RESUMO: No presente artigo busco compreender como a circulação da categoria empoderamento torna-se um instrumento discursivo eficaz para a conjunção de práticas que se situam entre o fortalecimento e a difusão de valores feministas e a legitimação de uma subjetividade empreendedora. A pesquisa de campo toma como cena etnográfica a campanha #juntasarrasamos, realizada em 2018 pelo programa de capacitação Plano de Menina, destinado a jovens moradoras de regiões periféricas de São Paulo, em parceria com a marca Seda (Unilever). Meu objetivo é mostrar de que modos a categoria empoderamento se move, articulando ideias, pessoas e produtos. Igualmente, o presente trabalho constitui uma aposta na pesquisa multissituada, em diálogo com a teoria das mobilidades, enquanto perspectiva teórico-metodológica incontornável para a compreensão das mediações entre política, mercado e o digital na contemporaneidade.
Palavras-chave: Empoderamento, empreendedorismo, feminismos, mediação, mobilidade.
ABSTRACT: In this article, I analyse how the circulation of the category empowerment has become an effective discursive instrument to enable the strengthening and the dissemination of feminist values, and the legitimation of entrepreneurial subjectivity. I present as an ethnographic scene the campaign #juntasarrasamos, held in 2018 by Plano de Menina training programme, aimed at young residents of peripheral regions of São Paulo, in partnership with Seda brand (Unilever). I demonstrate how the category of empowerment operates, connecting ideas, people and products. The current work is an approach to multi-sited research, in dialogue with the theory of mobilities, as an inescapable theoretical-methodological perspective that allows the understanding of the mediations among politics, market and the digital in contemporary society.
Keywords: Empowerment, entrepreneurship, feminisms, mediation, mobility.
DOSSIÊ
Políticas do empoderamento: feminismo, empreendedorismo e mediação em perspectiva móvel
Policies and politics of empowerment: feminism, entrepreneurship and mediation from a mobile perspective
Recepção: 20 Fevereiro 2023
Aprovação: 20 Julho 2023
O empreendedorismo ocupa hoje um lugar central no debate sobre os rumos da economia mundial. Desde a década de 1990, com vistas à autonomia das mulheres, um conjunto de atores políticos – organizações financeiras transnacionais, instituições privadas, ONGs, instituições de pesquisa e agentes governamentais – tem investido em programas de fomento à atividade empreendedora, na expectativa de estimular economias locais, particularmente nos países pobres do Sul global.
Em tais contextos, observa-se que a categoria empoderamento tem sido amplamente utilizada para fazer referência a processos individuais e coletivos, integrando a gramática de políticas públicas e de projetos sociais. Enquanto um princípio feminista, empoderamento figura como um termo central para uma diversidade de ativismos feministas. Ao mesmo tempo, também ganha destaque em meio a estratégias de mercado, sobretudo, para a popularização de produtos direcionados às mulheres, conectando contextos sociais específicos a dinâmicas transnacionais.
As reflexões apresentadas neste artigo constituem parte integrante de minha pesquisa de pós-doutorado,1 na qual mostro como o termo empoderamento ganha relevo no Brasil como um operador discursivo, cujos objetivos se situam entre o fortalecimento e difusão de concepções feministas e a legitimação de subjetividades empreendedoras. Tendo este campo de debates em vista, dou enfoque para a articulação ambivalente entre política, mercado e trabalho no cenário brasileiro.
Argumento que a categoria empoderamento tem desempenhado um papel central na mediação e enunciação de demandas destinadas a um sujeito político cada vez mais complexo e multifacetado. Chamando atenção para o modo como as transformações nas dinâmicas de mercado e de trabalho, propiciadas pelos avanços do capitalismo flexível (Boltanski & Chiapello, 2009), têm alterado as formas de subjetividade e de consciência política, dou ênfase à ampliação dos espaços de aparição e de engajamento entre mulheres negras através dos meios digitais.
O artigo está organizado em cinco seções, além desta introdução. Na primeira parte, recupero um conjunto de debates que problematizam a categoria empoderamento a partir da teoria crítica feminista. Na segunda seção, apresento algumas reflexões teórico-metodológicas sobre a construção do campo empírico desta pesquisa pensando a respeito do digital e dos desafios que tal contexto implica. Na terceira seção, apresento brevemente o projeto Plano de Menina, chamando atenção para a discursividade dos seus slogans, bem como para a produção e circulação de narrativas de superação, mostrando como o empoderamento constitui a categoria-chave de articulação de certas concepções feministas à linguagem empreendedora.
Num quarto momento, tomo como cena etnográfica a campanha #juntasarrasamos, realizada pelo Plano de Menina em parceria com a marca Seda, com o objetivo de mostrar de que modos a categoria empoderamento se move articulando ideias, pessoas e produtos a uma economia de representações sobre as mulheres negras. Por fim, concluo argumentando sobre a importância da pesquisa multissituada, em diálogo com a teoria das mobilidades, enquanto perspectiva teórico-metodológica incontornável para a compreensão das mediações entre política, mercado e o digital na contemporaneidade.
Segundo Srilatha Batliwala (2007), de todos os bordões que integraram o léxico sobre desenvolvimento nos últimos 30 anos, empoderamento é provavelmente a palavra mais usada e abusada, fato que teria provocado modificações em seu significado político “original”. Segundo a autora, o conceito de “empoderamento das mulheres” teria sido forjado em meados da década de 1980, particularmente pelas feministas representantes do chamado “terceiro mundo” – reconhecido atualmente como Sul Global –, como uma forma de crítica aos modelos econômicos predominantes voltados ao desenvolvimento.
Ao longo da década de 1990, com as mudanças ocasionadas pela globalização, um conjunto de teorias do desenvolvimento, representadas por agências multilaterais e corporações, mas também por atores governamentais, com o enfoque na relação entre equidade de gênero e desenvolvimento, tomaria a categoria empoderamento como seu principal jargão. Incorporado em distintos âmbitos de reflexão sobre justiça social, como saúde, educação e trabalho, empoderamento se torna um termo central na conformação de projetos sociais direcionados às mulheres, em contextos sociais diversos, em meio a dinâmicas de escala global.
Embora não seja o objetivo deste trabalho discorrer sobre tal embate teórico, nem realizar uma reconstituição histórica do termo, é importante sublinhar que os debates que problematizam a origem do conceito de empoderamento, bem como as transformações político-econômicas e culturais que dinamizaram seu uso nas últimas décadas, são encontrados na literatura feminista a partir de dois eixos de reflexão: as discussões sobre a relação entre gênero e desenvolvimento; e as teorias do pensamento feminista afro-latino-americano. De modo que empoderamento é uma categoria intrinsecamente viajante, que se configura através de sua própria circulação.
Em linhas gerais, críticas feministas severas têm sido elaboradas a respeito do que parece ser uma grande revolução cultural operada pelo feminismo, que tem atraído trabalhadoras de distintas classes sociais em busca de emancipação, mas sem um confronto direto às estruturas de dominação e de opressão do neoliberalismo.2. Segundo tais autoras, marxistas em sua maioria, diferentes apreensões do feminismo têm sido elaboradas em conjunção com os ideais capitalistas, alimentando uma relação perversa entre grandes corporações, organizações internacionais e governos locais.
Confluência perversa (Dagnino, 2007), ressignificação neoliberal dos ideais feministas (Fraser, 2009), feminismo de mercado (Kantola & Squires, 2012), neoliberalização do feminismo (Prügl, 2014), Feminismo Transnacional de Negócios (Roberts, 2015), empoderamento light (Cornwall, 2018) são algumas das expressões cunhadas por um conjunto de estudos que se preocupam em investigar as formas como os ideais feministas têm sido integrados a dinâmicas neoliberais, apontando, contudo, para a importância de compreender as possibilidades dessas mulheres de imaginarem e construírem suas próprias versões de uma vida melhor.
No Brasil, contudo, o investimento de ativistas e acadêmicas negras nos movimentos de mulheres tem articulado outros emaranhados de sentido. Joice Berth (2018), por exemplo, recupera a discussão feminista que atribui o contexto de produção da categoria empoderamento aos movimentos de mulheres latino-americanas da década de 1970, enquanto um processo resultante de formas coletivas de superação das opressões de classe, raça, gênero e sexualidade. De modo que a noção de interseccionalidade se apresenta como uma espécie de síntese política constitutiva do feminismo negro brasileiro recente (Rios & Maciel, 2018).
Ao mesmo tempo, sem perder de vista a dimensão crítica do modo como a categoria empoderamento seria utilizada por agências de cooperação internacionais e organizações financeiras para exercer poder sobre populações precárias em função da manutenção das dinâmicas opressivas, Berth (2018) aponta para a importância política do afroempreendedorismo, desde que de fato voltado ao fortalecimento econômico da comunidade negra. E relaciona a “expansão da internet”, com o acirramento das disputas de narrativas que têm dado protagonismo para as feministas negras, bem como a relação entre estética e autoestima, como pilares centrais de processos de empoderamento individual, destacando a relevância do trabalho de youtubers e influenciadoras digitais negras na promoção de espaços de debate e de autovalorização.
A questão da expansão da internet e das mídias sociais, por sua vez, está mais propriamente relacionada ao que Sonia Alvarez denomina “terceiro momento do campo feminista latino-americano contemporâneo” que, a partir dos anos 2000, seria particularmente marcado pela inter-relação com amplos setores da sociedade não-cívica, pela articulação discursiva em torno da diversidade, estimulando uma pluralização de vertentes, ideias e práticas, e pelo uso das redes e mídias sociais na articulação de “teias político comunicativas”. Esse conjunto de transformações, que implicam uma multiplicação horizontal de discursos e atores, em detrimento de sua diversificação vertical, institucional, sinaliza tanto uma “multiplicação de feminismos populares quanto uma popularização do feminismo” (Alvarez, 2014, p. 43).
Tendo em vista esse conjunto de debates, pensando na construção de um campo de observação, algumas questões se impõem. Como definir e delimitar os discursos, as pessoas e as instituições que devem ser rastreadas para entender como a categoria empoderamento se move e se transforma? Pensando que esse campo de controvérsias em torno do empoderamento impõe de saída um trânsito entre as escalas micro/macro, local/global, nacional/transnacional, como construir possibilidades de observação, de descrição e de análise, que permitam que essas confluências sejam percebidas em sua complexidade, e não enquanto um emaranhado disperso de observações fragmentadas?
Na próxima seção, apresentarei algumas reflexões sobre a construção do campo empírico desta pesquisa, destacando seus desafios, bem como as minhas estratégicas teórico-metodológicas para acessar as escalas de mobilidade que tal contexto implica.
Conforme dito anteriormente, minha pesquisa de pós-doutorado tem como objetivo refletir sobre o modo como o termo empoderamento tem sido largamente utilizado, como um operador discursivo, para a conjunção de práticas que se situam entre o fortalecimento e a difusão de valores feministas e a legitimação de uma subjetividade empreendedora. Esta investigação tem sido realizada simultaneamente por meio de uma reconstrução histórica do termo “empoderamento” na teoria feminista, e pelo acompanhamento dos discursos sobre empoderamento através de redes de mulheres negras e de projetos sociais com ênfase no empreendedorismo.
A pesquisa de campo, realizada ao longo de 2019 e 2021, contou com a observação participante de alguns programas de treinamento, o acompanhamento das interações entre coletivos de mulheres negras, influenciadoras digitais e campanhas publicitárias no meio digital, e a aplicação de entrevistas com empreendedoras. Meu objetivo não é explorar o impacto desses programas na vida dessas mulheres, mas entender como o conceito de empoderamento circula através desses programas, redes, marcas e pessoas.
Para tanto, esta pesquisa se articula pela confluência entre a sociologia do trabalho, os estudos de relações étnico-raciais, a teoria feminista e os estudos de mobilidade, particularmente da “virada das mobilidades” (Freire-Medeiros & Lages, 2020), cujas proposições teórico-metodológicas têm como objetivo questionar as noções mais substancialistas e sedentárias dos processos sociais contemporâneos sem, contudo, ceder a uma romantização dos fluxos e da aceleração do tempo. Pensar tais dinâmicas de circulação e movimento a partir dessa perspectiva implica compreender a mobilidade não enquanto objeto, apenas, mas enquanto uma grade analítica e uma abordagem metodológica (Jirón & Imilán, 2018).
Acompanhar os discursos sobre empoderamento, portanto, significa investir em uma etnografia multissituada, conforme descrita por George Marcus (1995), tomando o empoderamento como uma categoria êmica, mais especificamente como uma metáfora, a qual busco acompanhar na tentativa dar maior complexidade às conexões propiciadas entre uma economia política transnacional e a micropolítica das dinâmicas locais, que relacionam trabalho, ativismo, mercado e representação, e cujos enlaces não são evidentes.
Nesse caso, o digital não representa uma ferramenta da pesquisa somente, mas uma infraestrutura de comunicação que, para além das articulações profissionais entre essas mulheres, me permite considerar as linhas que conectam projetos, saberes, imagens, serviços, discursos, bem como reconhecer distintas escalas de mobilidade entre pessoas, coisas e ideias (Cresswell, 2009). Enquanto infraestrutura mediadora das interações investigadas entendo, conforme aponta Christine Hine (2020), que uma análise que se disponha a apreender o digital deve abrir mão da divisão estanque entre online e offline, atentando justamente para suas interconexões. Por esse motivo, investigar o digital demanda, igualmente, desapegar da ideia de que “estar lá” dependa de uma presença localizada, valorizando, em vez disso, a experiência de proximidade por meio da combinação entre interações face a face e interações mediadas.
Logo, o empoderamento enquanto “objeto” de investigação revela-se intrinsecamente dependente de dinâmicas intermediadas pelo digital, aparentemente dispersas, mas que se encontram conectadas por redes de estruturas e agentes sociotécnicos, físicos e virtuais. À pesquisadora importa atentar “tanto para o quê exatamente está circulando quanto para o modo como está circulando e em relação a quê” (Freire-Medeiros & Lages, 2020, p. 136).
Na seção a seguir, apresento o Plano de Menina, projeto social dedicado à promoção de cursos de capacitação voltados a jovens moradoras de regiões periféricas de São Paulo, cuja proposta e metodologia me permitem demonstrar de que modos os sentidos do empoderamento circulam, que significados operam e que perfis de mulheres conectam e destacam dentro desse contexto específico.
Tomei conhecimento do Plano de Menina através da edição Mulheres que inspiram do TEDx3 São Paulo, realizada em 2016, tendo como palestrantes 18 profissionais negras de distintas áreas de atuação. Nesta ocasião, Viviane Duarte se apresenta como idealizadora deste projeto social dedicado ao oferecimento de aulas gratuitas de “autoestima, empreendedorismo, liderança, finanças e vida digital” com o objetivo de “empoderar” jovens moradoras de regiões periféricas da cidade de São Paulo.
Nascida na Freguesia do Ó, bairro de classe média baixa da zona noroeste de São Paulo, autodefinida negra, Viviane Duarte, à época com 38 anos de idade, relata em sua palestra no TEDx São Paulo,4 e em boa parte de suas entrevistas, uma infância de dificuldades em que, ao mesmo tempo que via o esforço de sua mãe para pagar o aluguel, sonhava em ter uma profissão que lhe desse mais oportunidades, sonhos, segundo ela, frequentemente desencorajados pelas pessoas de seu entorno.
Em uma matéria da Revista Trip de 2017, intitulada “Meninas Superpoderosas”, a empresária comenta que o empreendedorismo era a opção mais palpável para obter recursos e que, desde a adolescência, permitia-lhe colocar seus planos em ação. O entendimento de que o caminho seria mais longo e difícil para uma pessoa sem privilégios seria fundamental para que ela pudesse “hackear o sistema”.
Com 13 anos, eu queria ir ao show do Skid Row, no Hollywood Rock. Minha mãe falou: 'Ótimo. Qual é o seu plano? Quantos bolos você precisa vender pra comprar os ingressos?' Vendi e vi o meu ídolo da adolescência, Sebastian Bach. O mesmo acontecia quando eu queria comprar um tênis ou fazer um curso: a gente bolava um plano e fazia acontecer.5
Formada em jornalismo com MBA em marketing de consumo, em uma matéria publicada em janeiro de 2020, na plataforma uol,6 a empresária explica sua perspectiva de trabalho que deu origem, primeiro, à Plano Feminino, uma empresa de consultoria com foco em gênero na publicidade, fundada em 2010, com o objetivo de dialogar com marcas globais.
Comecei a questionar o quanto tinha de consumidores e consumidoras em potencial que a propaganda e o marketing não levavam em conta. Um percentual enorme de pessoas negras que consomem, de mulheres de diversos corpos pedindo visibilidade, que não eram consideradas. É claro que meus gestores já sabiam disso, só invalidaram o que pensavam e diziam coisas do tipo: “Vivi, não colocamos negros nessa campanha porque é um produto premium, precisa de um valor agregado, uma pessoa branca, heteronormativa”.
O questionamento de Viviane acerca do potencial de consumo da população negra em relação à sua baixa representatividade no mercado da publicidade diz respeito a um longo debate que ganhou evidência em 1996, com o lançamento e sucesso de vendas da revista Raça Brasil, dedicada ao público negro com enfoque no consumo de produtos de beleza (Silva, 2018, 2019). Nas décadas seguintes, inúmeras mudanças político-econômicas atingem a população negra, ampliando sua oportunidade de escolarização e de participação econômica, sobretudo por conta da ampliação do acesso ao ensino superior e do relativo aumento do poder de consumo apontado na primeira década dos anos 2000.7
Visibilidade, protagonismo e representatividade tornaram-se, então, categorias amplamente difundidas tanto na mobilização política da população negra pela luta pela igualdade, quanto por segmentos voltados às práticas econômicas, particularmente aqueles dedicados ao empreendedorismo, cujas atividades têm sido marcadas por inúmeros paradoxos e pela precarização das formas de trabalho (Silva, 2019, 2018).
Em 2016, é criado o Plano de Menina como um projeto social vinculado à empresa de consultoria Plano Feminino, com a proposta de capacitar adolescentes entre 13 e 18 anos, moradoras de regiões periféricas da cidade de São Paulo. Focalizando a necessidade de uma rede de apoio para “florescerem”, o projeto almeja investir na autoestima das meninas para que elas possam “sonhar e fazer planos”. De menina moradora de periferia, que aprendeu desde cedo a tornar seus planos realidade com incentivo da mãe, à empresária bem-sucedida engajada com questões sociais, Viviane Duarte alimenta um imaginário e um caminho que levará a menina empreendedora a se tornar uma mulher realizada.
Tendo como princípios, ou slogans, empoderamento, empreendedorismo e educação financeira, conforme os dados disponíveis no site oficial, o projeto oferece um curso gratuito de seis meses, presencialmente, através de workshops e palestras sobre os mais variados tópicos. O ingresso no Plano se dá por dois movimentos: pelo cadastro no site Plano de Menina e, mais frequentemente, pela participação via escola ou ONG, com as quais o projeto se articula.
Além das atividades “em sala de aula”, a plataforma digital oferece vários conteúdos sobre saúde, autoestima, moda/estilo, dicas de economia e vida digital, com enfoque no uso das mídias sociais, por meio das quais é possível acessar campanhas e conteúdo das empresas patrocinadoras em distintas plataformas conectadas (Facebook, Instagram, Twitter). Ao final do treinamento, há um evento de encerramento e as jovens são integradas a um banco de talentos através do qual podem ser direcionadas a oportunidades de emprego.
Trago aqui um trecho, da mesma matéria da Revista Trip, sobre o projeto, que apresenta exemplos de casos considerados bem-sucedidos.
Vanessa Rocha, 19 anos, era “nem-nem” quando começou a participar do Plano de menina e mudou a visão sobre si mesma. “Me achava feia, chorava por causa do cabelo pixaim e das espinhas. No curso, a aula de autoestima mexeu comigo. Percebi que tinha que me aceitar como eu sou porque ninguém faria isso por mim. Deixei de alisar o cabelo e passei a gostar de mim assim”, conta a garota moradora do Capão Redondo. Vanessa começou a trabalhar como atendente num restaurante do shopping Ibirapuera, em Moema, e pretende prestar vestibular para pedagogia. Sua colega de curso, Marina Luz, 18 anos, sonha em ser nutricionista. “Me formei no ensino médio e comecei a trabalhar no McDonald's. Meu objetivo é juntar dinheiro para pagar a faculdade.”8
Embora as jovens que configuram o público-alvo do projeto estejam na transição da adolescência para a fase adulta, a categoria “menina” atua como um operador simbólico muito relevante, pois diz respeito ao enfoque recente em uma agenda internacional que tem orientado projetos sociais voltados ao combate às desigualdades entre meninas e adolescentes.9 Enquanto o slogan da empresa de consultoria Plano Feminino é “Toda mulher tem um plano”, os slogans do projeto social Plano de Menina, difundidos através das mídias sociais Facebook e Instagram, trazem frases como “Toda menina tem um plano”, “seja protagonista de sua própria história” e, ainda, “uma menina que tem planos pode mudar o mundo”.
Dentro da gramática dos projetos sociais, portanto, a categoria “menina” se torna estratégica para a captação de recursos específicos e parcerias. Em 2019, o projeto se torna uma ONG e é sensivelmente ampliado, a partir da formação de redes de mentoras e embaixadoras locais para a realização dos cursos em todo o país, ampliando também o escopo de meninas atendidas. A título de exemplo, em uma matéria publicada em janeiro de 2020, na plataforma uol,10 a empresária conta que o Plano de Menina já havia atingido duas mil jovens em dez estados brasileiros e comemora as transformações que acredita ter promovido com o projeto:
A menina entra no projeto não se reconhecendo como potência e sai com a visão de futuro maior em relação às que não participam. Esse é o resultado de uma pesquisa que a gente aplicou com a Unilever. Nossas meninas saem mais preparadas para hackear esse sistema, conscientes de questões cidadãs, sociedade, privilégios e dos obstáculos que terão para conseguir furar essa bolha.
Embora Viviane acione a questão racial ao se identificar como negra e ainda que muito provavelmente a maioria das meninas atendidas sejam negras, devido ao recorte socioeconômico do projeto, nas atividades e falas que acompanhei através das entrevistas, do site oficial e das publicidades nas mídias sociais, não há nenhuma menção ao feminismo negro. De modo que os discursos intitulados como feministas, ancorados nas noções de autonomia e liberdade individual, se articulam através de princípios específicos, sobretudo do empreendedorismo, como autonomia financeira, sucesso profissional, autoestima e autorrealização.
Na próxima seção, com o objetivo de chamar atenção para o modo como um conjunto de interações promovidas pelo Plano de Menina possibilita formas de circulação da categoria empoderamento, elenco como cena etnográfica a campanha #juntasarrasamos, promovida em parceria com a marca de produtos para cabelos Seda, pertencente à Global Unilever, realizada em 2017. Enquanto as narrativas de Viviane Duarte relacionam empoderamento à educação empreendedora, alicerçadas por sua posição de identificação e de mediação com as “meninas” do projeto social que ela coordena, a campanha apresentada a seguir nos ajuda a amplificar a busca por representatividade a partir de outras experiências de mediação que, nesse caso, trazem a experiência estética e as categorias de autoestima e de sororidade para a conversa.
No dia 31 de dezembro de 2017, Nátaly Neri, youtuber negra, publica em seu canal Afro e Afins (com 812 mil inscritos) um relato de sua experiência como “embaixadora”11 da Seda.12 Explica que, desde 2014, a marca de produtos para os cabelos já havia iniciado um projeto #VaiqVai dedicado ao “empoderamento feminino”, mas que, em 2017, a ideia era ampliar esse tema a partir do mote “colaboração feminina”. E descreve a Seda como uma marca “acessível” e “democrática”, pelo fato de seus produtos terem um custo popular e de serem facilmente encontrados em supermercados e farmácias.
Nátaly Neri é uma entre as nove youtubers contratadas em 2017 como embaixadoras da campanha #juntasarrasamos. Das nove influenciadoras digitais,13 sete se identificam como negras. Dentre os trabalhos previstos em contrato com a marca, estão a participação em vídeos da campanha contendo tutoriais de uso dos produtos da linha nova,14 bem como a participação em eventos e no canal Seda com a apresentação de vídeos sobre o tema de destaque: a sororidade.
No site oficial da Seda a campanha apresenta um questionário (quiz) com perguntas que delineiam perfis de mulheres a conteúdos sobre beleza, música, comida, habilidades e ativismo – que podem ser acessados pelo Twitter, Instagram, Facebook e Google e, também, através da página oficial Plano de Menina –, conectando consumidoras, influenciadoras digitais e produtos. Desse modo, a plataforma apresenta um conjunto amplo de temas tratados por distintos perfis de mulheres, mas que se entrelaçam por meio de categorias como autoestima, confiança, liderança e sororidade.
Parceira da campanha, Valesca Popozuda, cantora de funk que ficou famosa com a música Beijinho no ombro, cujo videoclipe oficial pode ser visto no Youtube, é convidada da Seda para reescrever e reinterpretar sua música. Enquanto a letra original é enfocada na relação conflitiva e competitiva entre mulheres, a nova letra dá enfoque à importância da cooperação e incentivo umas às outras. Abaixo, apresento a letra modificada:
Beijinho no Ombro (Seda ft. Valesca Popozuda): Desejo a todas as amigas vida longa/Unidas vamos conquistar ainda mais vitórias/ Vamos em frente, a parceria é nossa onda/ Sem intriga, sem kaô, amiga colabora/ A gente juntas não precisa de escudo/ Voa mais alto, agora as minas tão com tudo/ No camarote tem lugar para você/ Sem essa de disputa, é bem melhor, você vai ver/ Sororidade aqui é a palavra-chave/ Keep Calm, vou explicar pra quem não sabe/ Sororidade é respeito e união/ Entre as mulheres, quem tá nessa sai do chão/ Beijinho no ombro, o recalque é passado/ Tamo juntas arrasando lado a lado/ Beijinho no ombro eu mando pra competição/ Juntas Arrasamos, o bonde faz assim com a mão.
A ideia de tratar o empoderamento feminino pelo viés da sororidade, contra a “cultura de competição feminina”, deixa ainda mais evidente o modo como o feminismo aparece nesses discursos como uma categoria abrangente, evidenciando a relação entre empoderamento e consumo, na medida em que a marca Seda passa a ser divulgada pelas youtubers. Tal situação nos permite perceber como tais conexões entre mulheres, produtos e discursos tornam-se propositadamente difusas de forma que ativismo e marketing sejam faces de uma mesma moeda.
Conforme aponta Eugenio Bucci (2021) em seu livro A super indústria do imaginário, influenciadores/as digitais e consumidores/as das mídias sociais constituem hoje a grande massa de trabalhadores/as cuja função tem sido justamente a de manter a indistinção dessa dobradura entre trabalho e engajamento, entre mercado/política, marketing/protesto, consumo/resistência, visibilidade/precariedade. Já Fernanda Costa-Moura (2014) faz uma interessante reflexão a respeito dos modos de representação no meio digital, a partir das manifestações de junho de 2013 no Brasil. Segundo a autora, o streaming das hashtags constitui-se de formas de agrupamento instantâneo de mensagens que enredam grupos de interesse, apoios públicos, listas de contatos, fóruns de discussão e que ganharam importância por sua capacidade de identificar e conectar assuntos em escala global, horizontal e em altíssima velocidade.
Com vistas a superar a concepção das tecnologias digitais como “apenas ferramentas de descrição”, Costa-Moura (2014, p. 146) ressalta como tais redes têm alternado os modos de participação no discurso, bem como as formas de fazer ativismo, constituindo novas formas de “criação e construção da realidade”. Atentando para a utilidade dessas dinâmicas de redes sociais em termos de articulação institucional e destacando a existência de empresas fornecedoras de serviços de “medição e monitoração” dos movimentos de postagens, ou seja, de meios de avaliação da circulação das hashtags nas mídias sociais, ela explica:
Quando um “evento” ou “fórum” ou “post” ou ‘perfil’ viraliza, isto implica que aquela unidade de informação adquiriu a capacidade de se reproduzir de forma autônoma, o “streaming” se espalhando com força e velocidade exponenciais. Neste ponto acontecem tentativas de stalkear (quebrar o código, “tomar a administração de”) uma dada página, ou post, e/ou tentar identificar quem são “os líderes”, quem teria convocado o movimento. Em geral, tarde demais, pois quando o número de posts e tweets explode, não há mais um centro, e sim, milhares
(Costa-Moura, 2014, p. 152).A partir de tais reflexões, tendo em vista as possibilidades de interação do público consumidor desses conteúdos, que envolve o consumo, mas também a propagação e ampliação desses sentidos, chamo atenção para o modo como tais infraestruturas digitais são centrais para a circulação do ideário do empoderamento/empreendedorismo. Nesse emaranhado de conteúdos, o empoderamento circula agregando sentidos, mas também outras categorias consigo. Categorias que conectam projetos, saberes, imagens, serviços, discursos, produtos e visões de mundo amparadas em relações cada vez mais fluidas e cifradas entre trabalho e engajamento político e que, se recompensam poucas pessoas, alimentam uma amplitude de mediações e de representações sobre poder e reconhecimento que precisam ser devidamente rastreadas.
Em 2018, Viviane Duarte se apresenta, em rede aberta, no programa SuperPoderosas da rede de televisão brasileira, aberta, Band15, no qual reitera os objetivos do seu projeto social a partir da expressão, frequentemente utilizada por ela, “hackear o sistema”. Em suas palavras:
Esse hackear é se entender dentro de um sistema de privilégios. Porque, quando a menina nasce, ela nasce pra só estudar em uma escola pública e a gente sabe que tem várias dificuldades. Não tem informação, não tem conexão, aquele QI [quem indica] da nossa época. Na nossa época era QI né. Hoje ainda tem muitas empresas que estão cada vez mais sérias na hora de recrutar. Mas, essa informação de que ela é capaz, de bolsa, de cursos que elas podem fazer que elas não têm ideia. Tudo isso é um privilégio. A informação é um privilégio. Então quando elas têm essa informação, elas conseguem hackear e sair, furar aquela bolha “ah, eu só nasci pra ficar da ponte pra cá”. Não. Você pode ocupar qualquer lugar na cidade. Todos os lugares são seus. Da Vila Olímpia ao Capão Redondo. “Você pode estar em todos os lugares”. [...]. É muito forte. Eu fico super emocionada com cada formatura porque a gente vê de fato elas acreditando que elas são. E isso é tão poderoso. Eu fico super emocionada porque as meninas, a maioria que passaram aí, quando a gente chegou no espaço pra fazer o trabalho, elas não conseguiam nem tirar foto, não gostavam do cabelo, não gostavam de passar maquiagem porque falavam “eu vou ficar mais feia ainda se eu passar maquiagem”. É tanto complexo. É tanta coisa que a gente tem que cuidar e tratar, até elas chegarem nesse momento de subirem num palco, de fazer um talk, de falar delas. [...] Então, isso é muito poderoso porque elas vão ser protagonistas de verdade, elas vão romper muitos espaços.
(Trecho transcrito por mim).Ao tomar a informação como um privilégio, Viviane Duarte ofusca as relações de poder hierarquizadas que estruturam tais privilégios e deposita nos desejos e planos dessas jovens, associados ao “poder de ser protagonista”, a responsabilidade sobre seus futuros. Esse ajuste narrativo, que torna as dinâmicas sociais de desigualdades nubladas em contraponto ao incentivo ao autoaprimoramento e ao trabalho de autoestima, corresponde exatamente ao processo de produção de tecnologias de si, que enfoca as dinâmicas de mobilidade, ignorando os processos estruturais de imobilidade.
“Hackear o sistema”, nesse sentido, tem relação direta com aprender a manejar informações, construindo “conexões”, como a empresária argumenta, que lhes permita ocupar espaços, como se o movimento entre a Vila Olímpia (bairro nobre da zona sul, considerado grande centro financeiro de São Paulo) e o Capão Redondo (bairro periférico da zona sudoeste da cidade) dependesse apenas da decodificação de informações que estariam disponíveis para acesso. E como se esse tivesse que ser o movimento de toda pessoa nascida ou moradora de um bairro periférico em busca uma vida melhor. Assim, distintos sentidos de mobilidade aparecem nessas narrativas dando ênfase ao “empreendedorismo de si” como uma habilidade, uma atitude e uma demanda.
Desse modo, o Plano de Menina se apresenta muito bem ajustado às demandas internacionais por diversidade nas empresas, às quais têm exercido certa pressão política sobre grandes instituições, atuando como uma espécie de filtro que conecta “meninas de periferia” a empresas interessadas em diversificar seu corpo profissional. Ao mesmo tempo, à medida que certos perfis de jovens conseguem as almejadas oportunidades, tornam-se também modelos de casos bem-sucedidos, ofuscando novamente o poder das estruturas sociais que privilegiam certos perfis em detrimento de outros, ou seja, quem fica de fora e quem entra.
No dia 20 julho de 2020, Amanda Guimarães, formada pelo projeto, aparece em vídeo publicado na página do Facebook da Plano de Menina.16 Apresentando-se como “embaixadora teen”, compartilha o que considera como um novo ciclo de sua vida:
Oi, meninas, tudo bem? Eu sou Amanda Guimarães, embaixadora teen aqui do Plano de Menina. E eu vim compartilhar com vocês mais um novo ciclo da minha vida que se inicia, graças a conexões que o Plano de Menina tem feito desde 2016 com meninas que participam do projeto ligando cada uma aos seus sonhos, aos seus objetivos. Nesse mês eu iniciei um novo ciclo na minha carreira profissional com a Louis Vuitton, que agora é uma empresa parceira do Plano de Menina. Isso graças a pessoas que constituem esse projeto e que conseguiram abrir esse espaço para que eu pudesse ocupá-lo. E agora a minha responsabilidade é seguir abrindo caminhos para que outras meninas também, futuramente, possam estar trabalhando lá também e, enfim, outras empresas que estão com Plano de Menina. E então eu vim aqui sim pra comemorar mais essa vitória, mas também pra deixar de inspiração para que outras pessoas possam abrir esses espaços no mercado de trabalho para que meninas consigam se empoderar também através do trabalho. Porque é importante a gente entender nossos direitos, se empoderar através das mentorias do projeto, mas é importante também que a gente esteja nesse espaço pra cada vez mais buscar a nossa autonomia e buscar a nossa independência.
[transcrição minha]Se tais iniciativas não promovem o acesso a melhores oportunidades para a ampla maioria das meninas, ao apontar para casos de sucesso, dando visibilidade àquelas que conseguem se destacar sendo eventualmente contratadas por outras empresas, as ferramentas que este projeto fornece operam, certamente, na consolidação de narrativas políticas e na aquisição de conhecimentos, cujos desdobramentos em termos de criação de oportunidades ainda precisam ser mais bem compreendidos. E as mídias sociais, enquanto infraestruturas, constituem-se centrais para tais processos.
Projetos como este certamente têm promovido mudanças na forma de fazer política, cujas implicações em termos das relações entre trabalho e as tecnologias de si requerem novas lentes de observação e de leitura. Enquanto narrativa, portanto, o empoderamento parece atuar como um vetor pedagógico orientado para as “meninas de periferia”, categoria política que as representa e homogeneíza, com o objetivo de estimular um éthos empreendedor de modo a transformá-las em mão de obra “qualificada” para as empresas em suas ações de responsabilidade social com foco na diversidade.
Por outro lado, embora haja uma bricolagem visível entre a fala de Viviane Duarte e de Amanda Guimarães, que deixa claro o quanto a jovem se apropriou do discurso institucional, confrontamo-nos também com uma economia de desejos e de representações, elucidados pela fala de Amanda sobre os planos de “ter um bom trabalho, morar em um bom local, ter uma vida estável” e que não podem ser ignorados ou simplificados.
Para avançarmos nessa discussão, como uma forma de não invisibilizar esses sujeitos políticos desejantes e não colocar seus “planos” em contradição com as lutas por justiça social, argumento, amparada por Srilatha Batliwala (2007), que, assim como é preciso ter um olhar crítico aos processos institucionais, é fundamental refletirmos a respeito dos mecanismos de agência dessas jovens, cujas trajetórias configuram estratégias de mobilidade importantes de serem investigadas. O fato é que é na ambiguidade de seus sentidos que a categoria empoderamento consegue circular amplamente. Quanto maior sua capacidade de agregar sentidos diversos, que possam reunir atores sociais heterogêneos sem parecerem contraditórios, maior sua capacidade de circular e de fazê-los circular.
No artigo “Race, gender and neoliberalism” (2011), Kalpana Wilson analisa como o uso recente de representações visuais de “mulheres pobres dos países em desenvolvimento”, em campanhas de publicidade de projetos sociais,17 tem operado na apropriação de conceitos feministas para discursos neoliberais, bem como na reelaboração de estereótipos sobre as mulheres negras, ao mesmo tempo em que invisibiliza a manutenção das estruturas de poder. Seu objetivo é analisar a transição do foco das políticas de desenvolvimento do development state (Estado desenvolvimentista) para o mercado por meio dessas construções representacionais, através de imagens positivas, e que operam de uma forma simbiótica a relação entre ONGs voltadas ao empreendedorismo e a mídia, em um “sistema emergente de governamentalidade transnacional” (Wilson, 2011, p. 321).
Nessa análise, um dos seus principais argumentos está em refletir sobre como o conceito de agência seria articulado às concepções liberais de livre-arbítrio e de liberdade, de modo a enfatizar o poder de escolha das mulheres, em detrimento das especificidades das conjunturas e das estruturas sociais que se impõem sobre elas, ofuscando os limites de suas possibilidades e as escolhas que se dão em função da necessidade de sobreviverem. Diz a autora,
This interdependency between constructions of “women in the developing world” as both objects of transformation and redemption and potential entrepreneurial subjects echoes the structure of colonial discourses of salvation, which simultaneously infantilised its objects and imposed a moral responsibility for self-improvement on them.18
(WILSON, 2011, p. 329)Em diálogo com a autora, o exemplo da campanha da Seda, em parceria com o Plano de Menina, permite-nos reconhecer como as categorias empoderamento, protagonismo e autoestima estão intimamente relacionadas com um imaginário muito específico de mulheres negras, representadas pela escolha das influenciadoras digitais, embaixadoras/trabalhadoras da campanha, cujas imagens circulam nas redes sociais e que, nesse caso, são apropriadas como signo do potencial político das mulheres negras ao mesmo tempo que remete a imagens de mulheres empreendedoras e bem-sucedidas.
Por fim, o caso brasileiro nos permite atentar também para o modo como o mercado e as políticas sociais se beneficiam do conhecimento que as próprias mulheres negras têm produzido sobre si, sobre seus processos políticos de autodefinição, regulando e ofertando um conjunto de bens materiais e simbólicos, ao mesmo tempo que se colocam como apoiadores e mediadores de suas transformações e conquistas, sobretudo, subjetivas.
O presente artigo teve como objetivo refletir sobre as possibilidades teórico-metodológicas para a compreensão do empoderamento enquanto operador discursivo que articula uma conjunção de projetos, instituições, pessoas e produtos por meio de conexões entre concepções feministas e dinâmicas neoliberais que complexificam os trânsitos entre local e global no mundo contemporâneo.
Através da pesquisa etnográfica, tendo como ponto de partida o projeto social Plano de Menina, ao considerar o termo empoderamento como uma metáfora a ser seguida, busquei demonstrar de que modos uma metodologia móvel, enfocada não em um objeto ou em uma escala de observação, mas em conexões propiciadas por esta categoria, permitiu-me atravessar sentidos e dinâmicas político-econômicas impossíveis de serem apreendidas por uma observação sedentária ou refratária ao meio digital e às interações produzidas pelas mídias sociais.
A cena etnográfica construída e apresentada neste trabalho buscou elucidar as formas pelas quais distintos perfis de mulheres negras têm sido transformados em um capital relevante para as políticas sociais e para o fortalecimento de uma subjetividade empreendedora no Brasil, em diálogo com o mercado de consumo. Por meio de políticas sociais como a referida, sobretudo as mulheres negras têm sido representadas a partir de concepções afirmadas como feministas, a exemplo dos termos empoderamento, autoestima e sororidade, cujos usos e sentidos relacionam simultaneamente demandas políticas e estratégias de marketing.
Desse modo, a importância desta pesquisa se revela em sua proposta de contribuir para a compreensão dessa diversidade de atividades políticas, econômicas e culturais, destinadas às mulheres negras, a partir das atividades acompanhadas no cenário brasileiro, tendo em vista o caráter transnacional e digital dessas mediações, através das quais sujeitos variados identificam a experiência do empoderamento com noções de pertencimento político, sucesso profissional, poder econômico, engajamento estético, entre outras que me interessa descrever e compreender.