dos protestos que se estendem pelo país desde junho. Ela parece ser o ponto nodal, no qual se depositam expectativas de transposição das desigualdades sociais. A centralidade dessa questão aparece de forma muito clara nos grupos focais de jovens:
“Questão de classe social tem gente que tem menos oportunidade, a gente pode estudar em colégio pago que o ensino é bem melhor. Ninguém quer estudar em colégio público. Se você tem oportunidade de estudar num bom colégio, colégio pago, você vai preferir ter uma educação melhor, fazer cursinhos e tal e ter alguma vantagem. Aquela pessoa que tem mais dificuldade pra você trabalhar, não precisa... não tem tanta oportunidade quanto você.” (classe média 19-21).
“A pessoa que nasce num berço de ouro já está feita, praticamente, porque na educação publica hoje em dia é uma vergonha, porque ninguém aprende nada, agora estão passando sem ter condições de estar exercendo nada no futuro, eles estão passando automaticamente, eu acho que nascer numa família que já tenha uma condição melhor, que dê uma condição para ela ter um futuro, uma profissão, eu acho que isso é o mais importante.” (classe popular. 22-24).
No mesmo estudo ficou, também, evidente uma oposição entre percepções de ganhos individuais e ganhos coletivos, quando foi perguntada qual a expectativa que os jovens tinham de que a situação no Brasil melhorasse.
A gente vai melhorar. Mas o país não melhora (classe popular, 16-18 anos).
A tendência é só piorar. Com os políticos que estão aí, eles só pensam neles, neles... Aí não dá (classe popular, 22-24 anos).
Eu acho que economicamente vai melhorar, como a Jéssica falou, depende da nossa geração, eu me preocupo com isso, se depender de algumas pessoas que conheço da nossa idade, estamos ferrados, mas em nível geral não vai melhorar, mas talvez para os juízes e doutores vá melhorar, acho que o país vai ficar mais rico. (classe média, 16-18 anos).
Foi o que ela falou, acho que economicamente eu tenho esperança que vai melhorar. Socialmente de repente acompanha. Acho que a gente tem esperança, ainda tem esperança (classe média, 19-21 anos).
Essa cisão, entre a expectativa de melhoria na situação individual e de piora na situação social/coletiva, aparece como uma profunda e triste cicatriz deixada no nosso delicado tecido social pelas imensas desigualdades do país.
Apesar disso, naquele grupo, entrevistado no ano de 2008, já parecia haver uma disposição para a mudança.
Acho que isso depende tanto do povo quanto dos políticos. A gente tem que se manifestar e os políticos que estão lá para nos representar, tem que dar voz à nossa manifestação (classe média, 16-18 anos).
Nós somos o futuro do país, se não fizermos nada, vai ficar do jeito que está ou até piorar. (classe média, 19-21 anos).
A gente tem também que ajudar. Não pode ter esse pensamento de só deixar na mão do governo (classe popular, 19-21 anos).
E por causa dele e de alguns não dá pra fazer? Tem que fazer. Tem um monte de gente querendo. É o tempo de cada um, cada um tem a cabeça diferente. Conforme algumas pessoas são influenciadas pelas outras, as outras têm cabeça formada. Tem que dar tempo ao tempo, tem que ir fazendo pra ver se a cabeça das pessoas vai mudando. Só assim que vai ter oportunidade de mudar isso aí. Senão, vai continuar do jeito que está (classe popular, 16-18).
Estas falas indicam uma disponibilidade para a transformação e uma responsabilidade em relação a ela. Seria interessante poder explorar e aprofundar essa questão em novas dinâmicas de grupos focais com jovens, uma vez que os grupos então realizados não tinham esse foco e, portanto, é difícil balizar como evidência empírica, tendo em vista o conjunto das entrevistas e a própria análise que fizemos. Apesar disso, ao preparar a conferência e relendo o artigo que vai ser publicado, foi bastante tentador pensar que, talvez, alguns desses jovens estejam hoje nas ruas do Rio de Janeiro, demandando educação, saúde e, principalmente, liberdade.
No momento em que concluo esse artigo, milhares de pessoas protestam nas ruas do Rio de Janeiro, em apoio aos professores da rede pública em greve e por educação de qualidade, pública e universal. Não obstante, uma violenta repressão se abate sobre os manifestantes, com uso de arma letal e prisões de centenas de pessoas, equivocadamente enquadradas na lei 12.850/2013, voltada para a criminalização das organizações criminosas no modelo de milícias e outras.
Estes fatos deixam claro o interesse dos governos em sufocar as manifestações, que parecem ter grande potencial de prejudicar os lucros esperados com os megaeventos, em especial o Mundial de Futebol que ocorrerá no próximo ano, bem como com a atração de capital internacional. A política econômica do atual governo se baseia, fundamentalmente, em atração de investimentos financeiros e exportação de commodities, tendo em vista que a inovação tecnológica no Brasil pouco evoluiu. Ao mesmo tempo, o governo realiza uma ampla operação de concessões para a iniciativa privada, particularmente em obras de infraestrutura e exploração de petróleo. Nesse sentido, rupturas na ordem pública que impliquem em aumento dos riscos de investimentos no Brasil são vistas como extrema mente negativas e têm sido combatidas com redobrado vigor e violência.
Nesse momento, é impossível fazer qualquer previsão de desfecho para as insatisfações e conflitos que ocupam as ruas; a falta de canais de diálogo é, provavelmente, o maior obstáculo para a negociação por um pacto social. Contudo, a pauta de demandas é bem conhecida, como eu disse já no início deste artigo, e vem se consolidando ao longo dos meses que se seguiram a junho de 2013. Os manifestantes pediram saúde e educação “padrão FIFA” e este se tornou um mote que ecoa até os dias atuais. Soma-se a isso a revolta com a violência policial que faz o tema da segurança pública entrar no repertório da sociedade brasileira com força.
O efeito mais evidente e imediato dos protestos foi ter mudado a visão sobre o Brasil; tanto a imagem que o Brasil tinha do Brasil, como a imagem que o mundo tinha do Brasil.
Contudo, ao demonstrarem ter existência mais longa do que se supunha no princípio, os protestos geraram novos contextos de discurso político e trouxeram o debate sobre perspectivas e projetos de nação para o cotidiano da sociedade brasileira. Ao despertar de uma espécie de torpor que havia tomado o país, capturado na imagem de perfeita ordem e progresso, a população brasileira tornou-se mais atenta e compreendeu que a vida social não está dissociada das disputas políticas, assim como a pauta política não pode, nem deve, se constituir apartada da vida social.
Mesmo desconhecendo os rumos que irá tomar o anseio de participação e mudança da sociedade brasileira e, em especial, dos jovens, atores principais desse processo, é possível chegar a uma conclusão: o Brasil não será mais o país que conhecemos antes do dia 20 de junho de 2013. Nessa data houve uma ruptura no consenso que amarrava todos nós à ilusão da igualdade e da democracia em nosso país, demonstrando que a opção pela agenda pautada no consumo e no crédito se tornou insuficiente para as demandas de justiça social. Essas amarras foram rompidas, assim como o consenso. Uma ruptura impossível de ignorar e, mais difícil ainda, de emendar.
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Notas