RESUMO: Se uma das particularidades do diagnóstico do primeiro e mais importante livro de Oliveira Vianna, Populações meridionais do Brasil (1920), consiste em pensar o país a partir de suas diferenças internas, de seus elementos heterogêneos – como fica claro desde o título, escrito no plural – essa ênfase no estudo nas diferenças não pode ser vista apenas como simples idiossincrasia do autor, tratando-se, pelo contrário, de uma visão algo recorrente em outras análises daquele momento. Tomando como ponto de partida uma viagem de Oliveira Vianna a São Paulo no início dos anos 1920, tento indicar neste artigo como não apenas o autor, mas principalmente suas ideias “viajaram” e dialogaram de forma importante com diferentes setores intelectuais daquele estado, preocupados então em pensar as relações entre São Paulo e restante do Brasil.
Palavras-Chave:Populações meridionaisPopulações meridionais,BrasilBrasil,Oliveira ViannaOliveira Vianna.
ABSTRACT: One of the singular features of the diagnosis undertaken by the first and most important book by Oliveira Vianna, Populações meridionais do Brasil (1920), is how it conceives the country through its internal differences and heterogenic elements – an approach announced in the title itself, written in the plural. However this emphasis on studying differences cannot be seen as a mere idiosyncrasy on the author’s part: on the contrary, this view of Brazil is also found with some frequency in other analyses from the period. Taking as a starting point Oliveira Vianna’s trip to São Paulo at the start of the 1920s, I look to show how not only the author ‘travelled’ but also and above all his ideas, generating an important dialogue with different intellectual circles in the state, concerned at the time with the relations between São Paulo and the rest of Brazil.
Keywords: Southern populations, Brazil, Oliveira Vianna.
RÉSUMÉ: Si l’une des particularités du diagnostique du premier et principal ouvrage de Oliveira Vianna, Populations méridionales du Brésil (1920), consiste à penser le pays à partir de ses différences internes, de ses éléments hétérogènes comme l’indique clairement le titre écrit au pluriel , cette mise en évidence des différences ne peut être pas interprétée comme une simple idiosyncrasie de l’auteur, car il s’agit , au contraire, d’une vision reposant quelque peu sur d’autres analyses faites à cette époque. En prenant comme point de départ un voyage de Oliveira Vianna à São Paulo au début des années 1920, j’essaie de montrer dans cet article combien non seulement l’auteur mais principalement ses idées « voyagent » et dialoguent de façon conséquente avec les différents secteurs intellectuels de cet état, qui étaient alors soucieux de réfléchir sur les relations entre São Paulo et le reste du Brésil.
Mots-clés: Populations méridionales, Brasil, Oliveira Vianna.
Artigos
UM “FIAT MIRACULOSO”: OLIVEIRA VIANNA VISITA SÃO PAULO
A ‘MIRACULOUS FEAT’: OLIVEIRA VIANNA VISITS SÃO PAULO
UN « FIAT MIRACULEUX » : OLIVEIRA VIANNA VISITE SÃO PAULO
Recepção: 15 Novembro 2013
Aprovação: 22 Janeiro 2014
DOI: 10.20336/rbs.49
Em fevereiro de 1924 ocorre um fato prosaico, aparentemente desprovido de maiores significados: o sociólogo Francisco José de Oliveira Vianna visita a cidade de São Paulo. É verdade que Oliveira Vianna viajava pouco, o que lhe valeu a fama de autor recluso, quase enclausurado em sua casa, hoje museu, na outrora bucólica Alameda São Boaventura, na cidade de Niterói. Pelo que indicam algumas correspondências de seu espólio, o autor de Populações meridionais do Brasil (1920) ia no máximo até certas cidades de Minas Gerais, e, mesmo assim, com o objetivo estrito de repousar e de recuperar sua frágil saúde. O objetivo desta comunicação será explorar um pouco essa rara excursão de Oliveira Vianna para longe dos seus domínios, procurando entender o que teria lhe motivado a viajar justamente naquele momento. Adiantamos, não sem um pouco de frustração, que a razão exata da viagem não poderá ser recuperada, afinal, não dispomos de documentos que indiquem com precisão o que Oliveira Vianna ia fazer em terras paulistas. No entanto, acredito que, recuperando o contexto intelectual e a circulação da obra do autor (livros e artigos, principalmente) nos anos 1920, seja possível compreender melhor os sentidos possíveis daquela visita.
Sabemos com certeza que Oliveira Vianna recebeu alguns convites para ir a São Paulo no início da década de 1920. A correspondência com Monteiro Lobato (seu editor, lembremos) inclusive nos deixa entrever que provavelmente foi ele o responsável pela concretização da viagem. Em 22 de junho de 1922, Monteiro Lobato faz um convite formal, a pedido da Liga Nacionalista,1 para que o sociólogo fizesse uma palestra na capital paulista:
A Liga Nacionalista incumbiu-me de convidar-te para uma conferência aqui. Deseja ela, interpretando a voz máxime de S. Paulo, ter a honra de apresentar-te solenemente ao público paulista. É o grande homem que surge, o sociólogo, o abridor de sendas novas, e a Liga quer ter o gosto de dizer mais tarde – Fomo nós que o descobrimos e o apresentamos ao país. Prepara-te, pois, e vem, e verás que linda acolhida vais ter.
Provavelmente no mesmo ano, Monteiro Lobato novamente enfatiza a necessidade de Oliveira Vianna ir a São Paulo:2 “Quanto à tua vinda, conselho meu, de velho e de ex-patriota: apressa-a. Desliga o fone e vem [...] Arruma a trouxa e vem para Campos [do Jordão] meter mãos à grande obra que os paulistas esperam de ti: A bandeira e o bandeirante”. Preparava Oliveira Vianna um livro sobre o bandeirante? Após a aguardada visita em 1924, Monteiro Lobato volta à tona:
Deu-me grande alegria saber de tuas melhoras. Que se acentuem elas e que venhas logo combinar a tua nova vinda. Virás para cá como um messias, um homem que traz a lei nova. Lê a carta junta, que verificarás que é assim. O Secretário do Interior pergunta-me sempre: e o Vianna, quando vem? Como te querem, como te compreendem aqui! E como isto depõe a favor da mentalidade de S. Paulo, um dos poucos lugares no Brasil onde creio possível a passagem do utópico para o orgânico.
São Paulo, segundo Monteiro Lobato, não seria apenas o espaço mais adequado para a divulgação da obra de Oliveira Vianna, mas o próprio lugar de realização de seu prognóstico, a passagem do idealismo utópico para o orgânico, conceitos que são apresentados pela primeira vez no artigo “Idealismo na evolução política do Império e da República”, publicado dois anos ante no Estado de S. Paulo. Por essa relação íntima entre Oliveira Vianna e São Paulo não ser um aspecto óbvio, nos deteremos nessa questão, procurando demonstrar como o autor que normalmente é associado ao Rio de Janeiro e tudo que isso normalmente implicaria (monarquismo, centralização política etc.) estava embrenhado e, mais do que isso, ao que parece intimamente identificado com o fenômeno social paulista que então se fomentava.
Teses que formulam a particularidade da experiência de São Paulo são antigas, e podemos citar como exemplos – e nem são os mais remotos, ainda que talvez os mais famosos – os livros A pátria paulista e Propaganda separatista. São Paulo independente, o primeiro de Alberto Sales e o segundo de Martim Francisco. No início do século XX, percebemos esforços cada vez mais sistematizados, inclusive institucionais, para ressaltar a formação “original” dos paulistas. Essas iniciativas confluem para a valorização, e poder-se-ia falar mesmo em criação, de uma figura que é erigida a símbolo desse momento: o bandeirante. Segundo Lilia Schwarcz, o bandeirismo nesse contexto aparece como a metáfora de uma identidade própria do paulista, uma tentativa de desenvolver uma história cultural ou mesmo civilizacional capaz de confrontar os discursos hegemônicos da época, principalmente o estabelecido na capital federal (Schwarcz, 1993). Sem o risco de estarmos exagerando, é possível dizer que uma parcela significativa da agitação cultural de São Paulo na virada do século gira em torno dessa questão identitária e da valorização do bandeirantismo desde a criação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) e do Museu Paulista até a Semana de 22.3 No conjunto das interpretações do Brasil, talvez o caso mais famoso e importante de valorização da diferença da formação paulista para o restante do país sejam os livros de Paulo Prado, Paulística e Retrato do Brasil, que expandem o diagnóstico da especificidade de São Paulo para o prognóstico de que seria esse estado aquele responsável por guiar o restante da nação degradada. Ou, caso contrário, ir às armas pelo separatismo.
De Niterói, Oliveira Vianna seguramente não estava alheio ao que acontecia no estado vizinho. Basta lembrarmos que toda sua produção intelectual mais importante passava por São Paulo: Populações meridionais foi lançado pela editora paulista de Monteiro Lobato, assim como seus livros subsequentes, e antes mesmo de 1920 artigos seus já eram publicados com frequência pela Revista do Brasil (também de Monteiro Lobato) e pelo jornal Estado de S. Paulo. Talvez ainda mais significativo, Oliveira Vianna foi interlocutor direto dos principais historiadores paulistas sobre a questão bandeirante. Em um rápido apanhado, ressaltamos que, diretamente sobre essa temática, Oliveira Vianna trocou artigos (e muitas vezes farpas) na imprensa com Paulo Prado (resenhando Paulística); Afonso d’Escragnolle Taunay, com quem manteve uma longa e copiosa correspondência, marcada não apenas pelo intercâmbio intelectual constante, mas também por uma relação afetiva próxima; e com Alfredo Ellis Júnior, com quem mantém um acalorado debate nas páginas de O Correio da Manhã. Em todos os artigos com os três interlocutores que destacamos o que estava em jogo era uma mesma questão: a origem étnica do paulista antigo, identificado ao bandeirante. Os quatro autores estão procurando identificar em São Paulo uma formação racial específica, esclarecedora da particularidade da região, ainda que lançando mão, cada um deles, de uma explicação distinta.4
Para além de se constituir como uma importante questão da pesquisa historiográfica, chamamos a atenção para como a recuperação da figura do bandeirante assumia um papel político evidente naquele contexto do início do século XX. Mais do que um símbolo do passado, o bandeirante era um modelo para o presente e para o futuro. As suas virtudes eram as da livre iniciativa, do ímpeto, da autonomia, da insubmissão à autoridade, um verdadeiro yankee da América do Sul, na expressão de Basílio de Magalhães, algo não tão distante dos postulados americanistas de um Alberdi, na Argentina, por exemplo (Werneck Vianna, 1993).
Oliveira Vianna normalmente é encarado no sentido oposto, antes um “iberista” do que um “americanista”, um entusiasta dos valores rurais e pré-capitalistas. Essa percepção fez com que José Murilo de Carvalho formulasse a conhecida tese das “duas cabeças” de Oliveira Vianna. Se metodologicamente ele abraçava explicitamente os postulados da Escola de Le Play e de outros autores franceses do período, como Le Bon e Taine, no que diz respeito aos valores políticos suas posições – autoritárias e centralistas – se afastariam acentuadamente, aproximando-se do pensamento conservador do Império brasileiro. Ao criticar o liberalismo e suas instituições, Oliveira Vianna revelaria seu “coração ibérico” e o apego a uma “tradição cultural ibérica fundada no comunitarismo”, uma “alternativa ao Ocidente nórdico que hoje parece monopolizar o conteúdo da modernidade” (Carvalho, 1993, p. 24). Werneck Vianna, por sua vez, nota como Oliveira Vianna “inscreve-se numa posição que o leva a valorizar positivamente a história do país e seu próprio povo”, e não criticá-la, como a atitude americanista suporia (Werneck Vianna, 1993: 373). Ele seria, então, um “iberista instrumental”, uma vez que “quer atingir a moderna cultura anglo-saxônica – para ele, o corporativismo e a administração técnica e científica da vida social, passando por cima da ‘etapa’ liberal e extraindo ‘vantagem’ do atraso social do povo-massa, para o qual é exótica a institucionalidade política do liberalismo” (Idem: 391). Por esse prisma, Oliveira Vianna, apesar de um eminente estudioso do bandeirismo em uma época em que essa questão possuía um peso ideológico manifesto, não compartilharia do quinhão “americanista”, do entusiasmo relativo à incorporação de valores anglo-saxônicos à cultura brasileira.
A questão, no entanto, possui seus matizes. Os livros disponíveis na biblioteca da Casa de Oliveira Vianna, por exemplo, indicam que, desde pelo menos 1908, Oliveira Vianna estava de certo modo embebido pelas teses de seus autores franceses diletos, como Edmond Demolins, Henry de Tourville e Vacher de Lapouge. As notas de leitura, escritas na marginália dos livros, indicam que o entusiasmo com essas obras ia além do mero interesse metodológico. Ao comentar, por exemplo, A quoi tient la supériorité des Anglo-saxons,5 de Demolins, Oliveira Vianna mostra-se de acordo com a proposta educacional do livro, o caráter estritamente prático do ensino, em que a palavra de ordem seria estimular a luta pela vida (“lutte pour la vie”), e escreve que “é sobre esse ponto que é necessário reformar o nosso ensino primário e o nosso ensino secundário”.6 Ao lado do elogio de Demolins aos jovens da nobreza ingleses, que “foram treinados, sobretudo nesse século, pela grande corrente da vida ativa e do self-help, que caracteriza as sociedades de formação particularista” (Demolins, s/d: 176), Oliveira Vianna anota: “é o que espero se realize aqui, com o exemplo dos estrangeiros”. Essas marcações são especialmente interessantes porque, além de indicarem uma tendência muito simpática do autor de Populações aos postulados individualistas, apontam para um tipo de expectativa na mudança pautada pela educação, um tema que some quase completamente em suas formulações posteriores. O arrebatamento de Oliveira Vianna em 1908 por A quoi tient la supériorité des Anglo-saxons é tanto que ele chega a escrever nas últimas páginas da edição uma pequena nota em que indica que deste livro “sulcam relâmpagos anunciadores de um Fiat próximo”.
Há, portanto, nesse “primeiro” Oliveira Vianna um evidente lamento pela ausência no brasileiro daqueles valores que poderíamos chamar de “particularistas”, na expressão cara à Escola de Le Play. Essa condenação seria integral? Como também sugerem as marginálias, os bandeirantes poderiam escapar da sentença – é o que Oliveira Vianna assinala, por exemplo, no livro Histoire de la formation particulariste, de Tourville, lido em 1908. Quando este comenta sobre a expansão dos primeiros povos particularistas na Europa, o leitor Oliveira Vianna escreve à margem: “Os nossos bandeirantes foram os que representaram mais ou menos igual papel entre nós”. Seriam os bandeirantes os nossos particularistas? Ou apenas atuaram de maneira semelhante? Ainda mais: Oliveira Vianna teria de fato abandonado essas ideias em um momento posterior de sua produção?
Avancemos até 1919 e ao contexto das pesquisas bandeirantes. Em outubro daquele ano, Oliveira Vianna escreve para O Estado de S. Paulo um artigo chamado “Os antigos paulistas”, comentando o livro Capitania de S. Paulo no governo de Rodrigo Cezar de Menezes, de Washington Luís,7 que havia acabado de deixar a prefeitura de São Paulo após dois mandatos e se preparava para assumir o governo do estado. Como normalmente ocorria, o livro era mais uma desculpa para que Oliveira Vianna falasse de temas que lhe preocupavam do que propriamente o objeto de uma resenha. Aproveitando que se tratava de uma obra sobre o bandeirismo e a expansão sertanista, o articulista se detém em comentar sobre a importância da memória da figura do bandeirante naquele atual momento da nacionalidade. A circunstância seria delicada. O que estava em jogo era o imperialismo das grandes nações mundiais sobre os povos novos, “que ainda não são grandes, nem ricos, nem fortes” (Oliveira Vianna, 1919: 2). As riquezas naturais brasileiras, “um dos maiores empórios de matérias primas do globo”, estariam sob ameaça de países sedentos e muito bem-preparados, esperando, sem qualquer tipo de escrúpulo, uma oportunidade para se fazerem senhores das reservas nacionais. O Brasil estaria num dilema: ou ele mesmo utiliza suas matérias primas ou elas serão exploradas pelas nações industrializadas, que as necessitam em volumes cada vez maiores e mais constantemente inexploradas é que não serão. Que fazer?
Nessas condições – ou nós, por uma transformação rápida dos nossos métodos educativos e de certos preconceitos sociais embaraçantes, nos pomos em condições de assumir a direção da nossa própria vida econômica, mantendo o senhorio das nossas fontes de riqueza e fazendo desses outros concorrentes apenas nossos colaboradores ou nossos auxiliares; ou então ficaremos reduzidos à situação de simples espectadores da exploração dessas riquezas por esses novos “emboabas”, cheios de audácia, iniciativa e tenacidade (Ibidem).
Se a segunda opção não é uma alternativa, pois “equivale renunciarmos praticamente à nossa própria soberania”, então só resta a transformação. Vejamos qual é o sentido da mudança:
Temos que iniciar desde já a obra suprema e salvadora da nossa reeducação nacional, da reeducação do nosso povo, principal mente da reeducação das nossas classes médias e superiores. Estamos sob a urgência formidável de criarmos aqui, “dentro do mais breve prazo possível”, o tipo do homem moderno, isto é, do homem que, pela sua educação prática, pelo seu espírito positivo, pelas suas preocupações de ordem material e econômica, pelo seu desdém das situações feitas da burocracia e da política, seja capaz de fazer face, dentro ou fora da nossa própria terra, a esses novos concorrentes, ricos, expansivos, poderosos que estão alagando o mundo com as torrentes [ilegível] do seu ouro e da sua energia (Ibidem).
Para não ser subjugado, só resta ao país a alteração dos valores então vigentes e a adequação aos preceitos modernos, práticos e econômicos. E Oliveira Vianna diz esperar “muito do paulista” para a realização das transformações necessárias – ele seria, afinal, o exemplo a seguir. Não seria preciso, para a renovação, buscar na Inglaterra ou nos Estados Unidos o modelo,
temos em nossa história padrões e exemplos incomparavelmente mais perfeitos, mais eloqüentes, mais brilhantes do que os que possam exibir os fecundos viveiros anglo-saxônicos. Para encontrá-los bastará retomarmos corajosamente o caminho do passado, subirmos até as geratrizes históricas do II e III séculos, e respirarmos, a plenos pulmões, o ambiente dos grandes dias de Fernão Leme, de Borba Gato, de Antonio Raposo, de Manuel Preto, de Paschoal Moreira, de Bartholomeu Bueno (Ibidem).
Não é que Oliveira Vianna identifique nos bandeirantes certas características originais, alternativas ao modelo saxônico o que o resto do artigo procura indicar é como as grandes virtudes das “raças fortes” já estavam presentes nos antigos paulistas, sendo necessário, portanto, apenas reivindicar e recuperar os heróis do passado.
Oliveira Vianna elenca, então, uma série de atributos que seriam típicos dos bandeirantes históricos. A paixão pelos esportes e pelos exercícios físicos; os métodos varonis de educação da juventude; o espírito de empreendimento e o arrojo da iniciativa; o sentimento de independência, o self-help, a self-reliance; o self-control; além da disciplina e da capacidade de organização: todas essas qualidades virtuosas, descritas como distintivas dos anglo-saxões (idênticos às identificadas por Demolins), Oliveira Vianna encontra nos primeiros paulistas. Em alguns casos, são apontados inclusive como mais elevadas: seu espírito de empreendimento, por exemplo, levou-os a realizar “uma obra incomparavelmente superior, pela magnitude e pelo esforço, a dos ingleses na Austrália ou dos anglo-americanos no Far-West” (Ibidem). Sobre sua capacidade de autonomia, o autor chama a atenção para a relação com o Estado, mas sob um viés positivo: “Mas, estes homens, como hoje os saxões dos dois mundos, só pediam ao Estado que não lhes embaraçasse a liberdade da ação. Serviam ao Estado; o Estado não servia a eles. Ao contrário, às vezes os perseguia de uma maneira brutal [...]” (Ibidem). Os bandeirantes seriam, pois, portadores dos valores mais sublimes que os povos superiores, os povos particularistas, que, na expressão da Escola de Le Play, possuíam justa mente as qualidades que os distinguiam dos demais. Pois, sendo assim,
para a refusão da mentalidade das nossas classes sociais, para a reeducação do nosso povo, o que é preciso fazer não é propriamente uma “imitação”: o que é preciso fazer é, sim, verdadeiramente uma “ressurreição”. No meio dessas raças vitoriosas, expansivas e predatórias, que senhoreiam progressivamente o globo, para que tenhamos uma situação assinalada e superior, é bastante que façamos reviver na nossa alma contemporânea a alma heróica desses velhos paulistas (Ibidem).
Oliveira Vianna não explica como se daria essa “ressurreição”, mas critica aqueles que pensariam que esses tipos virtuosos não teriam resistido, sendo apenas memórias de um passado distante. Contra esses julgamentos, lança mão de um argumento racial, um processo de arianização que observaria na sociedade brasileira, um movimento em que “os elementos étnicos inferiores, vindos das raças bárbaras ou selvagens, que entraram na nossa composição, vão sendo progressiva e vigorosamente eliminados da nossa massa nacional” (Ibidem). Em seu laboratório étnico e social, Oliveira Vianna não veria dificuldades em selecionar certas características bandeirantes e excluir outras, que possivelmente encarava como defeitos. Ele diz, por exemplo, que ao reabilitar o tipo antigo, “não precisará reproduzir nem o seu nomadismo, nem a sua modalidade batalhadora” (Ibidem). Ora, em PMB-I não é o nomadismo justamente uma das causas mais graves da desorganização social brasileira, incluindo-se na origem do regime de grande propriedade e seu poder simplificador? Não é a pacificação das sociedades do centro-sul o grande trunfo que permitiu seu “salto” no século XIX? Oliveira Vianna não desenvolve a questão. Encerra o texto apenas observando a proximidade do passado e como é um erro julgá-lo distante e morto: ele é muito mais presente do que se poderia imaginar.
Ao destacar este texto e as marginálias (outros exemplos poderiam ser dados), nosso intuito foi mostrar como a questão da adesão de Oliveira Vianna a valores “ibéricos” ou “americanistas” é bastante tensa, não apenas em uma “fase primeira” de seu pensamento, mas também no exato momento em que Populações meridionais era lançado. A sequência lógica da narrativa do livro, que culmina na conhecida apologia do Estado central, corretor necessário e único dos efeitos perversos da desregrada ação bandeirante (fragmentação social, insolidarismo, privatismo), encaminha a leitura para certa recusa integral da iniciativa individual. O que gostaríamos de acentuar é que essa leitura é atravessada por outras, que ao menos nos anos 1910 e 1920 deixaram aberta a recepção positiva e acolhedora de seus escritos em São Paulo. Se Oliveira Vianna viaja para capital paulista em 1924, mais significativo do que isso é que suas ideias “viajam” junto, como buscaremos indicar a partir de agora.
A associação entre os paulistas e anglo-saxônicos foi constantemente utilizada, sobretudo para fins políticos, na década de 1920. Destacaremos um movimento característico e importante daquele momento, que se convencionou chamar de “comunhão paulista”, promovido por um grupo ligado ao jornal O Estado de São Paulo e que se via como uma espécie de arauto do liberalismo e da democracia no país, além de crítico ferrenho da “pequena política”, envenenada pelas oligarquias (Cardoso, 1982).8 Encabeçado por Julio de Mesquita Filho, o grupo percebia São Paulo como ponto de partida fundamental para um grande processo regenerador nacional.
Essa é a questão central de uma série de três artigos publicados por Mesquita Filho no jornal de sua família em 1922, cujo título é justamente “A comunhão paulista”. E, sobretudo, no último texto da série que fica claro o papel que o estado ocupava em um projeto político mais amplo de Brasil e, citando Amadeu Amaral, o articulista chega a falar em um “imperialismo benéfico de São Paulo”. A “visão política” é apresentada como uma qualidade histórica do paulista, marca presente desde os primeiros séculos e que teria na capacidade expansiva a sua indicação mais clara. Essa virtude seria “instintiva” e comparável à dos anglo-saxões, o que lhe teria permitido assinalar .com a marca indelével de sua passagem, os contornos, também definitivos, dos quais a nacionalidade completaria a sua evolução” (Mesquita Filho, 1922b: 3). Alguns críticos apontariam a decadência daqueles valores, ressaltando especialmente o predomínio da política militante, a política como meio de vida no estado. Os envolvidos nesse tipo de politicagem, no entanto, seriam os homens afastados da comunhão paulista, diz Mesquita Filho, ainda incapazes de perceber o legado e o potencial do passado. Os paulistas atuais, imbuídos da comunhão, preservariam as qualidades antigas e “os pródromos dessa gigantesca tentativa [expansionista], que poderíamos chamar de ratificação histórica da ação bandeirante, já são perfeitamente discerníveis no conjunto de aspirações com que se preocupa atualmente São Paulo” (Ibidem). A pujante penetração ferroviária e a expansão cafeeira seriam exemplos da sobrevivência daquele instinto e, ainda mais, seriam os indícios de que “a revisão do problema posto pela epopeia bandeirante” estaria “em via de solução definitiva”. Portanto, cabia ao paulista do início do século XX terminar o trabalho iniciado pelos heróis bandeirantes há quase quatrocentos anos.
Mas, afinal, quem é este paulista? A essa questão se dedicava o segundo artigo da série, de 21 de novembro de 1922. Não à toa, o texto inicia-se tomando como referência Paulo Prado e seu “O caminho do mar”, publicado um mês antes: segundo Mesquita Filho ali estaria explicada a origem da comunhão, sua formação histórica e social e as razões das particularidades daquela região.9 Destacava-se assim a situação diferenciada que São Paulo assumia em relação ao restante da nação, enfatizando inclusive a ideia de “contaminação” causada pelo fim do isolamento. Com uma gênese particularizada, o paulista ostentava características distintivas, “que nos fazem parentes próximos dos anglo-saxões” e são “apontadas pela Ciência Social como as mais nobres dentre as predominantes dos povos fadados ao domínio do universo. São elas, no entender dos que àquela escola se filiam, as que emprestam ao ramo por eles denominado “particularista” a sua fisionomia distintiva (Mesquita Filho, 1922a: 3). “Ciência Social” não é aqui uma referência geral à disciplina, mas alusão à revista que Demolins dirigiu, La Science sociale, suivant la méthode d’observation, e que acabou denominando, naquela época, os herdeiros intelectuais de Le Play. Mesquita Filho, portanto, associava os paulistas aos mesmos valores e virtudes que norteavam os povos “particularistas”, isto é, os de origem anglo-saxônica, opondo-os, assim, aos povos “comunitaristas”, como no caso da iniciativa pessoal e a relação com o Estado: “os governos, força única predominante nas sociedades ‘comunitárias’, para ela [a bandeira] quase nada significam. Quando muito emprestam-lhe o papel de coordenador indispensável” (Ibidem). Notemos que os elogios são semelhantes àqueles que Oliveira Vianna faz ao bandeirante em seu artigo sobre os “antigos paulista”, e que mesmo não os chamando em momento algum de “particularistas” aproxima sempre os paulistas aos anglo-saxões.
Mesquita Filho e Oliveira Vianna faziam parte de um contexto em que era relativamente comum associar o paulista a ingleses ou norte-americanos, e fizemos referência ao fato de que a expressão “yankees da América do Sul” já era aplicada desde alguns anos antes. É interessante notar, porém, a quem o primeiro artigo inteiro da trilogia “A comunhão paulista” é dedicado: justamente ao autor de Populações meridionais. Mesquita Filho faz verdadeira terra arrasada da vida intelectual brasileira para poder introduzir Oliveira Vianna, considerando-o uma espécie de divisor de águas nos estudos do Brasil, principalmente pelo fato de que “o método do sociólogo patrício apoia-se apenas na inteligência, sem, contudo, emprestar-lhe qualidades a si mesmas milagrosas. Soube o autor fugir ao mal nacional por excelência – o cerebralismo. É nisso que reside o seu grande, o seu maior valor” (Mesquita Filho, 1922: 3). A crítica ao “cerebralismo” é a crítica ao idealismo, tão cara a Oliveira Vianna, e mesmo estando Mesquita Filho já naquela época em uma posição bastante acercada ao liberalismo (Cardoso, 1982; Capelato, 1988), isso não impediu que ele ratificasse o diagnóstico da inadequação de instituições estrangeiras:
[...] volvendo a olhar ao nosso passado, [Oliveira Vianna] fez ressaltar o erro dos que, sem levar em consideração o nosso caso particular, foram buscar processos governativos que, na Inglaterra, em primeiro lugar, e nos Estados Unidos, em segundo, davam ótimos resultados, sem perceberem que o bom-senso, critério seguro dos anglo-saxões, os havia já impedido de transplantar para a América, o que na Europa lhes tinha resultado bom. Criando uma estrutura nova para uma sociedade nova que na América constituíram, aqueles a quem pedimos o que adotamos para a nossa, nos primórdios da vida política independente do Brasil, nos ofereciam a provado quanto havíamos andado levianamente (Ibidem).
O interessante na construção argumentativa de Mesquita Filho, a partir da leitura que faz de Oliveira Vianna, é que, mesmo criticando a importação de instituições, o autor consegue utilizar como horizonte prático a própria sociedade norte-americana e suas virtudes (o “critério seguro dos anglo-saxões”, e por que também não dos paulistas?). Mas, para além da crítica, Mesquita Filho percebe ainda em Oliveira Vianna um caminho de solução positivo para a situação brasileira: é nele que o autor dos artigos diz se basear para reclamar que o diagnóstico da decadência não é procedente: “onde se pretendia ver o sintoma seguro de inferioridade e retrocesso, a observação científica, norteada por aqueles a quem o autor das Populações meridionais do Brasil pediu lições [nomeadamente Demolins e Tourville], aponta novas e vigorosas fontes de energia e de vida” (Ibidem). A fonte de energia apontada é, como pudemos ver pelos artigos seguintes da série, São Paulo, o que só poderia ser revelado através dos métodos de Oliveira Vianna.
No mesmo mês e contexto de discussões, Brenno Ferraz publica na Revista do Brasil um artigo com o sugestivo título de “Paulistas e saxônios”. Como na perspectiva de Mesquita Filho, a comparação é por aproximação:
A paridade entre os dois tipos sociais, o o-saxão e o paulista, é deveras, sob todos os aspectos, impressionante. A conquista da terra e da produção, da liberdade e da independência; a constituição da raça e da sociedade; o irrequieto dos vives e a expansão posterior, são de um claro paralelismo. Mesmo na abstenção política a similitude prossegue... Absorvem-se os saxões na luta pela vida e na mesma luta, os paulistas (Ferraz, 1922: 378)
Mas inclusive a vida política e civil de paulistas e saxônios seria semelhante? Ferraz recorre, então, à história da Inglaterra para mostrar como lá o que chama de “vida pública” era agitada, apontando uma série de eventos históricos que envolveriam diretamente acirradas disputas pelo poder, todo o contrário da passividade, portanto. Essa “vida pública” é apresentada como sendo composta por lutas de família, pela “resistência dos potentados rurais ao poder central”, pela “luta entre comunas e o rei”, e que “não podem ter o espírito isento de facciosismo”. Essa versão da história inglesa nos soa familiar – e é: logo em seguida, utilizando como referência Populações meridionais do Brasil, Ferraz (que já havia resenhado o livro de Oliveira Vianna para a mesma Revista do Brasil) mostra como a tradição inglesa teve, em São Paulo, o seu símile, com a mesma vida agitada, com as mesmas lutas de família, com a mesma rejeição ao poder central. A apatia cívica paulista (e o distanciamento com os ingleses) seria, portanto, um fenômeno recente, e Oliveira Vianna lhe ajudaria, assim como a Mesquita Filho, a provar esse ponto.
Ao apresentar essa série de artigos publicados em 1922 não queremos sugerir que Oliveira Vianna abonaria esse tipo de recepção de sua obra principal a valorização positiva da virtude cívica de São Paulo de fato parece ir contra ao que aponta boa parte da fortuna crítica mais importante do autor, bem como parece contrariar a própria visão do livro, principalmente se tomarmos em consideração as suas duas últimas seções. Mas nos interessa notar que essa leitura era algo recorrente nos anos 1920 e como Oliveira Vianna era mobilizado como um autor-chave em um contexto de debates bastante particular, com o qual normalmente não é associado.
Essa relação de Oliveira Vianna com São Paulo, principalmente no que diz respeito à “comunhão paulista”, vai além de uma simples recepção, no entanto. Em uma carta publicada na Revista do Brasil, o autor de PMB-I comenta e agradece de maneira aparentemente bastante entusiasmada a série de artigos de Mesquita Filho: “li com a atenção merecida e com grande prazer a bela série de artigos, que publicou no Estado, sob o título expressivo de A comunhão paulista. Felicito-o sinceramente pela superior elevação de suas ideias e muito grato lhe fico pelas palavras de generosa simpatia com que se refere aos meus estudos” (Oliveira Vianna, 1923: 326). Ainda que o teor da carta seja muito mais no sentido de uma digressão metodológica, aconselhando o jovem escritor e ressaltando a importância do estudo das diferenças internas do país, e não das semelhanças, bem como da monografia e da observação direta para os estudos sociológicos, Oliveira Vianna ressalta o seu contentamento ao ver alguém
empenhado nessas árduas preocupações de estudar o nosso problema brasileiro no grupo regional mais tipicamente representativo das grandes qualidades da nossa gente: o grupo paulista. Dá-me o seu brilhante ensaio a grata revelação de que S. Paulo se orienta no bom sentido das preocupações de ordem prática, isto é, no sentido daquilo que chama ‘a ratificação histórica da ação do bandeirante’. Eis aí uma bela frase e não sei de outra que tão elegante e compendiosamente exprima a íntima e complexa significação do fenômeno paulista contemporâneo (Idem: 328).
Esse “complexo fenômeno” paulista é novamente ressaltado em 1923, em outra carta publicada na Revista do Brasil, dessa vez endereçada a Hilário Freire,10 que havia feito um discurso (também reproduzido na revista) no Congresso Estadual de São Paulo bastante pautado por Populações meridionais. No texto, Oliveira Vianna elogia o processo de urbanização do interior de São Paulo (ao que dá o nome de “pequeno urbanismo”, em oposição ao “grande urbanismo”, nefasto e característico do estado do Rio de Janeiro), chamando esse movimento de “grande milagre paulista dos nossos dias” e que seria a repetição “em escala mais limitada, mas muito mais sugestiva, das façanhas do grande ciclo do ouro” (Oliveira Vianna, 1923a: 225). Considerando a penetração e a urbanização do interior fundamentais para o progresso do país, Oliveira Vianna sublinha que os paulistas estariam conseguindo resolver o problema de uma maneira surpreendente, “e é justamente por isto que ninguém está, com mais atenção e interesse do que eu, acompanhando o desdobrar da moderna orientação econômica e social de São Paulo” (Idem: 226). Usando mesmo a expressão “comunhão paulista” (“sólida e indestrutível”), conclui que à iniciativa e ao senso econômico do paulista deveriam juntar o que faltou ao ciclo do ouro: “a organização política, o aparelhamento administrativo, acompanhando, no mesmo compasso, a expansão social” (Ibidem). Procura, assim, articular tanto o poder do empreendimento particular com a expansão da legalidade, via Estado.
Retornemos agora à viagem que Oliveira Vianna faz a São Paulo em fevereiro de 1924. Dessa viagem resultou uma interessante entrevista, concedida à Gazeta de Notícias. O documento é especialmente curioso porque se constitui em um verdadeiro elogio à modernização. Perguntado sobre suas primeiras impressões na viagem, responde:
—Meu caro amigo, é difícil dizer-lhe as minhas primeiras impressões, porque não sei como considerar as múltiplas reações de espanto e deslumbramento que me tem causado a sua maravilhosa capital [...]. São Paulo dá-me a impressão de uma cidade nascida há pouco, construída por um golpe de mágica, e inteiramente nova. Não encontrei aqui o que se encontra em todas as cidades, mesmo na América do Norte, onde as cidades irrompem do chão, como que por milagre; a suburra imunda e infecta, o conglomerado das alfurjas, o casario velho e anti-higiênico, onde fervilha a vermina humana das grandes cidades. Nada disto; tudo me parece limpo, novo, claro, isto para os bairros operários; agora imagina a minha admiração ante o esplendor arquitetônico do centro e dos arrabaldes aristocráticos? (Entrevista concedida à Gazeta de Notícias, 16 de fevereiro, 1924).
O que Oliveira Vianna valoriza em São Paulo, o que lhe surpreende positivamente, é o que há de novo, de moderno (ainda que não use o termo), e não a tradição. O antigo é “infecto” ou “anti-higiênico”, e São Paulo, por contraste, é “limpa” e “clara”. O seu caráter novidadeiro é precisamente o que diferencia a cidade não apenas do resto do Brasil, mas mesmo dos Estados Unidos. O entrevistador também pergunta sobre as expectativas em torno da evolução futura de São Paulo e “sua influência sobre a mentalidade nacional”. Ainda que Oliveira Vianna recuse a possibilidade de uma resposta categórica (“seria preciso ser dotado de faculdades proféticas que não possuo”) suas palavras merecem ser reproduzidas:
O progresso paulista não é coisa que se possa prever com facilidade, porque não se trata de uma evolução normal. O que se está passando aqui é um ‘fiat’ miraculoso. Há um latejar de energias, do caos em gestação. É o imprevisto, a surpresa, o milagre. Não me parece que tenhamos nada que invejar às realizações mais surpreendentes dos ‘booms’ americanos. Digo-o pelo que tem sido dado observar do progresso desta capital. Não fui ainda às zonas da Mogyana, da Sorocabana e da Noroeste, onde, segundo me informaram, os paulistas estão realizando proezas muito superiores às dos “yankees” no seu famoso Far-west. E só então poderei formar um juízo, mais ou menos fundamentado, da próxima evolução de S. Paulo. O que lhe posso dizer agora é apenas a revelação da minha absoluta confiança, diria melhor, da minha fé na ação de S. Paulo e na sua grandeza futura (Ibidem).
Estas longas citações são importantes porque nos auxiliam a perceber certas tensões bastante marcadas na obra de Oliveira Vianna, principalmente se contrastarmos com Populações meridionais. Em um tipo de abordagem que se quer regional do Brasil, é justamente uma região – São Paulo – que parece estar no cerne das ambiguidades. Se em Populações o bandeirante comparte um papel de herói pela expansão territorial e de vilão pelo efeito perverso do latifúndio, a condição material que sustenta seu poder (Carvalho, 1993), o que traz à tona a oposição entre o poder do Estado e a eficiência da iniciativa privada e do empreendedorismo; por outro lado, a modernização de São Paulo e a proximidade que a todo tempo é reiterada entre o paulista e o anglo-saxão (expediente, como vimos, comum na época para reivindicar a superioridade paulista, principalmente do ponto de vista político e econômico) dão a entender que é justamente nessa região que estão contidas as esperanças de futuro, exatamente por seu caráter diferenciado.
A ênfase muitas vezes de fortíssimo cunho político e ideológico na diferença de São Paulo para o restante do Brasil, procedimento corrente naquele contexto, terá no ano de 1932 0 seu ponto de inflexão, o seu ápice prático. A Revolução Constitucionalista contará com a participação de praticamente todos os autores paulistas com quem Oliveira Vianna mantinha algum tipo de relação, seja pessoal ou somente intelectual, dentre eles Paulo Prado, Julio de Mesquita Filho, Hilário Freire, Brenno Ferraz e Alfredo Ellis Júnior. É deste último uma das cartas mais interessantes do acervo da Casa de Oliveira Vianna. Ela é escrita desde o “front”, em 21 de junho de 1932, e o que deveria ser uma apreciação de Raça e assimilação, lançado naquele mesmo ano, torna-se um importante documento de como Ellis Júnior percebia aquele momento dentro de uma grande narrativa sobre São Paulo. Ao enviar o relato a Oliveira Vianna, imagina-se que buscasse alguma compreensão, ou mesmo apoio, afinal, como vimos, trocavam correspondências frequentes desde o final da década de 1920. Tomamos a liberdade de novamente transcrever um longo período:
O que atrasou muito a leitura do seu belo trabalho [Raça e assimilação] foi o momento de imensa gravidade que atravessamos em S. Paulo na última quinzena de maio. O povo realizou a mais bela epopéia de reação que tenho sabido. Nunca vi, nem mesmo soube, através da História, de movimento cheio de tanta grandiosidade como o que o povo paulista foi o único autor. Os elementos políticos não estiveram à frente deste movimento e não estão se mostrando dignos do civismo do povo. Tive uma ação nos acontecimentos, fui um dos agitadores da opinião pública. Não a favor do velho PRP, mas a favor de S. Paulo. Recordei-me dos velhos dias dos tumultos seiscentistas em que o povo se amotinava ao toque desabalado dos sinos da vila. Faltava-nos o vulto majestático de Raposo Tavares. A luta travou-se contra os partidários de Miguel Costa, mas a reação dos tenentes, com a chegada do [General Manuel] Rabello nos obrigou a uma atividade muito maior. Tivemos que organizar a defesa. O povo se organizou secretamente e em poucos dias estávamos em 30000 voluntários armados para esmagar as tropas do exército se porventura fossemos atacados. Faríamos a guerra das casas e fuzilaríamos os soldados inimigos de um modo a esmagá-los. Armas e munições não nos faltavam [...]. Penso em ir em breve ao Rio e nessa ocasião irei procurar o prezado amigo, trocar impressões sobre a situação de verdadeira angústia que atravessa o país.
Caso tenha se realizado, o encontro deve ter sido interessantíssimo. Ellis Júnior parecia guardar alguma expectativa de que Oliveira Vianna pudesse se entusiasmar com o movimento (ou o teor da carta pouco faria sentido), descrito em tons épicos e relembrando um passado político de ação coletiva de maneira aproximada com o que vimos fazer Brenno Ferraz em 1922. Coincidência ou não, não constam no acervo do autor cartas de Ellis Júnior posteriores a essa data.
Tomando como gancho uma viagem de Oliveira Vianna a São Paulo em 1924, neste trabalho procuramos apontar para a relação muitas vezes ambígua que o autor parecia manter com uma parcela da produção intelectual paulista dos anos 1910 e principalmente 1920. Apesar de normalmente ser caracterizado como um autor tipicamente fluminense, Oliveira Vianna pareceu repercutir mais justamente em São Paulo, e isso já antes de seu primeiro livro ser lançado. Diversos grupos políticos e intelectuais de São Paulo procuravam estabelecer uma espécie de mitologia que tinha no bandeirante sua figura simbólica principal, ressaltando a formação histórica especial e diferenciada do estado, o que lhe deveria garantir uma hegemonia ainda não conquistada sobre o resto do país. Além da proposta mais geral de Oliveira Vianna em pensar o que diferencia o país internamente (explícito desde o uso do plural no título de Populações meridionais do Brasil) e da tese de que caberia ao centro-sul a organização do país, seus elogios à ação bandeirante, seja na primeira parte de Populações, seja em artigos publicados ao longo das décadas de 1910 e 1920 em que ressaltava a proximidade dos antigos paulistas a certa mentalidade anglo-saxônica, levaram a que Oliveira Vianna fosse constantemente mobilizado nos debates de São Paulo, inclusive para embasar projetos de matizes claramente liberais, como no caso da “comunhão paulista”. Mais do que tratar da viagem do sociólogo, o que nos propusemos a fazer foi indicar como as ideias propriamente ditas podem circular, às vezes com sentidos surpreendentes.