DOSSIÊ
O que resta da subjetividade: sono, depressão e outras “resistências passivas” à subjetivação capitalista
What’s left of subjectivity: sleep, depression and other “passive resistances” to capitalist subjectivation
Lo que queda de la subjetividad: sueño, depresión y otras “resistencias pasivas” a la subjetivación capitalista
O que resta da subjetividade: sono, depressão e outras “resistências passivas” à subjetivação capitalista
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 11, núm. 29, pp. 177-200, 2023
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepção: 31 Outubro 2023
Aprovação: 06 Dezembro 2023
RESUMO: Diversas perspectivas teóricas sustentam que a lógica sistêmica do capitalismo contemporâneo depende, no seu funcionamento cotidiano, de formas particulares de subjetividade. Da indústria midiática de conteúdo “motivacional” até o recurso a psicofármacos como instrumentos de otimização da própria conduta, são múltiplos os “dispositivos” mediante os quais os indivíduos buscam corresponder aos modelos de individualidade requeridos pelo capitalismo atual. A linguagem foucaultiana da “produção de subjetividades”, cujos méritos analíticos despontam em variados estudos sobre a “governamentalidade” neoliberal, tem razão em sublinhar o grau em que os modos de agir, pensar e sentir das subjetividades individuais são moldados por aqueles dispositivos na contemporaneidade. Por outro lado, fenômenos como o sono, o doping e a inação depressiva mostram que aqueles dispositivos subjetivantes encontram “protestos” orgânico-psíquicos e “resistências passivas” na própria subjetividade que procuram moldar. Mapeando tais dinâmicas conflitivas entre dispositivos e resistências, o artigo percorre quatro eixos argumentativos, cada um dos quais privilegiando uma contribuição autoral particular: as reflexões de Alain Ehrenberg sobre o recurso a drogas de alteração do estado de consciência como instrumentos de otimização do desempenho na “sociedade do doping”; as cogitações de Jonathan Crary sobre o sono como obstáculo à colonização completa da subjetividade pelo imaginário capitalista da atividade ininterrupta; a interpretação sistêmica e política da depressão como efeito estrutural do “realismo capitalista” formulada pelo crítico cultural Mark Fisher; e, finalmente, a análise da psicopatologia como “protesto” levada a efeito pela filósofa feminista Susan Bordo, central para a apreensão da ambiguidade inerente às “resistências passivas” discutidas no trabalho.
Palavras-chave: Capitalismo, subjetividade, sono, doping, depressão.
ABSTRACT: As authors of different theoretical persuasions have argued, the systemic logic of contemporary capitalism is dependent upon particular forms of “subjectivity” or “individuality”. From the media industry of “motivational” content to the use of drugs as instruments for enhancing one’s competences, there is a variety of social “dispositifs of subjectivation” (Foucault) through which individuals attempt to correspond to the models of individuality which are required and valued by capitalism nowadays. On the one hand, a Foucaldian language of “subjectivation” and the “production” of subjectivities is right in underscoring the degree to which the ways of acting, thinking and feeling of individual subjectivities are shaped by those dispositifs. On the other hand, an analysis of phenomena such as sleep (as interpreted by Jonathan Crary), the resort to doping (as interpreted by Alain Ehrenberg) and depression (as interpreted by Mark Fisher) show that those dispositifs of subjectivation encounter organic-psychic “protests” and “passive resistances” in the very subjectivity they attempt to shape. Mapping such conflictual dynamics between disposifits and resistances, the article covers four argumentative axes, each one privileging a particular authorial contribution: Alain Ehrenberg’s reflections on the resort to consciousness altering drugs as instruments for enhancement of one’s performance in the “doping society”; Jonathan Crary’s cogitations on sleep as an obstacle to the complete colonization of subjectivity by the capitalist imaginary of endless activity; the systemic and political interpretation of depression as a structural effect of “capitalist realism” formulated by the cultural critic Mark Fisher; and, finally, the analysis of psychopathology as “protest” undertaken by the feminist philosopher Susan Bordo, which is central for apprehending the ambiguity that is inherent to the “passive resistances” discussed in the paper.
Keywords: Capitalism, subjectivity, sleep, doping, depression.
RESUMEN: Varias perspectivas teóricas sostienen que la lógica sistémica del capitalismo contemporáneo depende, en su funcionamiento cotidiano, de formas particulares de subjetividad. Desde la industria mediática de contenidos “motivacionales” hasta el uso de psicofármacos como instrumentos para optimizar la propia conducta, existen múltiples “dispositivos” a través de los cuales los individuos buscan corresponder a los modelos de individualidad que exige el capitalismo actual. El lenguaje de Foucault sobre la “producción de subjetividades”, cuyos méritos analíticos emergen en varios estudios sobre la “gubernamentalidad” neoliberal, tiene razón al resaltar el grado en que las formas de actuar, pensar y sentir de las subjetividades individuales están moldeadas por esos dispositivos en la contemporaneidad. Por otro lado, fenómenos como el sueño, el dopaje y la inacción depresiva muestran que esos dispositivos subjetivadores encuentran “protestas” orgánico-psíquicas y “resistencias pasivas” en la propia subjetividad que buscan moldear. Al mapear estas dinámicas conflictivas entre dispositivos y resistencia, el artículo cubre cuatro ejes argumentativos, cada uno de los cuales privilegia una contribución de una determinada autoría: las reflexiones de Alain Ehrenberg sobre el uso de drogas para alterar el estado de conciencia como instrumentos para optimizar el desempeño en la “sociedad del dopaje”; los pensamientos de Jonathan Crary sobre el sueño como obstáculo a la colonización completa de la subjetividad por el imaginario capitalista de actividad ininterrumpida; la interpretación sistémica y política de la depresión como un efecto estructural del “realismo capitalista” formulada por el crítico cultural Mark Fisher; y, finalmente, el análisis de la psicopatología como “protesta” realizado por la filósofa feminista Susan Bordo, central para comprender la ambigüedad inherente a la “resistencia pasiva” discutida en la obra.
Palabras clave: Capitalismo, subjetividad, sueño, dopaje, depresión.
Introdução1
Diversas perspectivas convergem na tese de que a lógica sistêmica do capitalismo contemporâneo depende, no seu funcionamento cotidiano, de formas particulares de “subjetividade” ou “individualidade”. Da indústria de mensagens motivacionais até o recurso a psicofármacos como instrumentos de otimização da própria conduta, são muitos e múltiplos os “dispositivos” (Foucault, 1988, p. 73) mediante os quais os indivíduos buscam corresponder aos modelos de individualidade requeridos e valorizados pelo capitalismo atual. Por um lado, a linguagem foucaultiana da “subjetivação” e da “produção” de subjetividades (1977, p. 218), cujos méritos analíticos despontam em variados estudos sobre a “governamentalidade” neoliberal (Foucault, 2008; Rose, 1999), tem razão em sublinhar o grau em que os modos de agir, pensar e sentir das subjetividades individuais são moldados por aqueles dispositivos na contemporaneidade. Por outro lado, uma análise de fenômenos como o sono, o recurso ao doping e a inação depressiva mostram, a contrario, que aqueles dispositivos subjetivantes encontram “resistências passivas” na própria subjetividade que procuram moldar.
Como um mapeamento exploratório das dinâmicas conflitivas entre a subjetivação capitalista e suas resistências passivas na subjetividade individual, o artigo possui quatro partes. Primeiramente, analiso as reflexões de Alain Ehrenberg sobre o recurso a drogas voltadas à otimização das próprias competências em realidades competitivas. Em segundo lugar, visito a discussão de Jonathan Crary sobre o obstáculo que a “inutilidade” do tempo de sono individual, exigência orgânica (ainda) incontornável, representa para um capitalismo alimentado pelo imaginário da atividade ininterrupta. Em seguida, passo à leitura sistêmica e política da depressão proposta pelo crítico cultural Mark Fisher, discutindo as ambivalências inerentes à sugestão de que a depressão teria (ou deveria ter) um status ético-político. Nas partes conclusivas do artigo, tal discussão é entrecruzada às reflexões da filósofa Susan Bordo acerca de sofrimentos psicopatológicos como formas de “protesto”.
As recalcitrâncias ineficazes do corpo natural: Alain Ehrenberg e a sociedade do doping
As tendências individualizantes da modernidade tardia (Bauman, 2001) não abrigam somente uma faceta “destrutiva”, como o desmonte do estado de bem-estar e a flexibilização do trabalho, mas também uma faceta “afirmativa”: as diversas ideologias e dispositivos que as sociedades moderno-tardias oferecem, ainda que de maneiras marcadamente desiguais, aos indivíduos investidos na construção de si em resposta às suas condições históricas de existência. Combinar os vocabulários da “ideologia” e do “dispositivo” é um modo de salientar a diversidade de roupagens fenomênicas de que se revestem os suportes sociais da autorrealização individual, os quais misturam o ideacional ou representacional (p.ex., um imaginário empreendedorista reproduzido nas literaturas gerencial e de autoajuda) ao material ou técnico (p.ex., aplicativos digitais de administração do tempo ou substâncias que alteram estados de consciência).
A referência aos suportes materiais pelos quais os indivíduos procuram se transformar em “empreendedores de si” no capitalismo tardio (i.e., ativos, adaptáveis, aventureiros, conectados em rede etc.) serve de preâmbulo ao trabalho de Alain Ehrenberg sobre o doping nas ideologias e práticas do individualismo empreendedorista. A ideia de uma “sociedade do doping” consiste na principal via pela qual Ehrenberg aborda o que outros autores (e.g., Kramer, 1994, p. 246-249) denominaram “farmacologia cosmética”: o recurso a psicotrópicos com vistas não ao tratamento de síndromes, mas à otimização das próprias competências perante os desafios do mundo, competências como o manejo da ansiedade na sociabilidade com chefes e colegas de trabalho ou a manutenção da atenção vigilante em tarefas que se prolongam madrugada adentro. Na medida em que a regulação do doping vigente no esporte profissional inexiste em outros domínios de desempenho competitivo (p.ex., não há exames para regular o uso de ritalina entre executivos ou de rebite entre caminhoneiros), faz sentido que Ehrenberg (2010, p. 134) desenvolva uma sociologia histórica das drogas menos voltada à “oposição jurídica...entre produtos lícitos e ilícitos” do que ao caráter mutável da “significação das práticas” – i.e., das práticas de uso de psicotrópicos orientados à alteração dos próprios estados de consciência. Com efeito, a partir da década de 1990, a ideologia do empreendedorismo individualista e competitivo se atrelou a uma patente transmutação nos propósitos e significados que ditam a utilização de drogas.
Nas décadas anteriores, afirma Ehrenberg (2010, p. 134-135), as drogas tendiam a ser retratadas e experienciadas como meios de evasão da realidade social e histórica, ainda que tal evasão pudesse ser representada de diferentes maneiras. No discurso estigmatizante sobre populações tidas como marginais, o uso de drogas serviria à alienação ou fuga de uma realidade vivida como insuportável, fuga que atrapalharia o indivíduo no enfrentamento de seus problemas reais (p.ex., no desempenho de responsabilidades familiares ou de trabalho), tendendo a mergulhá-lo ainda mais no vício. Os movimentos contraculturais que proliferaram a partir dos anos de 1960, por seu turno, concebiam a evasão ao real como um gesto ético-político frente a um mundo rejeitado em bases morais, evasão auxiliada por substâncias que alteram estados de consciência no sentido desejado de transcendência, como o LSD. Fosse no estigma lançado contra populações tomadas por marginais (p.ex. usuários morando na rua), fosse no ideal de transcendência sã em relação a um mundo rejeitado como insano (p.ex., em comunidades do movimento Hippie), a representação e a experiência das drogas associavam-nas a escapes à realidade. Ambos discrepam, nesse sentido, de um modo de utilização de psicotrópicos tornado influente pelo individualismo empreendedorista a partir dos anos de 1990, os quais alteram os estados de consciência não com vistas à fuga ao real, mas, ao contrário, a uma adequação mais intensa e eficaz à realidade e a suas demandas práticas. O ansiolítico não soporífero que uma acadêmica consome antes de fazer uma conferência; a ritalina tomada por uma executiva que precisa concluir um relatório durante a madrugada; o rebite do caminhoneiro; a fluoxetina que recupera o indivíduo de sua inação depressiva – em todos esses exemplos, as drogas não servem como modo de escape a uma dura realidade (p.ex., a competição feroz por postos escassos contra concorrentes intensamente motivados), mas para intensificar o vínculo pragmático do sujeito com ela, afastando obstáculos “naturais” que promovam um afastamento entre um e outro (p.ex., a sonolência que atrapalha a concentração no trabalho, os entraves psicossomáticos que a ansiedade coloca no caminho de uma performance verbal). Em suma, a droga funciona como doping.
Ehrenberg exprime o contraste entre os dois regimes de funcionamento da droga com a fórmula “Do ópio do povo à sociedade dopada”. A primeira expressão, sabidamente oriunda da crítica de Marx ao papel alienante da religião, refere-se às drogas como frequentes substitutos seculares da aspiração à transcendência ante as dores e sofrimentos “deste” mundo, transcendência propiciada pelo transporte experiencial, ainda que efêmero, a uma “realidade” alternativa. Quanto à segunda expressão, designativa do regime de uso de drogas próprio ao capitalismo empreendedorista, talvez fosse preferível traduzi-la por “sociedade do doping”. Salvo engano, o termo “dopado” pode aludir ainda a ideias de um sujeito grogue ou anestesiado pela substância consumida, ao passo que a remissão ao doping, advinda do universo esportivo, captura o núcleo do problema: a droga como instrumento de otimização das próprias competências em contextos competitivos (Ehrenberg, 2010, p.139).
Do ponto de vista analítico, o leque de motivações que levam ao uso de psicotrópicos como dispositivos perfectibilistas em um mundo competitivo poderia se desdobrar em diferentes sentidos. O primeiro deles consiste, nas palavras de Ehrenberg, em recorrer a “um meio artificial quando...o ‘natural’ fracassa” (p. 134). Tendo decidido engajar-se na competição desassistido por esses meios artificiais, o indivíduo conclui, diante da experiência e/ou da ameaça de “fracassos” provocados pelo funcionamento corporal em sua “naturalidade” (p.ex., a atenção se desconcentra; a motivação é corroída; o corpo não acorda a contento quando necessário, nem imerge no sono em momento devotado ao descanso), que só poderá competir realisticamente caso auxiliado por instrumentos farmacológicos (p.ex., para imbuir-se de doses extras de concentração e ânimo motivacional ou para experimentar versões mais rápidas, eficazes e intensas do acordar e do dormir)2.
Poder-se-ia imaginar um segundo caso em que os fracassos do corpo desassistido pelo doping (lato sensu) não são diretamente vividos, mas antecipados e “prevenidos” de antemão. Faz parte da própria natureza das pressões societais por um desempenho melhorado por psicotrópicos que o primeiro caso citado tenda frequentemente a se dissolver, do ponto de vista empírico, no segundo. Quantas noites não ou mal dormidas são necessárias para levar o sujeito à conclusão de que se trata de um problema médico que reclama uma solução farmacológica (p.ex., Rivotril, Frontal, Patz)? Mutatis mutandis, a pergunta poderia ser feita a outras ocasiões em que “o ‘natural’ fracassa”, como em dificuldades de atingir a ereção no sexo ou de concentrar-se em uma tarefa cognitivamente desafiadora. Em suma:
O caráter massivo do consumo de medicamentos psicotrópicos... [sugere] que uma lógica de modificação de estados de consciência, ao mesmo tempo muito disseminada e nova, esteja em ação na sociedade. Muito disseminada, pois alcança populações estatisticamente sem comparação com aquelas envolvidas com usos de estupeficantes e alucinógenos; nova, na medida em que rompe com o imaginário do desvio e da insegurança que organiza a percepção social das outras drogas. Se as drogas tradicionais nos permitem fugir para a irrealidade, os medicamentos psicotrópicos estão aí para nos fazer enfrentar a realidade. O romantismo da droga não é o da fuga da realidade, mas...o dos meios para se colocar em pé de igualdade com o outro na concorrência. Os estimulantes da sociedade concorrencial são drogas de integração social e relacional
(Ehrenberg, 2010, p. 142-143).O doping também serve para conectar a performance efetiva do alto desempenho com a persona teatralizada do performer de alto desempenho: “a dopagem depende também, no mesmo título que a estética corporal, de uma antropologia da aparência” (p. 168). Fulcral a essa forma de “administração de impressão” (Goffman) é o que já foi chamado de sprezzatura: a capacidade de fazer o difícil parecer fácil ou, para recorrer a uma frase de Catulo, a arte de dissimular a arte. Como já acontecia em outras épocas, o desempenho bem-sucedido é tão mais celebrado quando parece florescer de uma espontaneidade tranquila, não do esforço sofrido e custoso que sustenta aquele desempenho aparentemente “natural” nos bastidores. A julgar pelos modelos de sucesso disponíveis na indústria cultural – dos personagens de filmes e seriados às celebridades que os representam –, o atributo de “bem-sucedido” depende de uma aparência particular de “bem-sucedido”: realizações impressionantes tendem a se tornar símbolos de sucesso somente quando seus custos não estão estampados na figura de seus realizadores (p.ex., na forma de um corpo maltratado pelo excesso de exigência), mas, ao contrário, coexistem com uma aura de “beleza”, “leveza”, “jovialidade” e afins. Juntamente com outros suportes técnicos, tais como a maquiagem que disfarça as olheiras, os psicotrópicos também contribuem para esse trabalho de manutenção das aparências, i.e., para que o sucesso não seja maculado, aos olhos de outros, pela exposição de seus custos à vida do indivíduo bem-sucedido. Assim como o perfil do Instagram pode esconder aspectos menos interessantes da existência real do indivíduo, os modos de apresentação de si em arenas competitivas do novo capitalismo também carregam consigo, em maior ou menor grau, o trabalho individual de ocultação dos preços do “sucesso” e até do “fracasso”, por vezes de maneiras que borram a fronteira entre realidade e aparência – por exemplo, ao ser tomado antes e durante o trabalho, o remédio para dores oriundas da gastrite, mesmo que eficaz do ponto de vista fisiológico stricto sensu, termina por funcionar como mecanismo de ocultação dos problemas orgânicos derivados do frenético engajamento do indivíduo com seu trabalho.
Sono como protesto? Jonathan Crary e o capitalismo das máquinas eternamente acordadas
O sistema capitalista logrou instrumentalizar os mais diversos momentos da existência, extraindo continuamente valor do indivíduo seja como trabalhador (p.ex., respondo e-mails de trabalho antes de dormir), seja como consumidor (p.ex., descanso assistindo a um seriado na Netflix). Nesse contexto, entretanto, o sono permanece uma “exceção colossal”, diz Jonathan Crary (2013, p. 24), à funcionalização capitalista da vida. Como interlúdio no qual o indivíduo é inútil (i.e., inexplorável) como trabalhador ou consumidor, essa condição em que somos mais passivos e vulneráveis emerge, de modo paradoxal, como última das fortalezas de resistência a um capitalismo que pretende colonizar todos os espaços.
Jonathan Crary (2014, p. 15) fala de um “imaginário contemporâneo” da “iluminação permanente” como correlato ideológico do “capitalismo 24/7”: “Um mundo 24/7 iluminado e sem sombras é a miragem capitalista final da pós-história” (p. 19). A luminosidade contínua é um estado próprio a um presente eterno e frenético, sustentado por um sistema que não apenas possui a capacidade da atividade ininterrupta, mas a transforma em imperativo para todos aqueles imersos em seu funcionamento. Ancorado no “desempenho maquínico” (p. 19) de tecnologias avançadas que nunca precisam ser desligadas, o modelo da operação ininterrupta interpela indivíduos os quais, por dispostos que estejam para atender ao imperativo, descobrem nos seus próprios corpos fontes orgânicas de resistência a essa interpelação.
Crary também situa sua discussão dos ataques do capitalismo ao sono no contexto histórico do desmantelo das proteções sociais do estado de bem-estar pelo capitalismo neoliberal. A melhoria nas condições de trabalho promovidas pelo arranjo fordista-keynesiano, estágio histórico seguinte “aos piores abusos no tratamento dos trabalhadores” que marcaram a fase industrial-liberal do capitalismo (Boltanski & Chiapello, 2007), foi inseparável da institucionalização jurídica de um respeito ao descanso e, portanto, ao sono. O descanso até chegou a ser defendido em termos mercadológicos e instrumentais, como período de regeneração sem o qual o trabalhador tornar-se-ia ineficaz de qualquer modo. Mesmo essa justificativa se dilui, segundo Crary, quando os freios próprios a “formas mitigadas ou controladas de capitalismo” passam a entrar em colapso. “O tempo para o descanso e a regeneração dos seres humanos é simplesmente caro demais para ser estruturalmente possível no capitalismo contemporâneo” (2014, p. 24).
Ainda que não se apresente como um continuador do marxismo ocidental, Crary (2013, p. 109) reconhece, em 24/7, que seu exercício de crítica cultural é inseparável do diagnóstico histórico-sociológico do que marxistas como Adorno chamaram de “reificação”, entendida como a expansão colonizadora do capitalismo para “um número cada vez maior de esferas da vida individual e social”. A linguagem da reificação também se justifica, até certo ponto, ao capturar uma versão do clássico tema da alienação tecnológica em que os seres humanos se veem dominados ou enfeitiçados pelas máquinas que eles próprios engendraram. Construído à imagem e semelhança de um ambiente maquínico de atividade ininterrupta, o capitalismo 24/7 lança aos seres humanos um ideal de funcionamento do qual eles só podem se aproximar se se transformarem, tanto quanto possível, em máquinas. Na medida em que é possível aproximar-se de tal ideal, mas não o alcançar plenamente na prática, as características humanas que obstam a identificação completa com o funcionamento maquínico são crescentemente vividas como indesejadas e vergonhosas. As respostas práticas a esses traços que resistem à (auto) transformação humana em máquina, traços que incluem do nervosismo e da ruminação inútil até o sono e as funções excretoras, atestam tentativas variadas de reduzi-los (p.ex., cortando horas de sono), instrumentalizá-los (p.ex., leitura no banheiro) ou escondê-los tanto quanto possível (p.ex., mediante a fachada de um profissional que, tal qual um robô, seria emocionalmente imune a pressões estressoras). Em suma, se a harmonização completa de “seres vivos reais com as demandas do capitalismo 24/7” é uma demanda impossível, restam, ainda assim, “inúmeros incentivos para suspender ou disfarçar ilusoriamente algumas das limitações humilhantes da experiência vivida, seja emocional ou biológica” (Crary, 2013, p. 109-110).
Crary não trata da neurofarmacologia como doping, mas as reflexões de Ehrenberg podem ser mobilizadas aqui: tornar-se mais e mais (como) uma máquina significa, por exemplo, mobilizar tecnologias disponíveis como meios instrumentais de maximização da performance, mesmo que isto signifique contaminar a “pureza” das distinções entre o orgânico e o maquínico. O psicofármaco é tecnologia nesse sentido, mas o horizonte da revolução técnica já acena com uma série de outras associações “sociotécnicas” mediante as quais o orgânico, mesmo quando não desaparece, pode ser crescentemente misturado ao maquínico (p.ex., chips no cérebro, clones digitais da consciência e assim por diante).
No mais, embora seu próprio autor também não o diga, as considerações de Crary sobre o sono oferecem algo como uma implícita crítica materialista aos limites de certas abordagens foucaultianas à “subjetivação” capitalista por dispositivos neoliberais. Por um lado, Foucault e diversos dos autores que ele inspira têm razão em sustentar que o capitalismo não existe somente fora dos indivíduos, mas também dentro e através das subjetividades que ele molda por meio de dispositivos diversos. Por outro lado, a paradoxal “resistência” do sono à colonização plena da subjetividade por um capitalismo 24/7, recalcitrância passiva diante de pressões e estímulos pela atividade, é somente um dos indícios de que as subjetividades individuais não são inteiramente moldáveis por aqueles dispositivos socio-históricos.3
A necessidade inescapável de dormir discutida por Crary não é o único limite imposto pelo “que resta” da subjetividade frente aos dispositivos capitalistas de subjetivação. Mutatis mutandis, o mesmo poderia ser dito da fadiga, da distração e do desânimo, dentre outras tendências demasiado humanas que teimam em brotar na subjetividade individual a despeito de serem alvejadas por dispositivos sistêmicos que vão do treinamento com coaches até o recurso a neurofármacos. Na medida em que a depressão se tornou uma pandemia global e a principal causa de incapacitação para o trabalho segundo a Organização Mundial de Saúde, é útil interrogá-la a partir de uma preocupação analítica similar.
Depressão como protesto? Mark Fisher, realismo depressivo e (ir)realismo capitalista
Em artigo anterior (Peters, 2021), propus, com base em considerações similares às anteriores sobre a relação entre capitalismo e subjetividade, uma interpretação particular da “pandemia de depressão” que, segundo a OMS, assola o mundo contemporâneo. Tratava-se de qualificar criticamente uma das respostas sociológicas céticas a tal tese, resposta segundo a qual não haveria uma verdadeira pandemia global de depressão em sentido clinicamente justificável, mas sim uma inflação de diagnósticos psiquiátricos, oriunda da tendência da psiquiatria atual a enquadrar como patológicas certas condições psíquicas e comportamentais outrora tidas por normais (Horwitz & Wakefield, 2007). Se a existência de uma inflação de diagnósticos advinda de transformações na psiquiatria é inegável, por um lado, a simples redução da interpretação sociológica da questão a tal fenômeno me parece, por outro lado, bastante redutora. Isto porque aquela redução retira da sociologia o exame das intensas modalidades de sofrimento psíquico engendradas pelas condições sociais de vida no capitalismo contemporâneo. A meu ver, a realidade de tal sofrimento é patente e ubíqua, a despeito da existência compreensível de controvérsias acerca dos modos mais apropriados de rotular tal sofrimento nos âmbitos científico, terapêutico, ético-político e assim por diante.
Nesse sentido, uma análise sociológica da depressão pode colocar entre parênteses a questão da validade clínica última desse diagnóstico, concentrando-se sobre as experiências de sofrimento que, com ou sem razão, são comumente tomadas como sintomas depressivos pela psiquiatria contemporânea (e, na esteira da psiquiatria, pelos meios de comunicação de massa, assim como pelo próprio senso comum de pessoas leigas). Vistos por esse prisma, os traços centrais da condição depressiva, como a inação e a letargia, são como que a moeda reversa daquela subjetividade ativa e empreendedora que somos exortados a ser no atual capitalismo: o indivíduo em depressão é uma espécie de empreendedor colapsado. E não surpreende, assim, que o alarme soado pela OMS tenha citado o alto índice de incapacitação para o trabalho como uma evidência decisiva de que a depressão se tornou uma pandemia global.
Para além do contraste entre o sujeito empreendedor e o sujeito deprimido segundo o eixo atividade/inatividade, outros traços da experiência depressiva podem ser sociologicamente lidos como a moeda reversa de modelos de subjetividade promovidos pelo capitalismo tardio. Enquanto o empreendedor de si é exortado a um “conexionismo” (Boltanski & Chiapello, 2007) voltado à maximização de suas redes de colaborações, projetos e contatos, indivíduos em depressão reportam uma experiência de solidão tão radical que frequentemente só pode ser expressa por aproximações metafóricas, como a afirmação de que se está dentro de uma bolha, uma prisão ou uma “redoma de vidro” (para evocar o livro genial de Sylvia Plath [2019]). No presente artigo, gostaria de me concentrar sobre as raízes sistêmicas de outra das vivências frequentemente ressaltadas em fenomenologias da depressão (e.g., Ratcliffe, 2015): a profunda dissolução da esperança de que o sofrido estado vivido pelo sujeito no presente possa ser superado no futuro.4
No debate sobre a depressão, a visão individualista é tão hegemônica que o combate a tal visão está por vezes justificado a “torcer o bastão para o lado oposto” e se fiar, do ponto de vista estratégico, na simples inversão coletivista: pessoas estão deprimidas porque o mundo é deprimente. Do ponto de vista analítico, uma via fecunda de trabalho poderia mapear os vínculos entre sintomas individuais e traços estruturais “depressogênicos” – ou, mais simplesmente, deprimentes – da(s) sociedade(s) contemporânea(s). A perda de qualquer esperança de melhora que marca tantos quadros depressivos conecta-se a uma crise de futuro em escala civilizacional, mesclada ao desespero não somente frente a iniciativas que respondam a ameaças ecológicas como a mudança climática, mas também a um senso doloroso de que aquele futuro apocalíptico, antes anunciado como ameaça, já chegou. Em um capitalismo marcado pela “vida a crédito” (Bauman, 2010), a areia movediça do endividamento também obsta esperanças por um futuro melhor. Na medida em que constrangimentos financeiros levam muitos indivíduos a despender a maior parte da sua vida em “trabalhos merda” (Graeber, 2018, não surpreende que sintam dentro de si uma recalcitrância a retomar o ciclo da infinda atividade.
Se o emprego é ruim, reza a tendência geral, o desemprego é ainda pior. Como é sabido, a formação de um exército de desempregados dispostos a (ou desesperados para) aceitar postos de trabalho precarizados, degradantes etc. enfraqueceu, por conta própria, a crítica marxista ao caráter alienante dos empregos disponíveis (Vandenberghe, 2002). As privações materiais e humilhações simbólicas associadas ao desemprego levam muitos a procurar, com afinco, um emprego no qual possam ser devidamente explorados. Um mecanismo similar se estende, decerto, à depressão: ceteris paribus, pessoas desempregadas são mais vulneráveis a ficarem deprimidas do que aquelas empregadas, mesmo nos casos em que estas últimas não gostam nem um pouco dos seus empregos. Uma parte desse estado de coisas, pode-se supor, se deve também ao fato de que a condição do desemprego, ao neutralizar a exigência de bom-humor e afabilidade inerente a tantos empregos (pelo menos como uma performance de fachada), leva os afetados a aceitarem a própria tristeza de um modo mais aberto do que aqueles empregados.
Já que tanto a dívida hiperbólica5 que assombra o futuro quanto a insatisfação com o trabalho que domina o presente são inseparáveis do sistema capitalista que atravessa o globo, a perda depressiva da esperança em uma vida alternativa constitui uma resposta perfeitamente inteligível ao que Mark Fisher (2009) chamou de “realismo capitalista”: a condição histórica na qual, em palavras atribuídas a Fredric Jameson e Slavoj Zizek, “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Em compasso com a preocupação clássica das teorias críticas do capitalismo com a utopia, a referência do slogan à imaginação é indispensável para capturar a radicalidade do fenômeno. Não se trata apenas da ideia amplamente difundida de que o capitalismo é o único sistema econômico e político viável, mas também de que, nos tempos que correm, “é impossível até mesmo imaginar uma alternativa coerente a ele” (Fisher, 2009, p. 78). A contraparte dessa inimaginabilidade de alternativas ao capitalismo consiste na sua identificação ao “realismo”, inerente a uma justificação ideológica que, nos termos de Badiou recuperados por Fisher, procura menos apresentá-lo como “ideal” ou “maravilhoso” do que rejeitar “todo o resto” como “horrível”. Sob esse aspecto, o realismo capitalista é pensado por Fisher como análogo ao “realismo depressivo”: menos um apreço pelas coisas como são do que uma suspeita frente a qualquer esperança de que estados de coisas melhores sejam possíveis. Não surpreende, assim, que Mark Fisher tenha sido um dos defensores mais contundentes dessa leitura política da depressão, calcada na identificação de suas causas sistêmicas na fase tardia do capitalismo.
Em mais uma das angustiosas ambivalências que atravessam esse assunto, pode-se até sublinhar a presença de certa sagacidade “sociológica” em uma atitude que reconhece, no fechamento dos próprios horizontes de futuro ou da relativa futilidade das próprias ações no plano individual, realidades sistêmicas de becos sem saída civilizacionais e da descartabilidade de qualquer membro individual da força de trabalho. Entretanto, para defensores de uma política da saúde mental a partir da esquerda, como Fisher, o “realismo depressivo” não denota uma positiva sagacidade, mas consiste em um sintoma patológico do “realismo capitalista”. A crise de imaginação que proscreve – ou rejeita como quimeras – quaisquer caminhos alternativos é o problema que ele visa combater mediante uma politização do debate sobre depressão e outras formas de sofrimento psíquico.
Apontar as fontes sistêmicas do sofrimento depressivo leva, no plano do enfrentamento prático dessa condição psíquica, à politização de um assunto quase sempre enfrentado como um problema individual a demandar soluções individuais, como psicoterapia ou tratamento farmacológico. Se as raízes estruturais do que a OMS designa como uma pandemia de depressão são encontradiças no imperativo da atividade individualizada próprio do atual capitalismo, segue o raciocínio, é nada menos do que o sistema capitalista o alvo de uma política de combate à depressão. À luz desse raciocínio, a inatividade de indivíduos em depressão pode ser lida em uma chave ético-política de recusa às exigências sistêmicas que o capitalismo contemporâneo faz à individualidade em diversos níveis, a começar pelo mundo do trabalho. Nas palavras de Darian Leader (2009, p. 13), a depressão seria “um modo de dizer não ao que somos exortados a ser”.
Duas ressalvas cabem aqui. É possível reconhecer tal dimensão ético-política da depressão sem que precisemos, creio eu, romantizar ou idealizar uma condição existencial de extraordinário sofrimento, a qual reclama atenção e cuidado pelas vias disponíveis (inclusive, se necessário, a via neurofarmacológica). Ademais, mesmo quando lida politicamente como uma espécie de “ativismo da inatividade”, a depressão contribui mais para a politização nos seus traços de “sintoma social” ou “alarme civilizacional” do que como uma ameaça às suas causas estruturais. Os altos índices de incapacitação para o trabalho que ela gera, por exemplo, não impactam uma situação socioeconômica em que o capitalismo pode contar com um vasto exército de reserva e um amplo contingente de indivíduos constrangidos ao subemprego, ao trabalho precário, à autoexploração e assim por diante. A luta social e política por transformações estruturais nesse âmbito depende, portanto, de um extraordinário montante de atividade para a qual parecem necessárias quantidades também vastas de energias motivacionais. A ironia trágica, é claro, consiste no fato de que a depressão mina precisamente tais motivações para agir sem as quais não se pode combater as fontes sistêmicas da inatividade crônica ou “patológica” (Hedva, 2020).
Portanto, mesmo que haja um componente de protesto na depressão, ele parece, em última instância, contraproducente como resistência às forças sistêmicas que lhe deram origem. Para lançar mais luz sobre o tema, proponho um excurso pelo trabalho da filósofa feminista Susan Bordo (1997), o qual oferece uma das reflexões mais sofisticadas sobre as ambivalências envolvidas na interpretação de sofrimentos psicopatológicos como “protestos” ou “resistências” imbuídos de significado político.
Susan Bordo: ambivalências do sofrimento como protesto e “resistência passiva”
Bordo se debruça sobre três condições psíquicas que, em cenários socio-históricos particulares, afetaram um número desproporcional de mulheres (ainda que na intersecção particular “brancas de classe média alta”): a “histeria” nos contextos vitorianos da Europa Ocidental no final do século XIX; a agorafobia nas sociedades do Atlântico Norte nos anos seguintes à Segunda Guerra; a anorexia em boa parte do mundo nas décadas finais do século XX. Interpretando a “sintomatologia dessas desordens” como “textualidade” cultural e política, Bordo (1997, p. 23) nota que elas são dotadas de um significado ambíguo à luz das representações hegemônicas da feminilidade “normal” em seus respectivos contextos socioculturais: cada uma possui características que sua época tinha por típicas das mulheres, porém intensificando-as até um grau socialmente percebido como patológico.
Os diversos traços do que era chamado de histeria, por exemplo, exacerbavam aspectos que o sexismo da era vitoriana identificava, em intensidades menores, como próprios à feminilidade normal, como a fragilidade, a instabilidade emocional (em uma assimilação condescendente da mulher à criança), uma sexualidade definida pela disponibilidade passiva aos desejos do marido, a falta de autonomia nas esferas financeira, jurídica, política etc. (Bordo, 1997, p. 157-158). Quando levados ao paroxismo nos sintomas histéricos, no entanto, tais atributos se transmutavam em perturbações para o mesmo entorno social que os tinha por normais em intensidades menores. A instabilidade emocional explodia os limites do que a condescendência sexista atribuiria à infantilidade, ameaçando a “paz” e a “estabilidade” da convivência familiar e conjugal. A passividade que reduzia o desejo feminino a um meio para a satisfação sexual do marido se tornava um entrave a tal satisfação quando radicalizada até o ponto da assexualidade ou do que, na época, foi rotulado como “frigidez”. A falta de uma voz deixava de ser uma metáfora para os limites sociais impostos à participação das mulheres nos debates públicos, como acontecia nos âmbitos científico ou político, e se literalizava somaticamente como afonia.
Argumentos semelhantes se aplicariam à agorafobia em sociedades do Atlântico Norte nas décadas de 1950 e 1960, bem como à anorexia nervosa na modernidade tardia. Em um contexto no qual as representações da feminilidade, pelo menos entre mulheres brancas de classe média, eram estreitamente ligadas à vida doméstica (i.e., a todo o conjunto de trabalhos envolvidos no cuidado da casa, dos filhos e do marido), a agorafobia radicalizava o vínculo à domesticidade até o ponto da perturbação (p.ex., na medida em que comprometia deveres tomados como extensões das responsabilidades domésticas, como fazer compras no mercado ou acompanhar o marido em encontros sociais). Em um cenário socio-histórico transformado pelo impacto sociocultural dos movimentos feministas e pela entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho, a anorexia, por seu turno, incorpora a si tanto a pressão cultural pela esbeltez, exercida com especial virulência sobre as mulheres, quanto uma ideologia de severa “responsabilização” do indivíduo pela manutenção de corpo esbelto, possibilitada pelo exercício de um traço outrora tido por “masculino”: o domínio do corpo pela mente. O último aspecto ajuda a dar sentido a um dos atributos mais desconcertantes da anorexia: o fato de que a frequente impermeabilidade da pessoa anoréxica aos protestos de pessoas no seu entorno, como médicos e familiares, se ancora em uma experiência eufórica de conquista pessoal, resultante do “triunfo” sobre as próprias necessidades corpóreas (1997, p. 141).
A ideia de que a histeria, a agorafobia e a anorexia podem ser interpretadas como formas de protesto, dirigidas contra as opressões que pesam sobre as mulheres em seus respectivos contextos socio-históricos, é discutida por Bordo em diálogo crítico com feministas de inspiração lacaniana. Como acontece com “resistências passivas” tais quais aquela da depressão, não se trata de afirmar que as condições referidas são formas autoconscientes de protesto político. Tomá-las como protestos inconscientes gera, assim, duas possibilidades analíticas. Aquelas psicopatologias poderiam ser interpretadas como “protestos objetivos”, na medida em que, ao radicalizarem traços da feminilidade tida por “normal” em um cenário cultural até o ponto do patológico, elas trazem a lume o que há de danoso e opressivo naqueles traços, mesmo em suas intensidades normais – por exemplo, as limitações à agência autônoma das mulheres nos domínios da “voz” e da sexualidade, seu confinamento à esfera doméstica, as exigências excessivas e desiguais inerentes a ideais culturais de beleza etc.
Para além do protesto “objetivo”, os trabalhos de feministas lacanianas como Catherine Clément atribuem o “protesto” infuso nos sintomas histéricos a uma intencionalidade inconsciente, com as dificuldades que a paciente gera para os homens no seu cenário, tais quais o marido e o psicanalista, sendo tomadas como maneiras de ridicularizar o mundo masculino (apudBordo, 1997, p. 27-28). Bordo não nega nem a possibilidade de uma intenção crítica por trás dos sintomas de histeria nem a aplicabilidade dessa interpretação, mutatis mutandis, à agorafobia e à anorexia. Fundamental para a autora, entretanto, é acentuar as consequências práticas contraproducentes de tais modalidades de protesto, acento similar ao que realizamos anteriormente na discussão da depressão como “resistência passiva” do sujeito às exigências que o capitalismo faz à sua mente e ao seu corpo. Se o extremo da afonia histérica pode lançar luz sobre a ausência generalizada de voz das mulheres “normais” (p.ex., nos debates públicos, na ciência, na política etc.), por exemplo, ele não representa, decerto, uma reação efetiva a tal ausência. Por mais que a radicalização agorafóbica do confinamento à esfera doméstica possa perturbar expectativas sociais sexistas, a agorafobia continua a ser o inverso de uma ampliação das possibilidades de movimento (em sentido amplo) das mulheres para além da casa. Finalmente, o protesto anoréxico...
...está escrito nos corpos de mulheres com anorexia, não abraçado como uma política consciente nem…refletindo qualquer compreensão social e política. (...) A idée fixe – permanecer magra – torna-se, no seu mais extremo, poderosa a ponto de tornar sem sentido quaisquer outras ideias ou projetos de vida. Paradoxalmente – e frequentemente de modo trágico –, estas patologias de protesto feminino…funcionam... como que em conluio com as condições culturais que as produziram
(Bordo, 1997, p. 159).Da resistência passiva à resistência ativa (ou da política à terapia...e de volta)
Politizar a interpretação de um problema como a anorexia, reconhece Bordo, não significa superestimar o caráter contraproducente do que nela há de “protesto”, tampouco supor que o combate necessário às causas sistêmicas do problema possa dispensar, por si só, o cuidado terapêutico no domínio individual. Gostaria de encerrar o artigo com considerações similares acerca da depressão como “resistência passiva” aos dispositivos de subjetivação do capitalismo tardio.
Nas palavras de um comentador simpático ao trabalho de Mark Fisher, mostrar a força avassaladora do realismo capitalista como formação ideológica subjacente à depressão, sem reforçar o senso de inescapabilidade absoluta que marca as formas capitalista e depressiva de “realismo”, é uma das condições dificílimas para “desenvolver um discurso sobre a depressão que não seja, em si, completamente deprimente” (Frantzen, 2019, s/p). Na avaliação da Organização Mundial de Saúde (OMS), a depressão se tornou a principal causa mundial não apenas de incapacitação para o trabalho, mas também de suicídios. Nessa costura de articulações entre depressão e realismo capitalista, há uma trágica contundência no fato de que Fisher, um dos primeiros autores a notar que é hoje mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, tenha terminado por tirar sua própria vida. Eis um terreno que deve ser trilhado com o máximo possível de cautela e delicadeza. Por um lado, é óbvia e terrivelmente relevante que um dos analistas mais argutos da depressão como produto histórico do realismo capitalista tenha cometido suicídio. Por outro lado, é preciso resistir à tentação simplista de tomar o suicídio de Fisher como fator-chave para a significação de toda a sua trajetória biográfica e legado intelectual, uma espécie de “reducionismo retrospectivo” comumente aplicado à análise de biografias individuais que terminam com o suicídio.
Frente ao destino de Fisher, criticar a substituição da política pela terapia não significa, por outro lado, negar o reverso da moeda, a saber, o fato de que há precondições psíquicas para o engajamento político. Se o enfrentamento da depressão tem de se politizar, a própria luta política pelo combate a condições sociais de existência depressogênicas – ou, dito de modo mais positivo, pela instauração de modos coletivos de vida conducentes ao bem-estar psíquico – revela-se dependente, por seu turno, de certos pré-requisitos psíquicos. Nas palavras de Mikkel Frantzen, “lidar com a depressão – e outras formas de psicopatologia – não é apenas parte, mas uma condição de possibilidade para um projeto emancipatório hoje” (2019, s/p). Continua o autor:
compreender a depressão através de lentes políticas não significa que o problema da depressão possa ser imediatamente resolvido por meios políticos. Há um horror na depressão que não pode e não deve ser traduzido muito rapidamente para a esfera da política, independentemente de nossas aspirações críticas e revolucionárias. A dor física é insuportável, seu corpo está inerte e se sente pesado demais, sua mente não está funcionando, e você não pode escapar ao sentimento de estar preso, estagnado, que a corrida já terminou e que o presente – que é inferno – é tudo o que há e tudo que se pode imaginar que haverá. Seria uma ofensa dizer “bem, é só política”
(Frantzen, 2019, s/p).Conclusão
O gatilho intelectual primordial do presente artigo é uma literatura sociocientífica que, a partir de ângulos teóricos distintos, se ocupa da conexão entre as feições estruturais do capitalismo contemporâneo, de um lado, e as formas de subjetividade ou modelos de individualidade dos quais ele depende, de outro. Como exemplo da dialética entre agência e estrutura, a dependência sistêmica que o capitalismo tardio ou neoliberal tem de uma subjetividade ativa (Boltanski & Chiapello, 2007) e empreendedora (Han, 2015) se associa aos múltiplos “dispositivos” por meio dos quais o próprio sistema molda, com maior ou menor “sucesso”, os modos de agir, pensar e sentir das subjetividades das quais ele depende.
O artigo lida com essa realidade a partir de uma constatação ambivalente. Por um lado, não há dúvida de que os efeitos de subjetivação do capitalismo sobre os indivíduos nele imersos são profundos, duráveis e altamente eficazes: o capitalismo não existe somente fora das subjetividades individuais nele imersas, mas também dentro e através delas. Por outro lado, fenômenos como o sono, a depressão e o recurso a psicofármacos (tanto no combate a síndromes quanto na otimização de competências) evidenciam que aqueles processos de subjetivação capitalista encontram “resistências passivas” em características constitutivas das próprias subjetividades que eles procuram moldar.
Longe de se manter constante, a disputa entre dispositivos de subjetivação capitalista, como aqueles voltados ao cumprimento do imperativo da atividade, e as resistências passivas que o organismo e a psique humanos oferecem àqueles dispositivos, como a necessidade incontornável de dormir ou as “recusas” orgânico-psíquicas que tomam a forma da depressão e do burnout, é altamente dinâmica. De vídeos motivacionais a psicofármacos, diversos dos dispositivos subjetivantes do capitalismo são, por assim dizer, de “segunda ordem”, i.e., projetados como auxílios artificiais para os momentos em que “o ‘natural’ fracassa” (Ehrenberg, 2010, p. 134). No mais, a dinâmica conflitual entre dispositivos subjetivantes e resistências passivas da subjetividade pode se estender para uma terceira, uma quarta e noutras ordens – por exemplo, uma primeira dosagem de remédio se revela “insuficiente” para tal ou qual propósito performativo; aumenta-se, então, a dosagem; o aumento, entretanto, se revela insuficiente; procura-se, então, combinar a nova dosagem com outra medicação; acrescenta-se também um dia a mais de consulta semanal na psicoterapia; e assim por diante.
Voltado ao mapeamento das dinâmicas conflitivas entre dispositivos e resistências, o artigo percorreu quatro eixos argumentativos, cada um dos quais privilegiando uma contribuição autoral particular: as reflexões de Alain Ehrenberg sobre o recurso a drogas de alteração do estado de consciência como instrumentos de otimização do desempenho na “sociedade do doping”; as cogitações de Jonathan Crary sobre o sono como obstáculo à colonização completa da subjetividade pelo imaginário capitalista da atividade ininterrupta; a interpretação sistêmica e política da depressão como efeito estrutural do “realismo capitalista”, proposta pelo crítico cultural Mark Fisher; e, finalmente, a análise da psicopatologia como “protesto” levada a efeito pela filósofa feminista Susan Bordo, central para a apreensão da ambiguidade inerente às “resistências passivas” discutidas no trabalho. Se é verdade que o sono e a depressão, tal como a anorexia nervosa na interpretação de Bordo, podem ser lidos como modalidades de “protesto” imbuídas de significado ético-político, como “resistências passivas” à colonização da subjetividade pelo imperativo da atividade no capitalismo tardio, tais protestos são, por si sós, ineficazes. O potencial ético-político inerente a tais resistências só pode ser atualizado por um ativismo que, sem abandonar a via política de combate a fontes sistêmicas de sofrimento psíquico na contemporaneidade, se articule a formas de cuidado individual sem as quais o próprio engajamento político seria impossível. Frente a um contexto em que a ética da autorrealização tende a esvaziar o espaço da política da emancipação, aquilo de que precisamos não é, parece, substituir a primeira pela segunda, mas conectá-las como os domínios relativamente autônomos e interinfluentes que são.
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Notas
Autor notes