RESUMO: O trabalho por plataforma vem se constituindo em uma forma de utilização do trabalho que se expande mundialmente nas últimas décadas. Criado a partir do desenvolvimento tecnológico que permitiu o uso de algoritmos para a designação de tarefas, ele rapidamente começou a ser utilizado pelas empresas como uma forma de eliminar os vínculos formais de trabalho e o acesso aos direitos trabalhistas por parte dos trabalhadores, de pagar baixas remunerações, paralelamente ao estabelecimento de um estrito controle sobre o trabalho desenvolvido. Todavia, como soe acontecer, essas características do trabalho não são determinadas inteiramente pela tecnologia, mas principalmente pelas relações de trabalho que se estabelecem entre trabalhadores e empregadores. Tanto é assim que, em muitos países, os trabalhadores vêm garantindo seu acesso a direitos e recebendo melhores remunerações do que em outros. Este texto se propõe a analisar as condições de trabalho de motoristas e entregadores por plataforma no Brasil e Argentina, de forma comparada, levando em consideração suas remunerações e acesso a direitos, bem como as lutas que eles vêm desenvolvendo para melhorar suas condições de trabalho.
Palavras-chave: Trabalhos de plataforma, controle do trabalho, algoritmo, desenvolvimento tecnológico.
ABSTRACT: Platform work has become a way of employing labor that has expanded worldwide in recent decades. Stemming from the technological development that allowed the use of algorithms for assigning tasks, it quickly began to be used by companies as a way to eliminate formal labor relations and access to labor rights by workers, to introduce low wages, alongside the establishment of strict control over the work. However, as often happens, these characteristics of work are not entirely determined by technology, but mainly by the work relationships that are established between workers and employers. So much so that, in many countries, workers have been guaranteeing their access to rights and receiving better wages than in others. This text proposes to analyze the working conditions of platform drivers and couriers in Brazil and Argentina, in a comparative way, taking into account their remuneration and access to rights, as well as the struggles they have been developing to improve their working conditions.
Keywords: Platform jobs, work control, algorithm, technological development.
RESUMEN: El trabajo en plataformas se ha convertido en una forma de utilización de la mano de obra que se ha expandido en todo el mundo en las últimas décadas. Creado a partir del desarrollo tecnológico que permitió el uso de algoritmos para la asignación de tareas, rápidamente comenzó a ser utilizado por las empresas como una forma de eliminar relaciones laborales formales y el acceso a derechos laborales de los trabajadores, de pagar bajas remuneraciones, y al mismo tiempo establecer un estricto control sobre el trabajo realizado. Sin embargo, como suele ocurrir, estas características del trabajo no están determinadas enteramente por la tecnología, sino principalmente por las relaciones laborales que se establecen entre trabajadores y empleadores. Tanto es así que, en muchos países, los trabajadores están garantizando su acceso a derechos y recibiendo mejores remuneraciones que en otros. Este texto tiene como objetivo analizar las condiciones laborales de los conductores y repartidores que trabajan en plataformas digitales en Brasil y Argentina, de manera comparada, teniendo en cuenta su remuneración y acceso a derechos, así como las luchas que vienen desarrollando para mejorar sus condiciones laborales.
Palabras claves: Trabajo en plataformas, control del trabajo, algoritmo, desarrollo tecnológico.
DOSSIÊ
O trabalho de plataforma no Brasil e na Argentina: uma visão comparada
Platform work in Brazil and Argentina: a comparative view
El trabajo de plataforma en Brasil y Argentina: una visión comparada
Recepção: 03 Junho 2023
Aprovação: 07 Novembro 2023
Brasil e Argentina têm vivenciado nos últimos anos (assim como vários outros países do mundo) um rápido processo de expansão do trabalho por plataformas digitais (De Stefano & Aloisi, 2019; Valente, 2021). Esse processo tem levantado uma série de problemas para os/as estudiosos/as do trabalho, na medida em que esse tipo de trabalho apresenta várias características que diferem daquelas até então conhecidas.
O trabalho mediado por plataformas digitais avançou com o desenvolvimento dessas plataformas – infraestruturas que permitem a dois ou mais grupos entrarem em contato (Srnicek, 2017, p. 43). Com elas, surgiram as empresas de plataforma, voltadas à intermediação entre trabalhadores e consumidores (Daugareilh et al., 2019), cuja função, “apesar dos diferentes setores em que atuam e arranjos que conformam, é o agenciamento de força de trabalho para indivíduos e empresas, viabilizando contratações de forma precária e driblando obrigações legais relacionadas a direitos” (Martins & Valente, 2023, p. 2). Embora a novidade do trabalho mediado por plataformas tenha provocado a curiosidade de pesquisadores/as, trazendo rapidamente à luz um conjunto bastante variado de investigações, há ainda muitas questões não esclarecidas tanto por sua recente aparição, como pelo fato de que as empresas não têm permitido a divulgação de dados relativos a seus negócios e a seus trabalhadores.
O trabalho por plataformas nasce com o avanço das tecnologias digitais e a introdução do machine learningque permite a tomada de decisões automatizadas (Benanav, 2020), ou seja, possibilita que a máquina tome decisões a partir de dados que lhe são fornecidos – como distâncias, horários, localizações, condições do trânsito etc. – de forma a colocar o trabalhador em contato com seus clientes, decidir sobre rotas a serem tomadas, calcular tempos, velocidades etc. Isso significa que o trabalho, agora realizado a partir de decisões recebidas de forma virtual, apresenta novas características, entre as quais vale destacar: 1) o trabalho continua a ser voltado à produção de mais valia, à acumulação de capital, com a diferença de que ele agora se exerce de outras formas; 2) os trabalhadores/as não trabalham mais em coletivos, como nas fábricas, fazendas ou grandes lojas, mas individualmente, em contato somente com dispositivos digitais que lhes dão ordens e os clientes a quem prestam serviço; essa questão é fundamental quando se pensa na resistência; 3) o controle do capital sobre o trabalho continua a existir, mas de maneira virtual e não mais presencial, ou seja, os dados, transmitidos em tempo real, do que está sendo feito e como está sendo feito pelos trabalhadores permitem que a empresa saiba se eles seguiram ou não as ordens emitidas; 4) os pagamentos passam a ser feitos por tarefa realizada e não mais por tempo de trabalho; 5) o trabalhador passa a ser considerado (embora de fato não seja) autônomo, uma vez que a subordinação, agora virtual, encobre o vínculo de trabalho.
Esse conjunto de transformações traz à tona, ao mesmo tempo, novas características do trabalho, como o controle virtual, ao lado de outras que estiveram presentes em momentos anteriores do desenvolvimento do capitalismo, como o pagamento por tarefa e o trabalho subordinado sem acesso a direitos. Nesse último caso, chama a atenção o fato de que não só as empresas, mas também os trabalhadores têm defendido o trabalho autônomo. Vale lembrar que a independência ou autonomia dos trabalhadores é enfaticamente assinalada pelas empresas, as quais insistem que seu papel não é de subordinação dos trabalhadores, mas apenas de colocar em contato trabalhadores independentes com seus consumidores e que, portanto, os trabalhadores são livres para trabalhar ou não, de acordo com suas decisões. Muitos estudos têm apontado a falsidade dessa interpretação (McDaid et al., 2023), tendo em vista que o controle continua a existir, seja pelo próprio uso dos algoritmos, seja pelas formas de gestão do trabalho que premiam os trabalhadores mais disponíveis com as melhores corridas. Os trabalhadores, entretanto, têm valorizado o que chamam de trabalho independente ou autônomo.
Assim sendo, uma primeira questão a ser aprofundada consiste na forma como o controle é exercido. Como é sabido, o controle sobre os e as trabalhadoras consiste num elemento central para o capital, desde os primórdios do capitalismo, tendo em vista que trabalhadores e patronato possuem interesses divergentes no processo de produção. Enquanto os primeiros buscam um ritmo de trabalho menos fatigante, os últimos procuram acelerar constantemente a produção, tendo em vista que a acumulação depende da produtividade do trabalho. Nesse sentido, o que observamos atualmente é a passagem do controle presencial, exercido por chefes, supervisores ou gerentes, para um controle virtual, exercido pelo algoritmo. Temos agora uma nova forma de subordinação que camufla o controle do capital sobre o trabalho. É a chamada subordinação algorítmica, na qual o controle sobre o trabalho se despersonaliza e passa a ser caracterizado por “uma sequência lógica, finita e definida por um conjunto de instruções dadas por ferramentas tecnológicas” (Fincato & Wünsch, 2020, p. 51). Esse novo tipo de controle, impessoal e ubíquo, fortalece uma imprecisa ideia de autonomia.
Essa discussão não é pouco relevante para os estudos sobre o trabalho, especialmente quando se considera que as formas de controle sobre os e as trabalhadoras estiveram desde sempre no coração desses estudos, tendo em vista sua centralidade para o capital e seus efeitos, via de regra, brutais sobre as condições de trabalho. A questão central nessa discussão consiste no fato de que essa nova forma de controle, a qual substitui o panóptico pelo algoritmo, embora assuste os estudiosos por sua semelhança com a figura do Grande Irmão que controla virtualmente todas as ações dos/as trabalhadores/as, pode trazer, contudo, um conteúdo menos indesejado do que o controle presencial, por ser impessoal. É possível pensar que, egressos maiormente de trabalhos precários exercidos na informalidade, enfrentando duras condições de trabalho e frequentes humilhações por parte das chefias, esses trabalhadores/as considerem sua situação no trabalho por plataforma como uma melhoria em relação a situações anteriores. Observe-se, entretanto, que a transparência nas decisões tomadas pelas empresas tem estado presente nas reivindicações.
Outra questão a ser discutida consiste na volta do pagamento por tarefa associado ao trabalho sob demanda. Esse tipo de remuneração foi muito utilizado nos primórdios do capitalismo, quando vigorava o putting out system (Marx, 1975, cap.12). Essa forma de pagamento, que elimina os tempos mortos e só remunera o trabalhador quando ele está efetivamente levando um cliente ou uma mercadoria a um determinado destino, não contabiliza como trabalho os tempos de espera, ou aqueles em que o trabalhador está se deslocando para encontrar o cliente ou recolher a encomenda a ser entregue. Isso significa a utilização de uma forma de remuneração que se expandiu num momento em que o trabalho era realizado nas residências dos trabalhadores, exercendo-se, portanto, sem o controle do capital. Essa forma de pagamento foi desaparecendo, conforme as fábricas foram se expandindo e os trabalhadores passaram a executar seu trabalho em espaços coletivos, sob o controle de chefes e supervisores. Todavia, como já vimos, o trabalho por plataforma não se desenvolve sem o controle do capital, mas sob uma nova forma de controle. Nesse sentido, lançamos aqui a hipótese de que a utilização dessa forma de pagamento é usada não apenas para não pagar os tempos mortos, mas também como um meio para reforçar a ideia de que os trabalhadores são autônomos, trabalham quando querem e, por isso, não podem ganhar por jornada de trabalho. O importante a ressaltar aqui é que, juntamente com a não regulamentação dos trabalhadores, o trabalho sob demanda permite um aprofundamento da subsunção real do trabalho (Abílio, 2017; Martins & Valente, 2023).
Brasil e Argentina são as duas maiores economias da América do Sul. Embora com dimensões e populações distintas, aproximam-se na complementaridade de seu parque industrial e na interligação de suas economias através do Mercosul. No Brasil, o número de trabalhadores de aplicativos chega a um milhão e meio, enquanto na Argentina esse número se aproxima de 190.000 pessoas. Não são dimensões quantitativamente comparáveis. Entretanto, é possível demarcar similitudes e diferenças na plataformização das atividades econômicas, nas formas de utilização do trabalho, nas políticas de desregulação crescente das relações entre capital e trabalho, assim como na resistência dos trabalhadores. Se, no Brasil, a imensa desigualdade social se manifesta num grande número de trabalhadores informais e precários que se multiplicam com a plataformização, essa precarização tem cor e raça, que é a cor da pobreza no Brasil: negra. Em todo caso, vale esclarecer que, embora estejamos conscientes das diferenças entre as estruturas trabalhistas, jurídicas e econômicas de Argentina e Brasil, não vamos aprofundar a discussão dessas diferenças, nem estabelecer uma comparação entre as tendências de plataformização nos dois países. Interessa-nos, especialmente, descrever o terreno em disputa em torno do reconhecimento da relação de trabalho da atividade e a interpretação que têm a respeito os próprios trabalhadores nos dois países. Em termos metodológicos, este artigo recupera pesquisas publicadas e /ou realizadas diretamente ou em colaboração pelos autores, tendo como referência Argentina e Brasil.
Essas são algumas das questões que abordaremos ao longo deste texto, o qual se divide em três tópicos, além desta introdução e da conclusão final. Um primeiro, voltado à discussão das plataformas enquanto um negócio; um segundo, dirigido à análise da regulação e das condições de trabalho e, por fim, um tópico dedicado a pensar a questão da resistência dos trabalhadores.
No Brasil, o transporte de passageiros por plataforma iniciou-se quando a Uber começou a operar na cidade do Rio de Janeiro, em 2014, em seguida em São Paulo e se espalhou por todo o país, atuando hoje em mais de 500 cidades. Outra plataforma ativa é a 99, que teve início como empresa que conectava motoristas de taxi com passageiros, a 99taxi, posteriormente transformada em plataforma similar à Uber. Em 2018, foi comprada pela chinesa Didi Chuxing. A Uber conta aproximadamente com um milhão de motoristas cadastrados e a 99 com 300.000. Outras plataformas similares surgiram e desapareceram no período. A brasileira EasyTaxi foi comprada pela espanhola Cabify, que chegou ao Brasil em 2016, mas encerrou suas operações em 2021 (Fairwork, 2022).
No setor de delivery, a brasileira iFood lidera o mercado. Surgida em 2011 e contando, a partir de 2018, com aportes de investimentos da também brasileira Movile, atua em mais de 900 cidades e dobrou sua atuação com a pandemia da Covid-19 e o isolamento social obrigatório, passando, em 2021, a mais de 30,6 milhões de pedidos, equivalentes a cerca de 80% dos pedidos de entrega de restaurantes. Além da iFood, temos a colombiana Rappi, desde 2017, que entrega todo tipo de encomendas, a Uber Eats, que encerrou suas atividades no país em 2022; a Loggi, da área de logística e a Amazon. A espanhola Glovo se instalou no país entre 2018 e 2019, mas não se adaptou ao mercado brasileiro (Fairwork Brasil, 2021).
Várias redes de lojas também abriram suas plataformas para vendas e entrega de produtos variados, conectando clientes com vendedores. Além dessas grandes plataformas, outras foram surgindo regionalmente, ou atendendo a nichos específicos de consumidores, no oferecimento de trabalhadores em diversos setores, como a GetNinjas que existe desde 2011, mas que expandiu suas atividades na pandemia, oferecendo pedreiros, pintores, profissionais de TI, mecânicos, e profissionais variados, acompanhada pela Helpie e a Parafuzo, focadas no trabalho doméstico, entre outras (Fairwork, 2022). Isso sem considerar as plataformas de crowdwork que não iremos abordar neste artigo.
Todas essas empresas de plataformas (com exceção das plataformas criadas por redes de lojas e/ou empresas físicas estabelecidas) se definem como empresas tecnológicas que prestam serviços de mediação entre prestadores de serviço e clientes e sem nenhuma regulamentação. Com isso, num contexto de forte crise econômica e política enfrentada pelo país nos últimos dez anos, sua expansão tem contribuído para o aprofundamento da precarização do trabalho. Isto porque, como intermediárias, não reconhecem qualquer relação de trabalho com os prestadores de serviços que mobilizam. Ao contrário, enaltecem a liberdade que oferecem, seja na escolha da jornada de trabalho, seja nos ganhos. Essa liberdade vai ao encontro do ideário empreendedor fortemente divulgado nos meios empresariais e governamentais em contraposição ao trabalho regular assalariado, objeto da reforma trabalhista de 2017 que flexibilizou as relações de trabalho, legalizando o trabalho intermitente e de autônomo exclusivo, eliminando direitos e valorizando a informalidade como modelo ideal.
No que se refere às características da força de trabalho, segundo dados do IPEA, estima-se que, no segundo semestre de 2022, havia 945,5 mil motoristas de aplicativos e taxistas e cerca de 383.000 entregadores, número este que decuplicou entre 2016 e 2022. O rendimento médio dos motoristas caiu 30% entre 2016 e 2022, sendo que o dos entregadores se manteve estável (Mazza & Buono, 2023).
A maioria dos entregadores são jovens, sendo que aproximadamente 77% têm menos de 40 anos; já entre os motoristas a situação é distinta, sendo que 54% têm mais de 40 anos. Manzano e Krein (2020), utilizando dados do IBGE e da PNAD Covid-19 apontavam que os trabalhadores dessas plataformas eram majoritariamente masculinos, mais de 90%, sendo 97% entre os motoboys. Os negros eram maioria, sendo 58,8% dos motoristas, 65% dos motoboys e 61% dos entregadores. Durante a pandemia, a jornada de trabalho era de mais de nove horas para 62% dos entregadores, segundo pesquisa realizada por Abílio et al. (2020). Para Manzano e Krein (2020), no período pré-pandemia, a jornada de trabalho de motoristas e entregadores durava, em média, 43 horas semanais. Silveira e Laat (2021), pesquisando trabalhadores de aplicativos em Belo Horizonte, indicam a diversidade na escolaridade desses trabalhadores: 56% com o ensino fundamental ou médio completo e 43% com ensino superior completo ou incompleto. Este é um indicador importante para caracterizar uma massa de trabalhadores, jovens em sua maioria, escolarizados, desempregados ou sem perspectiva de outro emprego, o que torna os aplicativos uma possibilidade mais atraente frente a empregos formais pesados e mal pagos.
Se considerarmos os bikeboys que atuam no delivery, pesquisa realizada em 2019 pela Aliança Bike apontou que 99% são do sexo masculino, 50% tinham até 22 anos e 75% até 27 anos. Eram majoritariamente negros (71%) e 53% tinham até o ensino médio completo. Cerca de 75% declararam trabalhar em torno de 12 horas por dia. Apesar de denúncias, é comum a utilização de menores nesse trabalho, embora esta seja vetada pela legislação brasileira. As empresas afirmam não aceitar menores, mas são comuns as fraudes nos cadastros (Muniz & Cícero, 2021; Alessi, 2019).
Não existem dados sobre trabalhadores imigrantes neste serviço, considerando que seu percentual na população do país não atinge 1%, sendo de 0,4% em 2019. Apesar do número crescente de entrada de imigrantes nestes últimos dez anos, o percentual ainda é pequeno considerando a Argentina, por exemplo.
Já na Argentina, as plataformas digitais de entregadores que hoje lideram o mercado começaram a operar no país entre 2017 e 2018, expandindo-se aceleradamente nos grandes centros urbanos do país. PedidosYa, criada no Uruguai em 2010, foi adquirida em 2014 pela multinacional alemã Delivery Hero, líder mundial em delivery online, ampliando desde então suas operações. Em 2020, a multinacional absorveu também as operações da plataforma de entrega catalã Glovo na América Latina. A empresa colombiana Rappi chegou ao país em 2018, expandindo-se exponencialmente desde então. No transporte de passageiros, a empresa norte-americana Uber começou a operar na Cidade de Buenos Aires em 2016 e, após enfrentar vários reveses judiciais, buscou expandir-se a distintas cidades do interior. Embora seja a plataforma com maior presença geográfica na Argentina, Mendoza é a única província que permite trabalhar com Uber de forma regulada. Em 2018, ingressa também no país a plataforma espanhola Cabify e, em 2020, a plataforma de origem chinesa DiDi; mais recentemente ingressaram empresas como Beat e Indriver (Haidar & Garavaglia, 2022).
Com a mesma estratégia de negócios, as plataformas de entrega que operam na Argentina – Rappí e Pedidos Ya – e as de transporte – Uber, Cabify, Beat e Didi – autodefinem-se como “empresas tecnológicas” para ocultar o vínculo de trabalho que realmente as une a seus trabalhadores. Operando como empregadores-sombra, essas empresas afirmam ser provedoras de uma ferramenta informática para conectar clientes com prestadores de serviços e, portanto, simples intermediárias. No mercado de trabalho argentino, caracterizado pelo persistente aumento da informalidade, do trabalho por conta própria e do subemprego, essas plataformas desenvolvem um papel ativo na proliferação de ocupações eventuais e precárias, que se apresentam como a única alternativa possível para os/as trabalhadores/as sem outras oportunidades de inserção no trabalho (Del Bono, 2023a).
Quanto às características da força de trabalho vinculada às plataformas digitais em nível nacional, contamos com os dados construídos a partir da Primeira Pesquisa sobre Trabalhadores de Plataformas (Madariaga et al., 2019). Segundo esse levantamento, os trabalhadores de plataformas eram cerca de 160.000, dos quais aproximadamente 133.000 correspondem a serviços físicos de baixa qualificação como Rappi, Pedidos Ya e Uber. Pouco precisas, essas cifras não distinguiam entre as pessoas que simplesmente se registram nas plataformas e as que realmente prestam serviços. Segundo estimativas mais atualizadas, realizadas a partir de declarações de Rappi e Pedidos Ya, em fins de 2022 havia no país 55.000 entregadores ativos, sendo 20.000 empregados de Rappi e cerca de 35.000 de PedidosYa. Quanto às plataformas de transporte de passageiros, segundo informação de Haidar e Garavaglia (2022), desde que a Uber começou a operar, em 2016, inscreveram-se 400.000 “sócios condutores” e estavam ativos, quando da pesquisa, aproximadamente 75.000 a cada mês. No caso de Cabify, a empresa contava nesse momento com cerca de 55.000 motoristas ativos. No que concerne a Beat, que começou a operar no país em 2019, contava com 100.000 condutores registrados e uma média de 10.000 ativos por dia; Didi, por sua vez, tinha 125.000 motoristas registrados.
Em relação ao perfil sociodemográfico dos trabalhadores das plataformas mencionadas, conforme a Segunda Pesquisa sobre Trabalhadores de Plataformas de 2021 (Garavaglia, 2022), contamos com a seguinte caracterização: no que tange à idade, há uma prevalência de trabalhadores jovens, especialmente no caso das plataformas de entrega, com uma população mais jovem do que entre os motoristas. Mais de 60% dos trabalhadores de plataforma de entrega possuem entre 18 e 29 anos. Nas plataformas de transporte de passageiros, os trabalhadores se distribuem majoritariamente nos intervalos de 30 a 40 e de 41 a 59 anos. No que se refere ao nível educativo geral, nas plataformas de entrega e transporte, 78% dos pesquisados têm pelo menos o secundário completo. A condição migrante é mais prevalente na atividade de delivery que na de transporte. Embora, em todas as plataformas, a nacionalidade predominante seja a argentina, os/as trabalhadores venezuelanos/as têm uma presença bastante significativa no serviço de entrega, fenômeno que não se registra no caso do Brasil, onde o elo mais débil que representa o trabalhador imigrante está personificado nos trabalhadores/as negros. A participação das mulheres nas plataformas é bastante baixa, ainda que algo maior que no caso brasileiro: enquanto é praticamente nula nas Apps de transporte, em Pedidos Ya e en Rappi, oscila entre 16 e 13 por cento, respectivamente.
Uma das razões mais frequentes para escolher o trabalho de plataformas é o fato de não encontrar outro trabalho, ainda que a relativa melhor remuneração em comparação com outras ocupações do setor de serviços e a flexibilidade horária também sejam fatores chaves (López Mourelo & Pereyra, 2020). Por um lado, aquelas pessoas que antes de trabalhar nas plataformas de delivery tinham ocupações informais ou com baixa remuneração e exigentes quanto aos gastos, carga e jornada de trabalho são as que estão mais satisfeitas com o que ganham com as entregas. Em geral, ganhavam a mesma coisa ou até menos nos trabalhos anteriores, trabalhando na informalidade e em atividades igualmente exigentes em termos de horas de trabalho e desgaste físico (Del Bono, 2023a). Na Argentina, como no Brasil e em outros países da região, as Apps funcionam como atividade refúgio para muitos trabalhadores, especialmente as plataformas de delivery. Durante a pandemia da Covid-19, a inserção na atividade se deveu, em muitos casos, à perda de um emprego assalariado (Del Bono, 2023a, p. 69).
No Brasil, marcado por histórica informalidade que raramente ficou abaixo de 50% da força de trabalho em atividade, a economia de plataforma, ou a gestão algorítmica do trabalho, veio contribuir para a ampliação da precariedade do mercado de trabalho. Segundo Manzano e Krein (2014), entre 1995 e 2008, a taxa de formalidade não ultrapassou 49%. A partir de 2009 houve um crescimento, chegando a 56% em 2012 e se mantendo a partir de então. Em 2022, a taxa de informalidade estava em torno de 40% (a taxa de informalidade corresponde a 40,1% da população ocupada ou 39,1 milhões de trabalhadores informais), ante 40,2% no trimestre anterior e 39,5% em igual período de 2021 (Rede Brasil Atual, 2022), mas com o aumento de formas precárias de vínculos possibilitada pela reforma trabalhista de 2017.
Não que o mercado formal não seja precário. Marcado por baixos salários, este mercado, desde sua regulação com a implementação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943, sempre foi excludente, estando restrito a trabalhadores urbanos. Em 1974 foi regulamentado pelo Decreto nº 73.626/74 e, em 1988, pelo artigo 7º da Constituição Federal, tendo sido permanentemente burlado pelo empresariado e com uma fiscalização dependente da boa vontade do governo de plantão. A partir dos anos 1990, com os governos neoliberais, várias reformas foram tentadas para flexibilizar a regulamentação das relações entre capital e trabalho, com o avanço dos processos de terceirização, limitação e eliminação de direitos vinculados ao trabalho, que tiveram seu ápice na reforma trabalhista de 2017 que desregulamentou fortemente o mercado.
As empresas de plataformas, apesar de formalmente entrarem no país a partir de 2014 (ou a partir daí terem visibilidade), já tinham modelos de operação anteriores que facilitaram sua transformação para a gestão algorítmica. Desde os anos 1990, cresceu exponencialmente a função de motoboys nas cidades brasileiras, resultante do caos urbano e da necessidade de entrega rápida de mercadorias. Pesquisas desse período já apontavam a precariedade das condições de trabalho, a falta de segurança nas cidades, o trânsito perigoso. Até então, os trabalhadores eram autônomos, informais ou contratados diretamente pelas empresas. Esses contratos foram desaparecendo com a ampliação das atividades das plataformas (Silva, 2009; Castro, 2010).
Com as plataformas, as relações de trabalho foram mudando de configuração, tendendo ao trabalho autônomo e sem acesso a direitos, embora exista, dependendo da plataforma, o reconhecimento de alguns direitos, especialmente os relacionados à saúde e segurança no trabalho. Manzano e Krein (2020) apontam que o aumento do índice de informalidade dos condutores de motocicletas, automóveis, taxis e caminhonetes passou de 67,0% no primeiro trimestre 2016 para 71,8% no primeiro trimestre de 2020. Deve-se observar que, naquele momento, os dados ainda não refletiam a transformação desses trabalhadores em essenciais durante a pandemia.
A gestão do trabalho através dos algoritmos pressupõe avaliações mútuas dos clientes e dos trabalhadores, podendo resultar em punições e desligamentos. O trabalhador é cadastrado, sendo gerenciado por um software instalado num smartphone, a empresa determinando as regras do jogo. A empresa não é a contratante e é intangível (Abilio, 2017). O único contato com a empresa é pelo smartphone. A empresa fica com um percentual dos serviços prestados e a liberdade da jornada é relativa: recusas podem levar a bloqueios e ao desligamento, assim como as avaliações dos clientes.
O debate sobre a regulação da atividade de trabalho por aplicativos encontra-se, no Brasil, frente à questão do que querem os trabalhadores. Numerosas pesquisas têm sido realizadas, principalmente durante a pandemia, período no qual os conflitos entre as empresas e os trabalhadores se avolumaram e aprofundaram, adquirindo grande visibilidade. A lógica empreendedora, entendida como a atitude disposicional do trabalhador por autonomia, autogerenciamento de si próprio, da inovação, da ruptura com padrões estabelecidos está presente nos discursos, embora não seja hegemônica, dado um contexto em que as opções coletivistas estão enfraquecidas (Lima & Bridi, 2019). De qualquer forma, em comum, aparece o discurso da liberdade de fazer a jornada que bem entender, de aceitar ou não tarefas, de não ter patrão. Esse discurso de autonomia se contrapõe a uma realidade de extensas jornadas, da eliminação de dia de descanso, de condições precárias de trabalho no dia a dia. No caso dos entregadores, por exemplo, a ausência de local de espera das chamadas, de sanitários, de intervalos ou locais para lanchar, dos riscos de assaltos e acidentes que ocorrem na rua. É o que Supiot (2000) chama de autonomia na subordinação, questionando a possibilidade dessa autonomia no capitalismo.
Para os que trabalham com bicicleta, as pesquisas na cidade de São Paulo acrescentam um elemento a mais: o trabalho se concentra nos bairros centrais da cidade, e os trabalhadores moram nas periferias em torno de 20 a 30km do centro. O deslocamento dos trabalhadores dos bairros onde moram é realizado por bicicleta (quando própria ou emprestada) – o que aumenta o cansaço – ou por transporte público (o que significa de uma a três horas de deslocamento). Outra possibilidade é o aluguel de bicicletas de empresas como o Itaú, que as alugam por dia, sendo que a cada uma hora precisam ser devolvidas e renovadas as permissões de utilização.
Outra estratégia de gestão foi desenvolvida pela iFood com a criação de dois tipos de cadastro: a nuvem, que mantém a forma tradicional das chamadas e não obriga o trabalhador a nenhuma exclusividade, e o Operador Logístico (OL), em que o entregador se vincula a uma pessoa jurídica contratada pela empresa, um líder responsável por administrar um grupo local de entregadores (Jacobsem, 2022), trabalhando com exclusividade para a plataforma. Segundo reclamações dos trabalhadores, essa forma de vinculação resulta em maior acesso a chamadas.
Existe uma concepção difundida entre parte dos trabalhadores de que um contrato regular engessaria a atividade e reduziria os ganhos. Assim, no movimento desses trabalhadores, outras possibilidades são elencadas e muito debatidas entre o meio jurídico, de pesquisadores e das lideranças desses trabalhadores, sobre qual solução atenuaria a precarização do trabalho.
Na Argentina, a expansão das plataformas digitais também coloca uma série de incertezas sobre o impacto que o fenômeno produziria no emprego e nas relações de trabalho. Destaca-se, nesse sentido, a centralidade que adquire o trabalho precário nas novas atividades de serviços mediadas por plataformas. Este fato traz a necessidade de contar com novas regulações do trabalho para garantir a proteção das pessoas trabalhadoras e para superar o desajuste entre as regulações atualmente existentes e as novas formas de trabalho ligadas às transformações produtivas e organizativas geradas pela digitalização do mundo do trabalho (Bensusán, 2017; Baylos, 2022).
Pontualmente, nas plataformas de entrega e mobilidade, a principal problemática que se coloca se refere às condições de trabalho (Lima & Bridi, 2019). A gestão algorítmica que implementam as plataformas de entrega, em especial as de delivery, estende-se para além da simples programação do tempo de trabalho. As pessoas trabalhadoras experimentam uma contínua vigilância de seu desempenho, além da avaliação de clientes e da implementação automática de decisões que as priva de oportunidades de retroalimentação, discussão e negociação. Portanto, ainda que possam decidir sobre aspectos importantes de sua tarefa, como a extensão da jornada de trabalho, não deixam de estar inseridas em um sistema que organiza e qualifica a atividade que realizam, o que termina tornando irreais os slogans com os quais as plataformas publicizam sua organização do trabalho: “ganhe dinheiro e continue disfrutando de sua família e amigos”, “reparta seu tempo entre seus estudos, trabalho ou qualquer outra atividade”, “seja seu próprio chefe”. A contradição entre uma suposta flexibilidade de horários e o trabalho que realmente se impõe fica patente quando se consideram os mecanismos de controle dos algoritmos, apoiados em sistemas de pontuação e prêmios. Todavia, a ideia de “desconectar-me ou conectar-me quando quero” aparece como um dos maiores atrativos do trabalho. Conforme revelam as entrevistas que temos realizado (Del Bono, 2023b), assim como no caso brasileiro, o fato de poder escolher dias, turnos e horários de trabalho acaba gerando uma sensação de liberdade de escolha que se traduz em uma aceitação dos postulados do empreendedorismo.
A falta de garantias sobre quanto se conseguirá trabalhar realmente, já que somente as melhores pontuações nos rankings permitem gerir com eficiência os dias de trabalho (e tais pontuações dependem de longas jornadas de trabalho, da não rejeição de pedidos e de seguir à risca as decisões tomadas pelo aplicativo), exige manter um ritmo intensivo, o que torna frequentes as jornadas de nove ou dez horas (Darricades & Fernández Massi, 2021). Junto com o aumento das horas de trabalho, incrementam-se também os roubos e sinistros na via pública, especialmente recorrentes entre as pessoas que trabalham em plataformas de entrega. Quanto à recompensa econômica, ademais de não ser constante, não se pode estimar previamente qual será a remuneração que o tempo disponível na plataforma permitirá obter.
Na Argentina, quem trabalha em plataformas de entrega e mobilidade precisa cumprir com a condição solicitada pelas empresas de estar inscritos no “Régimen Simplificado para Pequeños Contribuyentes”1 ou “Monotributo”, o qual lhes garante mínimos direitos previdenciários e um nível de proteção social muito baixo. Ao contrário das plataformas no Brasil, na Argentina se exige essa condição; de qualquer forma, o risco da atividade segue recaindo sobre os trabalhadores, que custeiam os gastos de uma cota fixa mensal para assegurar um acesso básico à proteção social. Com este tipo de enquadramento, a relação de trabalho se transforma em uma relação comercial de um trabalhador independente que presta serviços às empresas.
Este tipo de relação de serviços e a natureza do vínculo que se estabelece entre as plataformas e seus trabalhadores é altamente controverso já que são numerosos os indicadores de existência de relação de subordinação do trabalho. As plataformas de entrega e de mobilidade prestam um serviço específico; insertam-se em um setor concreto; estabelecem sistemas de retribuição; incidem no preço do serviço que se presta; determinam processos de seleção e de controle algorítmico e um sistema de retroalimentação das opiniões dos clientes. Tudo isso configura um vínculo de subordinação das pessoas trabalhadoras, que coloca em questão o caráter independente de sua vinculação com as plataformas (Todolí Signes, 2015). Entretanto, embora haja uma tendência na jurisprudência para a regulamentação de normas legais que reconheçam o vínculo de subordinação dos trabalhadores com relação às plataformas e seus correspondentes direitos individuais e coletivos, o trabalho mediado por plataformas segue carecendo de regulação na Argentina.
De fato, existem duas posturas contrapostas em torno ao modo em que deveriam ser reguladas as plataformas de trabalho baseadas na localização (Diana Menéndez, 2021a) – a dos que creem não haver qualquer impeditivo jurídico à inclusão da proteção dos que trabalham na entrega por aplicativo na Ley de Contrato de Trabajo (LCT: 20.744); e a daqueles que, sublinhando os indicadores que excluem esses trabalhadores da lei trabalhista, alegam a necessidade de se criar uma regulação específica para o trabalho de plataformas, com forma de estatuto. Lamentavelmente, os acordos básicos entre os atores que sustentam cada uma dessas posições não têm sido possíveis até o momento. Essa dificuldade ficou clara por ocasião da apresentação a debate do anteprojeto de lei “Estatuto del Trabajador de Plataformas Digitales Bajo Demanda”, a cargo do Ministério de Trabalho, Emprego e Seguridade Social em maio de 2020, que não conseguiu, até o momento, os consensos necessários para avançar.
No Brasil, a atuação das plataformas tem encontrado resistências que assumiram grande dimensão durante a Covid-19, pelo caráter essencial que assumiram as atividades dos motoristas e entregadores num contexto de isolamento social. Os resultados, até agora, embora restritos, refletem alguns avanços.
Em geral, os movimentos reivindicativos desses trabalhadores centraram-se na melhoria das condições de trabalho, não havendo registro da demanda de contrato de trabalho no sentido estabelecido pela CLT. Entre as reivindicações destacam-se a melhoria das condições de trabalho, com oferta de equipamentos de proteção e seguro contra acidentes cobrindo o período em que estariam inativos, entre outros.
Os trabalhadores/as também têm desenvolvido redes de solidariedade utilizando as redes sociais em grupos no Facebook e no Whatsapp, socializando experiências, com dicas sobre oportunidade de trabalho, manutenção de veículos, locais para recebimentos de chamadas, assistência a colegas em situação de vulnerabilidade. Isso tem possibilitado o apoio e a adesão às mobilizações e a construção de espaços alternativos que, em certa medida, têm conseguido driblar o controle das plataformas (Jacobsem, 2022; Mendonça et al., 2022). No geral não demonstram muito entusiasmo com sindicatos e associações formais, embora haja grupos mobilizados nessa direção. Isso pode ser atribuído à própria fragmentação da categoria e ao desgaste das organizações sindicais, às quais atribuem pouca vinculação com as bases (Jacobsem, 2022).
Produziram também grandes manifestações, como o Breque dos apps, em julho de 2020, e paralisações a partir de então, as quais não apresentaram demandas sobre formalização, mas reivindicações pontuais sobre normas de segurança frente à pandemia, saúde e auxílio financeiro, bem como proteção mínima. Segundo Cardoso, Artur e Oliveira (2020, p. 216), essas reivindicações iam do mais básico como água potável, banheiro e local para carregar os telefones, passando por melhoria no valor do frete, aumento da taxa mínima para cada corrida e ticket alimentação, ao questionamento da gestão unilateral e obscura realizada pelas plataformas. Tal questionamento incluía: fim dos bloqueios indevidos, fim da pontuação, da avaliação unilateral e transparência nesses processos. Outro bloco de reivindicações voltado à redução da insegurança no trabalho destacava: seguro de vida e contra acidentes e roubos, além do fornecimento de equipamentos de proteção frente à Covid-19.
Para Abílio (2022, p. 151), a partir de entrevistas com entregadores, haveria entre eles distintas perspectivas acerca do emprego formal, que consideram tão ou mais precário do que o que eles vivenciam, em termos de injustiças, exploração e insatisfação. As empresas, por sua vez, defendem o cadastro dos trabalhadores como microempreendedores individuais, o que garantiria a legalidade da relação, eximindo-as de custos e responsabilidades (Abilio, 2022). Mas, tem ocorrido algum avanço nas negociações, conforme registra o Fairwork Report Brazil (2022): a plataforma 99 evidenciou a relação do valor da hora trabalhada vinculada ao salário mínimo; b) a Uber e a 99 desenvolveram projetos para proteger os trabalhadores, como a eliminação de barreiras de acesso, o fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPI) e apólices de seguros; a Uber tornou mais clara sua política de desativação; c) a iFood tornou os termos de adesão ao contrato na empresa mais claros e criou o Fórum de Entregadores com suas lideranças como forma de diálogo. Esses avanços, embora longe de ser suficientes, resultaram da pressão e lutas de trabalhadores/as.
Outras alternativas vêm sendo buscadas a partir do movimento de caráter internacional do chamado “cooperativismo de plataforma”, que se baseia em experiências internacionais realizadas a partir de greves em cidades europeias e norte americanas. No Brasil, cooperativas e associações têm sido organizadas em diversas cidades pelos trabalhadores, ou mesmo prefeituras, na construção de aplicativos que cobram menos taxas dos trabalhadores/as. Essas cooperativas e associações, que visam o controle dos trabalhadores sobre a gestão das plataformas, também assumem um caráter duplamente alternativo seja em sua composição – só mulheres ou população trans –, seja na localização em que atuam: as periferias das cidades nas quais não chegam, por insegurança, as grandes plataformas. Destaque-se, também, aquelas que se preocupam com a sustentabilidade ambiental, selecionando em suas entregas produtos ecologicamente sustentáveis (Grohmann, 2022). Mas ainda são experiências pontuais, que apontam para possibilidades de resistência. Deve-se lembrar que as experiências cooperativas existem desde o século XIX, sem, contudo, terem se consolidado como opção ao trabalho sem vínculo, ou precário. Outro elemento a considerar é que o cooperativismo pressupõe uma ideia de trabalho coletivo e compartilhado em seus ganhos o que se contrapõe frontalmente com o ideário do empreendedor individual, difundido não apenas pelas empresas de plataforma, mas generalizado na sociedade através de políticas públicas de incentivo a esses valores mais condizentes com o ideário neoliberal dominante.
A forma em que se organiza o trabalho nas plataformas digitais compromete o papel da organização sindical como representante dos trabalhadores/as e como instância de mediação ante as empresas. Frente ao modo renovado de exploração do trabalho que a gestão algorítmica promove, cabe o interrogante sobre a capacidade que retêm os sindicatos para “equilibrar” a inédita assimetria entre capital e trabalho que o capitalismo de plataformas impulsiona.
Contudo, no caso argentino, distintos estudos (Ottaviano, 2019; Haidar et al., 2020) demonstram que a precariedade em que trabalham entregadores e motoristas não é um obstáculo incontornável para o surgimento de formas diversas de organização – com epicentro na Cidade e Província de Buenos Aires –, apesar das limitações que existem para avançar no sentido de uma construção coletiva.
No trabalho de transporte e entrega mediado por plataformas existem certas dificuldades objetivas que incidem negativamente na organização coletiva dos trabalhadores – dispersão geográfica, alta rotação, atomização gerada pela natureza individual do processo de trabalho, inexistência de um lugar comum de trabalho. Nesse contexto, os trabalhadores/as consideram majoritariamente que criar algum tipo de organização para expressar demandas seria complexo (Del Bono, 2023b). Sobre este ponto, os trabalhadores/as expressam apatia e falta de interesse por tudo que se pareça a uma organização gremial clássica. Segundo nossas pesquisas, o desinteresse pela atividade sindical está associado com a “liberdade” que propõem as plataformas para organizar o trabalho e com o fato de contar com a possibilidade de estender as jornadas de trabalho para aumentar seus ingressos; com essa perspectiva, eles desconfiam das instâncias que regulem e reduzam essa possibilidade. Desde a entrega de comida por Rappi ou PedidosYa até o serviço de transportes de Uber ou Cabify, em todo o espectro, os trabalhadores aspiram a manter sua independência e autonomia para modular sua dedicação em função de suas necessidades pessoais.
Todavia, como já mencionado, esta posição não chega a ser hegemônica; por exemplo, no caso das plataformas de delivery, têm-se organizado reiteradamente protestos reclamando medidas de seguridade, dirigidos tanto às empresas como aos municípios das cidades em que trabalham; os acidentes graves ou roubos violentos são os detonadores dessas manifestações que se organizam por meio de grupos de Facebook e de WhatsApp. Frente à ausência de respostas das plataformas, os riders se organizam por meio de redes de comunicação informais e de canais de proteção e segurança que autogestionam a partir de seus telefones celulares e que utilizam para compartilhar informação que os ajude a se cuidar entre si. Durante a pandemia, estas experiências e interações se fortaleceram e se constituíram em estratégias de ação utilizadas por trabalhadores/as para fazer frente e mitigar as consequências negativas da ausência de condições de segurança. Criaram-se, assim, movimentos de reivindicações regionais e globais que emergem como ações organizativas horizontais, as quais conformam uma experiência coletiva solidária.
Nesse contexto, surgiram na Argentina novos experimentos organizativos, ao mesmo tempo que outros, já existentes, se fortaleceram e ganharam dinamismo. Diana Menendéz (2021b) recupera a experiência de consolidação da ATR (Agrupación de Trabajadores de Reparto), associada ao Partido Obrero, que, embora existisse desde antes da pandemia, mostrou grande dinamismo durante o período da quarentena. Mais recente é a organização do coletivo SITRAREPA (Sindicato de Base de Trabajadores de Reparto por Aplicación), vinculado ao partido de esquerda Nuevo MAS. Criado no marco da pandemia, aposta na forma sindical como modalidade de organização, motivo pelo qual apresentou, em meados de 2021, seu pedido de inscrição sindical no Ministério do Trabalho. Finalmente, vale destacar a experiência da “Alianza Unidos World Action”, que, sendo ainda incipiente, se apresenta como uma tendência internacional com possibilidade de fortalecimento, já que corresponde ao tipo de negócio global dessas empresas. A rede realizou cinco greves internacionais entre abril de 2020 e novembro de 2021, desenvolvendo ações comuns de desconexão e mobilização em distintos lugares do mundo.
Ainda que os obstáculos e limitações para avançar na organização dos trabalhadores de plataformas de serviços sejam muitos e complexos de contornar, existem mostras de ações de resistência e experiências de organização, tanto na Argentina, como no plano regional e internacional. Entre elas, algumas constroem articulações com sindicatos preexistentes, outras emergem com a intenção de se converterem em sindicatos reconhecidos para a atividade e outras ainda representam agrupações de base, com maior ou menor nível de politização das relações de trabalho (Haidar et al., 2020).
Por fim, podemos dizer que, realizando atividades que não lhes garantem acesso a direitos, pressupõem extensas jornadas de trabalho e são pagas com baixos valores, por tarefa realizada, o trabalho por plataforma de motoristas e entregadores é precário, extenuante, perigoso e mal pago. Temos, portanto, mais uma vez, o capitalismo se utilizando de novas tecnologias para subordinar e explorar ainda mais o trabalho, recriando o paradoxo analisado por Marx ao discutir o advento da maquinaria e da grande indústria, em que, embora o desenvolvimento tecnológico permita aumentar a produtividade (e com ela, hipoteticamente, diminuir a jornada de trabalho), é usado pelo capital como forma de transformar o tempo vital do trabalhador em tempo de trabalho disponível para a valorização do capital (Marx, 2021, p. 497).
Assim como nos primórdios do capitalismo industrial, com o advento da maquinaria, temos novamente, junto com o desenvolvimento tecnológico, uma degradação das condições de trabalho, um aumento do controle sobre os trabalhadores, extensas jornadas de trabalho e uma baixa remuneração pelo trabalho efetuado, ainda que esse mesmo avanço tecnológico permita um aumento da produtividade do trabalho e, em consequência, do lucro das empresas. Temos também a negação de direitos trabalhistas e previdenciários aos trabalhadores, num verdadeiro processo de involução social.
Vale sublinhar, portanto, a contradição entre a ideia de autonomia e o aumento do controle sobre o trabalho que a tecnologia permite às empresas (Abílio, 2019; McDaid et al., 2023). Que autonomia têm os trabalhadores, se não sabem, quando aceitam uma corrida ou uma entrega, para onde vão e têm uma possibilidade limitada de cancelar? Que independência possuem os trabalhadores se não sabem, quando aceitam uma corrida, nem sequer quanto ganharão pelo trabalho?
Nesse sentido, uma questão a ser discutida – apresentada tanto no caso argentino, como no brasileiro – consiste no baixo interesse, quando não na recusa explícita dos trabalhadores, do trabalho regular com contrato formal, com acesso aos direitos trabalhistas e previdenciários – o que vem surpreendendo pesquisadores/as. Levando em consideração que grande parte desses trabalhadores afirma conseguir ganhar mais trabalhando por aplicativo do que como empregado (registrados ou não), temos duas conclusões importantes a retirar: a primeira é a evidência da desestruturação dos mercados de trabalho nos dois países; trata-se de trabalhadores que, muitas vezes, mesmo com diploma superior, ganham muito mal e enfrentam duras condições de trabalho, seja no mercado formal, seja no mercado informal. A segunda é que, trabalhando sem registro, eles têm a liberdade de estender as horas de trabalho além da jornada regular, de forma a aumentar suas retiradas, o que os leva a trabalhar regularmente durante nove ou dez horas diárias, quando não mais, normalmente sem descanso semanal, ou com apenas um dia de descanso durante a semana. Trata-se, nesse sentido, de uma relação de trabalho que se apoia numa autoexploração do trabalhador/a, de forma a garantir ganhos superiores à média que ele ou ela conseguiria obter no mercado – médias, aliás, bastante próximas do salário mínimo e insuficientes para garantir a sobrevivência de uma família. Isso explicaria, também, ao menos em parte, a postura antisindical seguida por boa parte dos motoristas e entregadores: identificados tradicionalmente como entidades de defesa dos princípios da legislação trabalhista, os sindicatos não poderiam evidentemente ser abraçados por trabalhadores que necessitam desrespeitá-la para garantir remunerações mais altas do que as encontradas regularmente no mercado de trabalho. Evidentemente, isso não significa que a propalada autonomia, defendida pelas empresas e por muitos trabalhadores, não seja em si um fator importante para esses últimos; significa apenas que a situação é mais complexa do que o discurso da autonomia e do empreendedorismo pode fazer crer.
Por outro lado, é preciso considerar que a defesa da autonomia não tem impedido motoristas e entregadores dos dois países de se manifestarem por melhores condições de trabalho, como vem ocorrendo desde a pandemia. Entregadores, especialmente, vêm passando “dos problemas às reivindicações”, gerando deslocamentos da representação de si mesmos da figura do empreendedor à de trabalhador de plataformas.
Outra questão importante a considerar consiste na expansão, bastante evidente no caso brasileiro, para outros setores da economia, o que vem ocorrendo rapidamente e que tem sido acompanhada pela expansão da degradação do trabalho para outros setores, provocando um amplo e rápido processo de precarização em muitos setores da economia (Martins & Valente, 2022). Embora existam atividades que provavelmente nunca deverão ser mediadas por plataforma, há muitas que poderão a ela se adaptar, promovendo um processo mais generalizado do que vem se convencionando chamar de uberização.2
Nesse sentido, a regulamentação do trabalho por plataforma torna-se urgente, sob pena de observarmos um processo ainda mais amplo de degradação do trabalho. Essa regulamentação não pode ser feita, contudo, sem que os trabalhadores/as de plataforma sejam ouvidos.
Uma última discussão a ser feita consiste na comparação entre Brasil e Argentina no que concerne ao vínculo de trabalho e seus efeitos sobre as condições de trabalho. A principal diferença entre a forma de contratação dos trabalhadores nos dois países radica na possibilidade, no caso brasileiro, vedada no caso argentino, de que os trabalhadores/as possam incorporar-se às empresas sem qualquer tipo de registro fiscal ou de seguridade social. Na verdade, as pesquisas não parecem trazer, ao menos por enquanto, diferenças significativas na maneira como o trabalho é organizado e como ele vem sendo vivenciado pelos trabalhadores e trabalhadoras nos dois países. Em comum, como dissemos anteriormente, a precariedade das condições de trabalho.
Para finalizar, seria importante deixar registrada a complexidade dos trabalhos mediados por plataformas, a qual torna pouco úteis as ideias de empreendedorismo, tão propaladas pelo individualismo que marca a nova cultura do trabalho. O individualismo exacerbado presente no conceito de empreendedorismo atua como suporte ideológico de um neoliberalismo que exclui qualquer ação coletiva, ou qualquer saída fora do arcabouço darwinista em que se baseia. Junta-se a isso, como aponta Sadin (2018), que esse novo momento do capitalismo vem marcado por um otimismo em relação ao desenvolvimento tecnológico, por uma volta à crença no progresso ilimitado e por um desprezo ao que é propriamente humano, sublinhando a eficácia do algoritmo para a tomada de decisões. Trata-se, nesse sentido, de uma recuperação da ideia do tecnolibertarismo, ou seja, de que a libertação da humanidade não depende mais do embate social, mas do próprio desenvolvimento da tecnologia. Uma antiga supervalorização do papel da tecnologia na solução dos problemas da humanidade que ocorre sempre que há um salto tecnológico e que é continuamente desmentida com a rápida visibilização dos problemas que a tecnologia traz consigo ao ser utilizada apenas com a intenção de aumentar a acumulação de capital.