Resumo: Este artigo revisa o impacto da pandemia de Covid-19 no Brasil, com enfoque no debate sobre espaço público e nas condições de vida da população, através da análise de dossiês publicados entre 2020 e 2022 em periódicos nacionais de sociologia urbana, bem como de contribuições relevantes da antropologia urbana. A análise foi realizada em três etapas. Na primeira, foram revisados estudos sobre as novas formas de urbanidade e a crise dos espaços públicos durante a pandemia. Na segunda etapa, foram examinados os conceitos e enquadramentos empíricos utilizados pelos autores nas produções sobre os dilemas do distanciamento social, dos negacionismos e das indeterminações na vida urbana distópica no Brasil. Na terceira, analisamos os conceitos e temáticas que visaram aprofundar a compreensão dos processos envolvidos no aumento da desigualdade urbana e na piora das condições de vida de grande parte da população brasileira. Conclui-se que, apesar da suspensão dos encontros presenciais, as medidas de isolamento social revelaram novas possibilidades de ação através dos espaços virtuais de sociabilidade, trabalho, estudos, consumo e acesso aos serviços públicos via tecnologias digitais, tornando-se uma parte essencial do cotidiano “público-privado” da cidade. No entanto, a pandemia também expôs as desigualdades sociais e econômicas existentes, evidenciando disparidades significativas no acesso a moradia, saúde, transporte e no aumento do trabalho informal e precário, além da queda de renda entre a população urbana de menor poder aquisitivo.
Palavras-chave: Sociologia Urbana, pandemia de Covid-19, espaço público, desigualdades urbanas, condições de vida.
Abstract: This article reviews the impact of Covid-19 pandemic in Brazil, focusing on the debate on public space and living conditions of the population, by analyzing dossiers published between 2020 and 2022 in national urban sociology journals, as well as relevant contributions from urban anthropology. The analysis was conducted in three stages. In the first stage, studies on new forms of urbanity and the crisis of public spaces during the pandemic were reviewed. In the second stage, the concepts and empirical frameworks used by the authors in their productions on the dilemmas of social distancing, denialism, and uncertainties in dystopian urban life in Brazil were examined. In the third stage, the concepts and themes aimed at deepening the understanding of processes involved in the increase of urban inequality and the worsening of living conditions for a large part of the Brazilian population were analyzed. It is concluded that, despite the suspension of face-to-face interactions, social distancing measures have revealed new possibilities for action through virtual spaces of sociability, work, study, consumption, and access to public services via digital technologies, becoming an essential part of the “public-private” daily life of the city. However, the pandemic has also exposed existing social and economic inequalities, highlighting significant disparities in access to housing, health care, transportation, and increase in informal and precarious work, as well as decline in income among urban population with lower purchasing power.
Keywords: Urban Sociology, Covid-19 pandemic, public space, urban inequalities, living conditions.
Resumen: Este artículo revisa el impacto de la pandemia de Covid-19 en Brasil, centrándose en el debate sobre el espacio público y las condiciones de vida de la población, a través del análisis de dossiers publicados entre 2020 y 2022 en revistas nacionales de sociología urbana, así como de contribuciones relevantes desde la antropología urbana. El análisis se realizó en tres etapas. Primero se revisaron estudios sobre las nuevas formas de urbanidad y la crisis de los espacios públicos durante la pandemia. En la segunda etapa, se examinaron los conceptos y marcos empíricos utilizados por los autores en producciones sobre los dilemas del distanciamiento social, el negacionismo y la indeterminación en la vida urbana distópica en Brasil. En la tercera, analizamos los conceptos y temas que apuntaron a profundizar la comprensión de los procesos involucrados en el aumento de la desigualdad urbana y el empeoramiento de las condiciones de vida de gran parte de la población brasileña. Se concluye que, a pesar de la suspensión de reuniones presenciales, las medidas de aislamiento social revelaron nuevas posibilidades de acción a través de espacios virtuales para la sociabilidad, el trabajo, los estudios, el consumo y el acceso a servicios públicos a través de las tecnologías digitales, convirtiéndose en parte esencial de la vida cotidiana “público-privada” de la ciudad. Sin embargo, la pandemia también expuso las desigualdades sociales y económicas existentes, poniendo de relieve importantes disparidades en el acceso a la vivienda, la salud, el transporte, además del aumento del trabajo informal y precario y de la caída de los ingresos entre la población urbana de menor poder adquisitivo.
Palabras clave: Sociología Urbana, pandemia de Covid-19, espacio público, desigualdades urbanas, condiciones de vida.
Artigos
Espaços públicos, condições de vida e pandemia: análise das pesquisas urbanas no Brasil
Public spaces, living conditions and the pandemic: a review of urban research in Brazil
Espacios públicos, condiciones de vida y pandemia: análisis de investigaciones urbanas en Brasil
Recepción: 26 Mayo 2023
Aprobación: 12 Junio 2024
As incertezas acerca das origens e consequências da pandemia de Covid-19, aliadas a uma certa incredulidade em relação às medidas de prevenção e isolamento, desencadearam uma crise econômica global e uma indeterminação nas sociedades contemporâneas. Nesse contexto, torna-se crucial debatermos os desdobramentos dessa crise sanitária como um processo de mudança social, visando à atualização das pesquisas em ciências humanas e sociais, das abordagens e questionamentos pertinentes à compreensão da sociedade pós-covid.
A pandemia alterou profundamente a vida cotidiana de diversas localidades, desde as grandes metrópoles às pequenas cidades, comunidades rurais, quilombolas, indígenas etc. Três dimensões são centrais para o entendimento desse processo, pois apontam para importantes indícios de reconfiguração dos espaços públicos e podem ser lidas a partir das pesquisas existentes que apresentaremos neste debate: 1) o isolamento social impulsionou a utilização de espaços virtuais para trabalho, estudo, lazer, consumo e acesso a serviços básicos, tornando-se parte essencial do cotidiano “público-privado” das cidades; 2) as relações de convivência e sociabilidade urbana foram marcadas pela intensa conflitualidade e fragmentação social e política do Brasil; 3) a pandemia expôs desigualdades sociais, econômicas, tecnológicas e ambientais significativas nas condições de vida das pessoas que enfrentaram dificuldades de acesso a moradia, saúde e transporte, além do aumento do trabalho informal e da queda da renda para os mais vulneráveis.
Diante disso, surgiram problematizações acerca da influência da pandemia na vida urbana e das desigualdades sociais e econômicas que se exacerbaram. A partir desse foco, propõe-se debater as reconfigurações dos espaços públicos, urbanos e virtuais, e seus impactos na sociabilidade cotidiana. Indaga-se, também, sobre os processos sociais que agravaram as condições de vida, especialmente entre populações urbanas de baixa renda, e sobre como a pandemia evidenciou disparidades no acesso a serviços essenciais, como moradia, saúde, transporte e oportunidades de emprego informal.
Dessa forma, neste artigo discutimos estas questões através da revisão de publicações que integram os estudos da sociologia urbana e antropologia urbana. Para desenvolvermos a discussão, foi realizado um levantamento bibliográfico qualitativo em periódicos nacionais publicados entre 2020 e 2022 nas áreas acima referidas. A pesquisa, apresentada na parte dois do artigo, foi realizada em três etapas e a seleção dos artigos priorizou as publicações em coletâneas de livros e em dossiês de revistas acadêmicas sobre cidades e pandemia, com enfoque inicial no debate sobre o espaço público, as “novas” urbanidades, suas sociabilidades e conflitualidades. Em seguida, buscamos a discussão sobre distanciamento social, condições de vida, desigualdades e vulnerabilidades urbanas.
Na primeira etapa, fez-se um levantamento bibliográfico e revisão da literatura sobre a inserção teórica das ciências sociais nesse contexto, as novas formas de urbanidade e a crise dos espaços públicos durante a crise pandêmica. O modelo de pesquisa se replica na segunda etapa, em que se analisou os conceitos e enquadramentos empíricos utilizados pelos autores nas produções sobre os dilemas do distanciamento social, dos negacionismos e das indeterminações sobre a vida na urbanidade distópica no Brasil. Na terceira, analisamos os conceitos e temáticas que visaram aprofundar a compreensão dos processos sociais envolvidos no aumento da desigualdade urbana e na piora das condições de vida de grande parte da população brasileira.
As coletâneas e dossiês de periódicos nacionais foram acessados por meio de portais como Scielo.br, Google Scholar, Base de Periódicos CAPES e através de pesquisas manuais sobre o tema. Referente ao ano de 2020, constatamos poucas produções científicas nacionais embasadas com o corpo teórico socioantropológico clássico e contemporâneo sobre a relação entre cidades e pandemia, enquanto entre 2021 e 2022 houve avanço significativo no desenvolvimento de pesquisas e debates sobre a pandemia e suas implicações nos espaços públicos.
Para melhor elucidar a contribuição dessas publicações, apresentamos uma síntese no Quadro 1 abaixo.1
A pandemia de Covid-19 alterou de forma significativa e inesperada diversos setores, desde o domínio das práticas sanitárias até as reações políticas e sociais e afetou profundamente a vida cotidiana das pessoas em todo o mundo, criando incerteza em relação à geografia das cidades, modos de vida, espaços públicos e planejamento urbano. Isso forçou as sociedades a se reinventarem para lidar com problemas socioeconômicos extraordinários (Fortuna, 2021). O cenário de distopia urbana, desnudado desde 2013, faz refletir sobre o espaço inesperado ocupado pela pandemia “que se apresenta nos desencontros entre formas e conteúdos” (Barreira, 2021, p. 32) do debate acadêmico e da prática social da população em geral. Isto é, tal distopia se apresenta reflexivamente no embate de suas opressões e contradições sociais com os mecanismos de confiança da modernidade (Giddens, 1991), advindo do processo de desvalorização que vivenciaram as Ciências neste período pelos discursos negacionistas.
Segundo Fortuna (2021), diversas análises foram realizadas para entender seus impactos na vida das pessoas, tanto na esfera da comunicação quanto na pesquisa acadêmica. Inicialmente as produções acadêmicas estavam focadas no paradigma biomédico com ênfase em medidas técnicas para lidar com o vírus, enquanto as produções na área das humanidades careciam de uma abordagem conceitual e metodológica mais abrangente para compreender a pandemia na vida urbana.
Mas, a partir do segundo semestre de 2020, as pesquisas sociológicas começaram reagir abordando questões como a materialidade estrutural das cidades, suas hierarquias e a condição de marginalidade de suas populações, além dos modos de vida das pessoas, dos encontros e sociabilidades presenciais duramente afetadas pelos efeitos do vírus, principalmente entre as camadas mais pobres das metrópoles. Para Barreira:
Contrariando o senso comum que considera a pandemia em sua relação indiscriminada com os indivíduos, o pensamento sociológico pontua seus efeitos associados a situações sociais diversas. Assim, para além de pensá-la como algo que atinge a todos indistintamente é fundamental observar seus efeitos no desnudamento da vida social: a crueza diversa de problemas que trazem à tona as condições de vulnerabilidade de determinados segmentos sociais
(Barreira, 2022, p. 1)Para Guimarães, Barreira e Leite (2022), a pandemia foi um tema imprevisto e surgiu transversalmente aos estudos de diversos campos, trazendo consigo uma complexidade adicional: a necessidade de manter distanciamento social e uma mudança súbita nas rotinas urbanas devido às medidas de prevenção contra o vírus. O distanciamento social tornou-se um aspecto fundamental na prevenção de Covid-19 e sua inclusão na pesquisa acadêmica é fundamental para entender suas implicações e impactos sociais, econômicos, políticos, demográficos e na mobilidade humana. Recorrendo às concepções de Hannah Arendt e de Richard Sennett, eles destacam a importância do encontro e da interação social na construção de uma vida ativa e do sentido público da cidade como fórum de uma vida civilizada. O distanciamento social tornou-se um desafio à vida nas cidades devido às diferentes formas de recepção e um desafio metodológico à sociologia urbana por compreender que a esfera da vida pública é caracterizada por uma experiência compartilhada socialmente.
Para a Sociologia Urbana, essa variável interveniente veio como um desafio duplo, pois punha em suspensão não apenas rotinas cotidianas, mas cessou parte da base ontológica da própria vida social: a interação e a possibilidade do encontro. Cidades vazias e silenciosas despertaram em muitos a reflexão sobre os sentidos de uma vida verdadeiramente ativa
(Guimarães, Barreira & Leite, 2022, p. 1).A partir dessa constatação, os autores defendem a construção de agendas de pesquisa na sociologia urbana, identificando mudanças nas metodologias de análise de problemas urbanos e indicando tendências na questão urbana atual. Para tanto, é necessário pensar sobre as novas direções e desafios enfrentados pelo próprio pensamento sociológico sobre as cidades. Nos estudos antropológicos, Toledo e Souza Junior (2020) chamam a atenção para o lugar da Antropologia Urbana no sentido de que precisa tanto reavaliar suas metodologias etnográficas para pesquisar as futuras crises e se “imunizar” frente ao anti-intelectualismo e anticientificismo que se fez contra as ciências em geral, dado um contexto político e pandêmico marcado por controvérsias e desinformação nos primeiros meses de 2020. Para eles, cabe às Ciências Sociais reivindicarem alguma parcela de colaboração a essa “espécie de sanitarismo epistemológico na busca pela ‘cura’ do novo coronavírus” (Toledo & Souza Junior, 2020, p.55).
Os debates contemporâneos sobre espaços públicos nas cidades transcendem a visão dicotômica que separa a paisagem e os lugares dos usos que fazem as pessoas que os habitam (Leite & Malta, 2024). Para o entendimento do conceito, consideramos as diferentes dimensões socioculturais, econômicas, políticas, tecnológicas e simbólicas do espaço público no Brasil e outras realidades a partir de quatros abordagens contemporâneas.
Em primeiro lugar, o espaço público é conformado não apenas pela dimensão física, pois incorpora as práticas e experiências dos habitantes. Nele são estabelecidas territorialidades flexíveis e fronteiras simbólicas que refletem as relações de separação, aproximação, nivelamento e hierarquização entre os indivíduos. Contrastes simbólicos e as assimetrias de poder se revelam na construção dos lugares públicos, evidenciando a interação entre diferentes identidades e a expressão das diferenças culturais na vida urbana (Arantes, 2000).
Em segundo lugar, a referência social do espaço público contemporâneo é marcada por processos históricos e culturais difusos observados no conflito entre a cidade democrática e a “não cidade”. A ideia de não cidade decorre da urbanização da injustiça e da privatização dos espaços públicos, que fragilizam a cidadania e reduzem os espaços de convivência pública. A cidade moderna herdou um conflito com ela mesma, fragmentada em níveis desiguais de envolvimento social com as políticas urbanas e culturais. Essa conflitualidade não se enuncia num jogo de dualidades, mas em um jogo recombinatório de referentes espaciais, culturais e identitários de modo diverso e incoerente (Fortuna, 2020).
Em terceiro, o espaço público constitui uma categoria sociológica formada pelas interações dos agentes sociais, que o constroem e o qualificam reflexivamente em lugares urbanos através de suas práticas sociais, usos e consumo na e da cidade. Assim, o espaço público pode ser entendido como um espaço de poder entre diferentes e desiguais, onde se reeditam as modalidades assimétricas de interação e se enunciam formas conflitivas de sociabilidade, resistências ao planejamento urbano e às normas impostas, disputas espaciais e contrausuais sobre o direito de estar na cidade e de ocupar seus espaços (Leite, 2018).
Por fim, os espaços públicos podem ser compreendidos por meio de quatro dimensões analíticas, pois são conformados: a) por uma geografia pública, isto é, os espaços físicos de usos coletivos; b) pela vitalidade dos usos e da diversidade social; c) pela sociabilidade urbana constituída de práticas lúdicas da socialização, no sentido concebido por Simmel (2006) e; d) como palco e cena de participação política. No entanto, estas dimensões devem ser observadas também a partir da distribuição desigual desses espaços na cidade, de padrões de sociabilidade desenvolvidos pelos diferentes grupos sociais e das características específicas de cada lugar, como a autossegregação e a fragmentação (Arantes, 2021).
Por espaço público, compreendo um domínio sociocultural, político e simbólico da cidade, onde diferentes agentes sociais interagem e constroem significados por meio de práticas cotidianas, que não se limita à paisagem construída, pois inclui as formas de convivialidade e de conflitualidade pelas quais se manifestam as assimetrias de poder, as diferenças sociais e étnicas, as formas de resistência, de expressão cultural e as experiências vividas pelos habitantes da cidade. Nesse sentido, questiono em que medida as análises dos espaços públicos e da urbanidade durante a pandemia podem contribuir para a construção de novos aportes teórico-metodológicos no estudo das cidades e como reatualizam antigas questões?
Oliveira et al. (2020) afirmam que a crise sanitária desafiou as ciências e as práticas de conhecimento vigentes a buscarem uma nova compreensão da sociabilidade contemporânea. Para os autores, a pandemia impôs desafios complexos para a construção de modelos interpretativos das comunidades humanas, que considerem noções de diferença, alteridade, práticas culturais, tradições e regimes de conhecimento. Os novos enfoques antropológicos devem reconhecer essa crise e problematizar “a complexa relação entre natureza e cultura, cidade e floresta, humanos e não humanos” (Oliveira et al., 2020, p. 2), como, por exemplo, os rituais de morte que muitos povos e etnias não puderam realizar.
Num pequeno livro intitulado Quando acaba o século XX, lançado durante o pico da pandemia, Schwarcz (2020) endossa alguns desses apontamentos acerca do impacto de um vírus no cotidiano urbano, invisível a olho nu, que paralisou e transformou o planeta. Tal situação só se conhecia nas alegorias do passado ou nas fantasias e distopias científicas. Nesta nova realidade mundial, o mundo urbano acelerado vive uma nova temporalidade: ficar em casa. Conforme atestou a autora, “ficar em casa é reinventar a rotina, se descobrir como uma pessoa estrangeira. [...] Agora, preciso me reinventar numa temporalidade diferente. É um movimento interior de redescoberta” (Schwarcz, 2020, p. 3). Neste contexto, a autora questiona o sentido das noções de casa e lar, o sentido da própria rotina entre atividades físicas, trabalho e exaustão do modo de vida urbano moderno. As “cidades”, em geral, vivenciaram essa mesma estranheza.
Tal fenômeno impôs uma condição de indeterminação à vida urbana contemporânea, mas a certeza de que o espaço intradoméstico foi implodido pelo espaço público, desvanecendo as fronteiras entre o “dentro” e o “fora” em urbanidades porosas (Fortuna, 2020). Não foi à toa que os indivíduos precisaram se redescobrir e reinventar a própria temporalidade e a espacialidade da casa, entre, por um lado, a passagem da vida em tempo lento – as janelas e varandas tornaram-se uma espécie de via de conexão entre o mundo interior e o exterior. Conexão separada por paredes e pessoas nas janelas das casas, uma moldura da vida cotidiana “em uma nova linguagem composta de ‘distanciamento social’, ‘casos notificados’, ‘máscara’, ‘escudo facial’ e ‘espera’” (Gatlan, 2020, p. 16), mas composta por rotinas domésticas, sentimentos de solidariedade, silêncios, solidão, medo e esperança a serem registradas em todo o mundo. Ao mesmo tempo, a vida em casa acelerada por meios digitais, manipulada pela disponibilidade online e mais imediata de home-office, sem grandes pausas ou silêncios devido aos alertas do trabalho, dos aplicativos de consumo delivery, do lazer e do cuidado com a saúde, da educação e até mesmo dos encontros virtuais, o que inclui o acesso acelerado aos chats, chamadas de vídeos e ao compartilhamento de mídias, informações e desinformações sobre o vírus, prevenção e higienização.3
“Ficar em casa” também contribuiu para as transformações de usos inerentes aos ciberespaços públicos, às políticas culturais e às práticas de consumo nas áreas das artes, museus, patrimônio histórico, mercado musical, audiovisual e editorial, além do ativismo urbano, todas fortemente mediadas pelas tecnologias digitais. Cabe às ciências sociais refletir sobre os campos da arte e da cultura num cenário futuro para seus profissionais e públicos cativos. Canclini (2021) argumenta que a pandemia acelerou a reconfiguração dos mercados culturais, dos vínculos entre criadores, distribuidores e públicos que precisaram se recompor para manter as atividades à custa de quebras contratuais, demissões e adaptações online.
Neste período de acelerada concorrência com a internet, do streaming e das mídias digitais, o público das artes e cultura tornou-se mais itinerante e mais promíscuo às investidas da indústria digital. Segundo o autor, “nas disputas entre cultura escrita, midiática e digital, a pandemia tornou as tendências dos anos anteriores ainda mais incertas e menos universalizantes” (Canclini, 2021, p. 151) e isso não se deve às substituições parciais ou total de bens de consumo (livros por PDFs, DVDs por downloads etc.), pagos ou gratuitos. Desta forma, a reconfiguração dessas áreas no entremeio da crise se deve à necessidade de oferecer aos leitores-espectadores-internautas oportunidades plurais de escolha através de um tratamento algorítmico que confere privilégios às plataformas de consumo online visando as possibilidades futuras de ofertas de serviços diferenciados.
Isso se reflete também no ativismo urbano de arte e cultura que, conforme Rocha (2021), sem poder intervir livremente nos espaços, precisou realizar as intervenções e ações urbanas ao vivo pela internet, promovendo espaços culturais, microintervenções urbanas com shows e manifestações diversas, sustentando-se através de vaquinhas online pagas via QRCode e Pix. Estas novas práticas de habitar são chamadas por ela de coautoria da “casa urbana”, na qual seus moradores, de diversas classes sociais, inscreveram práticas urbanas no âmbito da casa durante a quarentena, que vão do ócio, lazer, produções diversas e o trabalho. Diz a autora que sendo a casa o principal espaço cotidiano a se explorar nos primeiros meses de pandemia, de maneira mais errante ou mais atenta, a relação mecânica do morador com o seu imóvel tomou forma de usos similares aos de elementos dos espaços públicos urbanos.
Esses autores trazem importantes reflexões sobre o consumo cultural ao explorar o interativismo entre o espaço urbano, o espaço doméstico e o ciberespaço como ponte para o futuro das políticas de arte, cultura e do próprio espaço público. No entanto, para tecer um olhar sobre a realidade das cidades brasileiras nesse contexto – e certamente do mundo de cidades com suas formas de convivências cada vez mais imprevisíveis (Fortuna, 2020), especialmente em situações excepcionais como a pandemia, é essencial abordar temas que evidenciem os efeitos da urbanização capitalista na saúde, na qualidade de vida e no bem-estar urbano, além das desigualdades sociais e econômicas.
Em diferentes tempos históricos, como em 1903, “o Brasil era chamado de ‘grande hospital’ e tinha todo tipo de doença: lepra, sífilis, tuberculose, peste bubônica, febre amarela” (Schwarcz, 2020, p. 7). As práticas sanitaristas iniciadas em 1904 por Oswaldo Cruz buscaram melhorar esta imagem do país ao instituir a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola. A estratégia de contenção das epidemias, considerada autoritária e invasiva contra a população resistentes à vacinação – o que ocorreu paralelamente às obras de modernização do Rio de Janeiro que ficaram conhecidas como “bota-abaixo” para a população carioca mais pobre –, gerou tensões sociais e políticas que eclodiram na Revolta da Vacina sob o governo de Rodrigues Alves.
Há mais de 100 anos, na segunda gestão de Rodrigues Alves, em 1918, o surto da Gripe Espanhola chegou ao Brasil de forma semelhante à Covid-19: do exterior para o território nacional com rápido contágio nas periferias urbanas e desinformação acerca da letalidade do vírus. Da mesma forma, o surto do coronavírus foi marcado por ações controversas do governo, desta vez sob a liderança de Jair Bolsonaro, cujos discursos e medidas na gestão da crise inicialmente subestimaram a gravidade da natureza e propagação do vírus.. Outra diferença é que, enquanto a Gripe Espanhola se espalhava através dos navios atracados nos portos comerciais marítimos, o novo coronavírus chega através da principal referência das desigualdades socioeconômicas, culturais e da mobilidade: as elites nacionais que voltavam contaminadas do exterior. Para Schwarcz,
A desigualdade tem muitas dimensões e a pandemia escancara as nossas. Ela chegou ao país de avião, por meio de pessoas da elite que estavam no estrangeiro e voltaram contaminadas — tanto que os primeiros dados incidem sobre os bairros mais nobres. Mas o que está acontecendo agora é que o vírus chegou com força nas periferias, nos subúrbios, nas comunidades e favelas espalhadas pelo país
(Schwarcz, 2020, p. 7).A condição urbana relatada por Schwarcz deve ser analisada diante do agravamento drástico das desigualdades e dos problemas estruturais das contrapaisagens urbanas (Malta, 2018) que o planejamento convencional das cidades brasileiras e latino-americanas tende a obscurecer em favor do capital (Cobos & López, 2021; Dominguez & Klink, 2021; Flexor, Silva & Rodrigues, 2021). Isso foi detectado em escala global, mas a forma como cada governo e a população governada iria se comportar diante do novo cenário tornou-se uma das principais indagações.
Considerando esse contexto, é possível abordar a recepção à pandemia nas metrópoles latino-americanas por meio de suas características compartilhadas, tais como suas regularidades estruturais e históricas, além da fragmentação urbana (Cobos & López, 2021; Di Virgilio & Perelman, 2021; Gledhill, 2021). Conforme Cobos e López (2021, p. 885), a campanha antivírus concentrou-se em três slogans (e hashtags): o “fique em casa!, forma voluntária ou repressivamente forçada de quarentena; não saia se não precisar!; e mantenha uma distância saudável, tanto em casa como na rua!”. De certa forma, esses slogans ajudam a identificar o comportamento e os níveis de compreensão das pessoas e grupos sociais – aquelas em quarentena total; as que têm que sair, mas estão vivendo em estado de medo, tensões constantes ou estão anestesiadas do cotidiano; e o grupo negacionista (Rocha, 2021) – diante do controle social exercido pelas autoridades sanitárias, mídia, especialistas e a sociedade civil.
Para Cobos e López (2021), adotar tal campanha não necessariamente protegeria a população mais desassistida, sem moradia, água, esgoto, excluídos do mercado de trabalho, do sistema de educação e das tecnologias digitais. Em metrópoles como São Paulo e Cidade do México, com mais de 20 milhões de habitantes, manter a “distância saudável” mostrou-se de difícil aplicação; por um lado, dadas a informalidade do trabalho e da moradia urbana, além dos que vivem nas ruas. Por outro lado, dada a existência de áreas de grande fluxo de pessoas como os centros históricos e seus espaços públicos, serviços comerciais como feiras, mercados públicos formais e informais, transporte coletivo etc. Por isso, as grandes concentrações populacionais tornam-se muito vulneráveis à transmissão comunitária.
No Brasil, a recepção negacionista ao isolamento e ao distanciamento social por parte da população e da classe política conservadora explicitou a falsa alternativa entre “ou a economia ou a vida”, motivos de embates entre o discurso político oficial do Governo Federal e os governadores dos estados da federação, STF e até mesmo a Organização Mundial da Saúde (OMS) (Barreira, 2021; 2022). Tal dilema somente separou tipos de existência, isto é, a separação ocorreu entre os que podiam e os que não podiam ficar em casa. As pessoas que precisavam circular pela cidade para trabalhar em lojas e escritórios, fazer compras, frequentar restaurantes, hospedar-se em hotéis ou retomar as atividades familiares e sociabilidade tiveram que lidar com a necessidade de estar cientes das movimentações locais e dos níveis de risco de contaminação.
Grande parte das mortes por coronavírus podiam ser evitadas se as ações do Governo Federal tivessem sido rápidas e coordenadas em sintonia com os governos estaduais e as orientações da OMS. Arantes e Pereira (2021) observaram que, de forma diferente, o Governo do Estado da Bahia e os municípios que compõem a Região Metropolitana de Salvador (RMS) estabeleceram relações intergovernamentais e interfederativas importantes para a mitigação dos impactos do vírus, desenvolvendo formas de cooperação e organização acerca das medidas de restrição ou flexibilidade. Dada a condição atípica, o enfrentamento da pandemia suspendeu momentaneamente a competição partidária já existente há mais de uma década entre Governo do Estado e a Prefeitura Municipal de Salvador, que aproximaram suas estratégias para o enfrentamento da pandemia como distanciamento social; reorganização dos serviços públicos, finanças públicas e funcionalismo; ações de vigilância em saúde; assistência em saúde; e medidas socioeconômicas.
Nesse sentido, o fato é que houve desproporcionalidade na distribuição dos riscos da pandemia do coronavírus, mostrando como essa desigualdade afeta prioritariamente as classes mais despossuídas no Brasil. Torres et al. (2021) partem do princípio de que a governança disruptiva do governo federal brasileiro contribui para essa injustiça ambiental ao disseminar um modo operacional descoordenado na relação com estados e municípios. Os autores lembram dos personagens Dr. Jekyll e Mr. Hyde, o médico e o monstro, que ficaram conhecidos na obra clássica de Robert Louis Stevenson, publicada no fim do século XIX, para fazer uma alusão à governança disruptiva em suas várias faces e níveis, representando o fenômeno de múltiplas personalidades do Governo Bolsonaro e a tragédia que colocou o Brasil como um dos líderes no ranking de infectados e de óbitos por Covid-19.
Acerca das resistências ao distanciamento social e lockdown, Toledo e Souza Junior (2020) discutem como tais medidas levaram a Antropologia Urbana a reconfigurar o lugar das etnografias na chamada sociedade em rede, da informação e das realidades virtuais e aplicar modelos etnográficos considerando que a ideia de sociabilidade aponta numa direção de práticas sociais que ultrapassam os encontros presenciais face-a-face numa amplitude que supera a do período de massificação do acesso à internet na primeira década do século XXI. As pessoas com acesso à internet intensificaram suas interações virtuais nas redes concomitantes de WhatsApp como lugar de “encontro dos corpos”. Muitos desses encontros resultaram em formas de sociabilidades esporádicas nas ruas ou em formas de aglomerações em praças, avenidas e outros espaços urbanos, geralmente como sinônimo de protesto ao confinamento.
Segundo a análise desses autores, o jogo das formas de sociabilidade (Simmel, 2006), associado à ludicidade e à conflitualidade decorrente das transfigurações políticas dos “corpos negacionistas”, levou às ruas o jogo das formas de sociabilidade negacionista, movidas por ideologias políticas, religiosas, classistas e pelas práticas antitéticas ao confinamento. No Brasil, ocorreu um repertório de discursos sobre encontros minados pela extensão das leis de isolamento e distância social às estratégias de ajuntamentos à distância incorporados na dinâmica do vírus, desde manifestações em carreatas, chás de bebês, panelaços, cultos religiosos, drive-in, aos saraus de poesias e compartilhamento de livros digitais, lives políticas, científicas e culturais (Toledo & Souza Junior, 2020).
Esses aspectos refletem o cenário das cidades brasileiras, que tem forte expressão na evitação às ruas devido à política de confinamento ou na negação a tal política. A rua, que outrora seria o espaço da criatividade cultural e cívica, passa a ser a “rua dos outros” no imaginário urbano em geral e na confluência de artigos de opinião, considerada, então, a fonte principal dos malefícios da pandemia, dos sujeitos negacionistas, ameaçadores e/ou transmissores dos vírus (Fortuna, 2021).
Nesse sentido, Barreira (2021, p. 30) retoma uma importante e clássica questão sociológica sobre a vida social, “como e de que modo é possível estarmos juntos?”, ao olhar para o lugar dos afetos nas interações nos espaços urbanos diante da condição de incerteza que paira sobre as cidades brasileiras no contexto pré e pós pandemia. Desde as chamadas jornadas de junho de 2013, a conflitualidade ganha força com expressão do ódio e intolerância às diferenças socioculturais e ideológicas. Naquele momento, sinaliza a autora, “o ‘estar nas ruas’ não representou apenas uma sinalização de protesto, mas adesão significativa a um lugar de posicionamento” (Barreira, 2021, p. 33), posicionamento este que residiu na conflitualidade e indisposição ao diálogo. Mas o “ficar em casa” também se revelou como este lugar de inquietação e conflito, próprio do espaço público urbano, tanto devido à conduta (anti) ética de agrupamentos sociais e políticos negacionistas, quanto às práticas sociais resistentes à ordem normativa, muito bem percebido por Certeau (1994) para se referir aos modos táticos de ser, viver e estar no espaço urbano, isto é, os modos insubmissos de viver (Leite, 2018).
A velocidade com que o vírus se disseminou nos primeiros meses fez gerar discursividades de que essa crise igualaria a todos nas diversas partes do mundo, pouco importando a classe social de pertencimento. Entretanto, “um dos efeitos esperados da pandemia foi o recrudescimento das desigualdades em escala global” (Flexor, Silva & Rodrigues, 2021, p. 907), inclusive no acesso ao consumo digital e ao novo mercado criativo. Na realidade, ocorreu uma disseminação desigual no território nacional e em muitos países, exemplificada pelos quadros de insegurança alimentar, desemprego e informalidade, evasão escolar diante das dificuldades de parcela considerável população em adotar o homeschooling e, de forma mais impactante, em adotar medidas básicas como lavar as mãos. Além disso, Menezes, Magalhães e Silva (2021) relatam que o pronunciamento do presidente da República, minimizando os impactos do novo coronavírus, provocou o afrouxamento no distanciamento físico, ao qual. em um primeiro momento, a população das favelas havia aderido.
Tendo isso em mente, moradores de favelas das Regiões Metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro construíram os espaços subversivos, um modelo de planejamento subversivo que se incorpora ao planejamento convencional e hierarquizado das cidades (Dominguez & Klink, 2021). Tais espaços surgiram em decorrência dos problemas estruturais das favelas na crise sanitária quanto ao ordenamento dos espaços urbanos. Eles resultam das redes de apoio de parte dos moradores de favelas dessas regiões, que adotaram estratégias territoriais e em redes sociais, mobilizando iniciativas e medidas coletivas para amenizar as vulnerabilidades diante da nova crise sanitária, expondo a visibilidade de suas carências materiais, mas também suas práticas populares de sobrevivências.
Essas redes organizaram painéis comunitários que podem ser lidos como uma forma de expressão entre os moradores de favelas do Rio de Janeiro para debater a realidade da pandemia nesses territórios. Tais painéis atuaram em articulação com profissionais de saúde e promoveram o intercâmbio social e político entre favelas que “envolve uma intensa troca de saberes, tecnologias, experiências e redes de contatos” (Menezes, Magalhães & Silva, 2021, p. 84). Essas experiências periféricas não apenas expuseram dilemas antigos do planejamento urbano convencional, mas também revelaram novos processos comunicativos entre os territórios de favelas e periferias urbanas através das redes. A crise causada pela Covid-19 não só destacou dilemas antigos, mas também apontou para espaços subversivos e potencialmente inovadores onde sujeitos coletivos desenvolveram inovações tecnológicas e espaciais eficazes para enfrentar problemas estruturais urbanos (Dominguez & Klink, 2021).
Rocha (2021) alega, com base no conceito de coautoria urbana, que a apropriação da cidade “pode ser feita tanto pela forma na qual o espaço foi pensado originalmente quanto subvertida, e esta subversão pode ser tomada pelos detentores de poder como algo negativo, o que gera os citados conflitos” (Rocha, 2021, p. 1019). O conceito de coautoria defende a existência do planejamento da cidade de forma compartilhada entre sujeitos e instituições detentores de poder e os cidadãos que dela se apropriam, os coautores urbanos: cidadãos formais, marginalizados e ativistas urbanos.
A vida nas cidades e o debate em torno dos efeitos da Covid-19 devem ser explorados através de teorias, temas e metodologias “que [coloquem] em relevo conhecimentos, práticas e vidas situadas” (Segata et al., 2021, p. 9). Não à toa, o enfoque antropológico demonstra como a ausência do poder estatal nas práticas sanitaristas nos centros urbanos atinge desde o lado sensível da vida às condições disruptivas da morte no cotidiano urbano (Rui et al., 2021; Andrade Neves, 2021).
Segundo Rui et al. (2021), categorias conceituais como biopoder, biopolítica e necropolítica têm sido mobilizadas de forma incontornável para se discutir como essas populações vivenciaram estratégias de gestão estatal, pressão de empresários e políticos negacionistas para reabrir o funcionamento das empresas durante o confinamento.4 Esses conceitos tornaram-se “chaves de entendimento [...] para revelar a extensão dos efeitos do neoliberalismo sobre o tecido social tanto de países que já experimentaram um Estado de bem-estar social quanto daqueles que nunca conseguiram chegar a ele” (Rui et al., 2021, p. 26). Ou seja, discute-se as condições de pobreza, saúde e envelhecimento, o racismo estrutural e ambiental, as desigualdades de gênero e as exclusões sociais acentuadas na pandemia.
Durante a crise sanitária, o Brasil enfrentou uma crise econômica e social sem precedentes, como evidenciado na síntese de indicadores sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022). Entre 2020 e 2021, a pobreza e a extrema pobreza aumentaram significativamente, afetando mais de 62 milhões de pessoas, o que corresponde a 29,4% da população. Dessas, 17,9 milhões estavam em situação de extrema pobreza, representando 8,4% da população total. As mulheres enfrentaram uma queda de 7,5% na renda, enquanto a população preta e parda sofreu uma diminuição de 8,6%, evidenciando profundas desigualdades raciais e de gênero.
As regiões Norte e Nordeste foram as mais afetadas, com quedas de 9,8% e 12,5%, respectivamente, no rendimento domiciliar per capita. Essa situação foi agravada pela dependência dessas regiões de setores econômicos vulneráveis, bem como pela escassez de empregos formais e por salários mais baixos. A deterioração do mercado de trabalho contribuiu para a redução da renda domiciliar, especialmente entre os 40% mais vulneráveis da população, que enfrentaram dificuldades adicionais devido à falta de acesso à tecnologia e ao capital humano (IBGE, 2022).
A distribuição desigual dos espaços públicos resulta de políticas de planejamento urbano historicamente favoráveis a áreas privilegiadas e da continuidade da urbanização informal em que se perpetua a exclusão de comunidades marginalizadas das vantagens oferecidas pelos espaços públicos valorizados como parques, praças e largos estruturados. Assim, a falta de acesso adequado a esses espaços impacta na qualidade de vida, no bem-estar das comunidades e na coesão social dessas áreas e gera iniquidades sociais. Bairros de baixa renda podem ter menos recursos para investir em espaços públicos ou menor influência política para exigir melhorias nessas áreas, resultando em acesso limitado a esses espaços para os residentes dessas comunidades (Arantes, 2021).
Não é por acaso que os estudos realizados antes da pandemia sobre as temáticas mencionadas foram desafiados a entender os novos contornos sociais, econômicos e afetivos da “não” cidade devido ao isolamento e à mudança repentina na forma de viver, trabalhar e estar. Guimarães, Barreira e Leite (2022) argumentam que a complexidade da vida na cidade exige abordagens sofisticadas para lidar com os temas que compõem a agenda urbana atual, como
violência, crime organizado, segregação, efeito-território, ilegalismos, desigualdade, gentrificação, sociabilidades e espaço público, pobreza, cidadania e direitos, habitação, mobilidade, trabalho informal e precarizado, movimentos sociais urbanos, patrimônios culturais, governança, sustentabilidade e inclusão
(Guimarães, Barreira & Leite, 2022, p. 1).Dessas questões a sociologia urbana é instada a analisar as desigualdades sociais, a espoliação urbana e as vulnerabilidades de determinados segmentos sociais nas metrópoles brasileiras. Guimarães (2022) destaca a importância da trajetória da Sociologia Urbana no estudo das condições de vida da população urbana, que representa mais de 84% da população brasileira. Os marcos teórico-metodológicos dessa disciplina, entre os anos de 1960 e 1980, podem ajudar a compreender o contexto socio-histórico do tema “condições de vida”, o qual está ligado à renda, à reprodução precária do trabalho e do consumo (básico e coletivo), bem como a compreender os fatores que afetam essas condições a partir dos anos 1990 e intensificados durante a pandemia entre 2020 e 2022.
Guimarães (2022) e Barreira (2022) recuperam o “esquema analítico da espoliação urbana” de Kowarick (1979), para debater sobre a reestruturação produtiva e a reestruturação do espaço urbano como um conjunto de experiências urbanas articuladas à globalização e à produção do espaço pelas políticas urbanas neoliberais, bem como o desigual acesso aos bens de consumo coletivo, como moradia, transporte, saúde e hospital. Tais experiências, imbuídas de um escopo desigual e excludente, foram explicitadas pela pandemia. Guimarães (2022) analisa as questões atuais sobre renda, trabalho e outras tendências na relação Estado, economia e sociedade, incluindo o contexto pré e pós-pandêmico. A autora ressalta a necessidade de investigar os fatores e produzir novas abordagens teóricas e metodológicas relacionadas às condições de vida. A saúde pública foi a principal preocupação, mas a queda da renda mensal domiciliar, que chegou a diminuir em 7% em 2021, foi sentida ao mesmo tempo em que crescia a população que trabalha de forma autônoma ou informal e de consumidores endividados e inadimplentes.
Bógus e Magalhães (2022) analisam algumas das principais Regiões Metropolitanas do Brasil (Salvador, Fortaleza, Manaus, Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Distrito Federal). Neste estudo, os autores utilizam o Coeficiente de Gini e dados do IBGE para demonstrar a evolução das desigualdades de renda e das vulnerabilidades, o aumento do percentual dos indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita mensal de até ¼ de salário-mínimo e o aumento do trabalho informal em torno de 40,1%, no primeiro trimestre de 2022, apesar da queda da desocupação, quando atinge 9,8%, o equivalente a 10,6 milhões de pessoas desempregadas. Tais números, sugere Guimarães (2022), evidenciam os efeitos dos processos de espoliação que afetam os trabalhadores precarizados, os comerciantes e prestadores de serviços que dependem da presença de público consumidor, além daqueles que enfrentaram a escolha entre as necessidades básicas e a dependência econômica durante as restrições sanitárias impostas.
Bógus e Magalhães (2022) destacam também que as cidades brasileiras passaram por grandes transformações que geraram impactos na estrutura social, econômica, cultural e política. A lógica capitalista de produção do espaço e o aumento da pobreza geraram formas precárias de vida que resultaram em segregação socioespacial e fragmentação do tecido social urbano ainda maior durante a pandemia de Covid-19, afetando de forma mais direta a população de baixa renda com efeitos devastadores em termos de mortalidade e vários tipos de risco e vulnerabilidades, além de aumentar a informalidade e diminuir a renda média mensal das famílias que vivem nas favelas e cortiços nas regiões metropolitanas. Além das metrópoles, ocorreu a “interiorização da doença” devido à proximidade das periferias urbanas de diferentes municípios e pela mobilidade intraurbana entre as RMs e os municípios-polo integrados.
Em pesquisa anterior, Bógus e Magalhães (2021, p. 49) utilizam recursos metodológicos chamados “Níveis de integração dos municípios que formam as Regiões Metropolitanas e o Índice de Bem-Estar Urbano, o IBEU”,5 que servem à análise macrossociológica sobre as desigualdades socioespaciais urbanas. A partir de tais recursos, estes autores demonstram como a pandemia alterou decisivamente as condições de vida e o bem-estar urbano de seus habitantes e demonstram os impactos demográficos da disseminação do vírus que resultaram na redução do crescimento populacional nos espaços metropolitanos do país, de modo que chamam a atenção para reflexão sobre os impactos da diversidade desses espaços no enfrentamento e combate à doença. Assim, “será preciso olhar para as cidades e analisar a forma desigual como elas foram e ainda são, cotidianamente, produzidas e vivenciadas” (Bógus & Magalhães, 2021, p. 49), o que inclui o desigual acesso ao sistema médico-hospitalar, às condições de habitação, trabalho, deslocamento, educação, de home office, praticamente inexistentes em certas regiões periféricas, dificultando o isolamento social.
Sobre este último aspecto, o baluarte da publicização da ideia de um “novo normal”, Barreira (2022, p. 3) argumenta que “as classes médias e altas reuniam maior quantidade de recursos para manter o isolamento social por conta da possibilidade de executar o trabalho on-line e poder circular em espaços amplos, desde a moradia, incluindo principalmente oportunidades de lazer” em praias isoladas, resorts, condomínios privativos. Por isso também ocorreu um choque na recepção ao isolamento e ao distanciamento social em locais de muito adensamento, o que explicita os cenários distópicos da urbanidade brasileira.
A pandemia exacerbou a diversidade sociocultural e política, bem como a desigualdade social e econômica nas cidades brasileiras. Ao longo do texto, delineamos três dimensões centrais para compreender esse processo: o aumento do uso de espaços virtuais para as atividades cotidianas, as mudanças nas relações de convivência e sociabilidade urbana, e a exposição das desigualdades sociais, econômicas, tecnológicas e ambientais. Nesse sentido, emerge a necessidade de refletir sobre o presente e repensar o futuro das cidades e os espaços públicos por meio das intervenções das ciências sociais e humanas sobre as crises urbanas.
Os debates apresentados na seção sobre espaço público e urbanidades pandêmicas produziram perspectivas multifacetadas sobre as diferentes dimensões e as fronteiras entre as formas de convivialidade e de conflitualidade. A crise sanitária impôs novas temporalidades e espacialidades à vida urbana: a quarentena, o distanciamento social e a aproximação virtual entre os distantes ou isolados – além do período de flexibilização após o uso de vacinas –, levando as pessoas a se redescobrirem, reinventarem suas rotinas e relações com o espaço público e privado.
A casa e a rua tornaram-se lugares de inquietação e resiliência na vida urbana, revelando uma nova conexão entre espaços urbanos e virtuais. Analisar a coautoria da “casa urbana” mostra como os moradores adaptaram práticas urbanas ao ambiente doméstico, levantando questões sobre os limites entre público e privado. Nesse sentido, as tecnologias digitais mediaram práticas culturais, ativismo, mobilização, formas de expressão e a reconfiguração dos mercados artísticos por meio de plataformas online que conectaram o mundo de cidades. Esse contexto reflete a implosão do espaço privado e da intimidade pela presença das tecnologias digitais, transformando a casa em um local para atividades anteriormente associadas aos espaços urbanos.
A discussão apresentada na seção sobre o distanciamento social e as distopias urbanas evidenciou como o período de quarentena e de distanciamento desafiou as bases ontológicas da vida urbana contemporânea. Esta crise carrega a história das crises sanitárias anteriores e a persistência contínua das desigualdades sociais e urbanas que permeiam as cidades brasileiras, pois a falta de acesso a condições básicas de moradia, trabalho e saúde tornou as populações mais vulneráveis ainda mais expostas ao vírus. Além disso, as reações contraditórias à quarentena nos primeiros meses da pandemia intensificaram as conflitualidades e resistências, marcando uma forma de ideologia – estar nas ruas – e resistência ao ordenamento do espaço público emergencial e à normatização do “ficar em casa”.
Em outra direção, a capacidade de resiliência e mobilização das comunidades de favelas frente à crise sanitária foram evidenciadas pela construção de espaços subversivos e organização de painéis comunitários, demonstrando uma resposta criativa e colaborativa dos moradores dessas regiões metropolitanas, que enfrentaram e enfrentam problemas estruturais históricos em decorrência da urbanização da injustiça da não cidade. Essas iniciativas representam formas de coautoria urbana, não apenas para mitigar vulnerabilidades, mas também para evidenciar as práticas populares de sobrevivência e solidariedade através das redes de apoio entre os moradores e outros atores sociais presentes nessas comunidades.
Na última seção, analisamos as (re)atualizações conceituais da urbanidade contemporânea iniciando com enfoque em conceitos como biopoder e necropolítica que emergem como fundamentais para a compreensão da maneira desigual como as políticas neoliberais, em conjunto com um governo negacionista, afetaram as populações durante a crise. Esses conceitos contribuem para uma compreensão crítica das políticas urbanas, evidenciando como o planejamento convencional das cidades, o negacionismo político e as pressões econômicas resultam na distribuição desigual dos espaços públicos, perpetuando iniquidades sociais e valorizando áreas privilegiadas em detrimento da urbanização informal.
Nesse debate, o esquema analítico da espoliação urbana foi retomado como um importante marco teórico-metodológico, pois destaca a exacerbação das desigualdades sociais existentes e revela novas dimensões dessas disparidades nas condições de vida, precarização do trabalho e consumo das comunidades mais vulneráveis, especialmente as mulheres e a população preta e parda. Os autores destacaram a necessidade de uma análise crítica das políticas urbanas contemporâneas para refletir sobre a produção desigual do espaço e a distribuição desigual dos recursos e oportunidades entre áreas metropolitanas e periféricas. Há ainda a necessidade de reflexão sobre a diversidade das condições urbanas e como são vivenciadas pelas pessoas ao formular estratégias de enfrentamento às crises. Em suma, este debate ressaltou a urgência de uma abordagem mais inclusiva e participativa na construção de um futuro urbano mais justo e resiliente, no qual as necessidades e os direitos de todos os cidadãos sejam devidamente considerados e atendidos.
Por fim, esta amostragem bibliográfica não esgota o tema sobre cidades e pandemia, mas ela fornece caminhos importantes para pesquisas futuras sobre os espaços públicos e a cultura urbana no contexto pós-pandêmico. Apesar dos limites desta pesquisa, consideramos que as chaves de entendimento construídas em torno dos conceitos apresentados, direta ou indiretamente, e das análises empíricas apresentadas, apontam para um cenário possível de recomposição das cidades, ou seja, de reestruturação urbana de forma geral. Embora existam sinais claros de mudança social, a vida nas cidades continua marcada por desigualdades socioeconômicas e uma acentuada diferenciação de modos de vida que impedem a convivência pacífica em tempos de crise. Portanto, o “velho-novo normal” da vida urbana continua a se recompor indeterminadamente.