DOSSIÊ
Recepção: 10 Abril 2023
Aprovação: 15 Agosto 2023
DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.941
RESUMO: O objetivo deste artigo é compreender a constituição de uma infraestrutura de vigilância penal que permite a (i)imobilidade de pessoas com tornozeleiras eletrônicas na cidade de Porto Alegre e os efeitos dessa gestão na vida cotidiana de apenados e apenadas. No Brasil, tornozeleiras eletrônicas têm sido a principal tecnologia utilizada no monitoramento eletrônico de presos e presas fora do espaço de um presídio. Carregam promessas de ressocialização e de redução de custos, da superlotação carcerária e de vigilância. O funcionamento da tornozeleira eletrônica ocorre através da constituição de uma infraestrutura de vigilância penal, em que elementos humanos e não humanos conectam-se em distintas escalas, possibilitando a sua funcionalidade. Essas conexões e os seus efeitos foram apreendidas através de um trabalho de campo multissituado a partir da observação e de entrevistas com profissionais atuantes no monitoramento eletrônico de Porto Alegre, agentes de justiça e com pessoas monitoradas e suas redes familiares, além da análise de cartilhas e legislações. Refletir sobre esta tecnologia significa a entendermos como um objeto e como parte de uma infraestrutura de vigilância em que uma série de escalas conectam não apenas elementos técnicos, mas formas de governar, classificar, vigiar movimentos e permitir ou não a mobilidade das pessoas.
Palavras-chave: Infraestrutura, tornozeleiras eletrônicas, subjetividades, mobilidade, objetos.
ABSTRACT: This article is aimed at understanding the constitution of a criminal surveillance infrastructure that allows the (i)mmobility of people with electronic anklets in the city of Porto Alegre and the effects of this management in the daily lives of convicts. Electronic ankle bracelets have been the main technology used in the electronic monitoring of prisoners outside prison facilities. They carry promises of rehabilitation and of reduction of costs, prison overcrowding and surveillance. The operation of the electronic ankle bracelet occurs through the constitution of a criminal surveillance infrastructure, where human and non-human elements are connected at different scales, allowing its functionality, and whose effects are contingent. These connections were understood through multi-sited field work based on observation and interviews with professionals working in electronic monitoring in Porto Alegre, justice agents and with monitored people and their family networks, in addition to the analysis of booklets and legislation. Reflecting on this technology means understanding it as an object and as part of a surveillance infrastructure, in which a series of scales connect not only technical elements, but ways of governing, classifying and surveilling movements and of allowing or disallowing people's mobility.
Keywords: Infrastructure, electronic ankle bracelets, subjectivities, mobility, objects.
Uma breve introdução
Eu coloco o carregador [da tornozeleira eletrônica] em uma extensão e então fico andando pela casa com o pé arrastando. Fico igual aqueles cachorros com a guia, sabe? Andando em círculos.
(Stefany, 27 anos)“Andar em círculos” ou “de um lado para o outro” era uma fala comum entre usuários e usuárias de tornozeleiras eletrônicas com quem tive a oportunidade de conversar na fila do atendimento gratuito da Defensoria Pública da Vara de Execução Criminal (VEC) de Porto Alegre. A ação descrita por Stefany – uma jovem de 27 anos que estava no regime semiaberto e com objeto acoplado no tornozelo – faz referência às poucas possibilidades que as pessoas monitoradas possuem de se deslocar pelo território da capital do Rio Grande do Sul devido ao uso de uma tecnologia que promete rastrear e transmitir dados de localização em tempo real para os espaços de monitoração eletrônica.
A narrativa também aciona outro script do uso da tornozeleira: o ato do carregamento. Assim como se carrega um aparelho celular, a pessoa que está com o objeto no tornozelo deve se vincular a uma tomada para que a carga da tornozeleira se complete. Utilizar a extensão é uma estratégia para poder circular pela casa até o objeto assinalar que a carga está completa. Carregar o aparelho conectado a uma rede energia elétrica torna-se importante, pois o seu descarregamento está no roll de faltas relacionadas ao uso da tornozeleira, cujas implicações podem, inclusive, levar ao cumprimento de castigos ou ao fechamento do regime.
Quando falamos sobre tornozeleiras eletrônicas estamos nos referindo a um objeto que funciona a partir e através de tecnologias que mapeiam e transmitem movimentações de indivíduos nos circuitos das cidades para os espaços onde se monitora essas circulações. Inclusive, uma das principais promessas que envolvem a utilização das tornozeleiras está na caracterização de uma vigilância durante 24 horas por dia. Aliado a este discurso de conseguir localizar o preso nas suas movimentações (e imobilidades), as falas que corroboraram o advento desse objeto no Brasil estão relacionadas com possibilidades de ressocialização (por possibilitar cumprimento da pena fora dos muros da cadeia), baixo custo e como uma solução para a superlotação dos presídios no país.
A breve fala de Stefany nos introduz ao tema deste artigo: os efeitos cotidianos do uso das tornozeleiras eletrônicas no quis diz respeito às possibilidades (ou não) de se movimentar pela cidade e à organização e ajustes dessa tecnologia em determinados contextos. Como veremos, a constituição de como as tornozeleiras eletrônicas devem operar não está dada a priori. Para o objeto ganhar certos contornos, é necessária a constituição do que nomeio uma infraestrutura de vigilância penal, em que elementos humanos e não humanos se conectam em distintas escalas, possibilitando sua funcionalidade e cujos efeitos são contingentes. Logo, o objetivo deste artigo é compreender a constituição de uma infraestrutura de vigilância penal que permite a (i)mobilidade de pessoas com tornozeleiras na cidade de Porto Alegre e os efeitos dessa gestão na vida cotidiana de apenados e apenadas.
Os dados que constituem este artigo são provenientes de uma etnografia multissituada (Marcus, 1995) realizada entre os anos de 2017 e 2019. Trata-se de uma pesquisa que se distancia de etnografias clássicas, em que um dos propósitos é desvendar as dinâmicas e estruturas de um único lócus, pois, para compreender a infraestrutura de uma tornozeleira eletrônica é necessário olhar para conexões que ocorrem nos mais distintos e distantes locais: desde o momento de montagem da tornozeleira eletrônica em empresas privadas, até o trabalho realizado por agentes penitenciários alocados em uma central de monitoramento eletrônico, as conexões com o sistema judiciário e as pessoas que utilizam o objeto em seus corpos.
O trabalho de campo a ser narrado nas próximas páginas foi realizado em diferentes espaços da cidade de Porto Alegre. Para compreender o processo de constituição da infraestrutura que possibilita o funcionamento das tornozeleiras na capital, foram realizadas: a) observações no cotidiano e entrevistas com profissionais concursados alocados na Divisão do Monitoramento Eletrônico (DME) em Porto Alegre; b) entrevista com o magistrado titular da 2ª Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre; c) entrevistas com pessoas monitoradas e suas redes familiares na fila de atendimento da Vara de Execução Criminal (VEC) da Defensoria Pública de Porto Alegre. Além de compreender a ação dos elementos humanos na constituição desse sistema, foi necessário olhar para os elementos não humanos tão centrais para a operacionalização desta tecnologia, como legislações, cartilhas e redes de telefonia. Esses elementos humanos e não humanos são peças centrais na infraestrutura necessária para a operacionalização dessa tecnologia.
Giro infraestrutural: circulações, subjetividades e efeitos contingentes
Para a tornozeleira eletrônica ser colocada em prática é necessário a constituição do que nomeio como uma infraestrutura de vigilância penal. Refletir sobre esta tecnologia significa a entendermos como um objeto e como parte de uma infraestrutura de vigilância, em que uma série de escalas conectam não apenas elementos técnicos, mas formas de governar, classificar e vigiar os movimentos das pessoas. Ao mesmo tempo, essas conexões não são estáticas, visto que objetos podem quebrar ou precisar de reparos e, além disso, os efeitos previstos nem sempre ocorrem como o planejado. Como diz Barry (2020), quando certos projetos viajam para outras regiões – como a tecnologia da tornozeleira eletrônica – eles podem ser utilizados de formas distintas das previstas ou precisar de ajustes para seguir funcionando.
O giro para o campo das infraestruturas tem se tornado uma potência analítica dentro do campo das Ciências Sociais e Humanas, especialmente em pesquisas envolvendo relações entre humanos e não humanos. Nesse sentido, “infraestruturas são locais promissores para a investigação etnográfica, precisamente porque são locais de problemas conceituais que recusam a separação fácil entre o ser humano e o material”1 (Appel, Anand, & Gupta, 2018, p. 27). Paralelamente, conceituar o que é uma infraestrutura não é uma tarefa tão simples, visto que não existem consensos teóricos e nem empíricos neste campo de debate. As trajetórias de pensamento podem combinar elementos do campo dos STS, da biopolítica, da Antropologia das multiespécies e estudos urbanos. Os contornos do objeto de estudo podem ser variáveis, visto que os limites de uma infraestrutura são dinâmicos e infinitos (Harvey, Jensen & Morita, 2017).
As possibilidades de circulações e fluxos são características centrais das infraestruturas. Para Larkin (2013, p. 328), infraestruturas são “redes construídas que facilitam o fluxo de bens, pessoas ou ideias e permitem a sua troca pelo espaço”, operando “nos mais diferentes níveis simultaneamente, gerando múltiplas formas de enderaçamento” (p. 330). Nessa perspectiva, elas atuam em diferentes camadas e não carregam/transportam apenas materiais, mas promessas de futuro, afetos, sentimentos, atuando nas nossas imaginações: “Elas nos formam como sujeitos não apenas no nível tecnopolítico, mas também através dessa mobilização de afetos e dos sentidos de desejo, orgulho e frustração, sentimentos que podem ser profundamente políticos” (p. 333). Importante destacar que não são apenas objetos que permitem circulações, visto que as próprias pessoas podem ser elos que possibilitam ou inibem essas movimentações. A partir do conceito de “pessoas como infraestruturas” (people as infrastructure) tendo como pano de fundo o espaço urbano em Joanesburgo, AbdouMaliq Simone (2004) leva-nos a olhar para as relações estabelecidas entre os habitantes da cidade como uma infraestrutura.
Infraestruturas não apenas facilitam câmbios e permitem o fluxo de pessoas através de estradas ou o acesso à energia elétrica, à água e às estradas, elas também impedem a circulação. Na África do Sul, falar sobre o período do Apartheid é discorrer sobre infraestruturas, pois elas eram aliadas na execução da política racial, em que o espaço público e de moradia, acesso à energia elétrica, escolas e ao transporte público eram divididos com base em critérios raciais. Antina Von Schnitzler (2013, 2016) demonstra como a implantação de um dispositivo tecnológico de medição de serviços de água e energia, no período posterior (de pós-apartheid e de narrativas neoliberais), está conectado a questões de cidadania e pertencimento a uma nação, projetos políticos, negociações e resistência.
A reflexão de Von Schnitzler (2013, 2016) também nos traz insights para entendermos que a política não é apenas produzida a partir de aspectos jurídicos e legais, mas também é feita por meio de objetos materiais e técnicos. Seguindo nesta linha de reflexão, Nikhil Anand (2011, 2012), ao realizar uma etnografia em Mumbai, na Índia, discorre sobre as dificuldades de obtenção de água, assim como a inércia de engenheiros e demais setores municipais para buscar soluções. Fitando um bairro da cidade onde a maioria da população é muçulmana, descreve como o acesso a esse serviço ocorre através de relações sociais e da classificação de categorias como mais ou menos merecedoras. A relação entre política e esferas materiais da vida humana tem sido um fulcro desses estudos, pois “a atenção etnográfica à infraestrutura revela como a política não somente é formada por práticas jurídico-políticas, mas também por um terreno tecnopolítico que consiste em tubulações, redes de energia e banheiros” (Appel, Anand, & Gupta, 2018, p.4).
Em suma, tal como uma série de autores (Appel, Anand, & Gupta, 2018; Anand, 2012; Harvey; Knox, 2015; Harvey, 2018) recorremos ao conceito de infraestrutura para descrever “um arranjo” (an assemblage) de pessoas, objetos, práticas e instituições das quais tanto a realização quanto a distribuição de padrões de conectividade, movimento, fluxo e presença são dependentes” (Di Nunzio, 2018, p. 2). Olhar para esses “arranjos” permite-nos compreendê-los enquanto processos, relacionando políticas, temporalidades, pessoas e materiais em conexões nem sempre estáveis e cujos efeitos são contingentes.
Nesse sentido, interessa-nos compreender como a constituição dessa infraestrutura de vigilância penal “gera afetos complexos, experiências e atmosferas, ‘infrastructuring’, sujeitos, atmosferas e ambientes de diversas maneiras” (Merriman, 2016, p.87). Ao olhar para as relações entre humanos e não humanos nessa rede, será possível compreender quais ideias, projetos e materiais constituem e se movem por essa infraestrutura de vigilância e quais seus efeitos nas possibilidades de movimentação por territórios e da própria subsistência, atentando também para como as possibilidades de se mover (ou não) pela cidade engendram sentimentos, reformulações de subjetividade e ritmos na vida cotidiana, que, muitas vezes, escapam dos próprios objetivos idealizados ou imaginados.
Organizando a infraestrutura de vigilância penal: legislações e a centralidade do Judiciário
O monitoramento eletrônico não é meramente uma tecnologia de controle e vigilância que ocorre de forma remota, dadas as múltiplas formas com que pode ser utilizado localmente. Apesar de o monitoramento eletrônico ser uma ideia pensada para o contexto norte-americano, diversos países do mundo fazem uso dessa inteligência, utilizando distintas tecnologias para a transmissão de dados. É a sua característica de adaptabilidade que permite ao monitoramento eletrônico e seu conjunto de tecnologias viajar para as mais diversas partes do mundo: uma “convergência global” na prática penal, em que “diversos países moldam respostas semelhantes a problemas definidos similarmente, porque eles enxergam através de uma lente tecnológica semelhante” (Nellis, Beyens; Kaminski, 2013, p.11).
Quando o projeto do monitoramento eletrônico chega ao Brasil, é necessário que ajustes sejam realizados para sua acomodação local, especialmente em um país cuja organização das penas se dá por meio de “sistemas progressivos”2: a pena não é cumprida em apenas um único intervalo de tempo dentro de um único espaço, mas sim dividida entre os três regimes de reclusão: os regimes fechado, semiaberto e aberto. Um dos primeiros movimentos é a Lei Federal nº 12.258 de 2010, que regula o monitoramento eletrônico no Brasil. Ela prevê que um magistrado poderá lançar mão da monitoração eletrônica para autorizar a saída temporária no regime semiaberto e determinar a prisão domiciliar. Dentro dessa normativa também está previsto que regressões de regime podem ocorrer caso alguma violação ocorra, assim como revogações de regimes e do próprio monitoramento eletrônico. Considera-se violações, nesse contexto, não cumprir os deveres estabelecidos, causar danos ao aparelho, retirá-lo ou não cumprir as orientações. É importante destacar que, em 2011, o monitoramento eletrônico foi incluído na Lei 12.4033 como uma medida cautelar a ser utilizada para presos que aguardam sentenças judiciais.
Apesar de existir uma legislação federal tipificando as possibilidades de uso da tornozeleira eletrônica, o que observamos são adaptações do uso do equipamento, de acordo com contextos locais, outros conjuntos de normativas e subjetividades judiciais. São magistrados que irão definir quem pode utilizar uma tornozeleira eletrônica, as principais regras do seu uso, assim como consequências para quem não as cumprir. Na capital gaúcha, existem distintas maneiras de incluir presos e presas na possibilidade de uso de uma tornozeleira eletrônica dentro dos regimes nos quais cumprem suas penas, o que nem sempre está em conformidade com a lei das tornozeleiras eletrônicas no âmbito Federal e diverge de outros estados do país e de cidades do mesmo estado. Para compreender o funcionamento desse conjunto tecnológico na capital gaúcha, entrevistei o magistrado titular da 2ª Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre, atuante há 22 anos como juiz e com mais de dez anos de experiência na área da execução criminal. Nessa VEC, ele atua nos processos de presos que estão no regime semiaberto masculino de Porto Alegre, enquanto os processos das mulheres que estão nesse regime são de responsabilidade de outro magistrado.
Em Porto Alegre, a tornozeleira eletrônica tem sido utilizada para contornar problemas de infraestrutura prisional, a saber, a falta de vagas nos estabelecimentos prisionais. Diferente do que ocorre em São Paulo e nas unidades federativas citadas por Ricardo Campello (2019)4, a tornozeleira eletrônica é utilizada na capital gaúcha para, principalmente, presos do regime semiaberto como uma forma de cumprir a pena em suas residências5 (Gonçalves & Danckwardt, 2017). Talvez ainda mais importante seja a esperança, com o uso da tornozeleira, de evitar o aliciamento de presos e presas por facções, fato que vem ocorrendo nos presídios da cidade, onde a gestão da pena não seria apenas organizada pelo Estado, mas pelos líderes de facções (Soares, 2018).
A possibilidade de utilizar a tornozeleira para contornar problemas locais de infraestrutura prisional está conectada com práticas anteriores da Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre, de manter presos e presas com direito a progressão para o regime semiaberto em unidades penitenciárias do regime fechado. Essas decisões foram alvo de recursos e levadas ao Supremo Tribunal Federal que, em 2016, após julgamentos, editou a Súmula n.56, rezando que “a falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso”. Esse documento antecipa que a tornozeleira eletrônica seja utilizada nessas situações: “havendo déficit de vagas, deverá determinar-se: [...] a liberdade eletronicamente monitorada ao sentenciado, que sai antecipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas”.
A organização do que é um castigo, assim como do que é uma violação e as próprias regras dessa infraestrutura são realizadas pelo Judiciário, principalmente na figura de juízes da execução criminal, com base em legislações. Conforme o juiz, em Porto Alegre, o “monitoramento é como uma casa prisional” em que foram estabelecidas algumas regras, como a “zona casa dentro de um raio de trezentos metros”, além de outros espaços e possibilidades de deslocamento: “Nós criamos essas regras, zona de inclusão, zona de saída temporária. Estabelecemos rotas pela SUSEPE6: rota para vir no fórum, rota para o ambiente de trabalho, zona de inclusão do trabalho"
Descumprir as regras estipuladas tem efeitos diversos, a depender do que é decidido pelo juiz quanto à gravidade da falta cometida. As punições variam conforme essa avaliação. Segundo o juiz, a pessoa que está com tornozeleira eletrônica pode receber uma advertência, um castigo, uma revogação do monitoramento eletrônico ou até mesmo a regressão da pena, voltando para o regime fechado no presídio. Além disso, outros detalhes do processo podem ser modificados, como alterações da data-base7 e perda de dias de trabalho, situações que implicam mais tempo na malha prisional.
De maneira geral, em Porto Alegre, as pessoas que usam a tornozeleira eletrônica podem circular, dentro de certo horário, em um território que abarque um raio de 300 metros. O que não quer dizer que em outras cidades do estado ou do país8 exista essa delimitação de território e tempo, como afirmou o juiz, visto que essas definições dependem das organizações feitas por magistrados de cada localidade. Existem também organizações mais individualizadas, por exemplo, presos que têm autorização judicial para trabalhar e/ou estudar, abrindo assim outras permissões de circulação pelo território. Para além de cumprir as delimitações de tempo e espaço, é necessário carregar a tornozeleira eletrônica em uma tomada, como se fosse um aparelho celular, assim como se comprometer a cuidar bem do dispositivo, sem danificá-lo nem tentar retirá-lo do tornozelo.
Essas informações contidas nos mandados judiciais sobre possibilidades de trânsito são inscritas no software utilizado para monitorar presos instalado nos computadores dos agentes penitenciários que atuam nos espaços de monitoração eletrônica. A partir da alimentação dessas informações, o software terá insumos para suas análises e para indicar quem está descumprindo as decisões judiciais. O sistema também avisa, através de sinais que a tornozeleira transmite, quando está no tornozelo das pessoas, diversas suspeitas de violação da tornozeleira eletrônica, tais como tentativas de remoção do objeto – assim como a própria ação de retirá-la – e casos de descarregamento de bateria. O trabalho dos agentes é organizado tendo como um dos principais objetivos acompanhar quem descumpre regras instituídas por juízes, através do que o software informa, e realizar essas análises, para assim fornecer as informações aos magistrados quanto ao cumprimento da pena.
São os juízes, suas subjetividades, livres esclarecimentos relacionados com elementos não humanos (como as leis, normativas e classificações) que constituem diferentes identidades para a tornozeleira eletrônica. Além disso, nem mesmo a infraestrutura necessária existe a priori, visto que ela é também produzida por combinações e circulações de distintos elementos. A infraestrutura de vigilância penal, assim como a própria tornozeleira eletrônica, adquirem limites a partir de uma série de objetos que são colocados em jogo. O trabalho dos agentes, como veremos a seguir, é central no acompanhamento e na organização dessa mobilidade pela cidade. Além disso, os efeitos dessa gestão também estão relacionados com projetos políticos de reformulação de subjetividades.
Organização do trabalho dos agentes e técnicos penitenciários no cotidiano do monitoramento eletrônico
Em Porto Alegre, atuam na Divisão do Monitoramento Eletrônico (DME) agentes penitenciários e assistentes sociais. Esses profissionais estão distribuídos em dois espaços na cidade: a) na sede da DME, onde executam atividade de monitorar os presos e presas, sem contato presencial com as pessoas monitoradas; b) no Instituto Pio Buck, espaço de instalação, retirada e manutenção de tornozeleiras eletrônicas, com contato corpo a corpo com essa população. Refletir sobre a interação que ocorre entre agentes penitenciários, assistentes sociais, a tornozeleira eletrônica, os alarmes que ela emite, manuais regulando o seu uso e a pessoa que irá adquiri-la em seu tornozelo é de grande importância para compreender os elementos e objetivos que circulam e circunscrevem esta infraestrutura. Não são apenas agentes e técnicos penitenciários os elementos que atuam nessa infraestrutura de vigilância penal, mas também cartilhas, documentos, torres de telefonia, ligações telefônicas, monitorados e suas redes familiares e a própria tornozeleira eletrônica e o conjunto de sinais que emite. Trata-se de atentarmos para o fato de que não é apenas a possibilidade ou não de se mover que está em jogo nessa infraestrutura, mas de que circulam por ela objetivos que têm relação com a construção de subjetividades desejáveis.
Isso significa pensarmos que artefatos não são entidades neutras, sendo peças centrais para “a reformulação de subjetividades políticas” (Von Schnitzler, 2016). Atentar para essas minucias é dialogar sobre como materiais carregam em si projetos políticos com intuitos de formação e construção de subjetividades. Trata-se de pensar como objetos materiais são distribuídos por territórios e grupos populacionais (Anand, 2012) assim como infraestruturas e como estes objetos passam a ser um ponto de passagem para governar a população, prescrevendo formas de ser e agir.
É no momento de instalação da tornozeleira eletrônica que suas regras são informadas pelos agentes penitenciários. O monitorado recebe uma cartilha com algumas informações sobre o objeto e suas regras, visando o seu bom uso e cumprimento das normas, e um documento informando sobre as possibilidades de movimentação territorial dentro de determinados horários. Aprendem a interpretar o funcionamento técnico da tornozeleira a partir do conhecimento sobre o que significam as cores que piscam no led do aparelho. No dispositivo utilizado no estado do Rio Grande do Sul na época da pesquisa, era necessário observar dois leds: tanto o que indica a situação da bateria da tornozeleira assim como o que dispõe sobre o funcionamento do aparelho. Para além dessa visualização, cada luz indica uma ação que a pessoa deve apreender para solucionar os sinais luminosos. Como exemplo, ação semelhante à de Stefany descrita no início deste artigo – no ato de carregar o equipamento. Além disso, no mesmo documento há uma explicação do que é a tornozeleira eletrônica, a saber, “um equipamento que permite localizar o monitorado em qualquer área através do sinal GPS e GPRS em tempo real”. Uma indicação de que todos os passos da pessoa serão acompanhados.
Conforme consta na Apresentação dessa cartilha, “o sucesso do cumprimento da pena com a tornozeleira dependerá de você, caso contrário poderá retornar para o fechado”. Cabe à pessoa que está com o aparelho em seu tornozelo cumprir as medidas estabelecidas pelo juiz, o que está relacionado com observar diariamente os sinais luminosos emitidos pelo dispositivo, ter conhecimento sobre o que eles significam e responder aos seus chamados quando necessário. Existem recomendações com todas as indicações do que deve e do que não deve ser feito com o aparelho. Ao final da primeira folha de descrições, sublinha-se de novo a importância do engajamento moral do indivíduo: “A tornozeleira e seus atos são de sua responsabilidade”.
Para o responsável da época pela Divisão do Monitoramento Eletrônico, é necessário dar ao apenado uma sensação de liberdade e de responsabilidade: “O controle é dele. Se não, não estaríamos reeducando. Ele tem que ter uma sensação de liberdade”. Nesse sentido, cabe à pessoa gerir a sua pena, sendo um “carcereiro de si”.
Este conceito foi pensado por Ricardo Campello (2019) para definir a relação entre lógicas neoliberais de responsabilização individual e o cumprimento da pena de uma pessoa com tornozeleira eletrônica. Utilizando-se das leituras de Michel Foucault (2008) sobre o governo das condutas, o autor discorre sobre como o paradigma neoliberal avança para outras áreas da vida humana – para além de aspectos econômicos – para governar condutas. É o preso quem deve gerir seus riscos em relação à sua pena, deve calcular suas ações tendo como referência as punições que enfrentará caso descumpra regras: “O prisioneiro converte-se em seu próprio carcereiro, orientado pela aritmética utilitária que reitera a regressão penal como risco e virtualidade permanente” (Campello, 2019, p. 94).
Dispositivos tecnológicos são peças centrais na formação de certas subjetividades, que estão relacionadas também com características neoliberais, conforme pontua Campello (2019) pensando sobre o objeto que monitora presos e presas. A tornozeleira eletrônica e a infraestrutura que a faz funcionar atuam na construção de indivíduos que saibam gerir riscos e na construção da responsabilização pelas ações, elementos que se aproximam da ideia de um sujeito neoliberal. Contudo, é necessário compreender algumas peculiaridades de como este conceito viaja e é utilizado em outros espaços, conforme veremos a seguir.
O trabalho das assistentes sociais: entre burocracias, projetos de vida e vigilância
Em Porto Alegre, além de agentes penitenciários, assistentes sociais atuam nas questões relacionadas a tornozeleira eletrônica, alocadas tanto no Instituto Pio Buck quanto na Divisão de Monitoramento Eletrônico (DME). No primeiro espaço – local onde se instala a tornozeleira – elas ficam responsáveis pela entrega da “Carta de Trabalho” e explicações sobre esses trâmites. Não tive permissão para observar o cotidiano das profissionais no Pio Buck. Tive um contato maior com as três assistentes sociais alocadas na DME, onde pude realizar observações no cotidiano de trabalho das mesmas nos anos de 2017 e 2019.
Em 2017, elas eram responsáveis pela triagem dos telefonemas das pessoas com tornozeleira que ligavam pedindo autorização para se deslocar pela cidade, quando precisavam ir além dos 300 metros permitidos. Anotavam as demandas, coletavam endereços e horários dos compromissos para posterior encaminhamento para as/os agentes penitenciárias/os com quem dividiam a sala. Eram esses profissionais da segurança que aferiam se o monitorado teria ou não permissão para realizar a saída desejada. Essas ligações ocorriam por motivos diversos, tais como pedidos para ir ao banco para saque de dinheiro, entrevistas de emprego, solicitações para acompanhar o filho em consultas médicas ou sair para comprar medicamentos. Na avaliação sobre a permissão de saídas, informações transmitidas pelos monitorados e monitoradas não eram analisadas apenas por endereços completos ou se o local informado estava de acordo com o espaço previsto (por exemplo, tratar-se um banco ou um consultório), mas também se o deslocamento era pertinente ou não.
Além da triagem de telefonemas, uma das principais funções das profissionais da área da assistência social estava relacionada com questões de trabalho. Elas atuam na consolidação dos empregos: quando uma pessoa monitorada consegue um ofício, o patrão deve preencher a “Carta de Trabalho” – documento adquirido pelo monitorado no momento da instalação do aparelho – para que as assistentes sociais alocadas na DME possam agendar uma visita para verificar as condições do trabalho. Conforme uma das assistentes, para que uma pessoa consiga trabalhar fora do perímetro permitido pela tornozeleira ela deve preencher uma série de requisitos para obter a aprovação de um juiz. As assistentes sociais têm grande centralidade nesse processo, pois é a partir dos dados coletados por essas profissionais nas visitas aos postos de trabalho que o judiciário poderá ter insumos para decidir se autoriza ou não o ofício dos solicitantes.
A “Carta de Trabalho” é um documento que contém uma série de informações que devem ser preenchidas pelo empregador, como: nome da empresa, CNPJ, endereço, função, salário e forma de pagamento (mensal ou quinzenal), além de dias e horários de trabalho e folgas. De acordo com uma assistente social entrevistada, além dessas informações, existem algumas regras e compromissos que o dono do estabelecimento deve assumir com a DME, pois, quando a pessoa monitorada está no trabalho, o dono da empresa torna-se responsável por ela, devendo assinar um termo de responsabilidade. Também é o empregador quem deve avisar, por e-mail, quando o trabalhador precisa se deslocar para algum lugar e precisa da autorização da DME para isso, por exemplo.
Tendo esta carta preenchida em mãos, o monitorado deve informar às assistentes sociais que conseguiu um trabalho para que elas possam agendar uma visita ao local. Nessas ocasiões são conhecidas as condições do local onde a pessoa irá atuar, comprovando que o estabelecimento existe. Após essas visitas, as profissionais enviam um documento para o magistrado responsável pelo processo, detalhando sobre o local e o tipo de trabalho que a pessoa irá desempenhar e enviam fotos como uma maneira de facilitar a decisão judicial. Após a autorização do juiz, é função das profissionais da assistência social ligar para o monitorado para informar sobre o aceite, assim como para definir o trajeto que este novo trabalhador faz até o local, assim como horário de entrada e saída e o tempo utilizado para o deslocamento. Trata-se de um processo de criação de uma zona trabalho, para que a tornozeleira eletrônica não emita nenhum sinal sonoro ou luminoso indicando uma violação quando a pessoa sair da sua zona de inclusão (ou seja, sua residência).
Para uma das profissionais alocadas neste setor, ao realizar a visita nos locais de trabalho, ela conversa com a pessoa que está com a tornozeleira para traçar planos, ou como ela mesma diz, “um projeto de vida”, complementando que isso ocorre dentro das possibilidades dos indivíduos que elas atendem. Inclusive, uma das dificuldades relatadas pelas assistentes sociais estava relacionada ao atendimento desse público, com questões de organização em relação ao futuro, já que a vivência dos monitorados (em suas visões) ocorre muito mais focada no tempo presente. Elas exemplificam narrando uma situação: quando conseguiram um emprego para um monitorado e ele o recusou, justificando que não queria trabalhar naquele momento porque havia vendido o seu carro. A fala das assistentes sociais girava em torno da possibilidade desse dinheiro acabar e do pensamento imediatista que rodeava as mentalidades das pessoas que atendiam – “porque eles gastam isso tudo com churrasco, pagam as coisas para os amigos, acham mais importante passar o dia com o amigo do que ir atrás de trabalho. O que vão fazer quando este dinheiro acabar?”.
Elas indicavam que esta reinserção pós-cárcere também era dificultada pela própria “linguagem dos monitorados”, com um linguajar “próprio da cadeia”. Uma das profissionais disse que, quando uma pessoa ligava para a DME e a chamava de “cara”, ela logo o corrigia, pois pensava que para ressocializar um preso ela não deveria falar este mesmo idioma, com gírias que relembram o mundo da prisão. Deveria levá-lo para o seu mundo, para que ele pudesse aprender a viver em sociedade novamente. Conforme as profissionais, os desafios em relação à ressocialização também têm a ver com a dificuldade que muitas pessoas com tornozeleira eletrônica têm de encontrar um emprego, devido ao nível de escolaridade: a maioria das pessoas que elas atendem possuem ensino fundamental incompleto, um retrato da população carcerária no Brasil. E, também, um retrato do público que elas atendiam: conforme dados internos da DME9, de um total de 1.128 perfis de monitoradas e monitorados em Porto Alegre e região Metropolitana, 616 possuem ensino fundamental incompleto.
Como vimos, a atuação das assistentes sociais não tem relação apenas com formalização de empregos, elas também atuam no nível de intervenções que reforçam a modificação de certos comportamentos. Uma atuação que se aproxima de uma “intervenção pedagógica” no sentido de modificar linguagem e comportamentos, incentivando a construção de projetos de vida e de uma visão de organização de futuro e do dinheiro – para que, por exemplo, não se gaste todo o salário em um churrasco com amigos. Esse discurso é também corroborado por cartilhas que incentivam certos comportamentos e responsabilizações.
As regras da tornozeleira eletrônica em Porto Alegre incentivam certas práticas a serem cumpridas pelos indivíduos que as carregam em seus corpos, as quais se aproximam de uma subjetividade neoliberal, a saber: organização para carregar o aparelho em certos momentos do dia, paciência para fazer ligações para a central e aguardar o atendimento, cuidado com os limites de território e limites de horário em que é possível (ou não) permanecer na rua e zelo pelo aparelho. É necessário que a pessoa mantenha uma autorregulação de sua rotina para que cumpra as determinações judiciais inscritas no aparelho, sendo responsabilizadas pelas consequências dos seus atos caso isso não ocorra.
Neste ponto, é importante destacar como, em diferentes contextos, essas estratégias de governo e de “autogoverno” não são aplicadas de forma uniforme e para todos (Ferguson, 2010) distanciando-se de um Neoliberalismo (com “N” maiúsculo) enquanto uma categoria universal para explicar contextos distintos, observando como este conceito é localmente adaptado em rearranjos políticos (Ong, 2007). Destaco que ambiguidades perpassam a gestão de pessoas com tornozeleiras eletrônicas: ao mesmo tempo que esta infraestrutura tem um script que prevê a construção de sujeitos responsáveis, autônomos e que gerem seus próprios riscos, isso ocorre através de um Estado que busca ser presente e vigilante. Distante de uma ideia de um Estado mínimo, que muitas vezes é preconizado pelo neoliberalismo, o que temos com a experiência da monitoração eletrônica é a sua presença, materializada nessa infraestrutura.
É dentro desse paradoxo entre responsabilidade individual e a presença vigilante do Estado, pensado enquanto relações de humanos (como agentes e técnicos penitenciários) e não humanos (como a própria tornozeleira e as cartilhas), que uma pessoa com tornozeleira deve gerir o seu regime. Ao mesmo tempo que existe um incentivo para que o indivíduo monitorado consiga um trabalho por esforço próprio, essa busca é permeada por uma dependência de permissões: em Porto Alegre, é necessário ligar para a DME para agendar um dia para sair em busca de emprego, receber a autorização para o registro no sistema e posterior comprovação a ser enviada por e-mail de que esteve no local indicado. Além disso, quando a pessoa consegue o ofício, é necessário que o patrão se responsabilize pela pessoa e que haja autorização judicial para o trabalho após a visita das assistentes sociais.
Paralelamente às dependências de autorizações, o Estado minimiza sua responsabilidade quando delega o sucesso do uso do aparelho às pessoas apenadas. São elas que devem gerir os riscos, organizar seu cotidiano, pensar sobre planos de futuro e buscar empregos em um mercado de trabalho cada vez mais competitivo e precário – e isso somente quando conseguem uma autorização para tal, com liberação por parte do juiz e responsabilização do empregador. Além disso, na prática, essas organizações sobre os limites de circulação podem ter efeitos adversos quando comparados com os objetivos da tornozeleira, a saber, a ressocialização e a própria construção de projetos de vida.
Ritmos, (i)mobilidades e subjetividades na vida cotidiana em Porto Alegre
Como vimos anteriormente, a infraestrutura do monitoramento eletrônico tem como um dos seus pressupostos a organização das possibilidades de trânsito pela cidade. É através de mandados judiciais, legislações, softwares e tentativas de modificar a conduta das pessoas monitoradas que essa tentativa de estabelecer uma rotina é implementada. Os efeitos dessas práticas na vida das pessoas são diversos e trazem implicações, no cotidiano, que muitas vezes se chocam com os próprios objetivos do monitoramento eletrônico, como a ressocialização, a aquisição de um trabalho e a construção de projetos de vida.
Uma das histórias desses efeitos na rotina é de Alberto e Beatriz, jovens na faixa dos 30 anos de idade. Conheci o casal em meados de fevereiro de 2018. Eles aguardavam na fila da Defensoria o número que tinham em mãos ser chamado. Alberto estava com a tornozeleira eletrônica há dois meses e buscava atendimento porque estava foragido – classificação atribuída aqueles que descumprem as regras judiciais. A motivação do descumprimento era de que seu cachorro havia fugido e ele precisou sair correndo – para além do território que pode acessar – para buscá-lo antes que algum acidente ocorresse. Beatriz complementa: “nosso cachorro é muito bravo, poderia matar uma criança”. De acordo com o casal, Alberto ficou fora do raio permitido por apenas 10 minutos e, ao ligar para a Divisão de Monitoramento para tentar justificar o que ocorreu, foi comunicado que estava foragido.
Enquanto aguardavam, fomos dialogando sobre a vida com o aparelho no corpo. Alberto comentava que não trabalhava. Disse que não foi atras de emprego, porque dificilmente conseguiria ser contrato pelo preconceito que existe. Também reclamava que muito menos conseguia realizar “bicos”, empregos esporádicos e sem vínculo, porque não pode sair de casa. Ele estava preocupado em voltar para a cadeia por falta de pagamento de pensão das suas duas filhas do casamento anterior. A renda do casal é proveniente de uma pensão que a esposa recebe. Alberto, que antes de ser preso trabalhava como caminhoneiro, comenta que a sua rotina é agora ficar em casa cuidando da limpeza, comentário que faz sua companheira sorrir.
A tornozeleira eletrônica não inibe apenas as perspectivas de movimentação de quem a utiliza no corpo, mas também da sua rede de convivência mais próxima. Se Alberto precisa cumprir os 300 metros definidos pelo juiz – e quando descumpre pode ter efeitos adversos – Beatriz acabou também por restringir seus movimentos: “Minha vida também mudou, nós só ficamos em casa. Eu estou presa junto”. E ainda completa, quando indagados sobre as observações que realizam sobre as luzes do objeto: “Eu não consigo nem dormir tranquilamente”.
O relato de Alberto e Beatriz acerca dos limites e limitações que o objeto impõe na rotina se aproximam das percepções de Mario e Gabriele sobre a tornozeleira. De modo diverso do relato anterior, eles buscavam atendimento para solicitar que o rapaz não tivesse o objeto instalado no corpo: queriam a substituição do regime do semiaberto (com tornozeleira eletrônica) para o regime domiciliar sem este objeto. Para o jovem rapaz, o aparelho traria uma série de empecilhos para a sua rotina: “Eu tenho uma oficina de autossocorro, sabe? Então, preciso conseguir me locomover para ir até os clientes. E sei que com a tornozeleira fica difícil conseguir trabalhar”.
Naquele momento da conversa, Mario, que havia ficado dois anos e nove meses preso em regime fechado, aguardava a disponibilidade da tornozeleira eletrônica e precisava se apresentar semanalmente no Instituto Pio Buck para verificar se já havia aparelho disponível para uso. Ele estava apreensivo enquanto aguardava atendimento, afirmando que precisava trabalhar por não conseguir ficar parado. Inclusive, na cadeia, trabalhava na cozinha. Além dessa característica pessoal, sua companheira Gabriele citou que o casal pleiteava a domiciliar porque queriam mudar de Porto Alegre em direção ao interior do estado, na cidade dos pais de Mario: “Queremos começar de novo, ele precisa de um novo lugar pra abrir de novo a oficina dele”. Essa aproximação também se justificava porque os pais dele estavam doentes: “O pai dele não tem uma perna e é ele que é uma muralha ali, ele quem conduz tudo. Quando ele foi preso, foi bem difícil. E eu tenho quatro filhas.” Outro problema nesse desejo pela mudança estava que, no interior, possivelmente teriam problemas com a tornozeleira eletrônica, devido ao problema de infraestrutura de redes de telefonia. Na fala do casal, as operadoras de telefone não operavam no destino almejado, o que poderia trazer consequências para a pena de Mario.
Os dois casos são exemplares de diversos diálogos que tive com pessoas monitoradas e suas redes familiares e cujas preocupações se assemelhavam. Em ambos os casos, o casal aciona a tornozeleira eletrônica como um elemento que dificulta a própria ressocialização, devido à forma como a infraestrutura está organizada: regras de métricas e a própria impressão de certos ritmos de vida que podem fugir das possibilidades das pessoas monitoradas, especialmente quando conectadas com as dificuldades enfrentadas no mundo do trabalho. Além disso, ambos os rapazes tinham projetos de vida que envolviam trabalhar e estar mais perto da família, aspirações que envolviam também um dos objetivos desse sistema: a responsabilização. Contudo, as próprias regras burocráticas e empecilhos colocados pareciam distanciá-los ainda mais dos próprios fins desse sistema, que se constrói na constituição de certas subjetividades ao mesmo tempo que cria regras que parecem tornar os cidadãos ainda mais tutelados.
Conclusão
Conforme vimos, a tornozeleira eletrônica é distinta em Curitiba, São Paulo, Porto Alegre e outros lugares do mundo, porque os instrumentos que as conectam não são os mesmos. Diferentes leis, regras de território e de horário, entendimentos de quais presos e presas podem utilizar o aparelho, livres esclarecimentos e subjetividades são alguns dos elementos que, quando combinados, dão contornos à tornozeleira eletrônica, criando assim as suas versões. São essas relações que organizam a infraestrutura e imprimem distintas identidades à tornozeleira eletrônica, visto que juízes e juízas possuem uma centralidade e margem de autonomia para definir os usos, regras e punições relacionadas a esse dispositivo de maneiras diferentes.
Esses arranjos influenciam diretamente o trabalho a ser desempenhado pelos profissionais alocados nas centrais de monitoração eletrônica e na sua relação com governar condutas. Apreendemos como cartilhas que definem os bons usos do dispositivo, os sinais luminosos da própria tornozeleira e aconselhamentos e recomendações realizados por profissionais da segurança são projetados para trabalhar em conjunto na formação de um sujeito autônomo, gestor dos seus riscos e responsável: um carcereiro de si (Campello, 2019). Contudo, a autonomia do sujeito – o que poderia aproximá-lo de uma racionalidade neoliberal – é mediada por múltiplas autorizações burocráticas para sair em busca de emprego, para engajar em determinado tipo de trabalho, para deslocar-se em tal horário e tal zona geográfica, além da escassez de empregos.
Por fim, notamos como a organização dessa infraestrutura de vigilância penal afeta diretamente a vida de quem tem uma tornozeleira eletrônica em seu corpo. O conjunto de regras e punições acaba por imprimir certos ritmos de vida e por vezes impossibilita os próprios efeitos desejados e prometidos pelo sistema. Por mais que as intervenções visem a construção de subjetividades cidadãs – calcadas em certos conjuntos de valores – a maneira como a infraestrutura está organizada constantemente cria obstáculos à autonomia e iniciativa do sujeito.
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Notas
Autor notes