RESUMO: Numa das freguesias da zona oriental de Lisboa (Portugal), Marvila, que apresenta diversos indicadores de segregação espacial e desigualdades sociais e de mobilidade, foi observada, por diversos atores locais, uma carente resposta na área da mobilidade em bicicleta. Partindo dessa observação, procurou-se encontrar soluções para este problema através de respostas inovadoras e sustentáveis, numa abordagem colaborativa e participativa em contexto local. Este artigo enquadra-se num projeto em curso, observando concretamente: um estudo participativo sobre território e mobilidade local; a criação de uma rede partilhada de bicicletas; e o desenvolvimento de um laboratório de reciclagem de plástico. O projeto sustenta-se na promoção da educação para a mobilidade ativa segura, propondo o diagnóstico de recursos locais, trajetórias, necessidades de mobilidade e reforço da mobilidade em bicicleta em contexto pandémico, potencializando o desenho de novas respostas. Visa, assim, a reflexão e atuação aprofundadas sobre a mobilidade na freguesia, tendo como horizonte a coesão territorial local e com o resto da cidade. Os processos e resultados do projeto serão discutidos partindo de um enquadramento teórico-metodológico de investigação-ação participativa, que potencia o estabelecimento de formas coletivas de diagnóstico e respostas sociais, bem como sustenta a academia no desenvolvimento de políticas e práticas de educação territorial para a sustentabilidade. Associado a este debate, procura-se, a partir do paradigma das mobilidades, apresentar e relacionar o papel das infraestruturas de mobilidade do território e (i)mobilidades das pessoas que ali vivem.
Palavras-chave: Educação territorial, mobilidade em bicicleta, paradigma das mobilidades, métodos participativos, sustentabilidade.
ABSTRACT: In one of the parishes of the eastern area of Lisbon (Portugal), Marvila, which presents several indicators of spatial segregation and social and mobility inequalities, a lack of response in the area of bicycle mobility was observed by several local actors. Based on this observation, innovative and sustainable responses were sought to find solutions to this problem, in a collaborative and participatory approach in the local context. This article is part of an ongoing project, observing specifically: a participatory study on territory and local mobility; the creation of a shared bicycle network; and the development of a plastic recycling laboratory. The project is based on the promotion of education for safe active mobility, proposing the diagnosis of local resources, paths, mobility needs and strengthening of cycling mobility in a pandemic context, underpinning the design of new responses. It thus aims at in-depth reflection and action on mobility in the parish, with a view to territorial cohesion both locally and with the rest of the city. The processes and results of the project will be discussed from a theoretical and methodological framework of participatory action research, which fosters the establishment of collective forms of diagnosis and social responses, as well as supports the academy in the development of policies and practices of territorial education for sustainability. Associated with this debate, we seek, from the paradigm of mobilities, to present and relate the role of mobility infrastructures in the territory to (i)mobilities of the people who live there.
Keywords: Bicycle mobility, mobility paradigm, participatory methods, sustainability, territorial education.
DOSSIÊ
Percursos para a mobilidade sustentável em territórios desiguais: reflexões a partir de um projeto de investigação-ação
Pathways for sustainable mobility in unequal territories: Reflections from an action-research project
Recepção: 10 Abril 2023
Aprovação: 13 Setembro 2023
Marvila é uma freguesia (termo que designa uma escala equivalente a subprefeitura, podendo traduzir-se em língua inglesa como parish) extensa na zona oriental do município de Lisboa, correspondendo a 7% do território de Lisboa com 7,12 km2, o que a torna a quarta freguesia mais extensa da capital portuguesa e a segunda com maior número de moradores, contando-se 35.482 habitantes em 2021 (Instituto Nacional de Estatística, 2021).
Não obstante a redução populacional que se verificou na última década, esta freguesia apresenta uma distribuição da população por gênero e grupos etários que se assemelha crescentemente à da população de Lisboa, assinalando-se o decréscimo de crianças e jovens e o aumento de população com maior idade. Porém, quando observamos a variação dos dados de 2021 por níveis de ensino, constata-se que, apesar das mudanças observáveis desde 2011, prevalece uma forte distância de Marvila em relação aos níveis de escolaridade de Lisboa, com percentagens bastante superiores de população com ensino básico (54% contra 32% em Lisboa) e muito inferiores com o ensino superior (12% contra 37% em Lisboa) (Instituto Nacional de Estatística, 2011, 2021; Vieira et al., 2022).
Este território é marcado por desigualdades sociais que se manifestam em diversas dimensões. O II Diagnóstico Social de Lisboa destaca, a este respeito, a educação (maior incidência de analfabetismo, menor frequência de educação pré-escolar, elevados números de abstenção escolar e de jovens que não trabalham nem estudam, agrupamentos de escolas considerados TEIP – Territórios Educativos de Intervenção Prioritária), questões associadas a problemas de saúde (número elevado de pessoas com problemas de saúde mental), pobreza e situação perante o trabalho (aumento notório de população com carência alimentar, níveis de desemprego elevados e necessidade de complementos financeiros a diversas gerações populacionais) (Câmara Municipal de Lisboa, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e Instituto de Segurança Social, 2017).
Acresce a distinção social entre as zonas abaixo das linhas de trem (em processo acelerado de investimento imobiliário e implantação de indústrias criativas), à semelhança de grande parte do território lisboeta, e acima das linhas de trem, onde predomina a habitação pública de função social (Silva, 2020; Vieira et al., 2022). Esta distinção explicita a construção diferenciada de populações, em processos mais ou menos formais, através dos quais os espaços são dedicados a certos usos e diferentes grupos sociais vão sendo direcionados para cada setor desses espaços (Chamboredon, 2020). Daqui resultam processos de estratificação e segregação espacial, conjugando nos territórios segregados a propensão para a relação entre isolamento e alienação social (Wacquant, 2001). Esta dinâmica joga com os processos de metropolização, em contexto de globalização do capitalismo mundial, que implicam um desenvolvimento desigual, reproduzindo desigualdades sociais e intensificando a fragmentação social e espacial (Bassand inPereira, 2018, p. 18), naturalizando a coexistência e proximidade de pessoas com muitos e poucos recursos, de áreas prósperas e espaços emblemáticos em fronteira com áreas empobrecidas e desinvestidas (Pereira, 2018).
O processo de ocupação do território da freguesia de Marvila até aos finais do século XIX dava-se, na sua maioria, por ocupação de lazer, em que os seus terrenos eram apropriados por senhores feudais e pequena aristocracia. No século XX, a ocupação do território (sobretudo junto ao rio) dá-se através da industrialização e, em simultâneo, na sua envolvente, observa-se autoconstrução de habitação precária pelos trabalhadores portugueses vindos do Norte e Centro de Portugal (Ferreira & Gomes, 2015), conhecida vulgarmente em Portugal como bairros de barracas. Entre os diversos bairros construídos nesta zona da cidade, o mais famoso e considerado um dos mais populosos de Lisboa (com cerca de dez a quinze mil pessoas residentes) foi o bairro Chinês, que foi completamente demolido entre 1980 e 2000, sendo os seus moradores realojados em bairros de habitação pública nas redondezas até ao início do século XXI (Junta de Freguesia de Marvila, sd).
Durante os finais dos anos sessenta e até março de 1974 (processo interrompido devido à Revolução de 25 de abril de 1974), a Associação de Produtividade na Autoconstrução (Prodac), com apoio do Estado e do município, iniciou o processo de autoconstrução de habitações públicas de cariz provisório – com finalidade de 12 anos – nas proximidades do bairro Chinês, naquele que ficou conhecido com o mesmo nome da abreviação da associação – o bairro da Prodac (Rebolo, 2018). Este bairro foi ocupado na sua maior parte por habitantes vindos do bairro Chinês; apesar de serem consideradas inicialmente provisórias, as habitações resistem até hoje, sendo o novo bairro constituído por um edificado de habitações horizontais em que hoje reside, na sua maioria, uma população mais envelhecida (Ferreira & Gomes, 2015).
Entre as políticas urbanas de referência para esta zona da cidade, o Plano de Urbanização de Chelas tinha como objetivo construir habitações e suas zonas envolventes. A zona de ocupação desse plano compreendia quase todo o território norte/acima das linhas de trem da freguesia de Marvila. O plano tinha como objetivo estruturar o seu território em diversos bairros, associando cada bairro/zona a uma letra (Zonas I, L, M, N 1 e 2, J, e O). A título de exemplo, o território do bairro Chinês corresponde à letra L, compreendendo atualmente os bairros dos Alfinetes, Marquês de Abrantes, Chalé e Salgadas, também designados bairros do 4 Crescente. Este projeto de urbanização teve início na década de sessenta do século XX, contudo, o seu processo de execução foi diversas vezes alterado e interrompido; entre as várias explicações para estas alterações, pode-se destacar as circunstâncias políticas (sobretudo a Revolução de 1974) e o fato de os diversos bairros de autoconstrução precários que foram construídos ao longo do tempo criarem dificuldades ao avanço do Plano (Heitor, 2004; Rebolo, 2018). Após disputas sobre o rebranding desta parte da cidade sob a designação de Marvila, este território é hoje novamente reconhecido como zona de Chelas, e compreende diversos bairros da freguesia, tendo o seu processo de construção de habitações e urbanização sido acelerado com o Programa Especial de Realojamento (Cachado, 2012; Chaves, 2020).
Um outro fator de interesse no território é a fixação de imigrantes dos países africanos de língua portuguesa (e seus descendentes) a partir de meados da década de setenta, com especial ênfase no pós-25 de Abril. Reis (2023) descreve este processo de imigração de origem guineense no bairro do Condado, referindo que houve processos semelhantes nos outros bairros de Chelas, como o bairro do Armador. A partir do trabalho dos autores nos projetos referidos neste artigo, pôde-se constatar a diversidade de população negra (oriunda dessas vagas de imigração e afrodescendência) em diversos bairros de Chelas, sendo também percebida a presença da população portuguesa cigana. Esta última, embora já pudesse estar presente em Marvila desde o Bairro Chinês (existe neste momento pouca documentação e investigação sobre esta questão), em sua grande maioria foi realojada de outros bairros da cidade de Lisboa para esta freguesia, em especial nos bairros do 4 Crescente. No contexto da pesquisa no terreno, foi também verificada uma nova vaga de imigração, com destaque para a presença de pessoas brasileiras, ainda que em pouca quantidade. Neste caso, na sua maioria na última década e presente nos bairros onde a habitação é majoritariamente providenciada por venda e aluguel.
Em suma, a freguesia de Marvila destaca-se pela sua diversidade populacional ao nível étnico-racial. Os bairros onde se situam as intervenções focadas neste artigo (bairros do 4 Crescente, Armador e Prodac) espelham essa diversidade, ainda que de forma segmentada: o bairro do Armador com uma forte presença de pessoas negras e brancas; o 4 Crescente com uma diversidade entre portugueses ciganos e não ciganos; e o Prodac mais caracterizado por portugueses que migraram dentro do próprio país. Por fim, uma nota importante: em Portugal não existe recolha étnico-racial nos censos da população, dificultando a percepção real das percentagens dessas populações (e, também, do que se esconde com a falta de informação).
Existem também descontinuidades associadas a elementos naturais (como relevo acidentado, parques verdes, outras zonas não construídas e o próprio rio Tejo), mas majoritariamente por elementos construídos (linhas de trem, vias rodoviárias largas, vazios urbanos entre bairros construídos de forma relativamente isolada). Com este traçado urbano, faixas de pedestres estreitas ou inexistentes em várias zonas, ciclovias insuficientes e um território não abrangido por oferta pública ou privada de meios de mobilidade suave e/ou coletiva, Marvila evidencia menores condições para esse tipo de mobilidade em face do restante território da cidade de Lisboa – constatação que levou um conjunto de organizações com intervenção no território a propor a realização de um projeto de investigação-ação que permitisse conhecer melhor essa realidade marvilense e, de forma participativa e colaborativa, contribuísse para a promoção de respostas sociais e educativas (Chaves et al.,, 2021).
Para o desenvolvimento do projeto Gingada partimos da abordagem teórico-metodológica da investigação-ação participativa, mais sistematizada no campo educativo a partir da década de 1980 (Carr & Kemmis, [1986] 2003). Tal abordagem defende a necessidade de a investigação servir como base para a ação e vice-versa, ancorando a compreensão e propostas de resolução de problemas locais, identificados juntamente com as pessoas implicadas no processo de investigação (Almeida, 2001; Baldissera, 2001; Saito, 2001; Tripp, 2005).
Esta abordagem alicerça-se num processo reflexivo por parte de todos os envolvidos, incluindo investigadores, todos podendo conhecer os resultados da pesquisa e, partindo dessa partilha, criar reflexividade (Baldisserra, 2001; Saito, 2001; Tripp, 2005; Almeida, 2001). Quebra-se o distanciamento entre investigador/a, contexto e sujeitos de investigação, mobilizando-se o conhecimento acadêmico para responder a problemas locais, e partindo de projetos de ação social ou de outras respostas através de ações participativas e coletivas (Baldissera, 2001).
Partindo da sistematização das caraterísticas da investigação-ação participativa elaborada por Torres (2021), podemos considerar que o projeto Gingada se enquadra nesta abordagem, na medida em que está imbuído de um caráter socialmente crítico e emancipatório ao desenvolver ações promotoras de conscientização (Freire, 1979) e reflexão sobre as circunstâncias de vida dos sujeitos participantes (Freire, 1967). Isso inclui: a intencionalidade sociopolítica do projeto, desenvolvido num grupo social organizado localmente, além de explicitada e articulada com grupos sociais locais; conhecimento considerado instrumento de transformação social e promotor da conscientização; sua criação na sequência de ações reivindicativas locais pela mobilidade em bicicleta e pela qualidade ambiental; o estímulo à participação de membros dos setores populares em diversas fases, desde o planejamento e desenho do projeto e do instrumento de pesquisa até a discussão e validação de resultados do estudo (Torres, 2021, p. 43-44).
Para um maior impacto local e por forma a potenciar o sucesso junto da comunidade, a participação e o trabalho colaborativo — aliados à investigação-ação — foram considerados essenciais, com envolvimento da comunidade na concepção do projeto, submissão do projeto em edital de financiamento público, acompanhamento, dinamização de ações, participação no inquérito, avaliação, validação e disseminação (Vieira et al., 2022, p. 20).
Para concretizar esta abordagem, foi realizada observação participante nas várias atividades do projeto, numa lógica de participantes que também colaboram para a sua monitorização e para a compreensão dos seus resultados no território – participant-as-observer no contexto territorial e complete participant no contexto do projeto (Cohen et al., 2018, p. 543) –, sobretudo através do seu envolvimento em reuniões de equipe e em eventos significativos para o consórcio (tendo os pesquisadores a possibilidade de intervir em tomadas de decisão). A componente de pesquisa científica foi mais acentuada na colaboração para o desenvolvimento do Estudo participativo sobre mobilidade (ver detalhes adiante), que incluiu recolha e análise estatística, pesquisa documental e desenvolvimento de método móvel com inquérito por questionário, realizado em 2021 junto de 329 residentes em Marvila e 67 não residentes que visitavam o território.
Apesar das vantagens reconhecidas a esta abordagem, a investigação-ação recebe algumas críticas, nomeadamente pelo seu caráter potencialmente utópico, controlador ou prescritivo, particularista, por privilegiar uma pesquisa orientada para o consenso, e por uma visão que estandardiza a emancipação e a intervenção (Cohen et al., 2018, p. 447-8). Neste projeto procuramos construir uma abordagem de investigação-ação participativa que, apesar de partir de um ponto prescritivo (fundado numa leitura de realismo crítico) de promoção da sustentabilidade social e ambiental, realizou as atividades que propôs com bastante adesão da população local. Em particular, na componente de pesquisa deste projeto, mais focada no Estudo, houve recolha e sistematização de informação primária e secundária; desenhamos um itinerário e instrumentos de investigação específicos para o contexto territorial, ainda que potencialmente dialogantes com outros contextos; e privilegiamos o confronto de interpretações dos resultados em sessões comunitárias, sem anular a diversidade de perspectivas num possível consenso.
Num contexto de diversidade sociodemográfica como é Marvila, os autores se identificam como pessoas brancas, sendo uma mulher portuguesa e um homem imigrante brasileiro, ambos entre os 30 e 40 anos de idade e não residentes em Marvila. Os papéis desempenhados foram, de forma partilhada (entre si, no consórcio e com elementos mais envolvidos da comunidade local), de concepção do projeto, desenvolvimento do projeto para concorrer a edital de financiamento público, construção dos instrumentos de estudo, análise, interpretação, redação e promoção da discussão dos seus resultados e acompanhamento das diversas atividades do projeto. Um dos pesquisadores já era conhecido (e reconhecido pelas lideranças formais/políticas e informais/comunitárias) numa parte do território por ali ter trabalhado e continuar a dinamizar projetos; este pesquisador foi também inquiridor no questionário móvel do Estudo sobre mobilidade (acompanhado de uma outra pesquisadora que participou exclusivamente nessa recolha). A outra pesquisadora tem um envolvimento mais pontual no território, focando-se neste e num outro projeto em que também participa como representante da equipe acadêmica no consórcio.
Salienta-se que o poder autárquico local (subprefeitura/Junta de Freguesia de Marvila) integra o consórcio de desenvolvimento do projeto em que se enquadra este estudo. Sua participação constitui um dos princípios de funcionamento do programa que financia o projeto (BIP/ZIP – Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária, custeado pela prefeitura/Câmara Municipal de Lisboa), na lógica de aproximação entre poder local e tecido associativo para o desenvolvimento de pequenos projetos de intervenção urbana em territórios considerados prioritários (Falanga, 2019). Na prática, algumas reuniões e momentos de discussão do projeto contaram com a presença de um técnico da Junta de Freguesia, houve partilha permanente de informação sobre o trabalho que ia sendo realizado e uma das sessões de discussão de resultados do estudo sobre mobilidade ocorreu nas instalações da Junta de Freguesia, com a presença do seu presidente. Ainda que a presença do poder local tenha um significado e um peso na interpretação de algumas questões suscitadas na discussão sobre problemas de infraestrutura (d)e mobilidade em Marvila, tivemos ocasião de alargar a apresentação de resultados do estudo aos órgãos municipal e metropolitano que acompanham o setor dos transportes, considerando a potencial influência nas políticas públicas municipais (e) de mobilidade.
Os resultados recolhidos a partir do estudo foram também importantes para apoiar a mobilização local por melhores transportes públicos, levando à criação de uma petição para sua melhoria neste território (partindo dos resultados do estudo e do envolvimento de um dos autores do artigo no processo).
A problemática enfocada no projeto e no presente artigo integra-se na discussão teórica sobre segregação socioespacial, processo contextual e multifatorial no qual é possível identificar padrões de segregação residencial e clustering de grupos minoritários, bem como a continuidade de formas de segregação através de relações sociais estabelecidas em espaços de vida quotidiana, trabalho, lazer e transporte (Piekut, 2021). Estes processos associam-se à produção social do espaço (Lefebvre, 1991) e à construção social de populações (Chamboredon, 2020), com uma forte importância das políticas urbanas e do papel do Estado na dinamização desses processos e na apresentação de possíveis soluções aos problemas que acarretam (Wacquant, 2001).
A vivência territorial neste contexto social segregado é ponderada a partir das mobilidades, compreendendo meios, modos e tempos de a população residente e visitante se deslocar entre espaços de Marvila, da cidade e da metrópole. Freire-Medeiros e Lages (2020) sistematizam diversas abordagens sobre os atuais estudos de mobilidade e apontam um novo giro das mobilidades, em que se destacam abordagens basilares para a reflexão acadêmica atual. O desenvolvimento da reflexão deste artigo sustenta-se neste enquadramento de um novo paradigma de mobilidades (Sheller & Urry, 2006; Urry, 2007) de modo a refletir a transformação percepcionada nas ciências sociais ao nível das várias formas e significados do movimento de pessoas, objetos e ideias, bem como num enquadramento de educação territorial para a sustentabilidade (Simon et al., 2023).
Partindo de uma abordagem de investigação-ação participativa, o projeto Gingada foi construído no sentido de compreender os – e promover respostas aos – desafios identificados em Marvila em matéria de desigualdade socioterritorial e de mobilidade.
Tendo a sua candidatura sido aprovada, beneficiou-se de financiamento da Câmara Municipal de Lisboa no âmbito do programa BIP/ZIP (Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária), na sua edição de 2020 (ref. 087), com execução orçamental até 2021 e período de sustentabilidade das suas ações até 2023. Para o seu funcionamento tem sido fundamental um conjunto de outros financiamentos, por forma a permitir o trabalho contínuo dos diversos atores sociais intervenientes, em cujas linhas de ação este projeto se integrou.
A rede integra um conjunto diferenciado de organizações locais e parceiros acadêmicos. O projeto foi promovido pelas associações Rés do Chão e Grupo Recreativo Janz e Associados, tendo como parceiros o Grupo Comunitário 4 Crescente, o Centro de Promoção Social da Prodac - Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a Junta de Freguesia de Marvila (órgão de poder local), o CICS.NOVA Universidade Nova de Lisboa e o CeiED - Universidade Lusófona.
Durante o período de execução do projeto foi elaborado o seu website2 (e através das páginas das organizações que compõem a rede, particularmente da instituição promotora3
No âmbito deste projeto foram desenvolvidas três atividades centrais, que descreveremos em seguida: a rede de partilha gratuita de bicicletas; o laboratório para reciclagem de plástico; e o estudo participativo sobre a mobilidade em Marvila.
A rede partilhada de bicicletas foi concebida como resposta de intervenção num território desprovido de respostas coletivas públicas ou privadas de mobilidade ativa. A rede pública municipal Gira, com bicicletas partilhadas geridas pela Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa, não dispõe de qualquer estação na freguesia de Marvila, apesar de, em maio de 2022, a rede Gira ter em funcionamento 123 estações em Lisboa.4 Marvila, a par de outros territórios lisboetas com índices de maior desigualdade socioeconômica (além da ausência de estações Gira), possuía igualmente poucas estruturas cicloviárias (Padeiro, 2022). Acresce a não autorização do uso de bicicletas e trotinetas geridas por empresas privadas nesta freguesia; infraestruturas e parqueamento para bicicletas também são deficitários, comparando com outras zonas da cidade (Vieira et al., 2022, p. 70-71).
A rede teve início em 2021, utilizando parte das bicicletas já recolhidas na Cicloficina Crescente, oficina comunitária de bicicletas, como também através de ofertas de bicicletas antigas de moradores e aquisição de bicicletas novas. Foi inicialmente estruturada com dois polos, um na loja de uma das associações promotoras, nos bairros do 4 Crescente, e outro no espaço de uma das entidades parceiras, no bairro da Prodac, onde se realiza a oficina comunitária de bicicletas.
O projeto teve início em contexto de pandemia da Covid-19, o que não foi impeditivo para o seu sucesso inicial, tendo tido bastante procura entre crianças e jovens. No polo 4 Crescente, rapidamente as 10 a 15 bicicletas disponíveis diariamente eram emprestadas. Porém, a utilização diária das bicicletas para fins lúdicos das crianças e jovens provocava o seu rápido desgaste, necessitando de um trabalho de reparação continuado que não tem sido possível garantir, uma vez que a rede nunca dispôs de funcionários na área da reparação, contando sobretudo com voluntários. Esta situação levou a que o desgaste das bicicletas ultrapassasse a sua demanda por utilização. O referido polo enfrentou este e outros desafios, como a dificuldade na gestão dos empréstimos face a roubos ou má utilização das bicicletas, tendo ainda de passar por obras no seu espaço para que pudesse abarcar mais recursos. Tais motivos levaram a que este polo da rede fosse desativado.
Em novembro de 2021 teve início o projeto BIP/ZIP Roda Vida, promovido pela associação Descalçada e tendo como parceiras as associações Rés do Chão, Rimas ao Minuto, Grupo Recreativo Janz e Associados, a Junta de Freguesia de Marvila e o CeiED - Universidade Lusófona. Este projeto contempla, entre as suas atividades, dar continuidade à rede partilhada de bicicletas em Marvila. Nesse sentido, no espaço Kriativu, no bairro do Armador, foi ativado um novo polo de empréstimos de bicicletas. Parte das bicicletas disponíveis no polo 4 crescente foi transferida para o novo polo, o qual também se beneficiou de bicicletas oferecidas pela comunidade. Este novo projeto possibilitou também a compra de novas bicicletas para serem disponibilizadas para empréstimos, tendo outro polo da rede também tido reforço da sua frota a partir de um financiamento angariado junto do programa Vinci para a cidadania.5
Atualmente, o polo do Armador tem uso quotidiano regular por crianças e jovens que utilizam as 10/15 bicicletas disponíveis. Por outro lado, o polo da Prodac estuda possibilidades de os empréstimos se direcionarem às pessoas que precisam fazer deslocações funcionais pelo território e que possam deixar as bicicletas em outros sítios na freguesia.
Uma crítica entre os promotores dos espaços é de que esta iniciativa ainda não funciona como rede para empréstimos de bicicletas, mas sim junção de polos relativamente autônomos. Ultrapassar essa situação será uma importante conquista desses projetos, possibilitando que uma pessoa que peça uma bicicleta num espaço possa devolvê-la noutro espaço. Neste momento, outras dificuldades são discutidas na operacionalização da rede, como a existência de regras comuns em todos os polos, melhor comunicação com potenciais interessados e partilha de recursos.
A rede tem potenciado o uso regular de bicicletas nos bairros onde os polos estão a operar, criando uma proximidade com este meio de mobilidade, ainda que majoritariamente de forma lúdica. Considera-se que este projeto, bem como outros direcionados à mobilidade ativa na freguesia, seja catalisador de incentivo à mobilidade em bicicleta a curto e médio prazos.
A mobilização local para criação de projetos dedicados à mobilidade em bicicleta tem criado respostas locais às desigualdades sociourbanas nesta freguesia. O projeto Gingada (com apoio posterior do projeto Roda Viva), através desta rede partilhada de bicicletas, tem moldado os usos do espaço público dos bairros onde a rede está ativa.
O projeto Gingada pretende contribuir para uma visão de sustentabilidade que contempla dimensões ambientais e sociais, considerando o território socioeconomicamente vulnerável em que se insere, a urgência ambiental acentuada por alterações climáticas e a necessidade de contribuir para uma transição cultural e educativa para a sustentabilidade. Nesse sentido, para além de um direcionamento global de compreensão e atuação no campo da mobilidade urbana ativa e sustentável, desenhando-se em torno de diversas formas de dinamização territorial através da bicicleta, a rede Gingada decidiu investir na criação de um laboratório de reciclagem de plástico, no bairro da Prodac.
Inicialmente, o objetivo da criação deste laboratório prendia-se com a intenção de desenhar e produzir, com plástico reciclado localmente, as peças que pudessem ser necessárias para reparar bicicletas na oficina comunitária, bem como promover oportunidades de negócio sustentável a partir de um laboratório aberto e de utilização gratuita pela comunidade.
O laboratório tem como objetivo sensibilizar a comunidade envolvente sobre a necessidade da reutilização do plástico, bem como conhecer possibilidades de reaproveitamento desse resíduo através de máquinas apropriadas para esse fim. Nesse sentido, foram adquiridos equipamentos especializados na área do prolongamento do ciclo de vida do plástico: trituradora; injetora (trabalho com moldes); extrusora (experiência para criar fio para alimentar impressora 3D); forno; prensa (para utilizar no forno); e uma impressora 3D.
Surgiram dificuldades na utilização desses materiais em recursos dedicados a bicicletas; a título de exemplo, os pedais feitos com este plástico reciclado eram pouco resistentes. Contudo, essas dificuldades não limitaram a ação do laboratório, que se foi adaptando para a criação de recursos que poderiam ter utilidade na comunidade. A rede de parceiros foi sendo expandida, localmente e à escala metropolitana. No geral, em cada uma dessas parcerias, o objetivo é que os parceiros sejam formados e possam utilizar o laboratório comunitário de forma independente.
Para o arranque do laboratório foi realizada uma formação que teve presença de técnicos e moradores. Atualmente existem dois moradores com interesse em usar este espaço como recurso para os seus negócios e em 2022 cerca de 120 pessoas visitaram ou participaram nas suas atividades.
Sendo um recurso disponível localmente, o laboratório ainda é pouco conhecido e utilizado, esperando-se que nos próximos tempos passe a ter uma maior utilização local. Trata-se de um espaço que se pode definir como uma estrutura de sensibilização ambiental, um recurso pedagógico e para fins de trabalho que permite a reutilização de plástico que seria, de outra forma, encarado como lixo.
No âmbito do estudo participativo sobre a mobilidade em Marvila foram realizados 396 inquéritos válidos (83% residentes em Marvila e 17% não residentes que visitavam o território) entre maio e setembro de 2021, num conjunto de 36 momentos e 27 pontos de recolha dispersos pela freguesia. Tal como foi referido anteriormente, este estudo integrou-se num processo participativo e colaborativo de investigação-ação, envolvendo a comunidade local na elaboração e participação no inquérito, sua avaliação, interpretação de resultados e divulgação.
Ainda que o estudo se tenha focado sobretudo na prática espacial (Lefebvre, 1991, p. 33), que contempla a organização física do espaço e as atividades e percursos nele inscritas, a produção social do espaço marvilense contempla também dimensões representacionais, em parte inscritas no plano das artes (urbanas), mas sobretudo no do planejamento urbano. Para evidenciar a realidade empírica do território e da mobilidade partindo de diferentes tipos de indicadores e formas de reflexão entre diferentes agentes de produção do espaço de Marvila, o estudo estruturou-se em três partes. Na primeira, procedemos à caraterização do território e da mobilidade, com análise estatística e documental para providenciar o quadro evolutivo e atual em termos de território e população, equipamentos e serviços, mobilidade (sistemas, meios, tempos) e a situação da bicicleta em Marvila. Na segunda, focamo-nos nos resultados do inquérito à mobilidade, particularmente com a caraterização dos participantes, da sua utilização do território e dos meios e tempos das suas deslocações, e da situação de utilizadores e não utilizadores de bicicleta em Marvila, bem como percepções sobre a construção de ciclovias no território. A terceira e última parte refletiu a discussão de resultados deste estudo com a comunidade local, em quatro momentos durante o mês de setembro de 2022, incluindo as diversas organizações da rede Gingada, três grupos comunitários da freguesia de Marvila (em sessão organizada com a Pluriversidade Comunitária, estrutura que funciona como uma universidade popular e comunitária, visando o protagonismo dos bairros na reflexão sobre o que os moradores identificam como sendo as suas problemáticas – Reis, 2022) e um grupo transversal focado nos transportes neste território.
Nas sessões participativas, as principais discussões a partir dos resultados deste estudo relacionaram-se com alterações nos usos do território, a difícil efetivação do direito à mobilidade, problemas de planejamento e acessibilidade, questões de segurança, coexistência de meios de mobilidade e cultura de mobilidade coletiva e suave, salientando-se a prioridade de garantir a participação neste planejamento.
Estes resultados foram apresentados ao público no dia 20 de Setembro de 2022 na Biblioteca de Marvila, numa sessão em que foram colocados em debate face aos planos de mobilidade no município de Lisboa, com a participação de Inês Castro Henriques da Câmara Municipal de Lisboa, e aos planos de mobilidade na Área Metropolitana de Lisboa, com Sérgio Pinheiro da Transportes Metropolitanos de Lisboa. A sessão contou ainda com uma mesa de conversa sobre participação no planejamento da mobilidade urbana, com Ana Pereira (Bicicultura), Bernardo Campos Pereira (Lisboa E-Nova) e Giovanni Allegretti (CES-UC).
Partindo das discussões participativas sobre os resultados do estudo, e considerando a prioridade da rede no sentido de ancorar as reivindicações locais por mais e melhores infraestruturas de mobilidade em Marvila, foram sugeridas algumas recomendações (Vieira et al., 2022), as quais apontavam para uma maior coesão territorial e para a intermodalidade, relativas à mobilidade pedonal, em bicicleta e rodoviária, nomeadamente o estímulo à utilização de bicicleta, a criação de material educativo para condutores de automóveis e o desenvolvimento de formações em espaço escolar para a promoção da coexistência segura no trânsito.
Entre os seus resultados, o laboratório de reciclagem de plástico potencia uma prática de sustentabilidade que se cruza com os princípios da economia circular, ao visar reciclar resíduos materiais (neste caso, plástico descartado após utilização em embalagens) e, dessa forma, promover uma menor utilização de recursos, o desenvolvimento e a adoção de tecnologias mais limpas (Freitas, 2022). Tanto o laboratório como a rede partilhada de bicicletas se sustentam como práticas de educação territorial, enquadráveis na dinâmica social de “novas proximidades” (decorrente da lógica do desenvolvimento sustentável), colocando em prática a resposta a reivindicações e à necessidade socioambiental de poupar recursos e energia, e respeitando o lugar dos cidadãos no território por forma a melhor compreender como promover a sua transformação para a sustentabilidade (Simon et al., 2023).
O acompanhamento e a colaboração nas discussões para a criação e manutenção do projeto, considerando o contexto territorial e temporal/pandêmico em que se desenvolveu e as necessidades de adaptação daí advindas, potenciaram uma presença próxima do autor e da autora e a partilha de processos de discussão, compreensão e decisão sobre que sentidos conferir às intenções de intervenção socioterritorial e educativa para a sustentabilidade a partir da dinamização local da bicicleta. Através das atividades deste projeto e dos seus resultados, o/a parceiro/a acadêmico/a, ancorado/a na abordagem de investigação-ação participativa, foi integrado/a numa dinâmica coletiva para estudar e intervir socialmente, colaborando para o envolvimento da academia no desenvolvimento de políticas e práticas de sustentabilidade.
Acresce que o envolvimento comunitário subjacente a esta participação ocorreu de forma sustentada num projeto que se pretendia de inovação social e boas práticas de intervenção social, com financiamento público relacionado com a intervenção em territórios marcados por desigualdades socioespaciais. No caso concreto deste projeto, tratou-se de desenvolver uma abordagem socioeducativa para a mobilidade sustentável que assentava na exploração e desenvolvimento do – e no – espaço público, aprofundando a ação prévia de instituições locais, partilhando visões e ações sociais.
Com este projeto e seu enquadramento educativo aproximamo-nos dos resultados positivos que se verificam noutras instâncias de mobilização da investigação-ação participativa em educação ambiental: potencia-se um melhor conhecimento do meio socioambiental, estimula-se a alteração de comportamentos e a intervenção pró-ambiental, bem como se favorece a melhoria de aprendizagens e o seu engajamento em lógicas de mudança social para a sustentabilidade, promovendo a conscientização e o desenvolvimento de conhecimento, competências de pesquisa, de avaliação e para a ação (Bywater, 2014).
Com a rede de bicicletas, o laboratório de reciclagem de plástico e o estudo sobre a mobilidade em Marvila, o projeto Gingada potenciou diferentes formas e processos de criação de espaços intersubjetivos e interinstitucionais, nos quais pudemos apreender discursos e práticas diferentes e, não obstante, encontrar pontos em que se possibilitou o diálogo e o acordo sobre alguns sentidos de desenvolvimento. A modalidade participativa foi o aspecto mais consensual, acompanhando a meta global de promoção educativa da mobilidade sustentável.
Não obstante o carácter localizado e particular deste e de tantos outros projetos, o reporte público das suas atividades e a partilha das suas práticas já inspirou o surgimento de novas iniciativas e pode potenciar a reflexão nas áreas em que atua, nomeadamente a reflexão acadêmica sobre possíveis parcerias com a sociedade civil na produção de conhecimento e na promoção de ações em campos (potencialmente normativos, mas que também carecem de aprofundamento dos estudos necessários à compreensão do que constituem e da sua evolução) como o da educação para a sustentabilidade, nomeadamente no âmbito das mobilidades.
Para uma melhor compreensão sobre as (i)mobilidades socioespaciais e suas infraestruturas neste território, regressamos aos resultados do estudo participativo sobre a mobilidade em Marvila (Vieira et al., 2022), destacando-se que nos indicadores socioterritoriais da freguesia se observa uma menor oferta de transportes públicos e meios de mobilidade suave, menos infraestruturas para a mobilidade em bicicleta e menos utilizadores deste meio, bem como tempos de deslocação mais elevados face à média lisboeta. No Inquérito à mobilidade em Marvila, o perfil dos participantes na amostra de inquiridos é semelhante ao dos residentes na freguesia e na cidade de Lisboa, e a maioria dos inquiridos revela deslocar-se a pé e em trajetos com até 15 minutos de duração; os inquiridos de sexo masculino referem tempos menores de deslocação e usam mais meios de transportes individuais, já as de sexo feminino indicam deslocar-se mais a pé e/ou em transportes coletivos, sendo a bicicleta escolhida como meio de mobilidade em menos de 10% das respostas.
Repensemos, então, o traçado urbano em Marvila, em particular as infraestruturas neste território e a forma como condicionam a mobilidade social e espacial. Esta reflexão dialoga com a obra de John Urry (2007) quando nos informa que o caráter complexo da vida social deriva de uma dialética de mobilidade e imobilidade, sistematização e personalização, sendo as experiências de mobilidade estruturadas, em grande medida, por sistemas e plataformas imóveis (como, por exemplo, estradas). É difícil pensar todas as orquestrações modernas de fluidez sem sistemas extensivos de imobilidade, e todos estes sistemas dinâmicos e interdependentes têm profundas consequências nas práticas sociais, influenciando padrões de exclusão socioespacial, bem como a estruturação de redes sociais, lugares e pontos (personalizáveis) de copresença (Urry inVieira, 2019, p. 193-4).
Marvila é um território extenso, com limites biofísicos como o rio, mas sobretudo retalhado por grandes vias destinadas ao trânsito automóvel e linhas de trem. As rodovias enquadram-se no planejamento das saídas da cidade de Lisboa, vias largas que pretendem aliviar rapidamente o trânsito para nordeste, estruturadas com o crescimento urbano e a expansão da utilização automóvel em Portugal. Novamente em diálogo com Urry (2004), podemos aqui recordar a forma como a estruturação de sistemas automóveis é dependente da oferta de estradas, podendo estas vias evidenciar o padrão poderoso e expansivo da dominação do carro sobre os restantes meios de transporte.
Os diversos bairros desta freguesia vão sendo construídos (e demolidos) em diferentes tempos e lógicas – por autoconstrução espontânea ou acompanhada, para alojamento público, para venda ou aluguel privados, respondendo a diferentes setores de uma sociedade desigual, estratificada. As habitações vão ocupando zonas expectantes de pedaços do território, e vão sendo criadas novas zonas expectantes na promessa de futuras construções de infraestruturas, nomeadamente de uma terceira ponte sobre o rio Tejo (intenção que levou ao encerramento de uma escola centenária em 2010, reestruturada pouco tempo antes, apesar de sua construção não ter avançado até a data atual – Soares, 2015).
As linhas de trem separam a parte de cima de Marvila, mais marcada por habitação municipal (e com diversos bairros associados a diferentes grupos sociais e questões raciais), da parte de baixo, cujos usos têm vindo a ser alterados, com perda da antiga ocupação de armazéns/fábricas e adaptação do seu edificado por indústrias criativas, a par de uma progressiva substituição da população residente num sentido de gentrificação.
Pensando no modo como as mobilidades cotidianas na escala da cidade se entrelaçam com as mobilidades na escala internacional, nomeadamente com referência à imigração (e suas subsequentes gerações diferentemente marcadas por discriminação étnica e racial por parte da sociedade dominante), podemos associar esta diferenciação entre as partes de Marvila à segregação socioespacial e às lógicas fronteiriças de restrição e afastamento (como no contexto europeu marítimo e continental, com restrições impostas a cidadãos não europeus). Na parte de cima, onde a população é mais racializada, juntando migrantes internos e internacionais e seus descendentes, com menores rendimentos financeiros e níveis de qualificação educativa, prevalece a lógica da restrição. Já uma maior permeabilidade fronteiriça (como na mobilidade facilitada a cidadãos europeus) é vista na parte de baixo de Marvila, onde a população é mais branca e dispõe de mais capital financeiro e cultural, e onde a gentrificação pode transnacionalizar-se através da atração de migrantes lifestyle com maiores rendimentos e (à escala do território) possíveis turistas (Hayes & Zaban, 2020). É na parte de baixo de Marvila que o trem funciona com maior periodicidade e alguns meios privados de transporte partilhado não deixam automaticamente de funcionar, tratando-se de uma zona de transição entre partes requalificadas ou em processo de requalificação da frente ribeirinha de Lisboa (Pereira, 2018). Já a parte de cima de Marvila apresenta um cenário de acesso a transportes públicos mais desequilibrado, sobretudo nos bairros mais afastados do metrô, e congrega um conjunto de bairros relativamente isolados (onde decorre o projeto apresentado neste artigo) por influência de políticas públicas para realojamento municipal.
O trem, sistema exemplar de mobilidade pública, com um papel fundamental na construção social moderna do tempo e do espaço (Urry, 2007), apesar de atravessar o território, é pouco encarado como sistema para a mobilidade quotidiana: nos censos de 2021, apenas 3% da população empregada e estudante de Marvila (em percentagem próxima à escala municipal) utilizava o trem nos seus movimentos pendulares (Instituto Nacional de Estatística, 2021). Existem três estações de trem no território, das quais uma está sempre encerrada (Chelas) e outra não funciona ao fim de semana (Marvila), altura em que este meio de transporte só pode ser acedido em Braço de Prata, e com pouca periodicidade. Do trem fica, por isso, mais a marca distanciadora da sua infraestrutura do que (a possibilidade de) seu usufruto pela população local.
O metrô, localizado em zona mais próxima às freguesias centrais de Lisboa, tem um impacto diferente do trem, sendo construído majoritariamente por baixo de terra, sem aumentar as descontinuidades do traçado urbano, e funcionando com uma periodicidade que favorece a mobilidade da população que reside no seu entorno: nos mesmos censos, 12% da população empregada e estudante de Marvila (face a 10% na generalidade de Lisboa) utilizava o metrô nas suas deslocações quotidianas (Instituto Nacional de Estatística, 2021).
Porém, os meios de transporte mais utilizados nesta freguesia são os que beneficiam das rodovias, compensando (de forma insuficiente, no caso do transporte coletivo) as falhas da malha urbana e da oferta de outras soluções de mobilidade. Na mesma contagem censitária, 42% dos trabalhadores e estudantes utilizavam automóvel (em valor inferior aos 48% de Lisboa) e 24% utilizavam ônibus (em valor bastante superior ao de Lisboa, onde se registravam 15%) (Instituto Nacional de Estatística, 2021). Os valores de utilização do ônibus tiveram uma descida de 10% em Marvila face aos censos de 2011, o que em hipótese pode se considerar associado à pandemia da Covid-19.
No que diz respeito à utilização da bicicleta para efeitos de mobilidade, o seu reflexo estatístico/censitário neste território é muito diminuto, ainda mais que no restante espaço da cidade (Raposo, 2022). Porém, nos últimos anos, o investimento em ciclovias protagonizado pelo anterior prefeito de Lisboa levou a um aumento muito substancial de ciclistas na cidade, sobretudo nas freguesias centrais; mas também levou a que uma ciclovia em concreto (da Avenida Almirante Reis), cuja construção condicionou a redução de vias para tráfego automóvel, fosse constituída objeto de disputa política, contribuindo para a substituição do poder político na prefeitura, face à renitência de muitos lisboetas em relação a novos planos urbanos, sobretudo quando realizados sem preocupação com a participação dos residentes nas tomadas de decisão.
Nesse contexto, são compreensíveis as recomendações resultantes das discussões participativas sobre os resultados do estudo relativas à mobilidade e ao seu planejamento urbano participativo, defendendo a introdução de mais transportes ativos partilhados, a redução da velocidade do trânsito, a construção e melhoria de ciclovias e calçadas no território e o acompanhamento dos processos reivindicativos dos grupos locais.
Em Marvila, pensar a bicicleta e a construção de infraestrutura que a suporte é desafiador. A população pretende ser consultada para a tomada de decisão sobre estratégias de mobilidade; revela-se disponível para participar, nem sempre conhecedora sobre o tema, mas majoritariamente favorável à construção de ciclovias, ainda que receosa dos impactos nas rodovias que têm sido importantes para as suas possibilidades de mobilidade até o momento.
Preparar a mobilidade em bicicleta será, aqui, um desafio distinto ao que se assiste, por exemplo, no norte europeu. Porém, podemos reler Urry (2004) para pensar como reforçar a possibilidade de um “sistema de ciclabilidade” (Itani & Herrera, 2021), assumindo que a bicicleta também é dependente de estradas, as quais podem ser adaptadas para a sua utilização em massa; potencializar o fato de o contexto português ser líder na produção industrial de bicicletas; destacar valores associados à utilização da bicicleta como veículo individual mais tendente à sustentabilidade e considerado um símbolo emancipatório, um sistema simbólico de resistência a um sistema de mobilidade orientado pelo carro e a um sistema energético orientado pelo petróleo (a partir de Itani & Herrera, 2021).
Ainda que em Marvila o “efeito bicicleta” tenha sido menos sentido, esta freguesia faz parte do mapa de Lisboa e a questão das ciclovias foi uma das que mais se concretizou enquanto infraestrutura com efeitos díspares na cidade. Falta muito investimento para equipar este território com infraestruturas seguras (sobretudo para a mobilidade em bicicleta e pedonal), promotoras de uma maior coesão no território e qualidade de vida da população.
A rede Gingada, cujas organizações parceiras têm trabalhado em diversas iniciativas (pontuais e regulares) no território de Marvila, delineou o projeto apresentado neste artigo a partir do conhecimento deste território e reconhecendo efeitos de isolamento, distância e insegurança associados ao seu traçado urbano. O projeto tem respondido a algumas ausências – como a exclusão da rede municipal de bicicletas partilhadas (Gira) e de outras ofertas de mobilidade ativa partilhada, promovendo uma rede local de bicicletas gratuita e com base associativa; a inexistência de laboratórios de reciclagem ao serviço e alcance da comunidade local; e a falta de um estudo aprofundado sobre território e mobilidade em Marvila – e tem vindo a ser globalmente avaliado de forma positiva pelo seu aporte de inovação social, ação em rede pela sustentabilidade, promoção da qualidade de vida no território e contributo para a construção de conhecimento de forma participativa e colaborativa.
Não se pretende alimentar qualquer ilusão quanto à generalização de resultados de um projeto deste tipo, tendo em conta suas limitações. Considera-se também a indispensabilidade de reflexão e de mudança ao nível das políticas públicas, para que possam intervir de forma mais ampla nas múltiplas desigualdades sociais, ambientais e de mobilidade que se intersectam neste território. Ainda assim, pensando nas potencialidades de projetos como este no contexto de Lisboa, destacamos alguns aspectos que podem ser importantes e ter um impacto na mudança de políticas.
Por um lado, a identificação de problemas e oportunidades para promover políticas urbanas e de transporte sustentáveis permite especificar aspectos críticos e a necessitar de intervenção, bem como possíveis direcionamentos de resposta a esses problemas. Por outro lado, verifica-se a mobilização de atores sociais locais, em diferentes níveis de decisão, vivência e dinamização dos territórios, inclusivamente em situações de conflitualidade sobre rumos possíveis do planejamento urbano local, e que manifestam interesse e disponibilidade para continuarem mobilizados por agendas como as dos transportes, acessibilidades, sustentabilidade à escala local e planejamento participativo.
Uma das formas de concretizar possibilidades de mobilização por essas agendas é a proposta de ações práticas e participativas que visam responder a carências verificadas no território, bem como a construção partilhada de conhecimento sobre o contexto local, trabalhando simultaneamente na capacitação para a promoção dessas políticas e na compreensão do que está implicado nos problemas sociais associados ao território e à segregação socioespacial.
Os efeitos de um projeto como este podem ser úteis para a reflexão sobre políticas para a sustentabilidade, saúde e atividade física, planejamento urbano, intervenção socioterritorial e educativa, numa visão multissetorial de necessidades e oportunidades de intervenção política para promover, entre outros, o direito à mobilidade e à qualidade de vida em espaços que – não obstante pequenas intervenções facilitadas por políticas que privilegiam a ação participativa com a população e o poder local – permanecem segregados.
Espera-se que os resultados deste projeto possam influenciar políticas de reforço da utilização segura da bicicleta em Marvila, da expansão da ciclovia à inclusão de redes públicas e privadas de meios de mobilidade ativa, bem como de intervenção para a manutenção e criação de infraestrutura de apoio ao movimento pedonal. Importa manter a atenção às futuras práticas infraestruturais para compreender sua construção segura num território que permanece desigual na mancha urbana, num tempo de urgência na transição para a sustentabilidade.