RESUMO: A literatura dos estudos do trabalho sobre a trajetória das classes trabalhadoras no Brasil já é bastante ampla, cobrindo variados períodos, dimensões e aspectos. Boa parte desses estudos é dedicada, até os nossos dias, à análise sobre o movimento sindical. Diante de um universo do trabalho tão transformado no Brasil e no mundo, em que mais uma vez são colocados em questão o lugar do trabalho na vida social e dos sindicatos como representantes de trabalhadores, bem como de canalizadores de conflitividade social, este artigo analisa a trajetória do sindicalismo e dos caminhos seguidos pelos sindicatos no período de 2003 a 2022, acompanhando o fio de questões apresentadas pela literatura desenvolvida sobre esta temática, a partir de duas indagações centrais: quais os caminhos percorridos pelo sindicalismo brasileiro e quais os percursos seguidos pelos estudos sobre a ação sindical nas últimas duas décadas?
Palavras-chave: Sindicalismo brasileiro, ação sindical, classes trabalhadoras, estudos do trabalho, Brasil.
ABSTRACT: The labor studies have already a long track in Brazil, covering different dimensions and aspects on work and working classes. An important part of these studies is dedicated, until today, to the analysis of the trade union movement. Faced with a work and union universe so transformed both in Brazil and worldwide, where once again the place of work in social life, as well as the role of trade unions as representatives of workers and channels of social conflict is questioned, this article deals with the trade union movement trajectory during the period 2003-2022, taking into account two central questions: what are the paths taken by Brazilian trade unionism and what are the paths followed by studies about union action in the last two decades?
Keywords: Brazilian unionism, union action, working classes, labor studies, Brazil.
RESUMEN: La literatura de estudios laborales sobre la trayectoria de las clases trabajadoras en Brasil ya es bastante amplia y abarca diversos períodos, dimensiones y aspectos. Gran parte de estos estudios están dedicados, hasta el día de hoy, al análisis del movimiento sindical. Frente a un universo del trabajo tan transformado en Brasil y en el mundo, en el que una vez más se cuestiona el lugar del trabajo en la vida social y de los sindicatos como representantes de los trabajadores, así como de conductores de conflictividad social, este artículo analiza la trayectoria del sindicalismo y los caminos seguidos por los sindicatos en el período de 2003 a 2022, siguiendo el hilo de cuestiones presentadas por la literatura desarrollada sobre este tema, a partir de dos preguntas centrales: ¿cuáles son los caminos tomados por el sindicalismo brasileño? y ¿Cuáles son los caminos seguidos por los estudios sobre la acción sindical en las últimas dos décadas?
Palabras clave: Sindicalismo brasileño, acción sindical, clases trabajadoras, estudios laborales, Brasil.
ARTIGOS
Estudos sobre o sindicalismo brasileiro hoje: percursos e análises
Studies on Brazilian trade unionism today: trajectories and analyzes
Estudios sobre el sindicalismo brasileño hoy: trayectorias y análisis
Recepção: 28 Setembro 2022
Aprovação: 19 Novembro 2023
Os sindicatos nascem com o operariado moderno e estão associados, desde o início de sua trajetória, às demandas das classes trabalhadoras que vêm construindo um grande acervo vivo de experiências e formas organizativas, das quais os sindicatos podem ser considerados entre as mais importantes. Ao longo desse percurso, os sindicatos se desenvolveram de maneira bastante diversificada em termos de setores, categorias, países, regiões etc. Essas entidades marcaram sua história tanto na defesa dos interesses imediatos de trabalhadores, quanto na participação em processos políticos e sociais mais amplos, tornando-se inescapáveis quando se analisa a ação coletiva das forças sociais do trabalho ao redor do globo.
No caso do Brasil, ainda que especificada, esta trajetória não se deu de forma diferente. A classe trabalhadora brasileira tem tido em seus sindicatos, entre outras formas de organização, um importante instrumento na conquista e manutenção de seus direitos. Embora marcado por muitas distinções e tensões internas, e portador de grande heterogeneidade, o sindicalismo brasileiro, em seu conjunto, já figura no rol das instituições de relevo na história republicana nacional. Ele estará presente, com maior ou menor intensidade, nos episódios marcantes de todo o período, sempre trazendo aos mesmos as tonalidades do mundo do trabalho.
Hoje, no entanto, estamos vivendo tempos bastante adversos para essas formas de organização. Os sindicatos foram perdendo muito da sua capilaridade na sociedade, no âmbito internacional, já nos anos 1970. No Brasil, essa dinâmica ocorre tardiamente a partir dos anos 1990. Foram muitas as transformações desde então, tais como, mudanças no trabalho, no perfil das classes trabalhadoras, processos de flexibilização da produção, novas tecnologias, crescimento acelerado das desigualdades sociais e da precarização do trabalho. Esse processo vem atingindo fortemente o mundo do trabalho e seus organismos de representação.
A literatura dos estudos do trabalho sobre a trajetória das classes trabalhadoras no Brasil já é de grande monta, cobrindo variados períodos, dimensões e aspectos.1 Boa parte dessa literatura se dedica, até os nossos dias, ao estudo sobre o movimento sindical. Esse tem sido veio rico tratando dos investimentos de pesquisa e reflexão dedicados especificamente ao movimento organizativo, mobilizatório e político da classe através de suas organizações e sindicatos (Rodrigues & Munhoz, 1974; Vianna, 1977, 1983; Santana, 1999; Ladosky & Véras de Oliveira, 2014). Nesse sentido, as duas resenhas bibliográficas elaboradas por Vianna (1977, 1983) acerca da literatura e dos debates sobre o movimento sindical do pré-1964 e sobre o advento do chamado “novo sindicalismo” foram importantes ao avançarem certo estilo para esses escritos.2
O presente artigo se associa a esta tradição da literatura. Tendo em tela tanto a trajetória do sindicalismo e das ações coletivas da classe trabalhadora em nosso país entre 2003-2022 quanto os estudos sobre esse sindicalismo no mesmo período, buscaremos aqui, dentro dos limites que nos estão postos, e, assim, para além de uma resenha bibliográfica, fazer um balanço mais amplo dessas trajetórias.3. Diante de um universo do trabalho tão transformado no Brasil e no mundo, em que mais uma vez são colocados em questão o lugar do trabalho na vida social e dos sindicatos como representantes de trabalhadores e trabalhadoras, bem como de canalizadores de conflitividade social, seria interessante analisarmos a trajetória do sindicalismo e dos caminhos seguidos pelos sindicatos no período, acompanhando o fio de questões apresentadas pela literatura desenvolvida sobre eles.4 Assim, como indagações centrais teríamos: quais os caminhos percorridos pelo sindicalismo brasileiro e quais os percursos seguidos pelos estudos sobre a ação sindical nas últimas duas décadas?
Como contexto, consideraremos três momentos, marcados por três governos. O primeiro aberto com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder, em 2003, e que vai até 2016, com a participação dos sindicatos no contexto desses governos. O segundo aberto pela destituição da presidente Dilma Rousseff, marcado pelo ataque à ordem democrática, pela intensificação das políticas regressivas e pelas reformas contra os direitos conquistados pela classe trabalhadora e por seus impactos sobre o movimento sindical. O terceiro e último aberto com a eleição de 2018 e que se estende até os nossos dias, caracterizado por ataques à democracia, à classe trabalhadora e às suas organizações. Nesse último, analisa-se o advento da emergência sanitária em nosso país e as complexidades que esta trouxe, no sentido da organização e ação de trabalhadores e trabalhadoras.
São três momentos que estão claramente articulados, mas que guardam muitas distinções. Nestas já duas décadas do século XXI, no Brasil, trabalhadores e seus sindicatos foram confrontados por cenários variados de atuação. Este período nos parece interessante para nossa análise sobre as formas de organização, orientação e atuação do movimento sindical no país, na medida em que é marcado pelo retorno dos debates e políticas visando ao desenvolvimento econômico e social, pela diminuição do desemprego e retomada do emprego formal, por novas formas de relação entre Estado e sindicatos, de reorganização sindical e de reconfiguração das classes sociais, bem como de ascenso dos movimentos sociais, que teve como marco as manifestações de junho de 2013.
Este mesmo período testemunha, mais recentemente, o que seria o esgotamento de políticas empreendidas no início da década de 2000, indicando a abertura de outro cenário no qual pautas mais regressivas quanto ao mundo do trabalho vão sendo recolocadas à mesa. São revisadas políticas de proteção ao trabalho, cresce a informalidade, a precarização se generaliza mesmo para espaços formais, o desemprego vai assumindo patamares explosivos, entre outros aspectos. Junta-se a isso um forte componente de crise política e econômica. Dessa forma, estes são anos em que os sindicatos e o movimento sindical vão experimentar conjunturas diferentes e cada vez mais desafiadoras à sua sobrevivência como ator coletivo, em um cenário de incertezas para o mundo do trabalho tanto nacional quanto internacionalmente.
Em fins da década de 1990, também diante de um cenário de profundas transformações pelas quais passava o universo do trabalho no Brasil e no mundo, Rodrigues (1999) se questionava, assentado em forte lastro empírico internacional, acerca do destino do sindicalismo. Diante de paisagem tão alterada mirada por ele, conseguiriam os sindicatos continuar mantendo um certo sentido histórico e tendo lugar no mundo, ou seriam eles substituídos por outras formas de organização? O destino, aí, praticamente se confundiria com uma crise aguda da instituição sindical. Menos um desaparecimento por completo, mais uma diminuição drástica de importância e um deslocamento do posto já ocupado historicamente. Essa questão ainda pode nos servir de eixo norteador do investimento analítico neste artigo.
A ideia é prescrutar como um dos atores que servem, há mais de século, como canal de organização e condução de conflitividade na sociedade brasileira está lidando com um país bastante mudado, que dista muito de períodos anteriores que foram fundamentais para determinados processos de formação de classe, bem como de correlatos tipos de sindicatos e formas de ação sindical.
A vitória de Luiz Inácio da Silva, o Lula, do Partido dos Trabalhadores (PT), nas eleições presidenciais de 2002, apesar da ampla aliança que o apoiou, abriu um sem-número de expectativas acerca das mudanças estruturais por ele prometidas há muito e esperadas pela população após a ruína neoliberal da década de 1990. Era toda uma geração de militantes sindicais e um projeto que chegavam ao poder. Apesar de algumas especificações, e ainda que muitas das políticas implementadas tenham sido lançadas nos governos de Lula, pode-se tomar o período cobrindo também os governos de Dilma Rouseff, assim se estendendo de 2003 a 2016.
Estava claro que, neste período, o mundo do trabalho e a classe trabalhadora estariam, de diferentes maneiras, no centro das atenções. Entrariam em tela, entre outros pontos, questões relativas à valorização do salário mínimo, mudanças na estrutura sindical, implementação de novas formas de relação com o sindicalismo etc. A atuação do governo manteve certa centralidade em termos de ações dos programas sociais que pudessem ter impactos efetivos na redução da pobreza. E isto foi sentido ao longo do período. Programas como o Fome Zero e o Bolsa Família foram marcas importantes, principalmente no segundo caso, e abriram intenso debate à direita e à esquerda.
De todo modo, notava-se uma clara mudança das bases e horizontes das políticas do PT que vigorariam nos governos Lula e Dilma. Diante dos diagnósticos então efetivados, cada vez mais se migrava da classe trabalhadora organizada para aqueles setores mais pobres. Estes passariam rapidamente a se integrar não só nos eixos de preocupação do governo, mas, sobretudo, em sua sustentação eleitoral. Em 2010, ano de eleição presidencial, cerca de 49 milhões de pessoas eram cobertas pelo Bolsa Família.
No que diz respeito à seguridade social de trabalhadores, o governo Lula se empenhou na elaboração e aprovação de uma reforma do sistema previdenciário via Proposta de Emenda Constitucional (PEC), em 2003 (Jard da Silva, 2021). O projeto foi enviado ao congresso e, diferentemente de outras de suas iniciativas, teve trâmite de urgência. Ele foi aprovado no mês de agosto na Câmara dos Deputados e em dezembro no Senado Federal. Neste quesito, o governo lançou mão de um conjunto de instrumentos e discursos que, tendo em vista suas origens e ideais anteriores, causava certa espécie. À sua maneira, o governo Lula acabou dando sua contribuição particular ao já histórico processo de críticas e ataques à seguridade social no país.5
Como esperado, os sindicatos e o debate sobre suas formas de organização e atuação tiveram momento de destaque ao longo dos governos do PT, atraindo atenção da literatura sobre o tema (Araújo & Véras de Oliveira, 2011; Antunes & Santana, 2014; Véras de Oliveira, Bridi & Ferraz, 2014; Galvão & Marcelino, 2018; Carvalho & Costa, 2018; Ladosky & Rodrigues, 2018). Nesse sentido, pode-se perceber que, entre outros, tiveram relevância temas relacionados à atuação propriamente dita do movimento sindical no período, o processo da chamada reforma sindical, a participação de sindicalistas nas composições de governo e nos fundos de pensão e a mobilização das classes trabalhadoras a partir das greves.6
No que diz respeito às formas de atuação das entidades sindicais em termos gerais, um ponto sempre presente nos debates no seio do movimento de trabalhadores e das análises acadêmicas versava sobre a extensão da aproximação das entidades sindicais com suas cúpulas, com o governo e de que maneira essa ligação mais estreita acabava se descolando das possibilidades de organizações fincadas no cotidiano de vida e trabalho das classes trabalhadoras. Esse debate chegou até ao questionamento de se as entidades sindicais teriam ou não, ou em que extensão, sido cooptadas pelo governo.
Análises sobre suas orientações argumentam que uma parcela significativa do sindicalismo e, em particular, a maior central sindical nacional, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), definiu-se por uma atuação de corte mais institucional (Carvalho, 2014; Ladosky & Rodrigues, 2018). Isso teria se dado em detrimento de uma atuação que contemplasse maior mobilização de trabalhadores na defesa de suas demandas. Mais ainda, abriu-se mão da organização de trabalhadores nos locais de trabalho. Essa orientação e movimentação “por cima” não se faria sem repercussões de condução política e de espaços de mobilização. A aproximação entre a cúpula do sindicalismo e o governo serviu como inibidor de postura mais confrontacionista, com decorrente moderação na luta política (Galvão & Marcelino, 2018). Esse deslocamento da ação sindical da CUT, de um lado, cobrou um preço no que tange à perda do protagonismo nas ruas, por exemplo, em 2013 e, de outro, naquilo que se demostrou a insuficiente resistência do sindicalismo ao desmonte dos direitos que foi levado adiante pelo governo Temer (Ladosky & Rodrigues, 2018; Marcelino & Galvão, 2020).
Pensando nos resultados dessa virada “institucional” do sindicalismo brasileiro, em termos de sua parcela hegemônica, temos que essa estratégia visava à ampliação de direitos nas políticas públicas (Ladosky & Rodrigues, 2018). Se era essa a marca deste sindicalismo, isso atravessou as demais centrais, as quais, cada uma à sua maneira e em graus diversos de intensidade, seguiram também essa dinâmica (Ladosky & Rodrigues, 2018). Muito do retorno de participação em fóruns tripartites não teria se dado a partir de ações de mobilização da classe trabalhadora. Neste caso, deve-se levar em conta a proximidade entre a liderança sindical e o gestor do governo, na maioria dos casos um egresso das fileiras sindicais (Ladosky & Rodrigues, 2018). Um dos resultados desse processo foi a política de valorização do salário-mínimo, em que a negociação teve em paralelo um conjunto de mobilizações no período, que associava a agenda sindical (e até para além dela) à agenda governamental; em contraposição, outras pautas foram travadas. A atuação institucional deixava claros os seus limites, que só poderiam ser ultrapassados através de outras formas de mobilização e pressão, o que acabou, como indicado, claudicando em termos práticos.
Um dos grandes marcos do governo Lula, em termos sindicais, relacionou-se à chamada reforma sindical. Ao longo de suas muitas décadas de existência, a chamada estrutura sindical corporativa, montada no primeiro governo Vargas, manteve-se quase intacta a ditaduras e democracias (Rodrigues, 1990). Na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ela se associava, ordenando a organização de trabalhadores e empregadores, à regulação dos direitos do trabalho.
A vitória eleitoral de Lula trouxe ao poder uma geração de militantes sindicais forjados, como ele, no chamado “novo sindicalismo” e na crítica à herança corporativista. Inclusive isto gerou muitas críticas quanto ao que seria o excesso de sindicalistas nos vários escalões do governo. Promessa de campanha, a reforma da legislação sindical entrava na pauta do dia. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a partir da organização do Fórum Nacional do Trabalho (FNT), integrado por representantes de trabalhadores, patronato e governo, procurou elaborar um novo projeto sindical para o país (Bargas & Oliveira, 2005; Druck, 2006).
Assim, no governo Lula, a reforma da legislação sindical entrava na pauta do dia. Na visão de seus propositores, a reforma seria um passo na direção de uma mudança mais ampla, não se reduziria a uma alteração legislativa. O conjunto de reformas visadas pelo governo nesta área, segundo expresso em seus documentos (MTE, 2003; MTE, 2004MTE, 2005), vinha no sentido de tornar as leis e instituições do trabalho mais compatíveis com o que seria a nova conjuntura social, política e econômica vividas pelo país. Como pano de fundo, indicado nos documentos, temos as consequências de sucessivas políticas econômicas danosas e a reestruturação produtiva, que trouxeram fortes impactos ao mundo do trabalho.
No geral, pela proposta, haveria aumento da representatividade e do poder de negociação das entidades sindicais, sua implantação efetiva nos locais de trabalho, a prevenção de práticas antissindicais, o fim do imposto sindical – com a criação da contribuição negocial oriunda de índices aferidos da negociação coletiva – e a “legalização” das centrais sindicais. Além disso, seria redesenhada a ação da Justiça do trabalho e se buscaria retirar a ideia de “abusividade”, quase invariavelmente presente nos julgamentos das greves e mobilizações de trabalhadores, sem deixar, com isso, de estabelecer regulações ao seu desenvolvimento. Pode-se dizer que o resultado era um híbrido, já que, na composição de posições, ficou-se entre a “unicidade” e a “pluralidade” sindical. Isso porque, ao mesmo tempo que se abre a possibilidade de existir mais de um sindicato de categoria por base territorial, garantiu-se a permanência dos já existentes com “exclusividade”, caso também preenchessem os requisitos de representatividade dispostos no projeto.
A reforma, se efetivada na lei e na prática, traria um novo campo de ação e disputas para os setores atuantes no sindicalismo brasileiro. Ela traria, contudo, algumas dificuldades em termos de sua consecução. Por exemplo, a aferição dos “índices de representatividade” das entidades sindicais, que lhes garantiria ou não a personalidade sindical e o direito de representar os trabalhadores de sua base, poderia se tornar um imenso e disputado emaranhado de números e estatísticas. A ideia de “exclusividade”, pensada como mecanismo de transição, garantiria a todas as entidades já existentes um prazo de carência para terem seus índices de representatividade aferidos. Dadas as condições no cotidiano da máquina sindical brasileira, isso poderia ser um instrumento de manutenção das velhas lideranças sob nova roupagem.
Desde os seus encaminhamentos iniciais, mas, principalmente, em termos de seus resultados, a proposta de reforma suscitou críticas tanto da parte de analistas quanto de sindicalistas (Borges, 2004; Galvão, 2005; Druck, 2006), mas também defesas (Bargas & Oliveira, 2005). Entre as muitas críticas geradas no processo de discussão e construção do projeto de reforma, pode-se enfeixar questões que vão desde as entidades de cúpula, passam pela organização no local de trabalho, a ingerência do Estado e o direito de greve.
No geral, para alguns críticos, restaria a certeza de que, a partir da proposta em tela, se efetivaria a ideia de que o “negociado” prevaleceria sobre o “legislado”. Isso poderia servir a um relativamente diminuto grupo de sindicatos, mais organizados, estruturados e fortes, mas traria elementos trágicos para uma maioria esmagadora deles, nem tão estruturados e fortes assim.
A entrada do projeto de reforma no parlamento foi feita em um momento bastante difícil para o governo Lula e, dadas as resistências dos mais variados setores, não foi adiante. Saído da crise, o governo buscou formas de alterar a legislação sindical, se não pela via de um conjunto amarrado de dispositivos legais, ao menos pela via mais pontual, ocorrendo o que se chamou de fatiamento e encaminhamento de apenas alguns pontos, enterrando ali a efetivação da reforma enquanto tal.
O próprio FNT, por exemplo, peça importante e local de debate de todo o processo, dedicou-se a questões importantes, mas muito mais focalizadas e pontuais. Tais questões não necessariamente se enquadravam entre o que seriam pontos afeitos a uma reforma sindical, alguns já tocando o que seriam temas de uma Reforma Trabalhista, a qual acabou por nunca ser feita naquela conjuntura.
Um dos tópicos mais próximos daquele escopo foi o acordo sobre o reconhecimento das Centrais Sindicais e o processo de reorganização que acabou produzindo (Galvão, Marcelino & Trópia, 2015). Ao reconhecimento das centrais sindicais, associou-se uma série de dispositivos que normatizam a existência destas entidades no país, definindo suas atribuições e prerrogativas com medidas do tipo aferição de representatividade, estabelecimento de patamar mínimo de filiação e dotação financeira. A passagem do reconhecimento político-institucional, que as centrais já dispunham, para o reconhecimento jurídico obviamente implicou direitos e deveres. Para alguns, isso viria a limitar a organização e as ações das centrais; para outros, foi um passo fundamental para a mudança da estrutura sindical. De todo modo, devemos lembrar que os trabalhadores sempre articularam movimentos por dentro e por fora das limitações legais, quando se viram impedidos e prejudicados por elas (Ladosky & Véras de Oliveira, 2014; Ladosky & Rodrigues, 2018).
A incorporação massiva de sindicalistas nos vários escalões do governo foi, sem dúvida, uma característica importante desses anos. Além disso, foi bastante sensível a dedicação de energias junto aos fundos de pensão das empresas públicas (Jardim, 2009; Oliveira, 2010; Magnani et al., 2020), tendo estes fundos um papel cada vez mais destacado nas apostas de investimento do governo, como no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em 2007. Mobilizando algo em torno de 19% do PIB nacional, os fundos de pensão e os sindicalistas que os dirigiam passaram a ter papel também de relevo no processo capitalista financeirizado em nosso país.
Outro ponto de destaque no cenário daqueles anos foram as mobilizações grevistas que movimentaram um conjunto diversificado e expressivo de setores da classe trabalhadora brasileira. Mobilizações estas que convocaram análises para seu entendimento (Boito Jr & Marcelino, 2010; Véras de Oliveira, 2014; Marcelino, 2017; Oliveira, 2019), as quais lançaram luz sobre pontos e questões, específicos ou não, envolvendo as greves e a própria ideia de ciclos. Uma das indagações colocadas à mesa foi: como pensar a questão de um possível declínio dos sindicatos quando se está em meio a um ciclo grevista?
Nesse sentido, torna-se importante refletir sobre os efeitos de características do sindicalismo e de conjunturas econômica, política e ideológica que podem servir de base para retomadas e ciclos mobilizatórios (Boito Jr & Marcelino, 2010; Marcelino, 2017). A percepção de um quadro positivo trazido no período para as condições de organização e mobilização também pesariam nesse processo. A posição importante, ainda que subalterna, que o sindicalismo passa a ocupar nos arranjos de sustentação política do governo lhe forneceu status de aliado e de reconhecimento, garantindo-lhe tratamento diferenciado (Boito Jr & Marcelino, 2010; Marcelino, 2017), bastante distinto do que recebera, por exemplo, nos anos 1990.
E, mesmo diante da presença e do papel dos sindicatos, aquele contexto trouxe outras questões sobre as mobilizações de base para além de suas lideranças. Análises se dedicaram às greves, que surpreenderam os sindicatos, demonstravam a revolta contra condições de trabalho para lá de precárias e passavam longe do discurso desenvolvimentista do governo e dos megaeventos. Também abordaram como essas paralisações produziram deslocamentos e reposicionamentos nos atores em presença, entre eles, notadamente, o ator sindical tanto ao nível local quanto ao nível nacional (Véras de Oliveira, 2014; Rombaldi, 2014).7
Em junho de 2013, o Brasil viveu um conjunto de manifestações8 com a participação de atores sociais diversos. Iniciado pelos movimentos sociais que reuniam a juventude em torno do debate sobre a tarifa do transporte público, tendo à frente o Movimento Passe Livre, as manifestações tiveram rumo diferente após situações de violência policial. Com a pauta de “não é só pelos 20 centavos”, milhões de pessoas tomaram as ruas do país pedindo melhorias nos serviços de saúde, educação, segurança e com palavras de ordem contra a corrupção. Foi um movimento multifacetado, com orientação disputada, no qual, em seu desenvolvimento, couberam grupos de esquerda e de direita e que, até hoje, tem servido aos mais variados tipos de interpretação.
Não se contestava apenas o preço da passagem de ônibus, mas colocava-se em discussão o papel das instituições políticas tradicionais, como os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), os partidos políticos, os movimentos sociais tradicionais e os sindicatos. A ausência de alguns desses agentes nas manifestações de junho de 2013, seja como protagonista ou coadjuvante, foi fortemente notada, pois não estava relacionada a uma proposta de resistência a um movimento apartidário, mas ao próprio posicionamento desses atores sobre as manifestações que questionavam o establishment, o que incluía os seus representantes.
É nesse contexto que também se discute o papel da democracia liberal representativa. O avanço do uso das redes sociais digitais como espaços de discussão e participação política construía o imaginário de uma maior presença das pessoas no debate político público, que não mais dependiam de representantes para expor suas ideias e reivindicar seus direitos. Movimentos diversos surgiram nesse contexto, como o Vem para a Rua e o Movimento Brasil Livre, ambos de viés conservador. Aos poucos, as sementes da contestação à ordem constituída começaram a frutificar em propostas que deslegitimavam as instituições políticas e avançavam para uma mudança no estado de coisas (Maricato et al., 2013; Abranches et al., 2019).
Apesar de pouco mencionadas nas análises mais gerais sobre aqueles eventos, as forças sociais do trabalho estiveram presentes às manifestações (Singer, 2013; Antunes & Braga, 2013; Boito Jr., 2013; Braga, 2013, 2015), talvez não da forma tradicional ou da maneira como se esperava. Em meio às manifestações, uma chamada de “greve geral” foi feita pelas redes, sem qualquer participação dos sindicatos e/ou centrais sindicais, que reagiram chamando ao “dia nacional de luta”. Nesse cenário, os sindicatos acabaram se vendo em uma encruzilhada, assim como as demais instituições democráticas.
A crise dos sindicatos é algo posto no debate das ciências sociais há décadas (Rodrigues, 1999; Cardoso, 2003; Boito Jr. & Marcelino, 2010). No entanto, os governos do PT trouxeram novas perspectivas ao movimento sindical, que se viu em contexto mais favorável e alcançou ganhos como o estabelecimento de negociações coletivas com aumentos salariais superiores à inflação e o reconhecimento legal das centrais sindicais e sua inclusão na partilha da contribuição sindical compulsória (Cardoso, 2014). As manifestações de 2013 tornaram-se, então, um novo marco para os sindicatos, pois eles não foram agentes considerados no espectro de instituições a serem incluídas naquele processo, senão criticamente. O declínio anunciado por Rodrigues (1999) parecia se tornar realidade.
A isso, associa-se o esgotamento de políticas que impulsionaram o desenvolvimento econômico e social brasileiro, com o avanço de pautas regressivas e as chamadas políticas de austeridade fiscal que atingiram fortemente o trabalho e que exigiram respostas do movimento sindical (Santana, 2015). A crise era vista de ângulos diferentes. Por um lado, havia o entendimento de que a crise experimentada pelo sindicalismo brasileiro naquele momento era resultado da virada “negocial” de setores do sindicalismo, anteriormente marcados por práticas mais “combativas”. A entrada desses agentes na estrutura do governo teria acarretado distanciamento da ação sindical de pautas reivindicatórias e de contestação e da real luta da classe trabalhadora (Antunes & Silva, 2015). Por outro, considerava-se que a ideia de crise estava relacionada às críticas enfrentadas pelo projeto hegemônico da CUT e do PT (Cardoso, 2015) e não à perda efetiva de vigor do movimento sindical brasileiro, pois percebia-se um avanço da sindicalização no setor rural e entre as mulheres (Silva & Campos, 2014; Rodrigues, 2015), principalmente no setor da agricultura familiar (Rodrigues & Ladosky, 2015), ao mesmo tempo que as negociações coletivas se tornavam mais efetivas (Cardoso, 2015).
A despeito do crescimento expressivo da sindicalização das mulheres, elas ainda vão encontrar, ao longo de todo o período, sérias limitações no sentido de participação e representação mais plenas e igualitárias na vida sindical, bem como enfrentar as desigualdades na sociedade e no mercado de trabalho (Ferreira, 2004; Lima, 2005, 2006; Teixeira & Pelatieri, 2008; Daniel, 2011).9 Na intersecção das dimensões de classe, raça e gênero, o debate sobre o trabalho doméstico e as formas de organização das trabalhadoras domésticas (Acciari, 2016; Fraga & Monticcelli, 2021; Araújo & Barros de Oliveira, 2021) colocou questões importantes e marcou o contexto da construção e apresentação da chamada “PEC das domésticas”, bem como seus desdobramentos e repercussões. A aprovação desta PEC tornou-se possível devido a uma intensa mobilização dos sindicatos de trabalhadoras domésticas ao longo do tempo, à sua articulação com movimentos e pautas raciais e de gênero e ao governo, que colocou o tema do trabalho doméstico na agenda política, direcionando essas demandas aos seus órgãos, secretarias e ministérios (Fraga & Monticcelli, 2021).
Outros fatores colocavam-se como desafios à ação sindical, o que motivava ainda mais a busca pelo entendimento dos caminhos percorridos pelo sindicalismo brasileiro. O fortalecimento de formas ditas atípicas de trabalho – com o estímulo ao empreendedorismo e o crescimento da digitalização do trabalho, que apresentaram à classe trabalhadora o que seria uma perspectiva de liberação de espaços de trabalho opressores, de flexibilidade para jornadas e, principalmente, de tornar-se seu próprio patrão (Abílio, 2019; Castro, 2015, 2016) –, assim como os impactos da terceirização e da incorporação da juventude trabalhadora precária no mundo do trabalho, tensionavam o sindicalismo em termos de sua organização e ação (Véras de Oliveira, 2015; Braga & Santana, 2015).
A juventude trabalhadora precária fortaleceu-se como protagonista política no movimento sindical neste período, incorporando em sua discussão pautas no âmbito do trabalho e para além dele, como, por exemplo, as políticas LGBTQIA+, o que evidenciava a importância de os sindicatos entenderem a classe trabalhadora como composta por múltiplos sujeitos e identidades, que precisam também estar representadas na estrutura sindical e nas suas articulações (Braga & Santana, 2015). A crise do sindicalismo, assim, poderia ser vista para além da crise de um dado projeto, mais pela limitação e dificuldade do movimento sindical em incorporar as mudanças sociais ocorridas nos últimos 20 anos, inclusive no próprio perfil da classe trabalhadora. Nesse sentido, parcela considerável do sindicalismo ainda se mantém presa a um dado modelo de sindicato e a uma forma de fazer sindicalismo.
A esse cenário, que já evidenciava a heterogeneidade de relações de trabalho e interesses sociais com que o sindicalismo precisou lidar, agregou-se um aprofundamento da crise da democracia e das pautas progressistas, levando o movimento sindical a recuar em termos da ação sindical, concentrando seus esforços na luta por sua própria sobrevivência. A crise econômica e política, que se aguça a partir de 2015, pavimentou o caminho para o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, o qual foi acompanhado pelo retorno da agenda que visava reduzir os direitos dos trabalhadores e o poder de mobilização dos sindicatos.
Se antes já havia um questionamento sobre o papel dos sindicatos, a partir de 2016, a importância deste agente para a política e para a representação da classe trabalhadora se tornou alvo de agressiva política de governo. A ascensão de Michel Temer à Presidência da República fortaleceu o discurso sobre a necessidade de uma reforma na legislação trabalhista, em termos de incluir outras possibilidades de contratação, como o contrato de trabalho intermitente e a terceirização da atividade-fim, assim como de reduzir o papel dos sindicatos nos processos de negociação. Como marco central, tinha-se a proposta de colocar o negociado com prevalência sobre o legislado.
A reforma trabalhista foi concretizada na Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, acarretando impactos significativos para a ação sindical. A reforma trazia, em uma de suas claras intenções, o ataque direto aos sindicatos (Véras de Oliveira et al., 2019). Estava patente em sua concepção que os sindicatos precisavam ser abatidos, deixando caminho livre para a implantação da completa destituição de direitos que se visava. E, de fato, o impacto foi duríssimo.
Olhando-se os setores profissionais de forma geral, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ainda que já mostre declínio desde 2013 e mesmo podendo estar relacionado a diversos outros fatores (Campos, 2021), o número de trabalhadores afiliados aos sindicatos cai com maior intensidade, após a reforma, em 2018 e 2019. Mesmo no setor público, dado o temor das perdas com a reforma da previdência, foi grande o número de aposentadorias, desligando uma geração com mais proximidade com os sindicatos. Por outro lado, com o fim da obrigatoriedade da contribuição sindical, que passou a ser opcional com a reforma trabalhista, de forma vertiginosa, sem nenhum processo de transição, as entidades tiveram perdas enormes no que tange à sustentação financeira.
Esta perda variou por setores e categorias, entre os servidores públicos, por exemplo, manteve-se certa estabilidade comparativamente; mas, na média, em outros setores, chegou-se até cerca de 80% de perda de arrecadação, atingindo em cheio estruturas e dinâmicas da vida sindical no país. Com um só golpe, foi alterado todo o ambiente de regulação do trabalho, precarizando ao limite e retirando de suas forças sociais um dispositivo central com o qual pudessem resistir ao contexto adverso que se estabelecia.
Novos desafios então se colocam para os sindicatos e para os pesquisadores da área, tendo a reforma assumido o lócus central da análise (Krein, Gimenez & Santos, 2018; Krein, Véras de Oliveira & Filgueiras, 2019; Antunes & Praun, 2019). Logo após sua promulgação, claras tendências de flexibilização das negociações coletivas (Colombi et al., 2021) e de perda de força da ação sindical em períodos posteriores a 2017 foram identificadas, principalmente entre sindicatos com baixa tradição sindical e de profissões com um nível maior de precarização (Galvão & Teixeira, 2018). Esta tendência se intensifica após a reforma, com o avanço das pautas patronais nas negociações coletivas, como o parcelamento de férias, contrato intermitente, a prevalência do negociado sobre o legislado e a verificação da queda nas taxas de sindicalização e na arrecadação de recursos, demandando a construção de estratégias de sobrevivência pelos sindicatos (Scherer, 2019; Campos et al., 2021a).
Como veremos a seguir nos desdobramentos dessa conjuntura, apesar do cenário, como em muitos outros momentos, os sindicatos foram, aos poucos, apesar de combalidos, reagindo no período. Várias experiências foram postas em prática. Uma ação importante foi a busca por ampliar as filiações, com campanhas continuadas, dotando as entidades de novos(as) filiados(as), de maior base de representação e de novo influxo de recursos que pudessem sustentar as atividades sindicais. Em outro flanco, muitos setores conseguiram recursos pela via da contribuição negocial, vinculada à negociação coletiva e aprovada em assembleias das categorias. Assim, ainda que em um processo em construção, os sindicatos foram se adaptando e sobrevivendo.
A isso, associou-se o desenvolvimento de novas formas de engajamento e de luta diante da precarização cada vez maior das relações de trabalho e da crescente erosão dos valores democráticos, o que pode indicar o declínio de um certo tipo de sindicalismo e o surgimento de outros padrões de organização da classe trabalhadora.
Se não bastasse todo o quadro descrito acima, em 2020, o país foi colocado, como o resto do mundo, de ponta cabeça com a chegada da pandemia da Covid-19. Ela revelaria e agravaria o verdadeiro resultado desse conjunto de reformas sobre a classe trabalhadora e os seus setores mais precários. Isso ficou material, simbólica e tragicamente claro no fato de que, entre as primeiras vítimas no Brasil, tivemos uma mulher negra, trabalhadora doméstica, contaminada no espaço de trabalho pela patroa que voltara de um tour pela Europa.
Os locais de trabalho e o deslocamento até eles nas aglomerações, nos péssimos sistemas de transportes coletivos, tornaram-se pontos de contágio importantes. A visão ilusória de que na pandemia estávamos “todos(as) no mesmo barco” e de que ela era “democrática” em seus impactos caiu por terra rapidamente quando todos os números passaram a mostrar que a sua tragédia, por óbvio, tinha classe, raça, gênero e etnia, sendo os já vulnerabilizados socialmente os mais atingidos (Santana, 2021).
Nesse sentido, os impactos da pandemia sobre a classe trabalhadora, seus sindicatos e suas ações passaram a estar no centro de um conjunto de investimentos analíticos, atraindo importante atenção da literatura.10 O necessário isolamento social demandado pela emergência sanitária – que direta ou indiretamente obrigou a uma retirada das ruas, da circulação e do encontro – e a migração para as interações por telas tiveram claros efeitos nas sociabilidades em geral, sobretudo naquelas que têm no encontro coletivo e nas ruas um de seus centros de existência. As consequências para o movimento sindical, nos mais variados setores e categorias, foram de grande monta, propondo-lhe desafios e reorientações em múltiplas dimensões (Pessanha & Rodrigues, 2020; Campos, 2020a, 2020b; Framil Filho & Mello e Silva, 2020; Santana, 2021; Trópia, 2021; Rodrigues et al., 2022).
Os sindicatos nem tinham se recuperado da fragilidade produzida pelas políticas regressivas implementadas na conjuntura anterior e já tiveram de lidar com um cenário que dificultava ainda mais suas possíveis ações. Pode-se dizer que as entidades sindicais se desdobraram entre as ações já usuais na sua trajetória pré-pandemia e aquelas que precisaram empreender no novo cenário pandêmico estabelecido. Há uma clara articulação da permanência de repertórios de ação coletiva já consolidados com a introdução de inovações táticas importantes (McAdam et al., 2009).
Como habitualmente, os sindicatos tiveram trabalho importante, onde foi possível. Por exemplo, nas negociações trabalhistas, no sentido de impedir perdas de direitos (Pessanha & Rodrigues, 2020; Campos, 2020a, 2020b; Framil Filho & Mello e Silva, 2020; Trópia, 2021; Rodrigues et al., 2022).
Nesse quadro, os sindicatos não apenas continuaram negociando e defendendo os interesses de suas bases, nas negociações coletivas regulares, mas também precisaram lidar com outras novas questões que se apresentaram. O governo tomou medidas com o objetivo de dificultar a participação coletiva nesses processos, visando sempre a sua troca por mecanismos de escolhas e definições individualizadas. Isso ficou explícito na participação dos sindicatos nos processos de negociação acerca da proposta do governo de suspensão parcial ou integral dos contratos de trabalho, garantindo, sempre que a correlação de forças permitiu, que o rolo compressor e a devastação não fossem totais. Naqueles setores com baixa ou nenhuma representação sindical, esses embates foram ainda mais difíceis.
Com a pandemia, novas complexidades organizativas e mobilizatórias se apresentaram, aumentando os desafios postos aos sindicatos e suas lideranças, já que, como indica Campos (2020a, 2020b), as recomendações sanitárias impuseram limitações ao funcionamento das entidades sindicais e ao trabalho de base de suas lideranças, relacionadas tanto às restrições à circulação de pessoas quanto ao fechamento de locais de trabalho, desafiando sua capacidade de diálogo e representação. Em alguns setores, em que os locais de trabalho continuaram operando, foi possível aos sindicatos manter algumas de suas rotinas, ainda que de forma limitada, de visita a esses espaços e de contato direto com sua base de representação.
Todo esse contexto fez com que as ações sindicais incorporassem um conjunto de novas dinâmicas relacionadas ao uso das tecnologias digitais (Pessanha & Rodrigues, 2020; Campos, 2020b, 2020c; Framil Filho & Mello e Silva, 2020; Trópia, 2021; Cardoso, 2022; Rodrigues et al., 2022). Assim, defendendo o isolamento social, mas buscando encurtar o distanciamento, tornou-se corrente, via meio digital, a realização de reuniões e assembleias, lives sobre os mais variados temas, formação de grupos de WhatsApp etc. Por certo, apesar de manter contatos e diminuir distâncias, essa incorporação não se deu sem desafios, entre outras coisas, pelo fato de que, em muitos casos, ela se estabeleceu e foi utilizada de forma pouco interativa como via de mão dupla. De toda forma, são muitas as experiências em que foi observada até maior aproximação e participação das bases em termos de contatos com suas entidades.
Outra dimensão importante da ação sindical durante a emergência sanitária foi o incremento de sua busca por articulação com outros setores sociais no sentido de buscar sinergias (Campos, 2020c; Framil Filho & Mello e Silva, 2020). Assim, pode-se perceber não apenas o trabalho conjunto no âmbito das centrais sindicais, mas também as articulações, seja com as frentes de mobilização, seja com outras formas de coalizão. Contudo, deve-se assinalar ainda suas limitações no sentido de buscar relações com setores mais precários, fora de sua alçada tradicional de representação e articulação, bem como de uma maior construção de vínculos e ações diretamente inseridas nos territórios, que possibilitassem uma maior intersecção de demandas e de lutas (Campos, 2020c; Rodrigues et al., 2022).
A classe trabalhadora brasileira – que se viu sob um governo que desprezava a doença e as proteções sanitárias e sociais –, salvo o setor público, que conseguiu garantir direitos apesar das pressões, dividiu-se em grupos, entre outros, que estavam no desemprego em massa, com contratos suspensos ou de redução de jornada e salário, e na informalidade. Em termos de estratégias, onde foi possível, as empresas, além da suspensão de contratos e redução de jornadas e salários, aceleraram a implantação do chamado home office, que cobriu cerca de 15% de nossa força de trabalho.
Ao mesmo tempo que protegeu setores da classe trabalhadora da exposição, essa forma de trabalho trouxe também impactos à saúde física e mental dos trabalhadores, separou os coletivos de trabalho, isolou individualmente trabalhadores, dificultou a agência coletiva e sindical, obrigou os trabalhadores a cargas horárias extensas e pesadas, transformando o espaço da casa em local de trabalho. Essa forma de trabalho sobrecarregou sobretudo as mulheres, dadas as múltiplas jornadas já impostas no espaço dos lares. Muitas dessas mudanças, mesmo com a flexibilização das medidas sanitárias restritivas, indicam que as empresas usaram as práticas emergenciais no contexto de pandemia também como experiência para tempos futuros.
De todo modo, apesar das grandes limitações da emergência sanitária, o mundo do trabalho brasileiro se movimentou em termos de mobilizações e greves, com variação de tipo, demanda, setor, duração e resultado, tendo nos sindicatos atores importantes e canalizadores da conflitividade social. Segundo levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o ano de 2020 se encerrou registrando 649 greves, 64% delas organizadas por trabalhadores da esfera privada e 30% por trabalhadores da esfera pública (funcionalismo público e empresas estatais). Esse total anual representa uma diminuição de 42% em relação às 1.118 greves ocorridas em 2019 (Dieese, 2021b).
Estas greves trouxeram um conjunto variado de demandas que tiveram, cada uma à sua maneira e medida, a marca dos impactos da pandemia nos diversos setores da classe trabalhadora, com pautas que vão desde questões salariais até a proteção contra os riscos de contágio (Santana, 2021). Ao observar-se o quadro do reivindicado pelas mobilizações, temos que as relacionadas ao pagamento de vencimentos em atraso (salário, férias e 13º) foram as mais frequentes (40%). Em seguida, presente em 22% das greves, está a exigência de reajuste nos salários e nos pisos salariais – e, também, com a mesma participação percentual, as questões relacionadas à alimentação. Itens relacionados às condições de segurança e ao fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPIs) ocuparam 16% da pauta grevista, em 2020. Destaques para reivindicações relacionadas à pandemia de Covid-19 (Dieese, 2021a).
Pode-se dizer, contudo, que nada foi tão marcante nesse contexto de emergência sanitária, ganhando a cena e o debate público, quanto a organização, mobilização e ação coletiva dos setores precários das classes trabalhadoras. Nesse sentido, o mês de julho de 2020, através dos chamados #brequedosapps organizado por entregadores por aplicativos, passou a figurar entre os momentos de destaque na longa história da luta dos trabalhadores no país. A categoria já vinha atraindo atenção de análises acadêmicas, mas não há como negar que, com sua mobilização, atraiu ainda mais investimento analítico. Interessante também perceber, neste particular, que muitas análises foram feitas no calor dos acontecimentos e tiveram nas redes sociais um importante espaço de acolhimento e divulgação.
Um amplo e diverso conjunto de análises foi produzido sobre as múltiplas dimensões daquele movimento, bem como acerca da categoria que o empreendia. Sobre a mobilização em si, por exemplo, algumas análises fornecem elementos importantes para pensar limites e possibilidades das formas de organização e orientação, para dentro e para fora, daqueles movimentos, bem como para a avaliação de seus impactos efetivos (Santana & Braga, 2020; Abílio, 2020; Galvão, 2020a, 2020b; Praun, 2020; Dutra & Festi, 2020). Outras trazem a lume informações importantes para o entendimento do perfil socioeconômico e das condições de trabalhoda categoria na pandemia (Abilio et al., 2020; Manzano & Krein, 2020). Já no que diz respeito à questão da regulação trabalhista, alguns estudos deixam claras a tentativa das empresas de burlá-la e suas estratégias de contratação e gestão do trabalho, explicitando os vínculos que elas insistem, por óbvios interesses, em negar (Filgueiras & Antunes, 2020).
O movimento de entregadores, ou o #brequedosapps, ocorrido em dois atos nos dias 1º e 25 de julho de 2020, agitou a cena pública com sua mobilização, que tomou conta de várias capitais do país. Eles(as) se situaram na ponta mais aguda da luta contra a precarização do trabalho e da vida no país, em um quadro de desproteção social instituído nos anos recentes no Brasil, desvelando os processos laborais, sociais e políticos que nos haviam trazido até ali, e apontavam tanto para o possível espalhamento daquele quadro para amplos setores da classe trabalhadora, como para os possíveis caminhos de resistência (Santana & Braga, 2020; Galvão, 2020a, 2020b; Santana, 2021).
Assim, a luta de entregadores contra a precarização do trabalho e da vida forneceu grande contribuição para abrir e orientar caminhos para muitos outros setores e movimentos nessa direção. A manifestação, sobretudo, colocou explicitamente a centralidade do trabalho e das lutas oriundas desse universo. Não se poderá falar da pandemia e de seus impactos laborais no Brasil sem falar da resistência da classe trabalhadora, principalmente dos trabalhadores precários.
Acompanhando os percursos seguidos pelo sindicalismo e pelas análises acadêmicas sobre o campo sindical no período, fica clara a indicação do forte conjunto de mudanças no mundo do trabalho, de alterações nas configurações do trabalho e no perfil da classe trabalhadora, bem como da lida dos sindicatos para dar conta das transformações sociais, políticas e econômicas de cada momento analisado.
Os sindicatos não foram organizados sempre da mesma forma ao longo da história, sendo fruto de um conjunto variado de experimentações políticas e organizativas. Durante o longo período fordista, nos países do capitalismo central e até em sua periferia, consagraram um certo modelo que acompanhava as bases daquele sistema de produção. Tal fato não nos deve fazer esquecer vários outros momentos e experiências de organização, de formação e perfis muito diferentes do movimento de trabalhadores. Esses processos e/ou mutações sempre levaram a períodos de descompassos e ajustes e, nesses momentos, ressurge o debate de posições sobre a crise, o declínio e a “morte” dos sindicatos.
Não se trata de desconsiderar tendências, que, inclusive, podem ser lidas de diversas formas; a questão aqui é relativizar algumas visões, que reaparecem recorrentemente em determinados cenários, indicando o fim quase iminente dos sindicatos ou que estas instituições seriam organismos sem muita importância nas sociedades contemporâneas. Desde os anos 1990, na primeira onda de neoliberalismo no país, quando floresceram essas ideias, já se vão longos trinta anos. Desse modo, poderíamos falar das muitas mortes do sindicalismo?
Muitas dessas tendências acabaram sendo ralentadas ou estancadas e, em alguns casos, até alteradas por outros fatores, como as mudanças de cunho político mais amplo. Se foram reforçadas por certos governos, não necessariamente o foram, da mesma maneira e/ou na mesma intensidade, por outros. Os governos e suas políticas, dos anos 1990 e os de 2016 até aqui, guardam diferenças de impactos sobre o sindicalismo com aqueles de 2003 até 2015. A economia é importante, mas a política também tem seu lugar no cenário. Dessa forma, não há por que, olhando-se a experiência histórica e o que vem acontecendo atualmente, negar a possibilidade de os sindicatos, diante do presente quadro, alterarem estruturas, formas e dinâmicas de organização e ação. Isso não se dará no vácuo, terá de se haver com tradições, estruturas e práticas que os caracterizaram até aqui, em um processo que não se faz sem alguma tensão e articulando-as com as demandas dos novos tempos.
Os estudos aqui apresentados dão conta disso. Nos três momentos, em suas diferenças sociais, políticas e econômicas, questões foram postas aos sindicatos e eles tiveram de, seja em cenários favoráveis ou não, de uma forma ou de outra, respondê-las. Muitas das críticas endereçadas ao sindicalismo, bem como seus dilemas e impasses, neste período, já estiveram presentes em outros cenários no sentido do questionamento de suas formas de estrutura e organização, de suas pautas e orientações, de suas formas de luta e mobilização. Mas, se já desde a virada dos séculos XX e XXI muitas dessas questões estavam colocadas, foram ainda mais radicalizadas nas duas últimas décadas.
O sindicalismo tem uma longa e importante trajetória de conquista e garantia de direitos para a classe trabalhadora. Não há por que, e nem como, prescindir deles. Seria interessante escapar às visões polarizadas e limitantes, que veem oposição excludente entre sindicatos e outros formatos de organização que vêm surgindo a partir do mundo do trabalho, a partir de novos perfis de formação de classe e de suas demandas, e de diferentes maneiras de canalizações da conflitividade social. Mais rico e produtivo seria pensar nas possíveis sinergias e potências das relações entre diferentes agências, sem exclusivismos. Em termos de mobilização, teremos de ver como, e se, eles buscarão incorporar mais trabalhadores em suas movimentações, bem como de que modo outros setores e categorias podem se associar a essa luta contra a precarização do trabalho e da vida imposta pelo capitalismo em sua nova fase. Uma vez mais, os sindicatos jogarão aí o seu destino. Por sua importância concreta para a classe trabalhadora e suas representações, essas e outras questões apontam para novas agendas de pesquisa e investigação que devem chamar atenção dos estudos do trabalho nesta nova conjuntura.