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Merenda escolar e mobilização social: implicações teóricas de um projeto social na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro
César Sabino
César Sabino
Merenda escolar e mobilização social: implicações teóricas de um projeto social na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro
School lunch and social mobilization: theoretical implications of a social project in Baixada Fluminense, Rio de Janeiro
Alimentación escolar y movilización social: implicaciones teóricas de un proyecto social en la Baixada Fluminense, Rio de Janeiro
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 12, e-rbs.885, 2024
Sociedade Brasileira de Sociologia
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Resumo: O trabalho analisa a execução de um projeto de educação alimentar em uma escola municipal da Baixada Fluminense no Rio de Janeiro, buscando contribuir para o aprimoramento metodológico voltado à transformação dos hábitos alimentares dos discentes. Foram realizadas participações observantes, entrevistas abertas e observações diretas com alunos, professores e responsáveis pela distribuição das merendas e administração da escola e, principalmente, análise dos projetos e relatos fornecidos pelos responsáveis pelas atividades. Os resultados mostram que as ações de conscientização, ou seja, a explicação lógica e reflexiva a respeito dos elementos que constrangem e condicionam os comportamentos e valores alimentares dos atores sociais, não bastam para que estes realizem mudanças efetivas de condutas e pensamento. Para além da suposta mobilização reflexiva, percebeu-se que as ações mais eficazes para a transformação de hábitos foram aquelas capazes de atingir e mobilizar também desejos e afetos dos alunos.

Palavras-chave: Educação alimentar, Merenda escolar, Teoria sociológica, Sociologia dos afetos, políticas públicas.

Abstract: The work analyzes the implementation of a food education project in a municipal school at Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, seeking to contribute to the methodological improvement aimed at transforming students’ eating habits. Observational participations, open interviews and direct observations were made with students, teachers and those responsible for the distribution of lunches and school administration, and mainly analysis of the projects and reports provided by those responsible for the implementation of the activities. The results show that awareness actions, that is, the logical and reflexive explanation about the elements that constrain and condition the behaviors and dietary values of social actors are not enough for them to make effective changes in conduct and thought. In addition to the supposed reflexive mobilization, it was perceived that the most effective actions for the transformation of habits were those capable of achieving and mobilizing also desires and affections of the students.

Keywords: food education, school lunch, sociological theory, sociology of affections, public policies.

Resumen: El trabajo analiza la ejecución de un proyecto de educación alimentaria en una escuela municipal de la Baixada Fluminense de Río de Janeiro, buscando contribuir a la mejora metodológica encaminada a transformar los hábitos alimentarios de los estudiantes. Se realizó participación observadora, entrevistas abiertas y observaciones directas a estudiantes, docentes y responsables de distribución de comidas y administración escolar, y, principalmente, análisis de los proyectos e informes proporcionados por los responsables de las actividades. Los resultados muestran que las acciones de sensibilización, es decir, la explicación lógica y reflexiva sobre los elementos que constriñen y condicionan las conductas y valores alimentarios de los actores sociales, no son suficientes para que estos realicen cambios efectivos en el comportamiento y el pensamiento. Además de la supuesta movilización reflexiva, se constató que las acciones más efectivas para el cambio de hábitos eran aquellas capaces de alcanzar y movilizar los deseos y afectos de los estudiantes.

Palabras clave: Educación alimentaria, Almuerzo escolar, Teoría sociológica, Sociología de los afectos, Políticas públicas.

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Artigos

Merenda escolar e mobilização social: implicações teóricas de um projeto social na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro

School lunch and social mobilization: theoretical implications of a social project in Baixada Fluminense, Rio de Janeiro

Alimentación escolar y movilización social: implicaciones teóricas de un proyecto social en la Baixada Fluminense, Rio de Janeiro

César Sabino
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 12, e-rbs.885, 2024
Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepción: 08 Noviembre 2022

Aprobación: 22 Febrero 2024

Introdução

O trabalho visa a analisar de forma breve os resultados (sucessos e limites) da execução de um projeto de educação nutricional e alimentar (ENA), o qual buscou transformar hábitos e comportamentos de crianças e adolescentes em uma escola municipal do bairro de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro – a Escola Municipal Orlando Francisco – Emof. O projeto denominado Nutrindo Hábitos Escolares (NHE) é resultado da parceria entre a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e o Instituto de Técnica e Gestão Moderna (ITGM).

Foram realizadas análises nutricionais e administrativas pelo mesmo instituto, resultando em relatórios mensais assinados por uma nutricionista e um médico. O estudo dos conteúdos presentes nos relatórios mensais foi fundamental para a produção deste artigo. Além da análise detida dos relatórios impressos, foram realizadas, ao longo da duração do projeto, entrevistas abertas com o corpo docente e discente, direção da escola, merendeiras, assim como conversas frequentes com um informante privilegiado pertencente à própria empresa prestadora de serviços. Os relatórios do ITGM – da mesma forma que os resultados do trabalho de campo – expõem as relações sociais entre os componentes envolvidos no processo de implementação e produção das atividades cotidianas de entrega, distribuição e consumo das refeições. Em outras palavras, práticas e representações dos funcionários da escola, alunos e responsáveis especialistas do ITGM e da Unirio. Além disso, relatam palestras e debates realizados para o contingente escolar geral: merendeiras, corpo discente, docente e pais. De acordo com o propósito inicial,

o projeto Nutrindo Hábitos Escolares tem por objetivo o atendimento nutricional balanceado para os alunos da Rede Municipal de Ensino Infantil e Fundamental, através do fornecimento de refeições balanceadas bem como desenvolvimento de hábitos alimentares saudáveis que possam ser ensinados aos responsáveis e aos alunos através de palestras e eventos educativos.

(Projeto NHE, 2020, p. 2)

Ainda,

o projeto [...] tem o intuito de proporcionar orientação às crianças e adolescentes sobre os riscos da alimentação desregrada e suas terríveis consequências. Apoiar, alertar, motivar e engajar os pais e familiares, no intuito de combater esse grave problema, faz-se imprescindível. O foco do projeto não é apenas fornecer alimentação, mas sim, propiciar elementos que venham mudar as rotinas alimentares deficientes e prejudiciais do nosso público-alvo.

(ITGM, Relatório. Janeiro de 2022, p. 9).

A vasta quantidade de dados levantados no projeto não poderá ser analisada nos estreitos parâmetros deste artigo, sendo trabalhada posteriormente em outras oportunidades. Nesse aspecto, nosso objetivo limita-se a uma sucinta análise sociocultural dos resultados da ação conjunta da Unirio e do ITGM na implementação e gestão do projeto NHE na Escola Municipal Orlando Francisco, verificando aspectos positivos e negativos relacionados à produção das atividades. Buscamos, portanto, averiguar quais pontos levam à eficácia e eficiência (ou não) em relação à transformação do comportamento alimentar dos alunos e responsáveis, ressaltando a necessidade de buscar a compreensão das representações sociais ou culturais1 e das práticas dos envolvidos e sua relação com a mudança do consumo alimentar. Se alcançada essa meta de pesquisa, as conclusões gerais talvez possam servir como crítica ou sugestão, a ser aplicada, ao menos em parte, a outras atividades e ações sociais que envolvam a ideia de transformação de comportamentos e hábitos, sejam quais forem, ou servir ao menos como advertência para a necessidade de aprimoramento dos métodos de convencimento e mudança de comportamento alimentar por parte do público-alvo.

O trabalho sociológico é um importante aliado das pesquisas nutricionais e médicas, além de contribuir para a compreensão crítica de políticas públicas, posto destacar hábitos inconscientes, afetivos e emocionais que podem interferir no processo de “conscientização” ou reflexividade, impedindo transformações de costumes e comportamentos que contribuam para deficiências alimentares e carências na saúde das crianças, adolescentes e seus responsáveis.2 Em consonância, o projeto Nutrindo Hábitos Escolares (NHE) tem como objetivo

incutir nas crianças e seus familiares a formação de hábitos alimentares saudáveis bem como a cooperação dos pais incentivando e estimulando a adesão de seus filhos para que juntos [garantam] o sucesso no resultado a ser alcançado

(ITGM, Relatório julho, 2021, p. 2).

Essa ação, partindo da perspectiva das ciências da vida, no caso a nutrição, depara-se com problemas de comportamentos tradicionais e afetivos que, em suas próprias existências, questionam o que vem a ser hábito saudável. A partir dessa questão fundamental buscaremos compreender de que forma o problema foi colocado pelos esforços do projeto, como foi possível contorná-lo (ao menos em parte) e de que forma as atividades desenvolvidas pelo mesmo projeto, neste aspecto, podem servir de orientação ou alerta crítico para empreendimentos futuros.

Enquanto o consultor de políticas públicas e administrador busca formular e definir – em associação com lideranças político-institucionais e administrativas – a implementação e a responsabilidade a respeito das mesmas, as ciências sociais (ciência política, sociologia e antropologia), por sua vez, interessam-se pela análise posterior dos déficits de implementação enfocando, com frequência, os pontos críticos de interseção das ações políticas, administrativas e privadas, visando ressaltar possíveis formas de aprimoramento e melhoria dessas políticas (Frey, 2000, p. 218; Rua, 2009, p. 106-117). É isso que procuramos realizar.

No caso dos programas educacionais direcionados para a transformação de hábitos nutricionais, a estratégia multidisciplinar mostra-se de significativa importância, pois, ao contar com instrumentos metodológicos das ciências sociais, pode melhor perceber as condições comportamentais dos assistidos, suas formas de sentir, julgar e ordenar seu mundo. Formas relacionadas ao contexto sociocultural e econômico no qual estão envolvidos. Esse aspecto faz com que políticas públicas de “conscientização” demandem a criação de abordagens que possibilitem também a intervenção nas subjetividades buscando a modificação de costumes comprovadamente insalubres quando percebidos pela ótica biomédica e nutricional. Destarte, a sociologia pode colaborar para que pesquisadores, ativistas e políticos compreendam os elementos inconscientes relacionados ao desejo, os quais impedem o desenvolvimento3 social ou a eficácia de suas intervenções (Gabriel; Santos; Vasconcelos, 2008, p. 300).

Comida e alimentação

A comensalidade é uma experiência social constitutiva do ser humano. Para as ciências sociais, principalmente a sociologia e a antropologia, existem duas dimensões interligadas que, apesar das relações inseparáveis que apresentam na prática, precisam ser analisadas em suas dinâmicas e características próprias no aspecto teórico: a natureza e a cultura, o nutrir e o comer. Ainda que pesem as inúmeras discussões em trabalhos (artigos, livros e ensaios) questionando atualmente o que vem a ser cultura e natureza – a função dessa dicotomia, sua eficácia e de que forma existe (Viveiros de Castro, 2002; Latour, 1994; Wagner, 2017; Cunha, 2017) –, na esfera metodológica, a separação ainda se mostra útil, delimitando termos e facilitando a compreensão de questões referidas aos problemas de ordem alimentar e sociocultural em geral. A partir dessa oposição, a comida relacionar-se-ia à cultura e o alimento à natureza ficando para as ciências sociais a tarefa de analisar o sentido simbólico e para a nutrição e as ciências da saúde o aspecto biológico e suas características nutricionais. Se na esfera analítica essa dicotomia é útil para ordenar as ideias, no mundo prático os processos não estão exatamente dissociados. Todavia, a análise simbólica é fundamental para a compreensão de comportamentos alimentares e sua repercussão direta no que as ciências médicas consideram saúde, visto que, na prática, comer e alimentar-se quase nunca estão separados.

Costumes, comportamentos, tradições as quais são produto das práticas coletivas cotidianas relacionadas às classes sociais, grupos de status, interferem diretamente nas atitudes alimentares das pessoas e grupos, sendo que, aquilo que é considerado saudável pela ciência da saúde raramente se apresenta como importante elemento a ser considerado pela população quando relações sociais comensais se realizam.4 As práticas alimentares estão diretamente associadas às representações sociais ou culturais, produzindo sentidos e significados enraizados em classificações transmitidas, via socialização, de geração para geração, determinando o que comer, como comer, com quem comer, quando comer e o que é palatável, agradável, gostoso, insosso, de mau gosto e assim por diante. Comer é um dos elementos fundamentais de ordenamento social e de suas hierarquias representando condições materiais de existência que constituem distinções econômicas e simbólicas, representadas, por sua vez, por rituais individuais e coletivos que reforçam as desigualdades entre seres humanos e suas relações de dominação (Bourdieu, 1983, p. 85). Este aspecto, eminentemente social, é inseparável do existir da espécie e de sua distinção em relação aos outros seres vivos (Contreras & Gracia, 2011; Lévi-Strauss, 2021), formando um sistema de comensalidade que classifica e é classificado pelas relações sociais, e cujo funcionamento se inscreve no inconsciente dos indivíduos e os condiciona de acordo com suas posições nessas relações, sua autoridade e sua forma de classificar o que a ciência da nutrição denomina alimento.

As ciências sociais buscam, assim, compreender o alimentar-se não apenas como formas de saciar a fome e obter calorias necessárias, mas enquanto comensalidade, ritual que vai além da absorção de nutrientes fundamentais no processo que as ciências biomédicas consideram como parte da saúde. Assim, o alimento e a comida são dimensões indissociáveis, formando um fato social total (Mauss, 1974), o que, para a sociologia e a antropologia, significa um acontecimento biopsíquicosocial – não apenas biológico – com aspectos interligados a ponto de não ser possível abordar com sucesso apenas uma das suas dimensões sem interferir em outra, o que faz a eficácia da abordagem depender da aproximação interdisciplinar.

O comer humano é um aspecto constitutivo daquilo que conceitualmente se considera cultura,5 um dos itens que caracteriza e possibilita as relações sociais de acordo com a morfologia e o funcionamento estrutural que as mesmas relações assumem e compõem no tempo e no espaço. Em outras palavras, o conjunto de sentidos e significados presente nas representações e no imaginário referidos à comida reflete-se nas práticas rituais, cerimoniais, religiosas, festivas e medicinais que as exprimem, contribuindo para sua permanência social. Representações e imaginários coletivos interferem diretamente na formação das subjetividades e, assim sendo, em comportamentos e práticas – o que faz do comer e dos gostos e sabores a ele referidos parte afetiva fundamental das construções identitárias (Lordon, 2015; Durkheim, 2019; Rolnik, 2021). Processo ligado às hierarquias e suas racionalidades, emoções e sentimentos que reitera e tende a conservar a ordem ou a forma comensal de um grupo ou sociedade, refletindo suas hierarquias (Luz, 2011, p.8).

Buscamos, portanto, em um estudo exploratório de caráter sociológico, analisar dimensões socioculturais de uma realidade alimentar visando construir melhor entendimento das políticas públicas e implementações de ações sociais que não são pautadas apenas na busca imediata por auxílio aos necessitados, mas que também pretendem modificar formas de comportamentos, normas, visões e di-visões de mundo, enfim, hábitos que constituem a própria existência social de classe e pessoal. Os resultados da pesquisa podem vir a auxiliar a elaboração de projetos e planos de intervenção pelas ciências da saúde e, mormente, nutrição. Além disso, podem contribuir para intervenções que procuram transformar a realidade e as condições vigentes das relações organizacionais e institucionais, auxiliando no aprimoramento das políticas públicas.

O trabalho de educação alimentar em escolas demanda uma visão integral do ser humano que envolva, como dissemos, a prática multidisciplinar, considerando a condição do discente em seu contexto familiar, comunitário e social (Yokota et al., 2010). Portanto, a proposta é destacar possíveis elementos inovadores presentes em métodos e estratégias aplicados pelo projeto que possibilitem sua reprodução bem-sucedida em outras escolas. Além desse ponto, gostaríamos de destacar aspectos teóricos que possam contribuir para as discussões referidas à ordem e a mudança social.

A hipótese reflexiva

O projeto resultou da parceria entre o setor público e a organização social na saúde (OSS) denominada Instituto de Técnica e Gestão Moderna. Procedimento tornado comum no Brasil desde que o neoliberalismo iniciou sua participação nas políticas públicas. Deixando de lado, por ora, essa questão macrossociológica, o que nos interessa aqui é a eficácia, a eficiência, mesmo que parcial, da ação micropolítica realizada na Emof pelo projeto conjunto. Em outras palavras, o que a implementação das atividades sugere de positivo ou de alerta a ser possivelmente adaptado ou corrigido para outros projetos.

As atividades, supervisionadas pela Unirio, foram realizadas nas dependências da Emof com a participação do ITGM e do corpo de funcionários comandados pela diretora Sra. Euzimar Oliveira. As mesmas atividades principiaram com os movimentos logísticos que envolveram a organização dos espaços para a execução das refeições, sua salubridade e os meios de servi-las para o contingente de alunos, formado por crianças e adolescentes. Foi montada uma tenda-refeitório, ocupando metade do terreno daquilo que seria uma quadra poliesportiva. Reuniões foram realizadas com os responsáveis dos discentes para esclarecimento a respeito das atividades que envolveriam grande parte do contingente escolar, assim como foram solicitados aos mesmos que dessem seu consentimento para a participação dos alunos.

Assim, foram realizadas reuniões em forma de palestras com esses responsáveis (aqueles que puderam comparecer) em três diferentes horários do dia 22 de julho de 2021, alcançando boa parcela de adesão. As reuniões foram pautadas pelo modelo narrativo biomédico e nutricional destacando a importância da boa alimentação para o desenvolvimento físico e intelectual de crianças, adolescentes e dos próprios adultos. A partir dessa racionalidade, os discursos visaram esclarecer racionalmente, com vistas a “incutir” a necessidade de “formação de hábitos alimentares saudáveis” nas crianças e, também, para que os próprios responsáveis modificassem seu consumo alimentar. Sustentou-se que a conscientização dos responsáveis poderia induzir os dependentes não apenas a transformar seus comportamentos e hábitos alimentares, mas a cooperar com as atividades que seriam realizadas na escola, relacionadas à merenda, incluindo “a recuperação e revitalização dos canteiros para horticultura” nos quais “os alunos ser[iam] estimulados ao plantio e a colheita de hortaliças” (ITGM, Relatório julho, 2021, p. 3).

Após todo o processo de montagem dos espaços, avisos e alertas aos responsáveis, no dia 26 de julho de 2021 iniciou-se a distribuição das refeições com significativa adesão por parte dos alunos, sendo 386 refeições servidas apenas no mês citado. Além disso, foram realizados esforços legais para verificar a idoneidade, segurança higiênica e qualidade dos alimentos fornecidos pelas empresas produtoras e entregadoras das refeições – processo supervisionado pelos médicos e nutricionistas pertencentes ao projeto. Paralelamente, foram aferidas as medidas antropométricas dos alunos para serem posteriormente comparadas, reiterando a eficácia alimentar do projeto.

Dentro dos parâmetros da narrativa biomédica, as atividades empenharam-se em diagnosticar os efeitos dos nutrientes, elencando alimentos que contribuem para a promoção da saúde alimentar e ressaltando junto aos discentes, por intermédio de atos educativos, a necessidade de aprenderem a diferenciar os alimentos processados, in natura e os ultraprocessados, conscientizando-os do prejuízo que causam à saúde (ITGM, Relatórios, Novembro; dezembro, 2021) – tudo feito em uma linguagem científica, porém acessível.

Nesse aspecto, a narrativa biomédica colocou-se como autoridade capaz de intervir não apenas no aspecto nutricional da população, mas institucional e individual, prescrevendo comportamentos e intervenções baseadas em argumentos biológicos, não raro alheios aos aspectos psicossociais e econômicos que interferem no ato alimentar, transformando-o em ação comensal (Luz, 2012, p. 15-24; Contreras; Gracia, 2011, p. 109-147, 289-296). Apesar de sugerir a interferência sociocultural, isso é feito de maneira superficial e proforma em afirmações do tipo: “alimentação é sim um ato biológico [...], mas também cultural e até mesmo ecológico e político” (ITGM, Relatório, novembro, 2021, p. 7). Esta perspectiva, que tem sua inegável importância, também pressupõe – e esse é um aspecto geral que serve para todas as ciências que lidam com o ser humano – que o mesmo ser humano é um ser racional que, ao tomar consciência científica das variáveis que condicionam seus comportamentos, modifica-os, abandonando atitudes prejudiciais à sua saúde e à dos outros. A essa concepção de um homem consciente, o qual tem a liberdade natural de escolher os rumos e atitudes a serem tomados, tornando-se perfectível por intermédio do diálogo esclarecedor ou da comunicação racional com outros, denominamos hipótese reflexiva das ciências sociais. É suposto que, por ter essa capacidade, esse homo rationalis pode ser convencido, por meio da lógica discursiva, a escolher o comportamento mais adequado ao seu bem-estar e o da coletividade, transformando-se, assim, pela razoabilidade.

Visão que parece ter sido o pressuposto universal das ciências humanas, da saúde e políticas públicas em geral em seus esforços de “esclarecimento populacional”. Tendo sido, inclusive, o paradigma teórico dominante entre as elites dos movimentos ditos revolucionários na política, os quais partem da concepção de “consciência de classe”, adquirida racionalmente via lideranças partidárias esclarecedoras da condição popular oprimida. Essa hipótese da conscientização: a concepção de que uma autoridade competente (cientista, político, sacerdote etc.) levará, direta ou indiretamente, um tipo de saber verdadeiro, espécie de iluminação filosófico-científica àquelas pessoas que vivem na ignorância de suas condições socioeconômicas e culturais remete à visão racionalista de ser humano e natureza (Luz, 2012a). Concepção de origem cartesiano-iluminista a qual pressupõe, como sugerido, que a consciência, após ter sido “iluminada” pela racionalidade autorizada, produz ações e mudanças necessárias nas representações sociais (visões de mundo ou subjetividades individuais e coletivas) e nas práticas (ações, condutas e comportamentos, também individuais e coletivos), transformando a realidade social, ambiental, cultural e planetária.

No caso específico das políticas e ações voltadas para a transformação de hábitos alimentares via merenda escolar, a hipótese da conscientização permanece nos programas e literatura. Não se trata de questionar, sua importância educacional, a implementação de projetos de incentivo à merenda saudável para os discentes, muito menos sustentar que o uso do planejamento das ciências da saúde nas intervenções sejam caminhos a serem abandonados. De forma alguma. Nosso propósito é detectar elementos que passam despercebidos nessas ações institucionais e que podem ser compreendidos e agregados aos empreendimentos voltados para a melhoria dos projetos e seus resultados efetivos e de longa duração. Objetivamos uma visão crítica que venha somar aos métodos já praticados, uma perspectiva que perceba nas populações beneficiadas elementos mobilizadores de transformações: o desejo e as emoções, como a pesquisa deste projeto sugere.

Sob a perspectiva das ciências sociais poucos estudos nutricionais abordam hábitos alimentares da perspectiva populacional. Em geral os debates se realizam tendo como base dados sobre produção, comercialização, distribuição dentro de uma abordagem nutricional biomédica ou econômica ligada às políticas públicas (Secchi, 2010, p. 33-58). Como escreve Barbosa (2007, p. 89):

nesses casos, as ênfases recaem sobre os custos, os valores nutricionais e suas implicações para a saúde das populações e, também [...] sobre o próprio planeta [...] os aspectos valorativos e atitudinais [...] dessas populações são pouco conhecidos.

Embora sugestões a respeito da importância da cultura nos trabalhos ligados à questão alimentar existam, esse aspecto ainda é incipiente no que tange à maneira efetiva de transformar a conduta e as atitudes das crianças e mesmo dos pais em relação ao alimento. E, mesmo quando surgem nessas narrativas, ainda estão associadas às mesmas ideias de conscientização, esclarecimento e informação correta calcadas na concepção de convencimento reflexivo, armada de tabelas, cálculos de calorias e convicções sobre o que é ser saudável. Mesmo pesquisas e trabalhos da área das ciências sociais, após sustentarem a importância do contexto cultural, reiteram, caindo no mesmo senso comum douto, que a educação alimentar escolar por intermédio da merenda deve desenvolver a “busca [de] conscientização e criticidade” nos alunos e seus responsáveis (Fonseca & Carlos, 2023, p. 11).

Ora, ingestão nutricional sempre se realiza a partir de estruturas socioculturais e jamais se sai disso. Comida – e não apenas alimento – significa desejo, prazer, memória, costume, reciprocidade, diversão, enfim, emoção. Quase ninguém come pensando em equações ou tabelas, ainda mais quando se trata de adolescentes e crianças em idade escolar. A comensalidade (a forma de preparar, temperar, degustar etc.) é um reflexo da própria estrutura social que a contém e produz (Lévi-Strauss, 2021), extrapolando aspectos relacionados à quantificação calórica ou ao discurso acadêmico6 centrado em uma concepção metafísica de ser humano enquanto sujeito consciente de suas escolhas, liberto de constrangimentos econômicos e socioculturais. Discurso comum nas áreas da saúde que – aplicado ao problema da educação alimentar nas escolas e suas necessidades de mudanças de comportamentos para evitar patologias futuras e prejuízos imediatos – sustenta-se, como apontado acima, na necessidade de convencer pela lógica, pais e alunos, utilizando palestras, eventos e oferta de merenda.

Ocorre que, nos aspectos gerais, esse tipo de abordagem tem produzido resultados pífios. Apenas para citar uma pesquisa epidemiológica, realizada em idos de 2005, voltada para os resultados de projetos na área de educação alimentar em toda Grã Bretanha e publicada no The British Medical Journal (TheBMJ, um dos periódicos de medicina mais conceituados do mundo), mostrou que essas estratégias de prevenção ou mudança de comportamento nutricional centradas, por diversas vias, na “conscientização” das faixas etárias infantis e adolescentes “são amplamente fracassadas”, sendo que, no caso britânico, apesar de todo o investimento nessas campanhas buscando atingir também responsáveis, o problema da obesidade infantil – mas não apenas – continua se expandindo (Reilly et al., 2005, p. 4).

Com efeito, embora os avanços dos projetos e políticas voltadas para educação alimentar nas escolas ocorram, ainda se faz necessária a implementação de novas estratégias acompanhadas daquelas que funcionaram, ou seja, é preciso

uma definição mais segura da escolha das estratégias de promoção da educação nutricional, de acordo com as condições existentes em cada contexto. Dessa maneira, é possível uma maior potencialização do uso de recursos materiais e humanos sem que isto acarrete prejuízo na aprendizagem. Portanto, as oficinas de capacitação podem ser priorizadas, por oferecerem maior praticidade de ação e menor custo operacional

(Yokota et al.; 2010. p. 44).

Oficinas, hortas, eventos e ações dentro da escola, em geral mobilizam emocionalmente crianças e adolescentes, auxiliando a transformação, ao menos em parte, de seus comportamentos e subjetividades alimentares. É preciso destacar, assim, o papel das relações das crianças entre si e com o ambiente e, por conseguinte, seus sentidos e sensibilidades, como indica o projeto Nutrindo Hábitos Escolares, ressaltando a “gramática emocional” implícita em gestos, palavras, expressões e ações. Tudo isso em um ambiente preparado para enaltecer sentimentos que possam originar novas regras e valores

que devem ser sentidos e incorporados pelas crianças, [posto que] dar atenção à dimensão emocional de projetos pedagógicos e de produção de conhecimento, coloca [...] em xeque a primazia da dimensão cognitiva na análise desses fenômenos sociais

(Víctora; Coelho, 2019, p.17-19. Grifo nosso).

Não se trata de elaborar um caminho intelectual baseado nos sentimentos ou na estetização da política, trata-se de utilizar métodos existentes, porém ressaltando como elemento constitutivo humano e, portanto, fundamental, a dimensão desejante, criadora de esperanças, promessas de felicidade, sonhos, mitos, rituais, representações sociais e subjetividades das populações e grupos estudados. Elementos que podem ser agenciados – o marketing já realiza esse processo –, visando a transformação dos padrões de comportamentos (Guattari, 1992; Rancière, 2005).

Conscientização, desejo e afeto

A tradição racionalista ocidental reforçou dicotomias como corpo/mente, espírito/matéria, razão/desejo e assim por diante. Essa visão de origem metafísica e religiosa contribuiu, de acordo com Weber (2004), para a formação de parte da ciência moderna – processo intensificado quando o pensamento cartesiano associou-se à física newtoniana, produzindo a imagem mecanicista de natureza. Nessa esfera teórica, o aspecto racional do sujeito o levaria, por meio da reflexividade, a libertar-se dos constrangimentos naturais. A partir daí, por intermédio da mesma razão e tecnologia, a humanidade tornar-se-ia perfectível, ou melhor, a história, seguindo o caminho do progresso, conduziria ao aprimoramento social constante.

Assim, o conhecimento produzido no Ocidente, desde Platão, passando por Kant, Hegel e chegando a alguns pensadores contemporâneos, constitui-se pela visão de que a razão universal é única enquanto via de descoberta da verdade composta por leis imutáveis (de preferência traduzidas em linguagem matemática) constitutivas do universo e da mente do sujeito. Essa cosmologia, que está na estrutura de formação ao menos de parte da ciência, apresenta-se mesmo como doutrina em algumas disciplinas da saúde7 (Luz, 2012a; Camargo Jr. 2012).

As políticas públicas e as ações sociais em geral, com suas variadas abordagens, carregam de forma tácita essa concepção, quando sustentam que transformações sociais são produzidas pelo mecanismo de conscientização ou esclarecimento dos sujeitos e grupos. Em outras palavras, bastaria acionar o dispositivo racional do espírito humano por um método adequado de educação, para mudar comportamentos e atitudes. Essa concepção mostrou-se, ao menos em parte, ao longo dos séculos, equivocada, por desprezar a força condicionante dos desejos, emoções e afetos, os quais subjazem à reflexividade. Não estamos propondo o abandono da razão ou do método racional de análise das realidades sociais, apenas afirmamos que não basta pensar o ser humano como um ser racional que transforma, ao ser convencido logicamente, suas condutas deletérias. O prazer da lógica tem, em geral, menos força que a lógica do prazer.

Para possibilitar uma melhor compreensão dessas questões, podemos tomar de empréstimo alguns conceitos de Espinosa, já bastante desenvolvidos em seus aspectos sociais por vários autores como, por exemplo, Deleuze e Guattari (2010) e Frédéric Lordon (2015, p. 61-65), dentre outros. Para Espinosa, a força que move comportamentos é o desejo com sua energia que, em um primeiro momento, é determinado ou orientado pelos afetos, fazendo os indivíduos se movimentarem em determinados sentidos ou direções e não em outros. Ora, a força do desejo é inconsciente; portanto, a razão ou reflexividade não se sobrepõe em sua totalidade, ou mesmo está dele separada: “os homens enganam-se quando se julgam livres, e esta opinião consiste apenas em que eles têm consciência [reflexão] das suas ações e são ignorantes das causas [afetos] pelas quais são determinados.” (Espinosa, 1979, p. 160). Em conformidade, Espinosa escreve que o desejo é a própria essência humana enquanto concebida como determinada a agir pelas afecções,8 de uma maneira específica (Espinosa, 1979, p. 213). Com efeito, todo desejo tem necessidade de se preservar ou perseverar em seu ser (Espinosa denomina esse aspecto de conatus) e, diríamos também, de expandir sua potência de ação ou de afetar e ser afetado positivamente. Essa força que Espinosa chama conatus precisa ser afetada, mobilizada, para encontrar suas orientações concretas “e ser determinada como desejo de perseguir determinado objeto, e não outro”, como escreve Lordon (2015, p. 64).

Em resumo e em consonância com o autor supracitado: 1) a força que move os comportamentos humanos é o desejo; 2) o desejo é a própria essência humana, sendo sempre afetado de forma positiva ou negativa; 3) o desejo, ao ser afetado, encontra uma direção ou orientação (ação), enquanto força para perseguir determinado objeto ou condição; 4) ação é corpo e mente em movimento, em outros termos, o movimento do corpo expressa a potência do desejo e suas determinações específicas pelas afecções e afetos; 5) afecções e afetos são sempre causas externas (sociais) que determinam as energias desejantes dos indivíduos e grupos, direcionando-os a buscarem o que desejam e necessitam; 6) esses elementos exteriores podem ser ditos estruturas, instituições, organizações, enfim, relações sociais as quais mobilizam ou desmobilizam os comportamentos que apresentam margens de liberdade nos parâmetros ou fronteiras dessas dimensões socioculturais externas.

Tendo em vista o que foi dito em relação às ações sociais e propostas de mudanças comportamentais, que apesar dos avanços realizados nas últimas décadas, - (movimentos relacionados à inclusão social, administração de cantinas, pesquisas a respeito da educação alimentar em escolas, principalmente relacionadas à primeira infância) -, as intervenções referidas à educação alimentar ainda priorizam a mudança de comportamentos partindo da racionalidade biomédica o que, de certa forma, impede o avanço maior desses projetos, visto que essa racionalidade apresenta lógica argumentativa que não atinge ou afeta, de forma incisiva, desejos e emoções. Destarte, percebemos, após todo o processo de palestras, explicações e argumentações de caráter científico, e, apesar, do entendimento dos malefícios dos alimentos processados de baixo preço como guaranás artificiais e biscoitos salgados ou doces recheados, que parte significativa das crianças e adolescentes continuavam consumindo-os por serem “gostosos”, como nos disseram.

É preciso destacar que o comportamento alimentar é resultado de relações sociais e que as intervenções e práticas de projetos precisam superar suas raízes cartesianas, mudando a concepção antropológica calcada no indivíduo racional ou reflexivo que escolhe ou não ser saudável, desprezando as dimensões inconscientes condicionantes de seus comportamentos. Talvez os resultados das ações de intervenção social melhorem se centrarem-se em atividades ligadas ao âmbito do desejo e, portanto, aos seus aspectos (des)mobilizadores. É preciso que outras formas de conhecimento e abordagens metodológicas que pretendam transformar a realidade sejam pensadas e elaboradas de modo a levar em conta as dimensões coletivas, socioculturais e econômicas do problema alimentar (Cervato-Mancuso et al.; 2016). Vivemos uma época de grande avanço tecnológico, de impasses éticos e ecológicos. Aos problemas acima listados, somam-se as mudanças climáticas que, de acordo com estudos internacionais já afetam a produção e distribuição de alimentos no planeta, (Nilsson et al.; 2022) e apresentam novos desafios para a humanidade que demandam a interdisciplinaridade e mesmo a transdisciplinaridade visando a ampliar as resoluções para os desafios à frente. Com efeito, faz-se premente para a metodologia de outros projetos similares que seja levada em conta essa esfera desejante e emocional dos alunos. Repetimos que não basta a argumentação lógica para transformar subjetividades, pois, como escreveu Espinosa (1979, p. 184):

É, portanto, evidente que não nos esforçamos por fazer uma coisa que não queremos, não apetecemos nem desejamos qualquer coisa porque a consideramos boa; mas, ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela, porque a queremos, a apetecemos e desejamos.

Considerações finais

Nossas análises se depararam com os rituais de comensalidade proporcionados na escola pelas atividades do projeto. Atividades nas quais as crianças se solidarizaram e se divertiram em uma rotina de reciprocidade, confraternização e troca de experiências e ludicidade, que aumentou de maneira notória os laços de solidariedade entre elas, dirimindo inclusive disputas entre faixas etárias e séries escolares. O regozijo dos participantes pôde ser percebido também diante da maior reclamação, e mesmo lamento, por parte deles sobre o término das atividades do projeto NHA.

Nessas relações sociais de comensalidade, trabalho e aprendizado foram articulados saberes e práticas da comunidade visando renovar a horta da escola em atividades que se tornaram divertidas, permitindo às crianças desenvolverem não apenas o conhecimento da produção de hortaliças, mas reforçarem as trocas de experiências, saberes e companheirismo na construção de uma alimentação saudável. O projeto, como se propôs, conscientizou e esclareceu tanto aos discentes quanto aos seus responsáveis sobre o que vem a ser alimentação adequada para a manutenção do que se entende oficialmente por saúde.

Contudo, apesar de todo esclarecimento realizado por especialistas durante reuniões com pais e os discentes, percebemos ao longo da observação participante a manutenção, - por parte de um número considerável de alunos -, dos gostos e hábitos relacionados ao consumo de biscoitos, doces, refrigerantes e sucos artificiais. Alimentos baratos com baixo teor nutricional e elevada quantidade de calorias, o que indica que apesar de saberem dos males causados esse conhecimento não os levou a mudarem ou transformarem seus comportamentos alimentares.

Nossa questão, porém, é saber se essas pessoas mudarão, de fato, seus hábitos alimentares. Percebemos que os mais dispostos e engajados a mudarem comportamentos foram aqueles que mais se envolveram social e emocionalmente com a rotina e os rituais da merenda, cuidado e preparo da horta e da educação alimentar (ITGM, Relatórios, junho-dezembro, 2021). Ou seja, aqueles a quem o projeto atingiu não apenas racionalmente, por argumentação lógica e biológica (uma bio-lógica), mas também que foram atingidos afetivamente pelas atividades coletivas em uma espécie de efervescência que mobilizou seus sentimentos, suas formas de perceber e, por conseguinte, suas ações, ou seja, suas práticas. Afinal, emoções são pensamentos incorporados, como escreveu Rosaldo (1984); ou ainda, em conformidade com Le Breton (2009, p. 11), as emoções estão relacionadas a um sistema de sentidos e valores, e, por isso, são pensamentos em ação atinentes a uma cultura afetiva. De nossa perspectiva, essas afirmações apenas ressaltam a potência, por vezes esquecida pelas ciências da saúde, do que Lévi-Strauss (2003) denominou pensamento concreto, um pensamento que não apenas parte da lógica e das experiências cotidianas para se articular, mas também das emoções, sentimentos e afetos em uma dinâmica das qualidades sensíveis.

Destarte, o projeto sugere que administradores que buscam transformar práticas, devem caminhar em direção ao conhecimento dos valores e comportamentos cotidianos das pessoas a serem beneficiadas, buscando não apenas esclarecê-las pela razão argumentativa (embora isso seja de fundamental importância) mas também produzir estratégias voltadas para a captação das subjetividades, ou seja, voltadas para atingir desejos, articulando emoções, afetos afirmativos que possibilitem a modificação dos comportamentos e representações culturais. Sem isso, as políticas públicas e as ações sociais, por mais que auxiliem pessoas em situações especiais, produzirão resultados aquém do esperado. As formas para que essa abordagem seja realizada precisam ser aprimoradas e mais estudos implementados para tanto. Comprovando (ou não) se mudanças se perpetram também pela articulação de dimensões afetivas.9

Parece que o aspecto emocional se mostra fundamental para a adesão de crianças e adolescentes a um projeto de transformação das práticas e hábitos alimentares. Parece que não basta informar responsáveis e alunos a respeito dos males causados pela alimentação industrializada e artificial – até porque muitos já sabem. Além da razão se faz necessário mobilizar desejos e sentimentos para que agentes se disponham a mudar seus comportamentos alimentares, processo que pode ser aplicado talvez a qualquer outra atividade similar que tenha por propósito transformar comportamentos.

A possibilidade de mudar hábitos alimentares esbarra, a princípio, em dois problemas que envolvem aspectos emocionais e não apenas a reflexividade ou conscientização popular: por um lado, estão os comportamentos socioculturais implicados na comensalidade, (tradições, costumes, hábitos insalubres, adquiridos socialmente, ou seja, nas instituições como família, escola, e assim por diante), na qual essas pessoas estão inseridas e da qual fazem parte. Por outro lado, há um outro agente poderoso representado pelo marketing da indústria alimentar que, como todo marketing, afeta e mobiliza comportamentos para o consumo e maximização de lucros, fazendo o que os projetos sociais têm dificuldade de realizar: afetando e conduzindo, por meio de propaganda intermitente, desejos e subjetividades coletivas, (re)produzindo emoções, direcionando-as para o consumo de seus produtos. Desta feita, enquanto as ciências da saúde e sociais utilizam apenas a narrativa racionalista da conscientização referida à hipótese reflexiva, explicando logicamente os perigos do consumo de alimentos altamente calóricos, ricos em sódio, açúcar, agrotóxicos e carentes de nutrientes, etc., a indústria alimentar, voltada para o crescente lucro, produz estratégias narrativas sedutoras, a maioria por intermédio da mobilização do marketing em momentos de diversão, que atingem o inconsciente das pessoas, seu imaginário, sonhos, aspirações de sucesso, alegrias, e mesmo ambições, associando suas mercadorias alimentares às promessas de realização pessoal, status, saciedade, felicidade, e, até mesmo, melhoria da sua condição de saúde.10

Em suma, a conscientização, o conhecimento racional a respeito dos males causados por uma alimentação prejudicial, não muda necessariamente os comportamentos prazerosos ou as tradições de consumo arraigadas (Rolnik, 2021; Rodrigues, 2022). Por exemplo, em um estudo sobre o uso de esteroides anabolizantes realizado em dezenas de academias das zonas Norte e Sul do Rio de Janeiro, constatou-se que os usuários conhecem – inclusive de forma bioquímica – os males à saúde causados pelo uso dessas substâncias, contudo, isso não impede que continuem utilizando-as. As campanhas de conscientização ou relatos de mortes causadas pelo consumo não impedem, nem mobilizam usuários em geral a abandonarem seus hábitos de consumo considerados insalubres (Sabino, 2020). Assim, estudos mais recentes vêm apontando o crescimento do uso dessas drogas por praticantes de musculação e fitness apesar dos alertas constantes e das explicações médicas dos males causados por esse consumo (Mattos, 2024).

O projeto Nutrindo Hábitos Escolares deixa um alerta para os futuros modelos de intervenção que pretendam transformar subjetividades e, por conseguinte, o comportamento das pessoas. Conforme seus resultados sugerem, reiteramos que se faz necessário repensar as ações das políticas públicas, organizações não governamentais e similares, incorporando à lógica explicativa calcada apenas na hipótese reflexiva (conscientização do público), a esfera desejante. Ou seja, é preciso elaborar estratégias que também atinjam os desejos e emoções dos agentes sociais, suas aspirações e prazeres, seus gostos de formas de ver o mundo. Para isso seria necessário abrir uma agenda transdisciplinar de pesquisas que incorporasse a sociologia e antropologia das emoções e dos afetos às abordagens referidas aos estudos administrativos, biomédicos e nutricionais. Sem esse esforço os resultados dos projetos e das lutas pela transformação da realidade social ficarão certamente aquém das suas próprias propostas.

É preciso, no que tange às populações atingidas pelos projetos e intervenções sociopolíticas, que à rotina e à disciplina exigidas pelas mudanças comportamentais desses projetos, sejam somadas às esperanças de que esforços pessoais trarão a conquista das suas aspirações – processo que implica a transformação de subjetividades.

Reiteramos, assim, que esse movimento foi sugerido pelos resultados das atividades do projeto, todavia ele não ocorreu plenamente, devido justamente ao fato de o projeto não contar com essa necessidade demandada surgida no campo. Pensava-se, como é comum nesse tipo de intervenção, que apenas conscientizar pais e discentes mostrando-lhes os males de suas dietas e hábitos alimentares, além de formas de cultivarem alimentos saudáveis e baratos na horta da escola ou mesmo em suas residências, não onerando seus orçamentos, bastaria para que transformassem seus comportamentos alimentares e comensais. Porém, isso ocorreu apenas em parte do processo quando atividades lúdicas nas hortas e o compartilhamento de sabores na hora do almoço aconteciam entre alguns docentes. Nos parece que seria necessário desenvolver esse aspecto das atividades para, por intermédio dele, inserir práticas e reflexões que atinjam os afetos, desejos e gostos dos atores sociais. Embora o projeto não tenha realizado na íntegra esse procedimento ele mostrou a necessidade de repensar futuras atividades de intervenção e de mudança de parte da metodologia para que a solução dessa demanda possa ser elaborada. É preciso pensar, ao lado da conscientização científica e exposição narrativa professoral, formas divertidas e solidárias que atinjam elementos afetivos dos docentes e pais. O próprio esforço de mudança dispendido pelos agentes sociais e grupos pode se tornar prazeroso, e, não mais uma prática institucional formal, visto que o ser humano dificilmente troca seu prazer imediato, pela aquisição, via disciplina ou reeducação, de novos propósitos se essa troca não lhe trouxer a esperança de um futuro com vantagens ou mesmo prazeres maiores do que aqueles do qual já usufrui. Para que isso ocorra são necessárias abordagens metodológicas renovadas que não sejam apenas pontuais, mas contínuas. Ou seja, além de destacar as emoções e os aspectos desejantes dos atores sociais e sua importância na manutenção ou transformação do status quo, essas intervenções por intermédio de projetos sociais necessitam constância.

Material suplementario
Referências
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Notas
Notas
1 Representações sociais, coletivas ou culturais são maneiras de pensar, de agir e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção, em virtude do qual se lhe impõe; ou ainda, elas designam a camada mais antiga e estável implícita na visão de mundo inconsciente das pessoas, sendo constituídas por categorias classificatórias, imagens e símbolos que organizam e hierarquizam em pares de oposições binárias, (bom/mau, belo/feio, rico/pobre etc.) as relações sociais – dos indivíduos entre si – articulando também interações de poder e autoridade que justificam o ponto de vista daqueles que afirmam ou impõem sua dominação, exploração e opressão, fazendo-as parecerem normais ou mesmo naturais. (Durkheim, 2019; Bourdieu,1990). Para que seja possível a mobilização social de indivíduos e grupos é necessário que as estratégias políticas de intervenção levem em conta, acima de tudo, essa realidade dos agentes e grupos, elaborando meios de convencimento, abordagem e mobilização, não apenas pela lógica pura, mas também por intermédio dos elementos que tocam emoções, sentimentos e afetos.
2 É notório o paradoxo colocado pela carência alimentar brasileira ressaltada há décadas por Josué de Castro (2008): desnutrição, hipovitaminoses, bócio, anemia ferropriva etc. Porém, soma-se a esse aspecto, outro socionutricional. Há algumas décadas, essa situação de fome convive (e isso é perceptível no exíguo espaço de uma escola pública) com o aumento do sobrepeso e obesidade como causas de doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, dislipidemias, hipertensão etc.). Sendo que a obesidade tem apresentado cada vez maior prevalência com presença mais intensa entre idades precoces, mesmo em classes menos favorecidas (Nammi et al.; 2004; Ronque et al.; 2005; Reilly et al.; 2005; Vasconcelos, 2008).
3 O conceito de desenvolvimento é, com frequência, criticado em antropologia, menos um pouco em sociologia e ciência política, as quais ainda mantêm suas ressalvas. Com relação às ciências sociais aplicadas, no Brasil, a crítica volta-se para o alto nível de desconsideração que as políticas públicas, seus programas e projetos apresentaram durante décadas em relação aos aspectos socioculturais dos grupos e populações nas quais interferiam, não raro, prejudicando as relações nesses contextos. Fora o caráter assistencialista provisório a reiterar as tradicionais relações patrimonialistas brasileiras, que terminavam por coadunar com a dominação das próprias populações auxiliadas. Contudo, essa perspectiva vem gradativamente mudando, posto que sociólogos e antropólogos percebem, nesses trabalhos, oportunidades de contribuírem de maneira singular, não apenas com uma visão distinta daquela dos gestores tradicionais das políticas públicas, mas, contribuindo para a defesa dos interesses dos povos para os quais as ações se voltam. Basta ressaltar que algumas comunidades indígenas têm lideranças com conhecimentos antropológicos, o que permite argumentação crítica não apenas com o governo brasileiro, mas com organismos internacionais. Em outras palavras, para a antropologia e a sociologia, não raro, é mais importante entender o que é “desenvolvimento” para o grupo alvo (etnodesenvolvimento) e trabalhar em consonância com essa visão, do que importar e impor o conceito ao grupo ou população alvo. Uma visão aprofundada sobre a questão encontra-se em Schröder (1997).
4 O gosto – e, por conseguinte, o prazer associado a ele ou não – está diretamente relacionado às experiências sociais, culturais e de classe pelas quais os indivíduos passam ao longo da sua existência. Não raro, o prazer ligado a uma tradição afetiva representada pela comida, ou mesmo aquele suscitado pela propaganda e o marketing de grandes empresas de alimentação, entra em contraposição à lógica nutricional do alimento e sua relação bioquímica com a saúde.
5 Embora questionado, o conceito antropológico de cultura perdura como instrumento analítico ainda eficaz quando se trata de análises de dimensões relativas às sociedades complexas como a brasileira. Por conseguinte, cultura, de acordo com o primeiro que a definiu (Tylor [1871], 2005, p. 69), “é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade”.
6 “[...] quando falamos de hábitos alimentares a partir da classe ‘alimentos’ e não da ‘comida’ estamos informando pouco sobre aquilo que se come, pois, embora a base de nutrientes seja bastante semelhante entre as sociedades, a combinatória entre eles é bastante distinta. Essa combinatória a que chamamos de culinária – um conjunto que engloba manipulação, técnicas de cocção, representações e práticas sobre as comidas e as refeições – é o principal mecanismo que transforma o alimento em comida, ou seja, nos pratos. Juntos eles produzem os diferentes cardápios que caracterizam as diferentes regiões e sociedades humanas. Da mesma maneira que não se come nada genericamente, também não ingerimos os alimentos aleatoriamente. Toda sociedade estabelece normas e momentos específicos, em que determinados tipos de comida são ingeridos preferencialmente a outros, em uma determinada sequência, dentro de uma certa lógica de ingestão e de combinação dos alimentos entre si [que não raro destoam das normas científicas nutricionais]. Esses momentos são denominados de refeições.” (Barbosa, 2007, p. 93, grifos nossos).
7 De acordo com Camargo Jr. (2012. p. 55), esta racionalidade biomédica ocidental pode ser delineada em três proposições básicas: primeira, ela apresenta caráter generalizante, pois seus discursos se colocam como detentores da validade universal, propondo modelos e leis de aplicação geral e não se ocupando de casos particulares; segunda proposição, seu aspecto mecanicista, pois os modelos tendem a naturalizar as máquinas produzidas pela tecnologia humana, passando o “universo” a ser visto como uma gigantesca máquina subordinada a princípios de causalidade linear traduzíveis em mecanismos; e, por fim, o caráter analítico calcado na abordagem teórica e experimental adotada para a elucidação das “leis gerais” do funcionamento dessa máquina universal a partir da investigação das partes, pressupondo que o funcionamento do todo é dado pela soma dessas partes. Essa forma hegemônica trata corpo, lesões e doenças, não pessoas, colocando-se, não raro, como a única verdadeira em relação a outros sistemas médicos, vistos como não científicos.
8 Afecção indica o processo de choque de corpos, e afeto expressa as possíveis mudanças de estado dentro dos corpos afetantes ou em relação. Esses efeitos podem aumentar a potência de uma pessoa agir ou não. A afecção é aquilo que aumenta ou diminui a capacidade de agir de um corpo quando afetado. Portanto, “um único e mesmo afeto é capaz de produzir modificações substanciais na mente e no corpo” (Conter et al. 2017, p. 39). Da mesma forma, na perspectiva de Gilles Deleuze, os afetos (affectus) são produzidos pelas relações, situações, composições, associações ou desassociações de corpos e ideias, ou seja, afecções (affectio). Um modo de existência define-se pelo poder de ser afetado, ou seja: “quando encontra outro modo, pode ocorrer que esse outro modo seja ‘bom’ para ele, isto é, se componha com ele, ou, o inverso, seja ‘mau’ para ele e o decomponha: no primeiro caso, o modo existente passa a uma perfeição maior; no segundo caso, menor. Diz-se, conforme o caso, que sua potência de agir ou força de existir aumenta ou diminui, visto que a potência do outro modo se lhe junta, ou ao contrário, se lhe subtrai, imobilizando-a e fixando-a. A passagem de uma perfeição maior ou o aumento de potência de agir denomina-se afeto ou sentimento de alegria; a passagem a uma menor perfeição ou a diminuição da potência de agir, [denomina-se afeto ou sentimento de] tristeza.” (Deleuze, 2002, p. 56-57).
9 Nossas observações nos levam a supor (pois seria necessária outra pesquisa para que as hipóteses fossem comprovadas) que as crianças que tiveram em suas mães o exemplo e o empenho da mudança em seus cardápios estiveram também mais propensas a mudar sua forma alimentar. Em outras palavras, e isso pode ser um pouco óbvio, as mães que mudaram sua própria alimentação e que diminuíram o consumo de alimentos prejudiciais em seu cotidiano doméstico ajudaram seus filhos a mudar. Também estiveram mais propensas às mudanças aquelas que compartilhavam seu cotidiano de preparação alimentar com seus filhos, apresentando maior sucesso nessa transformação; ou seja, não apenas as que priorizaram alimentos mais saudáveis em casa (isso nem sempre é possível devido a questões econômicas), mas também as que deixaram seus filhos participar de forma lúdica no preparo desses alimentos, viabilizaram uma diminuição do consumo alimentar prejudicial.
10 Grandes corporações alimentares como Coca-Cola, Nestlé, Unilever e Mars investem pesado na produção de alimentos dietéticos e na cooptação de cientistas da nutrição, engenheiros de alimentação, e outros especialistas para autorizarem suas produções de alimentos ultraprocessados, elaboração e expansão de estratégias de ampliação de mercado e fuga das regulações governamentais. Conforme Scrinis (2020, p. 2): “A captura corporativa da nutrição [...] é resultado da integração de diversas atividades científicas corporativas com estratégias nutricionais, apoiadas e amplificadas pelo marketing e atividades políticas.” Essas empresas visam principalmente conquistar consumidores na primeira infância por intermédio do convencimento de seus pais: “A Nestlé [, por exemplo,] realiza e financia pesquisas sobre a composição do leite materno consolidando [...] a comercialização de suas fórmulas infantis e produtos de consumo para crianças. Seu marketing implica — e faz com que os pais imaginem - que estes produtos são o equivalente, ou até melhores, do que o leite materno ou os alimentos preparados em casa, produzindo sentimento de ansiedade nas mães em relação à qualidade de seu [próprio] leite.” (Scrinis, 2020, p. 3. Tradução nossa.)
Notas de autor

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