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Familismo à brasileira: das interpretações do país à construção de um modelo teórico-metodológico
Wilson José F. de Oliveira; Fernanda Rios Petrarca
Wilson José F. de Oliveira; Fernanda Rios Petrarca
Familismo à brasileira: das interpretações do país à construção de um modelo teórico-metodológico
Brazilian familism: from interpretations of the country to the construction of a theoretical-methodological model
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 11, núm. 28, pp. 203-225, 2023
Sociedade Brasileira de Sociologia
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RESUMO: Este artigo pretende analisar como a noção de família dirigente foi abordada na produção sociológica nacional e quais as principais dificuldades inerentes aos usos das abordagens em termos teórico-metodológicos. Trata-se, primeiramente, de analisar como o pensamento social brasileiro, enquanto área de estudo, consolida-se ao abordar esta temática, salientando o impacto da construção dessa área para compreensão da noção de família e nação como categorias imbricadas. Em seguida, abordamos como a noção de família compõe as interpretações sobre o país e suas respectivas particularidades. E, por fim, sugerimos, a partir da noção de parentela, uma alternativa para pensar os problemas de ordem teórica e metodológica no estudo das famílias e grupos dirigentes no Brasil. Tais resultados evidenciam a pertinência de uma agenda de pesquisa que possibilite o desenvolvimento de “perspectivas não eurocêntricas” tanto na compreensão de sociedades como a brasileira quanto no ensino da história dos conceitos e das categorias sociológicas de entendimento de realidades desse tipo.

Palavras-chave: Família, teoria sociológica, história das ciências sociais.

ABSTRACT: This article aims to analyze how the notion of ruling family was approached in national sociological research and what are the main difficulties inherent in the use of approaches in theoretical-methodological terms. Firstly, it is about analyzing how Brazilian social thought, as an area of study, is consolidated when approaching this theme, highlighting the impact of the construction of this area in understanding the notion of family and nation as intertwined categories. Secondly, we will address how the notion of family shapes interpretations about the country and its respective particularities. And, finally, we propose, based on the notion of kindred, an alternative for thinking about theoretical and methodological problems in the study of families and ruling groups in Brazil. Such results highlight the relevance of a research agenda that enables the development of “non-Eurocentric perspectives” both in understanding societies such as Brazil and in teaching the history of concepts and sociological categories for understanding realities of this type.

Keywords: Family, sociological theory, history of social sciences.

Carátula del artículo

ARTIGOS

Familismo à brasileira: das interpretações do país à construção de um modelo teórico-metodológico

Brazilian familism: from interpretations of the country to the construction of a theoretical-methodological model

Wilson José F. de Oliveira
Universidade Federal de Sergipe, Brasil
Fernanda Rios Petrarca
Universidade Federal de Sergipe, Brasil
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 11, núm. 28, pp. 203-225, 2023
Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 30 Dezembro 2022

Aprovação: 15 Agosto 2023

Introdução

A reflexão sobre “família” atravessa grande parte da produção sociológica brasileira. Atrelados ao constante desafio, posto aos cientistas sociais brasileiros, de produzir-se uma tese sobre as especificidades nacionais, os estudos sobre tal temática ficaram reduzidos, frequentemente, a tentativas de apreender uma configuração histórica específica e particular. Desse modo, eles aparecem associados, também, à reflexão sobre o processo de construção da nação e, portanto, são com frequência objeto do chamado “pensamento social brasileiro”.

Essas características da produção sociológica brasileira sobre “família”, fundadas, principalmente, na ideia de particularidade, constitui um dos principais entraves para a formação de um arcabouço teórico-conceitual que ofereça aos cientistas sociais um quadro crítico diante das teorias, pretensamente universais, esboçadas, sobretudo, pela sociologia europeia (Domingues, 2016). Aqui nos referimos, especialmente, aos estudos de Pierre Bourdieu (1989) e Monique de Saint-Martin (1995) que marcaram os estudos contemporâneos sobre família e elite, revisitando um conjunto de categorias que dizem respeito à especificidade francesa, tais como “unidade”, “espírito de corpo”, “hierarquia” etc., e que se apresentam como categorias universais no entendimento da relação família-elite, família-Estado etc. (Petrarca & Oliveira, 2016, 2017, 2018). A oposição burgueses-aristocratas, por exemplo, exposta pelos referidos autores, e sua distribuição no espaço social contribuíram para o acesso a um conjunto de recursos, estratégias e possibilidades de reconversão desiguais.

Este artigo pretende analisar como a noção de família dirigente foi abordada na produção sociológica nacional e quais as principais dificuldades inerentes aos usos das abordagens em termos teórico-metodológicos. Para dar conta desses objetivos, este artigo está dividido em três partes principais. Na primeira parte, demonstraremos como o pensamento social brasileiro, enquanto área de estudo, consolida-se ao abordar esta temática, salientando o impacto da construção desta área para a compreensão da noção de família e nação como categorias imbricadas. Na segunda parte, abordaremos como a noção de família compõe as interpretações sobre o país e suas respectivas particularidades. E, por fim, sugerimos, a partir da noção de parentela, uma alternativa para pensar os problemas de ordem teórica e metodológica no estudo das famílias e dos grupos dirigentes no Brasil.

O que pretendemos neste texto é demonstrar – a partir do estudo de uma geração de sociólogos que destacaram a especificidade da configuração familiar brasileira – como determinadas categorias e pressupostos não podem ser tomados como “realidades sociológicas”. A família e o parentesco constituem apenas alguns exemplos. De um lado, partimos do princípio de que uma história não eurocêntrica desta noção constitui a chave para repensarmos os efeitos do colonialismo sociológico que impede uma postura crítica diante dos conceitos que se apresentam como universais e que, na grande maioria das vezes, não passam de uma particularidade universalizada (Domingues, 2016). Assim, criam-se falsos problemas, como a oposição família e Estado, que correspondem à especificidade de determinadas sociedades e que, ao se tornarem universais, conferem parâmetros de classificação das sociedades. De outro lado, destacamos como a experiência de sociedades como a brasileira, atravessadas pelo imperialismo e colonialismo, pode oferecer reflexões pertinentes para pensar categorias que se impõem como universais, como a família e o Estado.

O processo de colonização metodológica e teórica pode produzir falsos problemas que impedem o debate científico, contribuindo para legitimar a consolidação dos mecanismos de poder e das formas de dominação dos países que se pretendem centrais na produção de teorias e metodologias de investigação (Connell & Maia, 2012; Connell et al., 2017). Através desta reconstituição da emergência e dos desdobramentos da noção de “família” na sociologia brasileira, procuramos descentralizar o “cânone sociológico” que tem geralmente dominado o ensinamento e a pesquisa sobre família no Brasil, trazendo à tona a necessidade de desenvolver novas estratégias de ensino e pesquisa em ciências sociais.

1. A construção do pensamento social brasileiro e o binômio família-nação

Os estudos sobre família ganharam projeção dentro do chamado “pensamento social brasileiro”, área de estudo nas ciências sociais brasileiras, especialmente na sociologia, dedicada, particularmente, aos estudos dos pensadores e intelectuais brasileiros. Durante muito tempo, tais formulações defrontaram-se com certas dificuldades relativas às próprias condições sociais de institucionalização das ciências sociais brasileiras e, mais precisamente, à divisão imperial do trabalho de produção teórica que, durante muito tempo, estabelecia uma “hierarquia nos desenvolvimentos da disciplina nas diferentes regiões do mundo” (Costa, 2006, 2010, p. 27; Connell & Maia, 2012).

Inserida neste processo imperial de consolidação das ciências sociais, a sociologia brasileira se tornou uma grande consumidora de teorias que são produzidas na Europa ou na América do Norte, reforçando, a cada movimento de renovação teórica, sua posição subalterna em relação à sociologia mundial, a aplicação de teorias pouco compatíveis com a modernidade brasileira e a negligência da reflexão teórica sobre a própria modernidade (Costa, 2010, p. 45). Nestas condições, em que a ausência de reflexão sobre a produção de teoria social feita por brasileiros se tornou um traço marcante dessa “tradição intelectual” (Petrarca & Oliveira, 2018), a distinção entre “pensamento” e “teoria” e a redução de nossa produção exclusivamente ao primeiro, “pensamento social”, constitui uma forma de ratificar a inaptidão quase que congênita da sociologia brasileira em matéria de produção teórica. Por isso, não encontramos nos nossos cursos, dos mais elevados níveis de formação, reflexões feitas sob o rótulo de “teoria” (Rosa; Ribeiro, 2020). Antes disso, usamos as teorias seja como “conteúdo normativo a fim de interpretar a realidade”, seja, “como meio para comentário ou exegese da produção de um autor e/ou de uma tradição intelectual” (2020, p. 207).

Assim, quando se institucionalizou as ciências sociais no Brasil, já havia um corpo sólido de trabalhos que realizaram importantes descobertas, uma linhagem de autores que haviam aberto o caminho para a discussão dos problemas nacionais. Todavia, esses autores foram descartados por serem considerados ensaístas, ideológicos e pré-sociológicos, cujos trabalhos seriam próprios de etapas anteriores ao desenvolvimento da ciência, considerados de valor no máximo histórico e não como tendo o valor heurístico que suas obras carregavam. 

A última década tem produzido, nas ciências sociais brasileiras, um movimento importante de crítica ao chamado “fantasma da condição periférica” (Lynch, 2013) ou da busca incessante pela “tese da singularidade brasileira” (Tavolaro, 2005, 2014). Alguns autores têm se esforçado para demonstrar que a necessidade de produzir uma tese sobre a especificidade da configuração brasileira tomou como referência um ideal de sociedade que, pretensamente, se realiza no centro, e que toma a Europa como berço da modernidade. Nessa direção, o centro passou a ser visto como produtor do universal, enquanto as chamadas “sociedades periféricas”, das quais o Brasil era parte integrante, produtoras do local, do exótico, do excêntrico, do paroquial. Em outras palavras, a sociologia brasileira estaria voltada para a descrição das “peculiaridades” da situação em pauta, das “singularidades” ou, dito em outros termos, uma “ciência das jabuticabas” (Petrarca & Oliveira, 2017).

Uma vez situadas num espaço geográfico periférico e num tempo histórico atrasado, sociedades como a brasileira produziriam, no máximo, bons intérpretes do Brasil através da produção de um pensamento social brasileiro. Essa área tomou como objeto a formação das interpretações sobre o Brasil e suas especificidades e é nessa direção que os estudos sobre a configuração familiar brasileira ganham contorno e relevo. O pensamento social brasileiro forma-se a partir da noção família-nação constituída pelos trabalhos de Gilberto Freyre (1994/1933) e Sérgio Buarque de Holanda (2004/1936), a partir dos quais a família colonial se torna o centro da organização política e social e elemento central da construção da identidade nacional. É desta compreensão que emergem as origens da autoridade privada no domínio público (Itaboraí, 2005).

São exemplos da importância desta área, os grupos de trabalho “Pensamento Social no Brasil”, da Sociedade Brasileira de Sociologia, considerado um dos mais antigos da instituição, “Intelectuais e Cultura”, ou ainda “Pensamento Social Latino-Americano” e suas variações (Pensamentos Social Brasileiro, Pensamento Social no Brasil), na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS).1 De um lado, essa temática foi abordada com vistas a demonstrar as especificidades brasileiras e as marcas da interpretação sobre o Brasil de uma geração de sociólogos. Tomando como objeto as obras e as ideias nelas expostas, as análises voltaram-se para as explicações sobre os dilemas nacionais e as condições de formação do país, dada sua condição periférica. De outro lado, de maneira diferente, problematizaram a relação entre os autores que marcaram as ciências sociais brasileiras, o contexto, as condições de sua produção e os temas abordados e aprofundados (Bastos, 2002; Bastos; Botelho, 2010; Miceli, 1989, 1990, 1995; Peixoto, 1989; Peirano, 1992). Nessa direção, alguns trabalhos, procurando focar numa “sociologia dos intelectuais”, deram destaque para o exame das condições sociais da produção da sociologia brasileira e de sua relação com a inexistência de um campo sociológico autônomo no qual a esfera política esteja presente em todo o seu processo de institucionalização (Coradini, 2010, 2017; Miceli, 1990).

Essa linha contribuiu para pensar que tipo de empreendimento sociológico foi produzido, quais as perspectivas implícitas ou explícitas e quais foram os temas que emergiram desse debate. Bastos e Botelho (2010) salientam que apesar de o pensamento social não se constituir como um objeto de estudo particular, no caso brasileiro ele assumiu um papel fundamental de reflexão sociológica nacional. Assim, a preocupação com a identidade nacional marca tanto os intelectuais que se colocaram na condição de intérpretes do Brasil quanto os pesquisadores que fizeram suas carreiras no espaço universitário e que passaram a definir este último como espaço por excelência de estudos científicos sobre a sociedade brasileira. Portanto, o que se observa é uma disputa pela interpretação do Brasil.

Podemos entender com mais clareza a construção dessa linha quando olhamos o processo de elaboração e proposição do próprio grupo de trabalho “Pensamento Social no Brasil” da ANPOCS. Essa experiência particular, tal como exposta por Oliveira (1999), emergiu em 1981, a partir da proposta de Marisa Peirano e Luiz Antônio Castro Santos, visando abranger um leque amplo de temas que compreendia desde as questões nacionais, como a identidade nacional, formação da nação, até estudos sobre a produção estrangeira no Brasil, folclore e cultura de modo geral. Este é um dos grupos de trabalho mais antigos dessa associação, que mantém ainda ativa sua produção. Uma olhada rápida sobre os temas apresentados nesses 30 anos de existência permite perceber que a discussão central se volta para especificidade da cultura e da política brasileira e o pensamento de alguns autores considerados marcos da compreensão sobre o Brasil.

Um dos pontos altos na interpretação desses diferentes autores é que a sociologia brasileira é uma ciência interessada nos dilemas e problemas da nação, sua especificidade em relação a outros países considerados centrais no projeto moderno é a sua singularidade. Antes mesmo de a sociologia inaugurar-se como disciplina acadêmica e científica no Brasil, o exame da “cultura nacional” já havia se tornado um tema caro no universo intelectual e uma tradição nos estudos sobre o país.2 Diferentes gerações de sociólogos não hesitaram em chamar para o plano científico uma discussão sobre a particularidade brasileira ou o caráter nacional, voltando-se, portanto, para um compromisso com a vida nacional (Villas Bôas, 2010). Nessa linha, uma ciência comprometida com os problemas da nação, que não abriu mão do seu papel de “construtora da nação” (Peirano, 1992; Peixoto, 1989; Pécaut, 1990). A escolha de temas voltados aos dilemas nacionais, como raça, miscigenação, capitalismo, burguesia, família, dentre tantos outros, foi tão valorizada no momento de construção da sociologia acadêmica que autores cujos objetos de estudo não giravam em torno dos grandes problemas nacionais ficaram apagados. Esse é o caso de Gilda de Mello e Souza, que fez sua tese sobre a moda no século XIX, Antônio Candido, que tomou como objeto os “caipiras” paulistas, e Maria Isaura Pereira de Queiroz, que destacava, ao contrário dos seus colegas, as combinações entre o rural e o urbano, entre o tradicional e o moderno (Villas Bôas, 2010).

Esses autores permitiram uma renovação nos estudos sobre a sociologia brasileira, contribuindo para que a análise de um conjunto de autores nacionais possa ser vista para além do pensamento social. Um bom exemplo disso pode ser observado no evento da Sociedade Brasileira de Sociologia, realizado em 2017, em que o Grupo de Trabalho Teoria Sociológica integrou uma sessão sobre a pesquisa teórica no Brasil, em que os autores brasileiros foram recebidos como parte importante de uma agenda sobre teoria social. Esse movimento traz à tona um conjunto de questões importantes que deveriam ser considerados para a produção teórica sobre tal tema,

Em primeiro lugar, deve-se considerar o papel que desempenharam as produções eurocêntricas, tomadas como referência para compreensão da singularidade nacional na institucionalização das ciências sociais brasileiras. Sobre esse aspecto, Maria Isaura Pereira de Queiroz (1989) já havia apontado que é principalmente em direção à França que a intelectualidade universitária brasileira se volta para, a partir desta sociedade, identificar os padrões das instituições, especialmente as científicas. Um exemplo disso foram às chamadas “missões estrangeiras” que inauguraram o ensino universitário brasileiro, constituindo-se como principal mecanismo de institucionalização das ciências sociais e humanas no país. De início, essas missões aceitaram a não existência de um legado de produção nacional e os pesquisadores que dela faziam parte, especialmente franceses, encontraram um espaço acadêmico completamente aberto para explorarem ao seu modo. Os cientistas que aqui chegaram carregavam o legado da sociologia durkheimiana e viam a sociedade como fragmentos de uma coletividade que precisaria ser composta. Autores como Silvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Manuel Bonfim, e tantos outros que os sucederam e que haviam inaugurado a reflexão sobre a complexa diversificação étnica e sua relação com os problemas nacionais, não fizeram parte das reflexões inaugurais que marcam o nascimento da universidade brasileira. Como afirma Queiroz (1989), quando os professores estrangeiros começaram a ministrar suas aulas, já havia uma produção sobre os problemas nacionais que não poderia ter sido esquecida. Isso sem tocar na famosa geração de 1930 que tivera importante impacto público, como Gilberto Freyre, Caio Prado e Arthur Ramos.

Em segundo lugar, é preciso discutir em certo sentido como esse estilo da sociologia brasileira, sua vocação propriamente dita, permite pensar num dos “nós” centrais da sociologia, que é a pretensão de universalização dos conceitos. Uma das grandes dificuldades de uma ciência social que se volta para a especificidade interna é a sua capacidade de universalizar princípios e práticas. O mais longe que chegamos parece ter sido o conceito de “capitalismo dependente” de Florestan Fernandes ou, ainda, a “teoria da dependência” de Fernando Henrique Cardoso. Contudo, essas propostas não extrapolaram a compreensão da América Latina e não conseguiram demonstrar as dificuldades da universalização de conceitos extraídos das teorias sociológicas clássicas como “capitalismo”. Ao invés de mostrar que esse conceito não pode ser universalizável, esses autores construíram suas carreiras interpretando o Brasil e a América Latina e demonstrando as especificidades da sua configuração. Em outras palavras, uma teoria sobre a América Latina e, em especial, sobre o Brasil. O parágrafo abaixo, extraído do livro de Mariza Peirano – quando ela compara o empreendimento sociológico indiano com o brasileiro – demonstra em parte o que representou o campo das ciências sociais brasileiras.

O exemplo dos indianos nos faz pensar que, num mundo acadêmico concebido em termos universalistas, a incoerência entre o domínio do discurso teórico e a vivência da política local talvez seja destino e fatalidade para países em posição de subordinação no cenário mundial. No nosso caso, entre o alto teor de politização local e o fascínio pelo modismo internacional, o viés paroquial parece surgir, estranhamente, na crença de que fazemos parte de um ocidente homogêneo, de que escrevemos para sermos lidos internacionalmente, sem nenhuma barreira e nenhum entrave, numa recusa aparente em querer discutir o nosso papel no mundo internacional [...]

(Peirano, 1992, p. 230).

A leitura de Mariza Peirano (1992) encaminha para o terceiro elemento fundamental de reflexão que é a relação de subordinação das ciências sociais brasileiras com relação à literatura internacional e a timidez, ou talvez, “a cordialidade”, como a própria autora expressa em obra já citada, em tratar de teorias e conceitos vindos de fora. Ao incorporar conceitos e problemáticas, os cientistas sociais brasileiros assumem um papel passivo na crítica da pretensa universalidade científica e ocupam a posição de simples reprodutores de modelos importados. Assim, os cientistas sociais brasileiros aceitam a condição de bons intérpretes nacionais. Então, será que saímos de uma situação de buscar a singularidade brasileira para nos tornarmos meros reprodutores de teorias importadas? Passamos de intelectuais que pensaram o Brasil para aplicadores de teóricos internacionais? As disputas são marcadas pelo controle dos conceitos e domínio teórico dos autores importados. Nessas condições, destacam-se aqueles que se apresentam como especialistas na tradução dos autores (e suas teorias) importados.

Considerando os pontos de reflexão que esses autores permitem formular, o que poderia ter se transformado numa discussão teórica altamente crítica consagra-se como mero estudo sobre o país, portanto, nacional demais. E, nessa linha, a relação com as obras e teorias importadas acaba se apresentando como simples recurso nas lutas internas de distinção e consagração e como um elemento para ascender no espaço sociológico nacional, impedindo a constituição do debate sobre o papel das ciências sociais brasileiras no cenário internacional.

2. Ordem escravocrata, dominação senhorial e família patriarcal

Segundo Guerreiro Ramos (1957, p. 41), a sociologia surge em países europeus como um produto histórico e “não é possível compreendê-la senão como um capítulo da evolução do pensamento europeu”. O autor ainda cita o exemplo da Alemanha, onde a sociologia incorpora as categorias de “organismo” e “história”, sendo impossível compreendê-las fora das pautas da filosofia hegeliana. Isso demonstra o quanto esta sociologia está enraizada na história alemã.

A sociologia no Brasil não considerou tais bases e a produção nacional sobre os temas do pensamento social brasileiro. Cada geração que emerge vai buscar inspirações nas matrizes europeias ou norte-americanas, impossibilitando a formação de uma tradição sociológica brasileira. A autenticidade da sociologia que se processa no Brasil depende, portanto, da capacidade do sociólogo de refletir as peculiaridades da situação em que vive. “Sociologia em mangas de camisa”, como define Ramos, constituiria o reconhecimento das assimetrias entre centro e periferia e poderia conduzir à reflexão sobre as condições que conduzem a tais diferenças. Embora a sociologia se consagre como uma ciência universal, o desenvolvimento desta ciência depende da sua capacidade de lidar com problemas locais e particulares.

É a partir dessas condições que os estudos sobre família no pensamento social brasileiro convergiram para uma crítica às raízes rurais brasileiras e ao patriarcalismo como modo de organização dessa instituição. O modelo familiar patriarcal apresenta-se como singular, dado o modo como ganhou relevo nas grandes unidades agrárias do período colonial. Ao mesmo tempo, adquire contornos de uma sociedade tradicional, arcaica, que precisa, portanto, ser superada.

Uma das principais disputas travadas na compreensão da lógica familiar brasileira é a oposição marcada aos trabalhos de Freyre sobre a relação entre a família brasileira e a economia patriarcal. De uma parte, as pesquisas procuraram mostrar que os estudos de Freyre não passaram de uma particularidade do nordeste brasileiro, portanto, não aplicáveis a outras regiões do país, como o Sudeste, que enfrentaram condições díspares (Faria, 1998; Samara, 1987). De outra parte, os estudos destacaram as diferenças regionais do país, opondo período colonial com período industrial e, desse modo, os estudos freirianos representariam compreensões de um passado colonial e rural (Samara, 1987; Sorá, 1998). Apesar de alguns estudos concentrarem as análises da dinâmica da família brasileira na ordem rural e agrária, outros autores como Queiroz (1976) e Carvalho (1966) demonstram como a organização urbana adotou estruturas e comportamentos tradicionais.

Ordem escravocrata, dominação senhorial e família patriarcal revelam um pouco do consenso na literatura sociológica brasileira a respeito da formação da sociedade e sua forma de dominação e hierarquização. Nessa linha, era o modelo escravocrata que fornecia as condições materiais para a dominação senhorial e a família patriarcal como um princípio de hierarquização social. Estariam aí as bases sociais e histórias da definição da “grande família brasileira”, ou melhor, da “família extensa”.

Diante disso, três pontos se destacam para a formação da família brasileira. O primeiro está associado ao caráter miscigenatório e patriarcal da colonização portuguesa no Brasil. Segundo Freyre, a acentuada promiscuidade que marcou a chegada dos portugueses em solo brasileiro contribuiu para o contato sexual entre brancos, índios e negros, conduzindo a uma sociedade miscigenada. De um lado, os portugueses não apresentavam, sobretudo quando comparados com os ingleses e outros europeus, uma forte segregação racial, marcada pela distância entre as raças. Isso proporcionou aos homens portugueses o contato com as mulheres de origem africana e indígena, dando origem a gerações de mestiços. De outro, a colonização nos trópicos conduziu a um caráter cultural próprio centrado no encontro entre raças e etnias. Essa “promiscuidade sexual” inicial, como destaca o autor, conduziu a uma nova configuração nas relações familiares e sociais.

Se tomarmos a obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala (1994/1933), como uma das obras fundamentais que marcaram um estudo histórico e sociológico sobre as famílias brasileiras, veremos que nela está expressa uma das condições essenciais de organização desta família: a ordem patriarcal. Um patriarca, representante da ordem agrária, detém poder sobre esposa, filhos, escravos e agregados. Mas, para Freyre, a família colonial representou, além dessa unidade doméstica, o principal órgão da formação social brasileira com impacto nas relações políticas, uma vez que o patriarca também chefiava agrupamentos políticos. Nessas condições, a família se tornou um dos principais fatores colonizadores, que se expandiu da esfera doméstica e se desdobrou em uma força política, ocupando, muitas vezes, o lugar do Estado. Portanto, não há para o autor uma lógica de ruptura entre família e Estado, mas sim de extensão e continuidade.

O segundo ponto é a questão da cordialidade como apontada por Sérgio Buarque de Holanda e expressa também na “ética de fundo emotivo”, a qual seria a marca das nossas relações cotidianas, ou seja, um importante aspecto da vida brasileira. Uma ética que prioriza as relações humanas e que tem “horror à distância social”. A herança portuguesa criou condições novas no Brasil, gerando uma sociedade avessa à hierarquia, às normas e à disciplina, cuja marca central é a desobediência às regras. Além disso, Sérgio Buarque aponta a necessidade de considerar a oposição entre família e lógica de funcionamento do Estado. O Estado e a família como dois princípios opostos e não uma linha de continuidade e evolução da família. A oposição entre Antígona e Creontes revela a oposição entre, de um lado, uma ordem familiar e particularista, e de outro, uma ordem abstrata e impessoal que se apresenta como fundamento do Estado.

Em Raízes do Brasil o autor destaca as marcas de um país de base rural, e não uma sociedade agrícola, organizado através das bases coloniais portuguesas e estruturado a partir do patriarcalismo e do personalismo. A própria definição do autor de “facção” política, que se forma nesse contexto do patriarcalismo no interior dos partidos, refere-se a grupos familiares unidos por laços biológicos e afetivos constituídos de sentimentos e deveres e não por interesses ou ideias. Assim, a noção mesmo de facção é constituída pelos laços pessoais e familiares das trocas de favores. O “espírito de facção” origina-se no chamado pater famílias, em que estão subordinados à autoridade do senhor rural todos os membros do grupo familiar, desde os filhos aos agregados. Portanto, é na esfera da vida doméstica que se opera esse princípio da autoridade que se apresentou, nas palavras do autor, “ilimitado” e com “poucos freios”. Uma das consequências disso é que a esfera privada, em que prevalecem os laços afetivos, precede a esfera pública provocando marcas profundas na história da vida pública brasileira. O resultado não poderia ser outro, predominando “em toda vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família” (Holanda, 2004, p. 82).  Fica claro, na visão do autor, que o que se opera nos trópicos, o rígido paternalismo, é oposto à França revolucionária e “aos princípios que guiaram os homens de Estado norte-americanos na fundação e constituição de sua grande República” (Holanda, 2004, p. 85). Nessas condições, o personalismo, cujas origens advêm do peso das relações familiares e afetivas, torna-se um entrave aos processos de modernização e racionalização do Estado. 

O terceiro elemento podemos denominar como um tipo específico de dominação que se desenvolve nessas condições: a dominação senhoril. Em Prado Junior (1942) vemos a organização do patriarcalismo e a importância do clã patriarcal marcado na figura do senhor rural dotado de autoridade e prestígio. Nessa lógica, o senhor rural deixa de ser apenas o proprietário, detentor dos meios de produção que explora o escravo e passa a ser visto como protetor, uma espécie de quase pai dos despossuídos. Esse processo ocorre quando os contatos e os laços sociais entre escravos e senhores se intensificam, tornando mais humanas e menos tensas as relações entre eles. É dessa forma que o proprietário rural consegue reunir todos os elementos que lhe dão autoridade: poder, riqueza e legitimidade. Assim, ao contrário de Gilberto Freire, para Caio Prado a formação brasileira não se processou num ambiente familiar, visto que à massa da população (o colono ou o escravo) faltava base sólida para constituição da família. 

Uma combinação de estamentos e castas produziu uma sociedade em que os interesses dos colonizadores foram preservados e apenas a eles era dado o direito pertencer às estruturas de poder. Nessa sociedade colonial, entretanto, a estratificação adquiriu um caráter flexível, conseguindo absorver mestiços e nativos. Com isso produziu-se um princípio de dominação sustentado pela exploração ilimitada (Fernandes, 1973).

Uma das grandes contribuições desses autores foi permitir pensar como se constituiu a família dirigente brasileira, quais seus recursos, suas bases sociais, suas estratégias. Estes estudos, acima referenciados, voltam-se, mais especificamente, para o papel da família colonial na organização política. Ainda há nesses trabalhos uma forte correlação entre o patriarcalismo e o familismo como dois princípios limitadores para o desenvolvimento do Estado moderno..

3. “A Parentela”: um idioma para as relações sociais

Maria Isaura Pereira de Queiroz e Antônio Candido podem ser definidos como os principais autores a apontar a necessidade de considerar o termo “parentela” para a compreensão da dinâmica familiar brasileira. Nessas condições, os conceitos típicos da literatura socioantropológica, como parentesco ou “grande família” não são adequados para a compreensão da realidade brasileira. Isso significa mostrar que eles não são suficientemente generalizantes e universalizantes. Esses autores permitem também demonstrar que o arranjo estratificado, relativamente rígido, demonstrado pela sociologia brasileira, oferece pouca ou nenhuma margem para pensar as condições de ascensão social e formação de lideranças. Paralela à estrutura hierárquica ocupada pelo grande proprietário rural manifestou-se outra, de tipo mais igualitário, que gerava condições mais abertas para ascensão social via liderança política.

A questão principal colocada pela parentela é sua complexidade interna, podendo ser caracterizada tanto pelo modelo igualitário, em que as famílias estão no mesmo nível socioeconômico, quanto pelo modelo estratificado cuja característica central era a existência de várias camadas sociais distintas no interior da parentela, ou seja, famílias de níveis socioeconômicos desiguais conectadas por alianças. Contudo, independentemente do modelo, a solidariedade era um elemento crucial, o que permitia unir grupos distintos. O sentimento de união e de pertencimento a um grupo que poderia garantir as condições necessárias, seja para abertura de um negócio, seja para entrada na política ou até mesmo para sobrevivência no espaço social, configurava essa solidariedade interna.

Unidos, esses grupos familiares – que tinham economias particulares independentes – podiam sobreviver em condições adversas, como um negócio fracassado ou contração de dívidas, o que tornava a parentela um grupo econômico. Outro tipo de solidariedade vai também ter fortes consequências nos efeitos políticos da parentela. Trata-se da lealdade entre membros com os chefes como um elemento fundamental para garantir a manutenção e importância dos laços sociais. Contudo, essa forte solidariedade não representava harmonia ou equilíbrio. Em muitos casos ela poderia desencadear fortes rivalidades e confrontos violentos que conduziam à formação de novos grupos, ou dissidências. Apesar de os laços representarem um fator integrador importante, eles também eram frágeis e de fácil dissolução. Como a ascensão ao topo da parentela não era definida pela herança, as disputas se davam em torno das qualidades pessoais que levavam à liderança. Assim, era comum o chefe de uma parentela passar o comando a um sobrinho distante ou a um afilhado em detrimento do filho. Portanto, a posse de qualidades pessoais reconhecidas se tornava um dos ingredientes fundamentais na composição das parentelas. Outro ingrediente fundamental era sua posição econômica, pois essa garantia a realização de uma importante condição: “a capacidade de fazer favores”. Um chefe de uma parentela era aquele que estava na condição de fazer favores. Os bens de fortuna forneciam tais possibilidades de realização dos favores. 

É dentro dessa dinâmica móvel que se formavam e se destituíam os “blocos de parentelas”, conduzindo a um sistema fragmentado e com intensas divisões internas. Os conflitos existentes tanto no interior das parentelas quanto entre parentelas rivais levavam à formação de novos “coronéis”. Nessa linha, dois elementos constituíram as parentelas e contribuíram para sua reprodução: solidariedade e conflito. Esses dois elementos permitiram às parentelas se ajustarem às mudanças de regime e de modelo político, conduzindo à diversificação das estratégias como elemento de sobrevivência. Segundo Queiroz (1976, p. 191), essa dinâmica se traduziu em ditos populares, como: “para os amigos, tudo; para os inimigos, o rigor da lei”. Dentro desses ajustes, as profissões liberais exerceram papel fundamental no contexto pós-Independência e tiveram um peso significativo na República, constituindo-se como “canal do poder coronelístico”. Decorrente da urbanização, os títulos ampliaram e diversificaram o poder das parentelas, integrando-se perfeitamente a esse sistema, expandindo as possibilidades de ascensão entre indivíduos com menos posse.

Além disso, pelo menos dois aspectos essenciais caracterizam a parentela e a distinguem de outros modelos de relações familiares. O primeiro é que a parentela brasileira é formada pela conexão entre várias famílias nucleares que não convivem na mesma casa e que, portanto, possuem independência econômica. O segundo é o aspecto geográfico – apresentado com frequência como elemento fundamental do parentesco, no caso das parentelas ele não apresenta relevância, uma vez que, mesmo distantes geograficamente, os laços sociais prevalecem.

Segundo Queiroz, talvez o único modelo que se aproxima da parentela é o do clã. Contudo, a questão igualitária – elemento fundador da estrutura tribal – e a inexistência de uma organização urbana não permitem maiores relações com a dinâmica da parentela. Esta última pode se apresentar tanto de forma igualitária quanto hierarquizada, internamente heterogênea, e ocorre tanto no ambiente rural quanto urbano. Nessas condições, o modelo do “clã” não se aplica. O aspecto urbano, seja como vila ou como cidade, esteve desde o princípio conectado à formação das parentelas, pois as vilas eram as sedes do poder político municipal e local privilegiado da disputa entre as parentelas. Assim, o senhor rural não era apenas aquele que agregava o poder econômico e político, mas era, sobretudo, o que ocupava o topo de uma parentela. Daí, para compreender a formação das parentelas precisamos nos reportar à dinâmica coronelística.

Como já se salientou, um dos elementos fundamentais da parentela são as relações afetivas e pessoais.  Contudo, o aumento de instituições e a diversificação das funções se tornaram elementos da diminuição do poder coronelístico e do peso das parentelas na política (Petrarca, 2017, 2019, 2020). Contribuíram para isso a urbanização e a industrialização crescentes. Isso conduziu a um aumento de poder de instituições judiciárias e diminuição de muitas funções antes atribuídas às Câmaras Municipais, enfraquecendo assim o poder dos chefes políticos locais. Um exemplo disso era a apuração das eleições e o alistamento eleitoral, antes função das Câmaras, que, a partir de 1916, passou a ser atribuição do poder judiciário. Junto a isso, o crescimento demográfico e a urbanização, lentamente, arruinavam a capacidade de mando dos coronéis.

Constituída por uma multiplicidade de laços matrimoniais (dentro e fora do grupo familiar), a parentela consolida uma rede de alianças entre famílias que se constitui em um importante capital social. Essa rede de relações interpessoais (baseada não somente no parentesco de sangue, mas nas afinidades e amizade entre parentes) se torna instrumento de poder a partir do qual exercem influência, coordenando várias esferas da vida: emprego, favores, acesso a instituições.

Os blocos de parentela se organizavam como segmentos de base familiar comandados por um líder pessoal, tendo na troca de favores o elemento constitutivo de sua composição. A parentela figura como o principal mecanismo de dominação da colônia e seu processo de transformação não ocorreu sem acomodações que garantiram, em certa medida, sua continuidade. Tais acomodações se processaram porque as parentelas, como forma de hierarquização complexa, já integravam atividades econômicas diversificadas (café, açúcar, criação de gado, cacau, comércio), apoiadas em investimentos variados, entre os quais o título acadêmico e as profissões liberais desempenharam papel fundamental e garantiram a entrada dos membros da parentela com alguma formação no Estado.

Dessa forma, com a urbanização e o processo de industrialização – que garantiu a entrada do capital estrangeiro – as parentelas já se haviam integrado no desenvolvimento industrial do país. Dominando a grande indústria, o comércio e o alto funcionalismo do Estado, as parentelas se mantiveram. A solidariedade entre os membros permaneceu. A solidariedade vertical, contudo, perdeu espaço e cresceu a solidariedade horizontal. Contribuiu para isso o aparecimento das organizações patronais (cooperativas, associações, federações) que surgiram para garantir os interesses dos grupos, reforçando a solidariedade horizontal. Para se manter, as parentelas precisaram unir forças e diminuir o peso dos conflitos internos e das rivalidades entre os chefes locais. Agora eles precisavam colaborar e a criação das associações de representação de classe constituiu um elemento fundamental de manutenção da sua existência e uma estratégia para diminuir a competição no interior das parentelas.

Além disso, a vida na cidade não extinguiu as relações familiares e afetivas, mas, ao contrário, reforçou-as. Foi especialmente na cidade que as relações familiares se tornaram mais frequentes e mais intensas. Portanto, mais do que “decadência da parentela”, como expressa Queiroz, somos desafiados a pensar em termos do processo de transformação das parentelas em redes de relações diversificadas que mantêm ainda os laços de solidariedade (Lewin, 1993). O valor heurístico que a noção de parentela carrega remete à ideia de que mais do que “família” como uma categoria universal, o que existe são relações de base familiar, as quais podem ser abertas, hierárquicas, verticais ou horizontais. E podem resultar tanto em alianças opostas (no caso de filhos desprovidos com herdeiras e filhas destinadas ao casamento político), quanto em alianças múltiplas (no caso de dois irmãos ou duas irmãs com irmãos de outra família). O entendimento da estrutura social e política depende da compreensão do princípio que está na base da parentela.

Considerações finais

Uma das grandes dificuldades e desafios, ainda persistentes, da sociologia brasileira consiste em propor uma agenda de pesquisa que pense o Brasil tanto em suas particularidades quanto além dele próprio. Um dos caminhos trilhados pela sociologia que se faz no Brasil, e mais especificamente por esse conjunto de autores mencionados neste artigo, tem sido uma disputa pela interpretação do Brasil e não mais diretamente por teorias ou conceitos que possam ser universalizáveis. Nesse sentido, o espaço sociológico brasileiro tem se caracterizado por um confronto entre explicações sobre o país e uma luta para demarcar conceitos que deem conta da realidade brasileira. Como exemplo disso, podemos citar o próprio termo “parentela”, “família extensa”, “democracia racial”, “capitalismo dependente”, “teoria da dependência”, dentre tantos outros. Portanto, é preciso sair do lugar seguro de especialista em autores e teorias estrangeiras – mobilizadas, em geral, para demarcar uma disputa interna – e ocupar a posição de interlocutores capazes de produzir algo que contribua para rever conceitos e pressupostos teóricos consolidados pelas ciências sociais. Numa alusão ao texto “a arte de resistir às palavras”, de Pierre Bourdieu (1983), precisamos desenvolver a arte de resistir aos modelos e pressupostos teóricos dados para chegarmos a uma sociologia de resistência.

É possível ler essas obras não apenas como fonte sobre os mecanismos de reestruturação das elites e suas configurações, mas, sobretudo, como formuladores de modos de compreensão sobre o mundo social, que possibilitam colocar em jogo as interpretações hegemônicas das sociedades, realizadas pelos países que assumem posição central, o projeto da modernidade. Desse modo, pensar o nacional pode e deve se apresentar como ferramenta para romper com as interpretações essencialistas produzidas tanto pelas sociedades centrais, quanto pelas ditas periféricas. A historicização das categorias que se apresentam como universais constitui um dos mais importantes passos em direção a uma postura autônoma. Ela constitui uma das principais ferramentas sociológicas de rupturas com o “essencialismo” e com falsos universalismos.

Quanto a isso, a noção de parentela permite compreender histórica e geograficamente as várias facetas dos grupos familiares dirigentes e sua composição. As análises permitem mostrar uma elite homogênea e flexível às mudanças, mas fragmentada e dividida nos conflitos pelo jogo político. Poderíamos falar de uma sociologia à brasileira, no sentido de que a sociologia é uma só, tendo em vista o princípio universalista que toda ciência moderna carrega. Mas, simultaneamente, ela é constituída por múltiplas versões que dependem do contexto a partir do qual elas se desenvolvem. Assim, as configurações sociais, específicas, fornecem a todo cientista social um dos principais recortes da realidade. Como afirma Peirano (1992), todo cientista social é um nativo da sociedade que estuda e as ciências sociais se desenvolvem a partir de problemas intelectuais concretos. Por isso, os estudos de campo a partir da ideia de parentela podem nos trazer uma nova forma de ver a composição das famílias dirigentes.

Desse modo, o conceito de parentela não se reduz a uma espécie de “jabuticaba” de um momento peculiar do caso brasileiro. Antes disso, ele se apresenta como uma importante contribuição heurística, que nos remete para o seu papel estruturante dos laços sociais e políticos. Nesse sentido, ele nos mostra, de maneira mais geral, o papel do sistema de alianças nas dinâmicas de emergência e de transformação dos grupos dirigentes. Tal conceito traz à tona elementos fundamentais para um deslocamento dos debates sobre as dinâmicas de constituição e de diferenciação das esferas sociais em situações como a brasileira, marcada pela interferência entre ordens de atividades distintas e autônomas (Petrarca & Oliveira, 2017). Isso nos direciona para uma atenção mais detalhada das condições e dos processos de diversificação das formas de dominação e de organização social e política e possibilita o desenvolvimento de “perspectivas não eurocêntricas” tanto na compreensão de sociedades como a brasileira quanto no ensino da história dos conceitos e das categorias sociológicas de entendimento de realidades deste tipo.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
1 Um balanço recente feito sobre a produção deste GT na ANPOCS pode ser encontrado em Brasil Jr., Jackson e Paina (2020)
2 Podemos aqui citar a contribuição dos pensadores sociais do final do século XIX e início do século XX como Euclides da Cunha, Nina Rodrigues e Silvio Romero, além do próprio movimento modernista que teve um papel essencial na definição da língua nacional e de uma literatura que tinha como objetivo resistir aos modelos importados e se definir como brasileira. Imbuídos do ideal de construir o Brasil a busca da cultura nacional se tornou evento inevitável.
Autor notes
Professor titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe (UFS), integrando os Programas de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) e Antropologia (PPGA).
Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe, integrando o Programa de Pós-Graduação em Sociologia.
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