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Recepção: 22 Dezembro 2013
Aprovação: 25 Janeiro 2014
DOI: 10.20336/rbs.51
RESUMO: O artigo busca ressaltar os múltiplos desafios com os quais se defronta a sociologia em seu esforço de compreensão do tema da Segurança Pública na contemporaneidade brasileira. Objetiva, particularmente, refletir sobre a compreensão sociológica desta temática, pensada em termos de desdobramentos e efeitos dos fenômenos circunscritos ao que vem sendo chamado o “problema da violência urbana e da segurança pública”. Questiona a importância de se refletir sobre o contexto brasileiro atual, palco para fenômenos que, se não são novos, em si mesmos, trazem sentidos novos em suas formas de concretização, a exemplo das recentes manifestações sociais, ocorridas inicialmente em 2013 e conhecidas como ‘manifestações de junho’, as quais demandam ser compreendidas tanto sob o ângulo da sociedade civil quanto daquele do aparato institucional-legal, sobretudo policial. O texto se desenvolve a partir do levantamento de alguns desafios com os quais se defronta a sociologia para levar adiante uma agenda de pesquisa voltada à violência, segurança pública, crime, justiça e polícia. A argumentação se utiliza da Teoria das Representações Sociais – TRS – enquanto recurso teórico metodológico, inserindo representações sociais no contexto sociológico das reflexões teóricas e da produção de conhecimento sobre segurança pública. Privilegiar a análise das representações significa reconhecer sua importância como estratégia de conhecimento do social, admitindo que produzam um tipo de conhecimento que interroga a realidade através do que se pensa sobre ela.
Palavras-Chave: Segurança, Representações, Violência.
ABSTRACT: The article seeks to emphasize the multiple challenges faced by sociology in its efforts to understand the issue of Public Security in contemporary Brazil. In particular it reflects on the sociological understanding of this theme, conceived in terms of the developments and effects of the phenomena delimited as the “problem of urban violence and public security.” It examines the importance of reflecting on the current Brazilian context, a setting for phenomena that, while not new in themselves, generate new meanings through their forms of concretization, as exemplified by the recent social manifestations, initially occurring in 2013 and known as the ‘June demonstrations,’ which need to be understood both from the angle of civil society and that of the legal-institutional apparatus, especially the police. The text proceeds by examining a number of the challenges faced by sociology With the aim of advancing a research agenda focused on violence, public security, crime, justice and the police. In developing its line of argument, the article turns to Social Representation Theory (SRT) as a theoretical and methodological resource, inserting social representations in the sociological context of the theoretical reflections and the production of knowledge on public security. Privileging the analysis of representations means recognizing their importance as a strategy of social knowledge, admitting that they produce a kind of knowledge that interrogates reality through what we think about it.
Keywords: Security, Representations, Violence.
RÉSUMÉ: L’article cherche à relever les multiples défis auxquels est confrontée la sociologie dans son effort de compréhension du thème de la Sécurité publique dans le Brésil contemporain. Il s’attache particulièrement à réfléchir sur la compréhension sociologique de cette thématique pensée en termes de déploiements et effets des phénomènes circonscrits à ce que l’on appelle le « problème de la violence urbaine et de la sécurité publique ». Il questionne l’importance qu’il y a de réfléchir sur le contexte brésilien actuel, scène de phénomènes qui, s’ils ne sont pas nouveaux en soi, entraînent des sens nouveaux dans leurs formes de concrétisation, à l’exemple des manifestations sociales qui ont eu lieu initialement en 2013 et sont connues comme « les manifestations de juin », lesquelles doivent être comprises tant sous l’ angle de la société civile que sous celui de l’appareil institutionnel légal, surtout policier. Le texte se développe à partir du relevé de quelques défis auxquels la sociologie a été confrontée afin mettre au point un agenda de recherche touchant à la violence, la sécurité publique, le crime, la justice et la police. L’argumentation utilise la Théorie des représentations sociales – TRS – en tant que recours théorico méthodologique, en insérant des représentations sociales dans le contexte sociologique des réflexions théoriques et de la production de connaissances sur la sécurité publique. Privilégier l’analyse des représentations signifie reconnaître son importance comme stratégie de connaissance du social, admettant que celles-ci produisent un type de connaissance qui interroge la réalité par le truchement de ce qui se pense à son propos.
Mots-clés: Sécurité, Représentations, Violence.
Introdução
O tema deste artigo aponta para múltiplos desafios com os quais se defronta a sociologia em seu esforço de compreensão do tema da Segurança Pública na contemporaneidade brasileira. Ressalte-se, como ponto partida, que não é intenção propor qualquer utópica solução para as complexas questões que a temática comporta; objetiva-se tão somente refletir sobre sua compreensão sociológica pensada em termos dos desdobramentos e efeitos abrangentes de fenômenos circunscritos ao que vem sendo chamado o “problema da violência urbana e da segurança pública”, e à importância de se refletir sobre o contexto brasileiro atual. Contexto que tem aguçado de modo particularmente intenso a imaginação sociológica, com fenômenos que, se não são novos, em si mesmos, trazem sentidos novos em suas formas de concretização, a exemplo das atuais manifestações sociais, conhecidas como “manifestações de junho”2 as quais demandam ser compreendidas tanto sob o ângulo da sociedade civil quanto daquele que compreende o aparato institucional-legal, sobretudo policial. Caminho que parece acertado na medida em que análises e diagnósticos produzidos pelo campo científico podem vir a se constituir em subsídio para a elaboração de políticas públicas, mesmo que não seja essa a tarefa precípua da ciência, a qual tem por missão, prioritária, a produção e o avanço do conhecimento.
Sob esse aspecto, pode-se dizer que nunca como agora o saber científico e o avanço do conhecimento foram e têm sido tão necessários. Na atual configuração brasileira, com mudanças significativas nas formas de participação da sociedade civil, e considerando muitos de seus desdobramentos, dos quais não têm ficado de fora ilegalismos e contextos de violência, as chamadas urgências do momento pressionam a sociologia com vozes vindas de distintas instâncias e de segmentos sociais clamando por soluções. A ausência da distância temporal – muitas das análises são feitas no calor da hora – pode inviabilizar o necessário distanciamento metodológico, requisito indispensável à análise sociológica.
A reflexão sobre Segurança Pública, que engloba de modo mais ou menos explícito, aquela sobre crime, polícia e justiça, é abrangente, podendo ser desenvolvida por meio de distintas vertentes. A questão acerca da conformação desse campo de estudos não é o escopo principal do artigo; ela é, no entanto, incontornável e concentra parte importante do debate que o tema suscita. Lembre-se, por exemplo, que o assunto foi objeto de uma mesa redonda na ANPOCS em 2010 a Segurança Pública e as Ciências Sociais. Se desde então não se chegou a resultados radicalmente conclusivos quando se trata de precisar denominações para esse campo de produção do conhecimento, tal indeterminação pode ser significativa da impossibilidade, ou da não necessidade, no estágio atual do debate, de se avançar rumo a delimitações terminológicas, que poderiam ser restritivas. Isso não significa dizer que não seja necessário refletir sobre o campo. Na verdade, a mesa de 2010 já se delineou a partir de duas vertentes, a da construção e denominação do campo do conhecimento e a da construção de agendas de pesquisa. Privilegiou-se aqui a segunda destas vertentes por considerar-se que o campo existe e, poder-se-ia mesmo ousar dizer, que de forma consolidada; o espaço de disputa, quando existente, prende-se mais às denominações do que aos conteúdos substantivos que têm orientado as pesquisas e as agendas de pesquisa. Algumas importantes revisões da literatura têm se concentrado na identificação e no mapeamento da produção existente no campo, mais do que na delimitação de fronteiras e divisas, tarefa que, ao que tudo indica, pode não ser, por ora, prioritária. Sobretudo se tal delimitação significar a redução das possibilidades de uma maior transversalidade e multidisciplinaridade nas/das abordagens. Não por não ser atraente a ideia de se refletir a partir da noção de fronteiras. Em ciência a multi ou transdisciplinaridade requer, para ser bem-sucedida, alguma demarcação disciplinar. Dessa perspectiva, relembraria uma mesa sob minha coordenação, no 6º Congresso Brasileiro de Sociologia, cujo título era “A Sociologia e suas fronteiras”. Naquela oportunidade, afirmava que o convívio interdisciplinar sem uma demarcação de fronteiras poderia levar ao ecletismo. A afirmação parece ainda válida: não se trata de uma mera possessão de território, mas de um processo de construção de identidade. A semelhança dos processos psicanalíticos, em se tratando da ciência, tal construção implica um movimento reflexivo no qual ao “quem sou eu” da psicanálise corresponderia uma sociologia da sociologia, fazendo as vezes do divã psicanalítico. Esse movimento reflexivo já é parte das inquietações dos pesquisadores da área que se reconhecem, sobretudo no que concerne à sociologia, no que Adorno e Barreira (2010) delimitaram como “Sociologia da Violência” e, de modo mais abrangente, nos balanços elaborados em distintos momentos por Adorno (1993), Zaluar (1999), Misse, Kant e Miranda (2000), Adorno e Barreira (2010) e Lima (2011), revelando a constituição da temática como objeto de pesquisa, bem como as disciplinas que mais diretamente assumiram tratar do tema e através de que recursos metodológicos.
Reafirmando, então, o que foi acima mencionado, poder-se-ia, pois, considerar a área como institucionalizada, consolidada e o campo construído; com espaço no Diretório de Pesquisa do CNPq, nas agências de fomento em C&T e nos processos de avaliação da CAPES. Esta realidade está refletida nos números registrados no banco de Teses e Dissertações da CAPES: se até 1990 havia 89 trabalhos defendidos que continham as palavras-chave “crime”, “violência” e “segurança pública”, em fevereiro de 2013 esse número corresponde a 9.837 trabalhos (Lima, 2013).
Realidade e Representação
Esse pequeno preâmbulo justifica, assim, a prioridade aqui concedida ao levantamento de alguns desafios com os quais se defronta a sociologia para levar adiante uma agenda de pesquisa voltada à violência, segurança pública, crime, justiça e polícia. Desafios que configuram duas óticas distintas. A primeira se concentra na própria construção da agenda de investigação; a segunda diz respeito à agenda dos responsáveis pelos processos de elaboração de políticas públicas. São óticas distintas, com prioridades e objetivos diferenciados, embora se possa reconhecer que parcerias público/privado têm ampliado o debate e o diálogo entre academia, agências e órgãos governamentais responsáveis pela elaboração de políticas. Muitas vezes, resultados de pesquisas, análises e diagnósticos produzidos pelo campo científico se constituem em subsídio para que organismos governamentais elaborem seu planejamento e construam suas políticas, mesmo que não seja essa a tarefa precípua da ciência, a qual tem por missão, prioritária, a produção de conhecimento. Ainda assim, como pontua Adorno (2010: XIII), “Um amistoso diálogo foi sendo construído entre pesquisadores e autoridades encarregadas de formular e executar políticas de segurança pública, amenizando as tradicionais desconfianças entre a universidade e os agentes da ordem, em especial policiais”. Ousaria dizer, sem intenção de trocadilhos, que o “desarmamento” mútuo decorre do avanço do conhecimento, que propicia mais confiança a ambos os segmentos e, mais particularmente, aos pesquisadores – que cada vez mais se inteiram do seu lugar de fala com os limites e as potencialidades que o espaço comporta.
Sem se deter em definições ou interpretações sobre a Teoria das Representações Sociais e o conceito de Violência, o texto delimita uma precisão de natureza teórico-metodológica que mereceria ser destacado como ponto de partida: não convém, sociologicamente falando, operar uma simbiose entre a realidade da violência e suas representações; de igual modo, não convém, tampouco, ignorar tais representações, sobretudo, porque não é supérfluo reafirmar, diferentes conteúdos valorativos e ideológicos são responsáveis por diferentes representações da violência as quais estão, por sua vez, na base da orientação da conduta de indivíduos e ou instituições. A análise de representações sociais foi o enfoque originado com Durkheim na sociologia e abandonado mais tarde pela disciplina para ser, recentemente, retomado pela psicologia social, espaço teórico no qual acabou por ganhar visibilidade e legitimidade, inicialmente com Serge Moscovici e Denise Jodelet.
Convém ressaltar a diferença conceitual entre uma análise priorizando as representações sociais e a hipótese com a qual trabalha Machado (1993) da “Violência Urbana” como representação de uma ordem. Para Machado, a violência urbana como representação de uma ordem é uma construção simbólica que recorta determinados aspectos das relações sociais e é, nesse sentido, uma descrição seletiva da realidade, que orienta condutas. A expressão, diz o autor, supõe a referência a atos e práticas como depredações, saques, roubos, assaltos e atentados múltiplos à integridade física dos indivíduos no dia a dia do cotidiano. Seria importante assinalar que, em se tratando de atentados à integridade física, não seria de todo despropositado também supor na mesma condição, práticas levadas a cabo pelos setores responsáveis pela garantia de ordem, ou seja, a chamada violência institucional, cuja face mais visível é a violência policial. O que aproxima ambos os argumentos é o fato de que se está em presença de processos cognitivos passíveis de constituírem conteúdos orientadores de condutas.
Em segundo lugar, analisar violências como representação social ou representações sociais significa considerar que essas, embora resultado da experiência individual são condicionadas pelo tipo de inserção social dos indivíduos que as produzem; expressam visões de mundo, explicam e buscam dar sentido aos fenômenos dos quais se ocupam e nessa condição participam da constituição desses mesmos fenômenos, justamente por orientarem condutas. Dessa perspectiva é factível admitir-se a existência de uma conexão de sentido (solidariedade) entre representações e os fenômenos aos quais se referem, não cabendo, portanto, falar em representações falsas ou verdadeiras. (Porto, 2005).
Ressalte-se também que as características de polissemia, complexidade e fragmentação que acompanham algumas manifestações empíricas violentas impedem, rigorosamente falando, que se aborde o fenômeno da violência no singular: pela multiplicidade de suas raízes, pela pluralidade de suas causas e pelos distintos e diferentes efeitos que desencadeia seria necessário pensá-lo como fenômeno plural. De acordo com Misse (2006: 21), “é preciso que nós afastemos do tratamento desse tema qualquer ilusão de que haja um único e derradeiro sentido em todos esses eventos que encapsulamos na palavra ‘violência’, pois não há”.
Ainda que se possa admitir tratar-se de uma representação que vem apresentando um componente difuso, no sentido de penetrar a quase totalidade do tecido social, não é viável, vale insistir, pensar a violência como fenômeno único a ramificar-se uniformemente pelo conjunto social. Assim, as tentativas para compreendê-lo, teriam que, de forma compulsória, considerar tal multiplicidade. Também não existe a violência em abstrato a concretizar-se em distintos aspectos ou tipos, para mais uma vez recorrer a Machado (1993).
Outro aspecto a ser ainda considerado, o que é, em geral, denominado “violência urbana”, é a representação do evento empírico, não sua definição conceitual. É na condição de representação que a violência povoa o imaginário social que passa a ser alimentado por conteúdos como os de banalização e rotinização, reforçados pelos sentimentos de medo e insegurança. Outra ressalva: os múltiplos e distintos significados da violência urbana dependem de quem os nomeia. O que sugere a necessidade do olhar distanciado e crítico sobre essa nomeação e sobre as formas como se configura o fenômeno, as quais não se dissociam de como são definidas normas, crenças e valores, nem de quem define quem ou o quê como violência ou violento. Desigualdade e poder perpassam essas construções.
Além do que, a reflexão sobre segurança pública sugere considerar tanto as representações formuladas por atores da sociedade civil quanto aquelas formuladas pelos órgãos responsáveis por essa segurança, setores cujos sentidos e implicações ultrapassam a questão policial envolvendo, igualmente, o âmbito da justiça, das prisões, do ministério público e do legislativo, que elabora leis sobre a matéria.
No caso dos órgãos públicos, os conteúdos que informam discursos e narrativas constitutivos das representações caminham por trilhas e atalhos, estratégias e práticas diferenciadas, uma vez que disputam concepções e filosofias distintas que, implícita ou explicitamente, articulam os múltiplos sentidos de que se apropriam essas políticas. Em meio à pluralidade de sentidos, uma constatação parece recorrente e diz respeito à forma como o crime e a violência são representados em distintas instâncias sociais: fala-se de seu crescimento e de sua relevância no contexto urbano brasileiro como se fosse uma questão endêmica, a propagar-se de modo mais ou menos incontrolável. A ideia do crescimento desses fenômenos e do surgimento de novas formas e modalidades de manifestação ganha a forma de um clamor por segurança pública, entendida como sinônimo de medidas, ações e intervenções da ordem estatal que reduzam essa violência e conduzam a sociedade a padrões mais solidários de convivência.
Entre mitos, verdades e equívocos que percorrem diferentes imaginários sociais, violência e criminalidade, de um lado, e segurança, de outro, passaram a compor, nesse mundo contemporâneo de riscos, incertezas e inseguranças, um par conceitual a partir do qual a violência seria o fantasma, cada vez mais presente, que afronta e põe em risco a segurança e a organização social. Argumenta-se em termos da existência de uma crise no sistema de segurança pública, aí incluído o sistema de funcionamento da justiça. A crise é imputada a vários fatores: carência de recursos humanos e materiais, baixa eficácia dos procedimentos, ineficiência das ações, necessidade de modernização dos procedimentos e rotinas, precariedade da formação profissional, baixos salários e crescentes níveis de violência policial, em uma articulação que aponta, de modo mais ou menos indiscriminado, raízes estruturais e circunstâncias conjunturais que, tomadas isoladamente e sem considerar a importante questão das representações sociais, dificilmente conseguirão abarcar a complexidades da questão. Esse é o diagnóstico presente em distintas representações; não se pretende recuperar cada um dos itens mencionados para avaliá-los em sua pertinência; apenas partir deles para nomear alguns dos desafios aqui considerados.
Pensando por meio de desafios
Em primeiro lugar, e esse parece ser o desafio de número um, o caráter tópico e emergencial de boa parte das intervenções governamentais indica a necessidade de estratégias de longo prazo, planejamento e articulação de ações para produzir políticas coordenadas. A esse desafio a sociologia pode responder através do esforço de geração de conhecimento que combine o avanço teórico e a produção de dados. No que concerne às estratégias de longo prazo, está se falando de gestão com maior articulação das ações nos níveis federal, estadual e municipal e de investimento substantivo na formação dos gestores.
Uma filosofia consequente de gestão implica e demanda a produção de dados e de estatísticas minimamente confiáveis, como instrumentos de gestão. Os passos iniciais para esse processo têm sido pensados por meio do SUSP – Sistema Único de Segurança Pública – que visa a coordenar as ações e os dados e colocar em prática, com todas as dificuldades aí compreendidas, o Sistema Nacional de Estatísticas sobre Segurança e Justiça Criminal que, implementado, significará a constituição de um grande e unificado banco de dados.
Parcerias público/privado, apenas iniciadas, podem se constituir em elo importante para a concretização dessa política. Falar em estatísticas confiáveis é abrir espaço para um mundo de interpretações, pois é amplamente sabido que os dados, longe da neutralidade e da objetividade que alguns supõem ser constitutivos de sua natureza, são um campo de lutas e de disputas; questões como o que coletar, como coletar, com que objetivos e a partir de que critérios abrem espaço para um sem número de interpretações das quais não estão isentas as discriminações, a construção da suspeição criminal, da sujeição criminal, nos termos de Misse (2008), e dos prováveis vieses de raça, etnia ou classe social. Mesmo com tais ressalvas, não se pode descartar a importância de se buscar coordenação e organicidade na construção das estatísticas criminais, ainda que preservando a autonomia federativa dos estados.
Da mesma forma, não está isento de ambiguidades, tensões e conflitos o próprio conceito de segurança pública. Conceito pensado cada vez mais a partir de um paradigma de polícia de proximidade, na perspectiva de que, sem a confiança e a participação da população, terão menos chances de sucesso os esforços de construção de políticas consequentes de segurança pública. É desafiador pensar, por exemplo, a importância da colaboração da população no trabalho de investigação e elucidação de homicídios e outros tipos de crime. É certo que a ausência de um sistema ágil de perícia e de peritos, e da parceria entre polícia civil, peritos e polícia militar, para preservar com rapidez e habilidade o local do crime, pode dificultar a investigação e se reflete nas baixas taxas de elucidação de homicídios. Mas é igualmente verdade que, sem o apoio e a colaboração da população, o insucesso será certamente maior. Na prevalência de desconfiança da população em sua polícia, de descrença na capacidade da justiça em fazer justiça e no medo e insegurança que permeiam o cotidiano das nossas cidades, como esperar dela colaboração com o trabalho da polícia? Como esperar que a polícia de proximidade, ou o policiamento comunitário (os rótulos são vários, na ausência de conteúdos mais compartilhados), se viabilize de fato, para além apenas das boas intenções?
Tal indagação introduz outro aspecto da questão, o desafio de número dois, o qual argumenta a favor de se levar em consideração o que a população pensa sobre crime, violência, segurança ou insegurança pública, polícia, justiça, violência policial. Ou seja, a importância, ao considerar as representações sociais, de levar em conta não apenas aquelas produzidas pelos componentes da área de segurança pública (elites formuladoras e gestoras de políticas e policiais, executores das mesmas), mas, igualmente, as que são elaboradas por aqueles que direta ou indiretamente se beneficiam ou sofrem as consequências de seus acertos e desacertos, ou seja, a sociedade, em seus distintos segmentos.
Esse desafio seria o de inserir a temática das representações sociais no contexto sociológico das reflexões teóricas e da produção de conhecimento sobre segurança pública: a distância entre as expectativas da sociedade, em seus distintos segmentos, e as políticas públicas pode estar na origem da desconfiança e do medo que distanciam polícia e sociedade. Privilegiar a análise das representações significa reconhecer sua importância como estratégia de conhecimento do social, admitindo que produzem um tipo de conhecimento que interroga a realidade através do que se pensa sobre ela.
Em se tratando da segurança pública, tais representações são de tal modo importantes que se poderia afirmar, com risco do exagero, que, para a análise, interessa menos o fato e mais sua versão, ou representação, que orienta o agir dos atores sociais. Buscando o equilíbrio, seria, talvez, mais sensato dizer que interessa tanto o acontecimento, quanto sua representação, constitutiva do fenômeno que descreve.
Esse argumento poderia ser introduzido por meio do desafio de número três, relativo à questão da mídia como formadora de opinião. A mídia constrói, reconstrói e seleciona os fatos sociais que chegam até à sociedade na condição de notícia. Poucos deixarão de admitir que ela, em suas diferentes facetas, mas com claro predomínio dos meios televisivos, tem protagonizado de modo crescente a função pragmática de “explicar o mundo” e “fabricar” muitos dos sentidos que consumimos sob a forma de notícia, entendida como mercadoria. A violência, dita assim como realidade já dada, é uma notícia que no mercado da informação possui enorme poder de venda: transformada em objeto de consumo passa a fazer parte do dia a dia até mesmo daqueles que nunca a confrontaram diretamente. Para Patrick Champagne (1993), a mídia não apenas apresenta, mas também representa a realidade da qual trata. Assim, se a realidade é midiaticamente construída, apresentada, representada por meio de narrativas e imagens de guerra ou de paz, tais construções têm efeitos sobre as formas como a população vai orientar suas condutas, armando-se ou não. Da mesma forma, tais representações podem “pautar” o conteúdo das políticas públicas centrado, por exemplo, em práticas repressivas se vierem como resposta a acusações de ineficiência e ineficácia. Isso posto, assumir o desafio de entender a relação mídia/violência não significa divinizar nem demonizar a mídia, mas constituir esse binômio como objeto de análise, levando em conta sua turbulenta interdependência. Por exemplo, é possível, por um lado, encontrar nos espaços midiáticos policiais na condição de especialistas e comentadores dos fatos da violência; por outro, jornalistas acompanhando operações policiais e estabelecendo cumplicidades com os policiais para conseguirem o furo de reportagem. Mas falar em cumplicidade não é também assumir que partilhem o melhor dos mundos: pelo contrário, é complexa, porque tensa e contraditória, consensual e cúmplice a natureza dessas relações. Na prática, cada um dos polos desse binômio constrói a realidade social por meio de sentidos e de narrativas que representam a “realidade” da violência e a violência como realidade, segundo interesses que nem sempre se equivalem porque obedecem a formações discursivas diferentes. Colocadas face a face, mídia e segurança pública têm afinidades, mas também muito se estranham. Estas são dimensões que poderiam, certamente, ganhar tratamento mais sistemático nas agendas de pesquisa.
O desafio seguinte, de número quatro, também articulado à atuação da mídia, diz respeito ao medo e à insegurança, os quais, construídos como representações sociais, têm tomado conta das metrópoles: presentes nos ricos condomínios fechados dessas mesmas grandes metrópoles brasileiras, mais do que na maioria das periferias das cidades, esses sentimentos fazem com que os moradores dos primeiros espaços se tranquem e se protejam, utilizando-se, para tanto, de todos os implementos que a moderna tecnologia produziu para a área da segurança. Em relação a esses locais, é comum circularem representações de pânico que pouco ou nada têm a ver com a realidade concreta da violência nesses espaços tranquilos e superprotegidos, em oposição à precariedade dominante em boa parte das periferias urbanas. Entretanto, a sensação de insegurança cria, por si só, a demanda por aumento de segurança. Aliada a representações de ineficiência ou ineficácia do sistema público de segurança, tal demanda induz à utilização do aparato de segurança em defesa de interesses particularistas, em detrimento do coletivo. Esse descrédito, que leva a uma lógica do “salve-se quem puder e como puder”, é compatível com outra lógica que informa esse tipo de raciocínio, a de “fazer justiça com as próprias mãos”, levando cidadãos a se armarem e a se prepararem para a “guerra urbana”. O descrédito é, igualmente, o mote a alavancar a indústria bélica voltada para essa “guerra” e responsável pela produção do gigantesco aparato tecnológico de “proteção” que coloca o cidadão como agente de sua própria segurança.
Medo e insegurança são desafios que se encontram também articulados à questão das drogas, apontando para o desafio de número cinco. No caso da legislação sobre drogas, uma nova lei, aprovada em agosto de 2006, embora não descriminalize o uso, estabelece para o usuário penalidades outras que o encarceramento (Brasil, 2006). Ressalte-se que, à época da legislação, as “cracolândias” não haviam alcançado as proporções atuais. Falar em violência urbana no Brasil hoje é colocar em pauta a questão das drogas em sua realidade, mas também em suas representações, articulada à questão do tráfico e do porte de armas. Tais fenômenos são apontados como responsáveis pelas manifestações e práticas de violência, constituindo-se, assim, em desafio à imaginação e ao olhar sociológicos. Pelo conteúdo implicado na lei, sua aprovação foi e tem sido objeto de muitas controvérsias e debates. As indagações são de vários níveis, mas dizem respeito, de modo sucinto, a problemas ditos de natureza técnica – que consideram, sobretudo, a dogmática jurídica – e a problemas de cunho substantivo ou moral – que questionam conteúdos de natureza filosófica relativos à adequação da lei. As manifestações partem da sociedade civil, bem como de órgãos públicos implicados ou responsáveis pelas atividades de segurança pública (a corporação policial, por exemplo). Do ponto de vista técnico, uma das questões levantadas se atém à identificação das instâncias competentes para se pronunciarem sobre a matéria, considerando-se o caráter científico do saber requerido para definir o que é droga, dependência etc. A questão de ordem moral, absolutizando veredictos sobre o bem e o mal e concentrando-se no julgamento sobre os usuários, estigmatiza o indivíduo, definindo-o como desviante face aos padrões comportamentais ditos socialmente aprovados (Becker, 1985) – julgamento que, em princípio, interfere e compromete a própria avaliação ou análise da legislação stricto sensu.
Dentre as possibilidades de enfrentamento desse desafio, tem causado mais debate e polêmica a que propõe a descriminalização das drogas. Para seus defensores, trazer para o âmbito do mercado e da concorrência regulamentada um sem-número de atividades que hoje se passam no submundo da invisibilidade, da lógica do terror, do medo, da delação e da barbárie, poderia contribuir para a diminuição dos atuais índices de violência, além de retirar o enfoque do âmbito da política de segurança pública para situá-lo junto às práticas e políticas de saúde pública. E aí a polêmica já é de outra natureza, com o questionamento acerca da legalidade, conveniência e mesmo constitucionalidade do internamento compulsório, por exemplo, no caso dos dependentes de crack vivendo no espaço público. Nessa questão, o grande desafio posto às modernas democracias é o de garantir lei e ordem sem abrir mão da preservação dos direitos humanos. Além do que, o fenômeno é global e legislações nacionais, permeadas por uma multiplicidade de interesses, situam‑se em níveis decisórios de poder muito desiguais e limitados.
O sexto desafio refere-se à questão da impunidade e do tratamento dado a ela pela mídia. Não apenas a impunidade concretamente existente e testemunhada no cotidiano da sociedade como prática corriqueira, mas, de igual modo, sua representação, promovem o descrédito nas instituições, põem sob suspeição sua legitimidade e eficácia e situam-na acima da universalidade das normas jurídicas e dos códigos empíricos, que ela, a impunidade, substitui pelo particularismo e por privilégios (Porto, 2002).
Afirmações como a tristemente famosa de que “aqui tudo acaba em pizza” – tendem a colocar em ação uma espécie de lógica do “tudo ou nada”, do “ele ou eu” ou, ainda, do “se ele, por que não eu”, abrindo espaço à violência enquanto representação de uma ordem que, nessa condição, orienta comportamentos.
Diretamente articulado à questão da impunidade, outro desafio diz respeito ao caráter desigual que permeia os procedimentos de administração da justiça. Trazido para o âmbito da justiça, o tratamento hierarquizado caracteriza situações de impunidade, na medida em que desqualifica a igualdade perante a lei estabelecida pelo ordenamento jurídico. “Aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei”, conteúdo presente nos ditados e adágios populares, expressa bem o que se está afirmando.
Entre as várias facetas da impunidade tratadas cotidianamente pelo noticiário, chama a atenção a que caracterizaria o sétimo desafio das reflexões aqui consideradas: diz respeito à violência policial, midiaticamente apresentada a partir de fatos, narrativas, acontecimentos e versões, construídos como notícia. Se, por um lado, os policiais são frequentemente apontados como fonte de condutas violentas, transgressoras e violentadoras dos direitos humanos – os autos de resistência sendo o exemplo por excelência – por outro, desses policiais também se demanda e se cobra que ajam com mais efetividade, inclusive com utilização de violência.
São contextos que parecem deflagrar uma reciprocidade perversa entre sociedade civil e organizações policiais em função da qual a polícia tende a práticas violentas supondo que tal comportamento é o que a sociedade dela espera. Essa lógica não é isenta de ambiguidades. Por meio dela a sociedade, movida pelo combustível do medo e da insegurança, cobra sempre mais do policial: mais rapidez, mais eficiência, mais agilidade e faz dele um herói se sua função de garantidor da ordem é avaliada como bem-sucedida, mas identifica-o ao bandido, caso avalie o contrário (Porto, 2004).
Além disso, como se pode depreender das representações sociais, o caráter violento da atuação policial pode ser o estopim para outros tipos de violência protagonizados pelo cidadão comum, espécie de resposta em cadeia, que se converte em círculo vicioso. Sob esse aspecto, o desafio aqui seria o de melhor pensar o equacionamento das relações entre polícia e sociedade, o que significa considerar distintas representações e pensar a atuação e função do policial no contexto das sociedades democráticas. Esse aspecto repõe a questão da legitimidade, central à atuação deste agente, garantidor de lei e ordem, no interior da observância dos direitos humanos.
A noção de legitimidade vem, com Max Weber (1991), acompanhada da noção de monopólio, a qual envolve uma ideia de restrição. No caso do monopólio da violência, entretanto, a restrição apontada tem sentido distinto do econômico: apresenta-se como pré-requisito ou condição de possibilidade para a construção de uma sociedade mais democrática, ao impedir a livre circulação da violência. Tal restrição cria, em tese, as condições para inibir sua existência de forma difusa no conjunto da sociedade, excluindo-a das formas e práticas quotidianas de interação social, no âmbito da sociedade civil. No âmbito do Estado, esse movimento pode ser entendido como condição para a desprivatização da violência, concentrando-a, racionalizando-a no interior do aparelho do Estado e impedindo sua disseminação e expansão para o conjunto da sociedade civil (Porto, 2001). Sem o enfrentamento desse desafio, não há como se articular conteúdos constitutivos da organização social voltados à pacificação do social.
Em oitavo lugar, a sociologia se vê desafiada a bem compreender a complexa questão da discricionariedade policial. Trata-se de um enfrentamento que se refere, por um lado, à compreensão sociológica e, por outro, à própria compreensão do policial sobre a temática. Em várias circunstâncias ligadas a situações de pesquisa, o policial tem manifestado alguma dificuldade em se posicionar a respeito do caráter positivo ou negativo da discricionariedade, que é uma característica não apenas da sua profissão, mas de várias outras, como, por exemplo, a das áreas médica ou educacional. Demandado a se situar em relação ao tema, o policial apresenta, quase invariavelmente, uma resposta defensiva, como se estivesse subentendido que falar em discricionariedade é mencionar um defeito, uma lacuna, uma arbitrariedade em sua forma de atuar, que mereça recriminação. Em outras palavras, é como se ele se defendesse, sentindo-se (ou, antes mesmo, de se sentir) acusado de algum deslize, com os desdobramentos que o tema comporta em termos de controle interno versus controle externo (corregedorias e auditorias) das condutas e desvios de conduta da atividade policial.
Tal situação remete à necessidade de se inserir também a compreensão da já mencionada e incontornável questão da formação profissional como outro desafio, o de número nove. Nesse processo se inclui a melhor adequação e proporcionalidade entre conteúdos voltados às áreas de humanas e aqueles destinados à formação jurídica e técnica, esses últimos superdimensionados quando comparados aos primeiros. Se é fundamental que o policial seja treinado a bem manejar uma arma, a dominar os modernos implementos tecnológicos voltados ao controle social (pulseiras e tornozeleiras eletrônicas, taser etc.), é igualmente central que existam normas claras sobre abordagem policial e, mais do que nunca nos dias atuais, sobre como atuar em situações que envolvem multidões, como grandes manifestações e protestos, contextos nos quais atitudes de incerteza e descontrole, levando tanto ao agir violento quanto à omissão da ação, podem ter desdobramentos graves.
Tal desafio articula-se à compreensão dos porquês da representação negativa que alguns policiais fazem de si mesmos, percebendo-se, em seus dizeres, como alguém que trata, trabalha, lida como o “lixo” da sociedade. Poder-se-ia, talvez, falar de um bloqueio no processo de construção de uma identidade coletiva com sinal positivo, através do autorreconhecimento, como sujeitos aptos a se perceberem, se identificarem e se definirem como gestores da paz. A rigor, reverter ou desconstruir os conteúdos desse imaginário pareceria mais urgente do que aumentar recursos, tecnologias e efetivos, ainda que não se possa descartar a importância da adequação de tais recursos para o aprimoramento da prática policial.
Essa temática abre espaço para a complexa e polêmica questão da reforma das polícias, sobre a qual nem os setores responsáveis pelas políticas públicas de segurança nem especialistas e estudiosos parecem ter consenso. A integração, fusão, eliminação, e ou incorporação das polícias civil e militar envolve histórias diferenciadas, culturas policiais diferenciadas e, sobretudo interesses políticos e econômicos igualmente distintos. A questão envolve disputa por hegemonia e poder; não pode ser equacionada pela pluma de uma caneta que define, sanciona e promulga novas leis.
(In) Conclusões
Reverter situações contidas nos dois últimos desafios demandaria talvez a construção de mecanismos que subsidiassem a maior proximidade entre os órgãos de segurança pública e a sociedade, de modo a captar os ecos das representações sociais elaboradas pela sociedade civil. E demandaria, também, maior sensibilidade para a escuta das representações dos próprios integrantes da corporação policial, a fim de valorizar a profissão e a identidade profissional, articuladas ao respeito dos direitos humanos, conteúdo fundante da prática policial.
Caberia, ainda, a menção a um último desafio, o de número dez, e seria algo muito próximo à utopia, na medida em que sugere a necessidade de se repensar os processos de socialização, os quais, revertendo a assim chamada “cultura da violência” ou de uma “sociabilidade violenta”, recorrendo mais uma vez a Machado (1993), permitissem entre ver formas de resolução de conflitos que não acabassem em violência. Uma cultura da paz seria viável? Em que medida? Com que requisitos? Reverter tais processos parece mais urgente do que aumentar recursos, tecnologias e efetivos, embora tudo isso tenha importância.
Pensando de modo mais abrangente os desafios desta agenda, muitas indagações poderiam vir à tona cabendo à sociologia se interrogar sobre as características e a natureza dessa sociedade nas quais tais representações de violência têm lugar se interrogando, igualmente, sobre o porquê de estarem individualizadas em determinados tipos de indivíduos mais do que em outros. Por exemplo, se a associação pobreza/violência não mais se constitui, pelo menos não de modo sistemático, no cerne das análises acadêmicas, ela continua a permear o imaginário popular como representação social. Nesse sentido, vale retomar uma conclusão de Misse, quando analisa a questão da causalidade em se tratando de criminalidade violenta no Brasil (2011: 27). Diz ele: “o desafio sociológico de qualquer análise de causalidade da bandidagem urbana no Brasil provém da constatação de que a maioria dos agentes provém das camadas pobres, mas que, ao mesmo tempo, a esmagadora maioria dos pobres não opta pela carreira criminal”. Se o paradoxo é apenas aparente, levantar os véus que encobrem esse mistério suscita alguns questionamentos, os quais não se dissociam das intrincadas questões da política e do poder, dos legalismos e ilegalismos, dos medos, reais e imaginários que configuram hoje a realidade brasileira.
Avançar na compreensão desses desafios não seria sinônimo de qualquer pretensão a buscar soluções mágicas. Muitas indagações poderiam vir à tona: seria possível pensar que reverter alguns das situações contidas nesses desafios demandaria a construção de mecanismos que subsidiassem a maior proximidade entre os órgãos de segurança pública e a sociedade? Seria possível por esse viés captar os ecos das representações sociais elaboradas pela sociedade civil? E demandaria, também, maior sensibilidade para a escuta das representações dos próprios integrantes da corporação policial, a fim de valorizar a profissão e a identidade profissional, articuladas ao respeito dos direitos humanos, conteúdo fundante da própria prática policial?
É certo que os temas aqui abordados, sob uma ótica de desafios, já fazem parte do elenco das agendas de pesquisas e, portanto, das inquietações sociológicas. A questão que o artigo buscou enfatizar diz respeito ao seu enfoque na condição de representação social, visto ser nessa condição que produzem normas, crenças, valores, fantasias, conteúdos, sentidos e símbolos que orientam condutas e práticas que podem mudar e vêm mudando as feições e configurações do espaço urbano no Brasil contemporâneo.
Referências
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Notas