Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Buscar
Fuente


Da Sociologia para a Sociologia Educacional: história, currículo e professores na Escola Normal do Distrito Federal (1928-1936)
From Sociology to Educational Sociology: history, curriculum and teachers at the Normal School of the Federal District (1928-1936)
De la Sociología a la Sociología Educacional: historia, currículo y docentes de la Escuela Normal del Distrito Federal (1928-1936)
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 12, e-rbs.967, 2024
Sociedade Brasileira de Sociologia

Artigos


Recepción: 03 Agosto 2023

Aprobación: 12 Junio 2024

DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.967

Resumo: Neste artigo apresentamos resultados de uma pesquisa na qual identificamos e analisamos aspectos históricos da trajetória da disciplina escolar Sociologia, na Escola Normal do Distrito Federal, atual Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ). O objetivo do artigo foi construir, a partir das fontes investigadas, uma versão histórica sobre a inserção da disciplina Sociologia numa instituição específica. O recorte temporal adotado foi o período de 1928 a 1936, no qual a disciplina foi introduzida no currículo pela reforma empreendida por Fernando de Azevedo, em 1928. A metodologia adotada foi a análise documental das fontes encontradas no acervo do Centro de Memória da Educação Brasileira, localizado no ISERJ. Dialogamos com referenciais teóricos e metodológicos dos campos do ensino de sociologia e da história da educação, especialmente a tradição inglesa da história das disciplinas escolares, referenciada na obra de Goodson (1993, 1995, 1997, 2008). Identificamos aspectos relacionados à introdução da Sociologia nos programas da instituição, os conteúdos a serem ensinados, os primeiros professores e como disputas entre escolanovistas e católicos permearam os concursos.

Palavras-chave: Curso Normal, História das Disciplinas Escolares, Ensino de Sociologia.

Abstract: In this article, we present the results of a research aimed at identifying and analyzing historical aspects of the trajectory of the discipline Sociology, at the Normal School of the Federal District, currently the Higher Institute of Education of Rio de Janeiro (ISERJ). The objective of the article was to build, from the sources investigated, a historical version of inclusion of Sociology in a specific institution. The adopted time frame was the period from 1928 to 1936, in which the subject was introduced in the curriculum following a reform undertaken by Fernando de Azevedo in 1928. The research method was document analysis of the sources found in the collection of the Centro de Memória da Educação Brasileira, located at ISERJ. We discussed with theoretical and methodological references in the fields of sociological teaching and the history of education, especially the English tradition of the history of school subjects, referenced in the work of Goodson (1993, 1995, 1997, 2008). We identified aspects related to the introduction of Sociology in the institution’s programs, the contents to be taught, the first teachers and how disputes between New School supporters and Catholics permeated the contests.

Keywords: Normal school, history of school subjects, sociological teaching.

Resumen: En este artículo, presentamos los resultados de una investigación en la que identificamos y analizamos aspectos históricos de la trayectoria de la asignatura Sociología en la Escuela Normal del Distrito Federal, actualmente Instituto Superior de Educación de Río de Janeiro (ISERJ). El objetivo del artículo fue construir, a partir de las fuentes investigadas, una versión histórica sobre la inserción de la disciplina Sociología en una institución específica. El marco temporal adoptado fue el período de 1928 a 1936, en el que la materia fue introducida en el currículo por la reforma emprendida por Fernando de Azevedo en 1928. La metodología adoptada fue el análisis documental de las fuentes encontradas en la colección del Centro de Memória da Educação Brasileira, ubicado en ISERJ. Dialogamos con referentes teóricos y metodológicos en los campos de la enseñanza de sociología y la historia de la educación, en especial la tradición inglesa de la historia de las materias escolares, referenciada en la obra de Goodson (1993, 1995, 1997, 2008). Identificamos aspectos relacionados con la introducción de la Sociología en los programas de la institución, los contenidos a impartir, los primeros docentes y cómo las disputas entre los seguidores de la Escuela Nueva y los católicos permearon los concursos.

Palabras clave: Curso Normal, historia de las asignaturas escolares, enseñanza de Sociología.

Introdução

A história da Sociologia como disciplina escolar no Brasil ainda carece de investigações aprofundadas em períodos recuados. Abordar esse tema é desafiador, principalmente devido às lacunas existentes sobre a introdução das ciências sociais no país e à natureza mutável da inclusão da Sociologia nos currículos escolares. Neste artigo, compartilhamos os resultados de uma pesquisa que examinou o ensino de Sociologia na Escola Normal do Distrito Federal.

O objetivo desta pesquisa1 foi investigar, por meio de fontes documentais, os eventos relacionados à introdução da disciplina de Sociologia na Escola Normal do Distrito Federal, entre 1928 e 1936, considerada uma instituição de referência para a formação de professores no Brasil.

Nosso estudo é fundamentado na História das Disciplinas Escolares, que enfatiza a importância de compreender as formas assumidas por uma disciplina desde sua origem até sua evolução, possibilitando a análise dos fatores que influenciam a prática curricular.

A História das Disciplinas Escolares emergiu na década de 1970, com os estudos do currículo, e se desenvolveu com a Nova História ou História Cultural, ampliando o escopo da pesquisa histórica para incluir as disciplinas escolares em diferentes instituições e períodos. A diversificação das fontes de pesquisa, especialmente com a ascensão da Nova História, permitiu uma análise mais ampla das disciplinas escolares. As fontes documentais não são mais consideradas monumentos intocáveis, mas sim objetos de questionamento que fornecem múltiplas versões dos fatos históricos.

As pesquisas inseridas no campo da História das Disciplinas Escolares objetivam “identificar, tanto através das práticas de ensino utilizadas na sala de aula como através dos grandes objetivos que presidiram a constituição das disciplinas, o núcleo duro que se pode constituir uma história renovada da educação” (Julia, 2001, p. 13).

A obra de Goodson (2008) nos leva a refletir sobre a história social do currículo. Segundo ele, existe uma diferença entre o currículo escrito (oficial, normativo) e o currículo real, praticado nas escolas. Para ele, “o currículo escrito nos proporciona um testemunho, uma fonte documental, um mapa do terreno sujeito a modificações; constitui também um dos melhores roteiros oficiais para a estrutura institucionalizada de escolarização.” (Goodson, 2008, p. 21). Esse currículo oficial está presente nos documentos, programas, livros didáticos e fontes utilizadas para a elaboração do artigo.

Na tentativa de alcançarmos o objetivo proposto, categorizamos nossas fontes em três grupos: professores, pois segundo Goodson (1993, 1995) constituem a comunidade disciplinar, operam na gestão da disciplina, influenciando, gerando e cancelando oportunidades, mudando fronteiras e prioridades, sofisticando a burocratização com a institucionalização de associações especializadas, com normas e ética próprias; os programas, forma pré-ativa de currículo do sistema educacional; de acordo com Goodson (1995), o currículo escrito oficial indica publicamente aspirações, intenções, normas e critérios orientadores da avaliação pública da escolarização; e os materiais utilizados e recomendados por professores – outra forma de verificar se o currículo oficial estava sendo posto em prática.

O artigo está estruturado em três partes. Primeiro, apresentamos uma visão cronológica da história da Sociologia como disciplina escolar, desde seus primeiros movimentos de inclusão nos currículos. Em seguida, analisamos a trajetória da Escola Normal e as reformas realizadas por Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira no Rio de Janeiro durante as décadas de 1920 e 1930, destacando sua importância para a inserção da Sociologia no currículo escolar. Por fim, examinamos os programas de Sociologia de 1929 e 1936, bem como as disputas em torno do conteúdo da disciplina, à luz da História das Disciplinas Escolares.

Considerações sobre a Sociologia enquanto disciplina escolar

Antes de emergir como disciplina no Brasil, a Sociologia vive o período chamado por alguns autores de pré-científico (Liedke Filho, 2005; Bodart, 2015), quando pensadores e políticos eram as figuras responsáveis pela elaboração e desenvolvimento das teorias sociais. O Brasil deixava de ser Império com a Proclamação da República em 1889, e era preciso construir uma identidade nacional.

A primeira proposta de inserção da Sociologia como disciplina escolar no Brasil foi elaborada ao final do século XIX, por meio dos Pareceres de Rui Barbosa, entre os anos de 1882 e 1883 e com a Reforma promovida por Benjamin Constant, em 1890. Rui Barbosa propôs a disciplina “Elementos de Sociologia e Direito Constitucional” para a escola secundária, mas não obteve sucesso. Benjamin Constant, além de introduzir o ensino de Sociologia e Moral nas Escolas do Exército, tentou incluir Sociologia no currículo da Escola Normal e no secundário do Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Embora essas reformas não tenham sido plenamente implementadas, estudos recentes indicam mudanças nos currículos escolares de estados como Amazonas, Sergipe e Paraná em resposta aos decretos de Benjamin Constant (Bodart & Cigales, 2021; Alves & Costa, 2012; Zacharias, 2013).

No começo do século XX, a educação brasileira ainda era precária e limitada em relação ao acesso. A maioria da população brasileira era analfabeta e havia poucas escolas públicas, apenas uma minoria privilegiada tinha acesso à educação. A partir da década de 1920, no entanto, surgiram iniciativas para ampliar o acesso à educação básica que, segundo Helena Bomeny (2011, p. 185), foi “de efervescência mobilizadora”, na qual “a educação reencontrará o papel de protagonista nos ideais da nação”, sobretudo a partir da reunião de um grupo de educadores brasileiros, no ano de 1924, no Rio de Janeiro, para a criação da Associação Brasileira de Educação (ABE). Esse grupo era formado por intelectuais da época como Antônio Carneiro Leão, Venâncio Filho e Delgado de Carvalho, dentre outros. A ABE chegou a fazer, em 1927, uma Conferência com o título: “No Brasil só há um problema nacional: a educação do povo”.

Nesse momento, a educação estava ligada ao aprimoramento moral dos indivíduos, de forma a introduzir neles as virtudes consideradas necessárias para a vida cívica, para o desenvolvimento da sociedade, e a missão da Sociologia seria possibilitar um meio de moldar o indivíduo, por sua capacidade “civilizatória”. Ela ganhava força com a argumentação cientificista, tornando-se conhecida como a ciência que permitiria conhecer e intervir na realidade. As ideias de progresso e da construção de uma identidade nacional permeavam o contexto da época.

Com a Reforma Francisco Campos, em 1931, Sociologia passa a ser obrigatória em todo território nacional. Inicialmente a Sociologia foi uma disciplina “obrigatória apenas para os candidatos ao ensino superior”, ou seja, para uma “parcela privilegiada da elite que faria ensino superior e que teria o monopólio do discurso sobre o social” (Meucci, 2015, p. 254). Segundo Machado (1987), a Sociologia também estava presente no Colégio Pedro II (1925) e nas escolas normais de Pernambuco (1928), Rio de Janeiro (1928) e São Paulo (1933).

A Sociologia foi importante na reforma Francisco Campos, por contribuir no processo de conscientização das elites sobre os problemas da época. Os conhecimentos da disciplina representavam, para o aluno que se formava no ensino secundário, as noções de modernização, de um estado republicano, capitalista, democrático.

É importante ressaltar que nesse momento “não era possível distinguir as Ciências Sociais fora do campo educacional” (Oliveira, Cigales & Engerroff, 2021, p.5). Essa mudança se deu nas décadas seguintes, com a consolidação das Ciências Sociais e o surgimento das primeiras gerações de cientistas sociais formados nas universidades. Foi somente após a década de 1930 que a Sociologia começou a ser plenamente reconhecida como uma disciplina autônoma e fundamentada em bases científicas. Esse período marcou o surgimento das primeiras gerações de cientistas sociais formados nas universidades brasileiras, impulsionando a consolidação das Ciências Sociais como um campo distinto de estudo e pesquisa.

Um marco significativo nesse processo foi a fundação da Universidade de São Paulo (USP) em 1934, que se tornou um importante centro de produção de conhecimento nas áreas de Sociologia e Ciências Sociais (Takagi, 2013). A criação do curso de Ciências Sociais na USP, sob a influência de intelectuais como Florestan Fernandes e Roger Bastide, foi crucial para o desenvolvimento acadêmico da disciplina no país.

A Escola Normal do Distrito Federal

O projeto da Escola Normal do Município da Corte teve início por meio do Decreto n.º 4.247, em 19 de abril de 1879, sob a iniciativa de Carlos Leôncio de Carvalho, então ministro. Essa iniciativa foi motivada pela necessidade de aprimorar o ensino, reconhecendo que os professores não poderiam mais ser improvisados. O Decreto n.º 7.684, de 6 de março de 1880, fundamentou a concepção da escola.

Ao final do século XIX, ocorreram algumas reformas pontuais na Escola Normal, porém estas não modificaram substancialmente a natureza das disciplinas do curso. A transição para o novo regime não resultou em mudanças significativas na instrução pública. Contudo, durante a década de 1920, uma crescente preocupação e entusiasmo em relação à problemática educacional tornaram-se evidentes. A disseminação dos princípios e fundamentos da Escola Nova serviu como base para reformas estaduais no ensino primário e normal, proporcionando elementos para uma revisão crítica dos padrões das escolas normais existentes. Uma das reformas mais proeminentes foi coordenada por Fernando de Azevedo na Escola Normal do Distrito Federal.

Fernando de Azevedo, formado em Direito na Faculdade de Belo Horizonte, iniciou sua carreira como jornalista e, posteriormente, foi nomeado professor substituto no Ginásio do Estado em Belo Horizonte. Durante esse período, liderou um movimento para a criação da cadeira de Educação Física. Sua paixão pela educação o levou a São Paulo, onde, em 1921, foi empossado como Professor de Latim e Literatura na Escola Normal da Praça da República. Azevedo desempenhou esse papel tão bem que ganhou a admiração dos alunos, apesar da resistência de alguns outros professores (Azevedo, 1971).

Em janeiro de 1927, enquanto ainda ocupava a cadeira de Latim e Literatura, Azevedo recebeu o convite para ser Diretor Geral de Instrução Pública e liderar uma reforma educacional na Capital Federal. Assumindo o cargo, ele começou a planejar “reformas radicais”. A reforma foi promulgada através da Lei n° 3.281, de 23 de janeiro de 1928, modificando o ensino primário, normal e a educação profissional no Rio de Janeiro, posteriormente regulamentada sem alterações em 22 de novembro de 1928, pelo Decreto do Ensino n.º 2.940.

A Escola Normal foi o epicentro de uma revolução educacional e cultural, enfatizando a necessidade de uma melhor preparação para os professores e priorizando a formação profissional. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova teve um impacto profundo na educação brasileira, provocando debates entre a escola tradicional e a escola renovada, que pregava uma educação pública, gratuita, mista, laica e obrigatória (Lemme, 1984).

A proposta de Azevedo estava fundamentada em três princípios fundamentais: a ideia de uma escola única, que abrangeria todas as crianças em idade escolar; a integração entre os diferentes níveis de ensino; e a adaptação ao meio, considerando as necessidades tanto da escola urbana, relacionadas à industrialização, quanto da escola rural, relacionadas às atividades agrícolas. Esses princípios foram embasados por teóricos como Dewey, Pestalozzi, Decroly e Kerschensteiner, além dos ideais da escola nova.

Com a crescente industrialização, Azevedo viu na escola uma preparação para o mercado de trabalho, o que o levou a construir um novo prédio na Tijuca, um bairro nobre do Rio de Janeiro, que continua sendo utilizado pela escola até hoje. Azevedo deixou o cargo em 1930, com a posse de Getúlio Vargas no Governo Provisório. O movimento reformador foi interrompido até Anísio Teixeira assumir a Direção da Instrução Pública do Distrito Federal em 1931, onde implementou uma importante reforma educacional que moldou sua carreira e teve um impacto nacional. Por meio do Decreto n.º 3.810, em 19 de março de 1932, Anísio transformou a Escola Normal do Distrito Federal em Instituto de Educação, elevando o curso normal ao nível superior e indicando um foco profissional para a formação docente.

O ensino de Sociologia e os primeiros professores

A Sociologia como disciplina foi introduzida no currículo da Escola Normal do Distrito Federal nas primeiras décadas do século XX, por meio de mudanças que ocorreram no campo da educação. A Sociologia foi considerada fundamental para a formação de professores mais críticos e capazes de compreender a realidade social do país. Nesse sentido, concordamos com Oliveira et al. (2021) em que as escolas normais foram um local privilegiado para o fomento da Sociologia como disciplina escolar.

A bibliografia e os documentos encontrados nos levam a Carlos Delgado de Carvalho, professor catedrático que desempenhou um papel crucial na consolidação da Sociologia como disciplina escolar (Coelho, 2007).

Carlos Delgado de Carvalho, nascido francês de pais brasileiros, chegou ao Brasil no começo do século XX. Um dos objetivos que tinha, ao sair da Europa, era escrever sua tese para apresentá-la à Escola de Ciências Políticas de Paris, completando assim sua formação acadêmica. No ano de 1920, o comprometimento de Delgado de Carvalho com o ensino se intensificou, notadamente no âmbito do Colégio Pedro II, onde desempenhou funções docentes nas disciplinas de Inglês, Geografia e Sociologia. Este período de maior envolvimento teve início quando Delgado de Carvalho participou de um concurso para o cargo de professor substituto de inglês, obtendo o primeiro lugar, mediante a apresentação de uma dissertação intitulada “Esboço histórico da origem da Língua Inglesa”. Sua nomeação ocorreu em 23 de dezembro de 1920, e a posse no cargo foi efetivada em 28 do mesmo mês e ano. Em 24 de setembro de 1924, foi promovido a Professor Catedrático, sucedendo a Carlos Américo dos Santos. No mesmo ano, Delgado de Carvalho foi um dos membros fundadores e o primeiro presidente da Associação Brasileira de Educação (ABE), estabelecendo vínculos de amizade e colaboração com outros intelectuais preocupados com a educação brasileira, notadamente com Anísio Teixeira (Soares, 2009).

Em 21 de novembro de 1927, Delgado de Carvalho foi transferido da cátedra de Inglês para a de Sociologia, anteriormente ocupada interinamente pelo professor substituto Adrien Delpech, que, por sua vez, foi promovido a Professor Catedrático de Francês do Internato do Colégio Pedro II em 5 de dezembro de 1927. Durante os anos de 1930 e 1931, Delgado de Carvalho foi diretor do Externato do Colégio Pedro II, tendo deixado a direção em 28 de novembro de 1931. No período de 1925 a 1930, Delgado de Carvalho trabalhou com maior proximidade dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, documento que também assinou. Segundo Reznik (1992), Delgado de Carvalho participou ativamente das discussões das reformas Francisco Campos, de 1931, e Capanema, de 1942.

A documentação encontrada no Centro do Memória da Educação Brasileira nos mostra que a trajetória de Delgado de Carvalho como professor na Escola Normal do Distrito Federal teve início em 1923 e só́ findou com sua aposentadoria compulsória aos 70 anos.

Delgado de Carvalho foi autor de muitos livros de Sociologia, escritos na década de 1930, dos quais destacamos Summarios do Curso do Sexto Anno, publicado em 1931, na tentativa de suprir a falta de um livro de Sociologia para os alunos do sexto ano do Colégio Pedro II. O autor deixa claro, já nas primeiras páginas, que considera a Sociologia uma ciência em desenvolvimento e, naquele momento, sua função era explicar as atividades humanas, ajudar a tornar a sociedade inteligível. A Sociologia estava voltada para as conquistas e realizações humanas.

Delgado de Carvalho também escreveu Sociologia (1931), Sociologia Educacional (1933), Sociologia e Educação (1934) e Sociologia Experimental (1934), durante o período ao qual esta pesquisa se dedica. Concordamos com Bodart e Paula (2022, p.9) em que:

Tais obras elevaram Delgado de Carvalho ao status de um dos maiores difusores do conhecimento sociológico no Brasil da primeira metade do século XX. Importa destacar que Carvalho esteve inserido em uma série de debates em torno do currículo, tendo se dedicado à Educação e alcançado projeção nacional, o que torna suas propostas um objeto de estudo importante no campo da Educação e, em particular, para o ensino de História, Geografia e Sociologia.

Acreditamos ser relevante destacar que, no ano de 1929, foi aberto concurso para ocupar a cadeira de Sociologia da Escola Normal. Os concursos eram parte fundamental da reforma de Fernando de Azevedo.2

Pode-se afirmar sem receio de contestação que nunca em nosso meio se realizaram tantos concursos, em tão breve espaço de tempo e para provimento de cargos tão variados e importantes no magistério normal e profissional, como nestes últimos dois anos, de acordo com as disposições da reforma de ensino. [...] No curso normal foram abertas inscrições de concurso em 1928 e 1929 para nada menos de 15 cadeiras. Já se realizaram os de Trabalhos Manuais, educação Física, Desenho, Física, Geografia e Direito. Deverão realizar-se este ano os de Inglês, Literatura, Aritmética e Álgebra, História da Civilização, História do Brasil, Psicologia, Química, Pedagogia e Sociologia

(Boletim de Educação Pública, 1930, p. 129).

As fases do concurso eram as seguintes: defesa de tese; prova escrita; prova prática (para cadeiras específicas); e aula. O candidato deveria entregar, até́ o último dia de inscrições, cinquenta exemplares da tese que escreveu para o concurso. As teses que encontramos no Centro de Memória da Educação Brasileira, dos concorrentes à cadeira de Sociologia, tinham diferentes quantidades de páginas e haviam sido impressas conforme a tipografia do Jornal do Comércio e de Paulo Pongetti & Cia.

As teses que encontramos foram: Sociologia (Estática Social) de Lupércio Hoppe, A Paz Universal perante a Sociologia, de Henrique Baptista da Silva Oliveira, Que é Sociologia, de Alcides Gentil, e alguns volumes de Esboço de uma Introdução à Economia Moderna de Alceu Amoroso Lima. As teses têm uma linha comum; todas se baseiam prioritariamente, ou quase exclusivamente, em Comte, são positivistas, pensamento em voga naquele momento.

De acordo com a tese de Accácio (2001), oito candidatos concorreram à cadeira de Sociologia: Alceu Amoroso Lima, importante intelectual que ocupou um lugar de destaque frente ao laicato católico no país, após a morte de Jackson de Figueiredo (professor e jornalista que se converteu ao catolicismo e empreendeu atividades importantes para igreja). Os projetos intelectuais e culturais de Amoroso Lima, a partir do final dos anos de 1920 e do início dos anos de 1930, dirigiram-se à defesa e à propagação dos interesses católicos no campo cultural e pedagógico (Cigales, 2019); Alcides Gentil, bacharel em Direito, foi professor de Português na Escola Normal do Pará (em 1921) e de Filosofia no Ginásio Paes de Carvalho (de 1926 a 1929). Ele ocupou a cadeira de Sociologia da Escola Normal em outro momento (Soares, 2015); Leopoldo Antônio Feijó́ Bittencourt, bacharel em Direito, foi oficial de Gabinete e secretário do Interior e Justiça do Estado do RJ (1924/28), também foi livre-docente e catedrático interino de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade do Brasil (IHGB); Lupércio Hoppe, professor efetivo da Escola Normal desde 1915 (informação contida na capa de sua tese), onde lecionava História; Stella de Faro, secretária geral da Confederação Católica Feminina, militante e intelectual católica. Foi presença constante no Ministério da Educação e Saúde Pública durante o mandato de Gustavo Capanema, participando de comissões que estudavam reformas do ensino (Mesquida, 2009); Vicente Miranda Reis, professor de Sociologia do Colégio Pedro II na década de 1940; Fernando Augusto Pires e Henrique Baptista da Silva Oliveira, candidatos sobre os quais não encontramos maiores informações.

A banca do concurso tinha como membros: Carlos Leoni Werneck, médico, que assumira, em 1929, a direção da Escola Normal; Francisco Avellar Figueira de Mello, professor e diretor do Instituto de Educação (substituindo Vicente Lucínio Cardoso, engenheiro, antigo membro e presidente da Associação Brasileira de Educação); Carlos Porto Carrero, bacharel em Direito, que fora professor da cadeira de Geografia e História da Faculdade de Direito do Recife; Romão Cortês de Lacerda, professor catedrático de Noções de Direito que, segundo Soares (2009), tentara concurso para cadeira de Sociologia no Colégio Pedro II em 1926; José Maria Moreira Guimarães, militar, que fora deputado e comandara a Escola Militar do Realengo (substituindo Mario Bulhão Ramos, professor); e Padre Leonel Franca, jesuíta com intensa atuação política e religiosa no Brasil – iniciou seu trabalho docente no Colégio Santo Inácio, atuou no Conselho Nacional de Educação, foi integrante do Instituto Católico de Estudos Superiores, fundado em 1932 pelo Centro Dom Vital, que veio dar existência e significado à proposta da Pontifícia Universidade Católica no Brasil, da qual foi fundador e reitor.

Padre Leonel Franca e Alceu Amoroso Lima faziam parte do grupo de intelectuais católicos que tinha grande influência na educação da época. Segundo Marcelo Cigales (2019, p.174), os intelectuais católicos tinham uma missão dupla: confrontar as ideias e projetos culturais e políticos dos intelectuais liberais, ao mesmo tempo que propunham um projeto de sociedade fundamentado nas premissas sociais católicas.

A presença de um membro do alto clero, Padre Leonel Franca, na banca do concurso causou revolta. Em 21 de setembro de 1930, no artigo “A futura Escola Normal”, publicado no Diário de Notícias, Cecília Meirelles, poetisa – que foi aluna da Escola Normal do Distrito Federal e também a primeira professora da recém-criada turma de desenho, concorreu para a cadeira de Literatura da Escola Normal em 1929 e foi signatária do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932 –, diz que o novo prédio “ameaça abrigar todos os adversários da Escola Nova”. Ela demonstra sua insatisfação com a presença de representantes da igreja católica na banca dos concursos.

Por que os representantes da igreja, que della fazem parte, não poderão jamais, pela própria dignidade de seu cargo, deixar a batina à porta, como já se disse. Está no seu interesse e na sua obrigação religiosa defender o seu credo. E na sua opinião, fazem, de certo muitíssimo bem. Mas a opinião dos educadores é outra. E essa é que tem que ser respeitada, porque a Escola Normal é um instituto pedagógico e não um seminário

(Meirelles, 1930, p.4).

A polêmica em torno do concurso persiste. Em artigo publicado no Jornal do Brasil, intitulado “O concurso de sociologia”, Perilo Gomes, intelectual católico, secretário do Centro Dom Vital,3 defende tanto Tristão de Athayde,4 quanto Padre Leonel Franca.

Logo, uma vez que Tristão de Athayde não pleiteou nem pleiteia nenhum favor no concurso a que se vae submeter, e que o Padre Leonel Franca não tem, não pode, nem quer ter candidato para a cadeira em que, segundo se diz, funccionará como examinador, tudo que se vem afirmando em contrário não passa de mera invencionice

(Gomes, 1930, p.9).

No período analisado neste artigo, não há registro da realização de outro concurso, pois o mesmo foi suspenso em 22 de novembro de 1930. Os eventos que cercam o concurso levam-nos a concordar com a perspectiva de Goodson (1997) sobre a formação de uma “comunidade disciplinar”. Compreendemos que a disciplina escolar é um campo de disputas entre atores sociais, como professores, pesquisadores e especialistas, em busca de recursos, status e territórios. Essa comunidade é caracterizada por conflitos, divergências e, portanto, acordos são estabelecidos a partir dessas disputas. Segundo Goodson (1997), não se deve considerar a comunidade disciplinar como um grupo homogêneo, cujos membros compartilham os mesmos valores e interesses. Além disso, Goodson (1995) e André Chervel (1990) argumentam que as disciplinas escolares são construídas social e politicamente, influenciadas por fatores internos e externos à escola. Esses fatores envolvem relações de poder e interesse, em que diferentes grupos e atores sociais se mobilizam para legitimar determinados conhecimentos e os impor à sociedade, a fim de promover uma determinada formação. A polêmica em torno do concurso está diretamente relacionada às disputas em torno das distintas concepções de Sociologia e de sociedade que vigoravam na época (Oliveira et al., 2021).

A busca pelo currículo oficial da disciplina nos levou a dois programas, o de Sociologia de 1929, encontrado no periódico Programmas da Escola Normal, e o de Sociologia Educacional de 1936, localizado no periódico Arquivos do Instituto, anuário destinado a divulgar as atividades realizadas. Concordamos com Goodson (1995) em que o currículo escrito oficial indica publicamente aspirações, intenções, normas e critérios orientadores da avaliação pública da escolarização. A busca por outras fontes que nos mostrassem que a disciplina estava presente na instituição durante o período de intervalo entre os programas levou-nos novamente a Arquivos do Instituto, publicado em 1934, que não contém nenhum programa, mas uma imagem da sala dedicada somente à Sociologia.

O programa de Sociologia de 1929 foi publicado pela Prefeitura do Distrito Federal e confeccionado pela gráfica do Jornal do Brasil, a publicação Programmas do Curso Normal não contém informações para além dos programas. A disciplina faz parte do segundo ano da formação da fase profissionalizante, sendo uma matéria de caráter específico. A obra possui 86 páginas e traz os programas das seguintes disciplinas: Português e Literatura, Francês e Inglês, Geografia, História da Civilização e do Brasil, Matemática, Física, Química, História Natural, Anatomia e Psicologia, Noções de Direito Público e Privado, Desenho, Música, Trabalhos Manuais, Psicologia, Pedagogia, Higiene e Puericultura, Sociologia e História da Educação.

Há uma introdução sobre as disciplinas antes dos programas, e da Sociologia espera-se o seguinte:

deverá receber o máximo cuidado dos respectivos docentes, a fim de ser explanada em vista sempre das realidades do meio social brasileiro. À parte propriamente histórica, à exposição e crítica de vários sistemas, é indispensável juntar o exame atento e minucioso das forças sociaes contemporâneas, dos factores de progresso ou decadência da sociedade, de problemas que reclamam solução imediata ou a prazo longo em nosso meio, e da cooperação valiosa da escola na obra de renovamento social

(Prefeitura do Distrito Federal, 1929, p.27).

O trecho acima sugere que a Sociologia, enquanto disciplina escolar, possuía um enfoque nas questões sociais no final da década de 1920. Esse enfoque permitia que o futuro professor aplicasse a Sociologia para analisar sua própria realidade, bem como a dos seus alunos, além de auxiliar na compreensão dos problemas sociais brasileiros. Esse conhecimento sociológico, portanto, tinha uma finalidade prática e uma perspectiva crítica, visando à transformação da sociedade. A existência de uma sala dedicada exclusivamente à Sociologia indica a importância que essa disciplina possuía na formação de professores, evidenciando que sua presença na instituição era considerada essencial para a compreensão e enfrentamento dos desafios sociais e educacionais da época.

O programa de Sociologia de 1929 está́ dividido da seguinte forma: A Sociologia, seu conteúdo; Método da Sociologia; Histórico das Interpretações Sociológicas; Augusto Comte; Frederico Le Play; Os sistemas sociológicos atuais; Constituição e Evolução dos grupos; A Moral e a Religião; Organização do Estado; Os problemas da população; Migração e Colonização; O Fator Econômico; A Evolução Econômica; Estrutura Social na Fase Industrial; As Anomalias Sociais; Problemas Sociais na América; Problemas Sociais no Brasil; A Formação da Mentalidade nacional.

Destaca-se a amplitude de tópicos contemplados no programa de Sociologia, além da predominância de uma abordagem secular, bem como uma organização para auxiliar os alunos na compreensão dos conteúdos, com o objetivo de mostrar a aplicabilidade da Sociologia na resolução dos problemas sociais da época. É possível notar a presença de temas da Filosofia, bem como um diálogo com outras disciplinas, como Geografia, História e Biologia. O programa também pode ter sido influenciado por Fernando de Azevedo, já que faz referência ao conceito de Fato Social, criado por Durkheim. As observações feitas por Delgado de Carvalho sugerem que ele não foi o autor do programa de 1929, pois, se tivesse sido, teria tido as mesmas críticas que apresentou na obra Práticas de Sociologia (1939), na qual criticava o Programa de Sociologia elaborado pelo Departamento Nacional de Ensino.

Segundo Soares (2015, p. 83):

Tais divergências eram motivadas em primeiro lugar pela extensão do programa, abrangendo assuntos que, segundo o catedrático, eram em sua maioria estranhos à Sociologia (direito, ciência política, economia política etc.). Além disso, o programa tinha uma “preocupação exagerada em refutar as teorias francesas de Durkheim, com as quais nada temos”. Tal programa tinha em vista fazer da Sociologia uma ciência normativa, o que na opinião de Delgado de Carvalho, significava “dar-lhe a missão de outra disciplina, a instrução moral e cívica”.

De acordo com o pensamento de Goodson (1995), o currículo escrito desempenha um papel fundamental na retórica de legitimação da escolarização. A aceitação e valorização social desse discurso dependem da alocação de recursos e do status atribuído a ele. No caso da Sociologia, como uma nova disciplina escolar, Goodson argumenta que a chave para seu sucesso era desenvolver e manter retóricas legitimadoras que garantam o apoio automático às atividades adequadamente classificadas. Essas retóricas legitimadoras eram necessárias para estabelecer a Sociologia como uma disciplina respeitável e valiosa no currículo escolar.

O programa de Sociologia Educacional de 1936 foi encontrado no periódico Arquivos do Instituto de 1937 (vol. 1, nº 3). O programa é assinado por Carlos Miguel Delgado de Carvalho e desenvolvido em seis itens: a) Noções de organização social: o indivíduo na coletividade e os tipos de grupos; b) Valores sociais; c) Valor social do conhecimento; d) Estudo da população escolar; e) Noção de processo social; f) Estudo do ajustamento social.

O objetivo da disciplina de Sociologia, de acordo com o que consta no programa, era capacitar a professora primária para que ela tivesse uma compreensão mais ampla do meio social em que iria atuar, bem como para justificar o propósito social do que iria ensinar e da organização escolar. A Sociologia, portanto, tinha uma função instrumental na formação do professor, fornecendo-lhe conhecimentos teóricos e práticos que lhe permitiam compreender a realidade social em que atuava e orientar sua prática pedagógica de acordo com as necessidades e demandas da sociedade.

A Sociologia Educacional era matéria dos três períodos do primeiro ano, assim como a Biologia Educacional e a Psicologia Educacional. É possível encontrar o programa das três disciplinas na edição de 1937.

Uma informação que nos chama atenção no programa é a referência à necessidade de conhecimentos de outras disciplinas, como Biologia, Psicologia e Direito. Essa informação está relacionada às ambições de Anísio Teixeira, que idealizava uma formação de professores abrangente e interdisciplinar, capaz de contemplar todas as dimensões do processo educativo e da vida em sociedade. Dessa forma, o programa de Sociologia não apenas enfatizava a importância da compreensão das questões sociais, mas também promovia uma visão integrada e interdisciplinar do conhecimento, capaz de formar professores mais preparados e conscientes das suas responsabilidades sociais. De acordo com Lopes (2003, p.97),

no entender dos autores do projeto, esse tipo de organização seria mais adequado para promover a unidade e articulação do ensino das diferentes matérias da seção entre si, além de possibilitar a organização de cursos ordinários, de revisão e de aperfeiçoamento e acompanhar a execução dos programas, sugerindo e incentivando a melhoria dos processos didáticos.

Delgado de Carvalho propõe, em seu programa de Sociologia Educacional, a utilização de processos pedagógicos inovadores como excursões, visitas, discussões em grupo e pesquisas bibliográficas. Esses métodos são característicos do movimento escolanovista de educação, que preconiza uma abordagem mais participativa e democrática do ensino, em que os alunos são incentivados a planejar e executar projetos em grupo, em uma reorganização do tempo e do espaço escolar que gera novas formas de saber e transforma a cultura escolar.

Dentre essas atividades, a pesquisa ganha destaque no programa, pois Delgado de Carvalho a considera essencial para o treinamento dos alunos para a vida coletiva. Ao realizar análises sociológicas em grupo, os estudantes vivenciam a experiência da pesquisa, ao mesmo tempo que reconhecem a racionalidade da vida social. Esse processo contribui para a formação de indivíduos mais críticos e engajados socialmente, capazes de compreender e transformar a realidade em que estão inseridos. Assim, o programa de Sociologia Educacional de Delgado não apenas propõe novas metodologias de ensino, mas também um novo modelo de formação humana e cidadã.

Sobre a bibliografia sugerida, algo nos chama atenção: alegando ser restrita a literatura sociológica em língua nacional, Delgado de Carvalho recomenda que os “alunos se limitem, por enquanto, a artigos de revista de educação que tratam esporadicamente dos assuntos” (De Carvalho, 1937, p. 308). Tal informação não se aplica, uma vez que o próprio Delgado já havia escrito manuais dedicados a Sociologia Educacional. Além disso, para ingressar na Escola Normal era preciso prestar exame de Inglês e Francês.

A partir da análise dos dois programas encontrados, podemos afirmar que a visão de Goodson (1997, p. 42) sobre as investigações históricas das disciplinas escolares é corroborada, uma vez que o currículo não é fixo e sim dinâmico, passível de mudanças constantes. Nesse sentido, podemos inferir que a mudança do ensino da disciplina Sociologia para o ensino de Sociologia Educacional se deu em função do projeto de educação idealizado pelos principais atores envolvidos nas reformas educacionais da época. Lourenço Filho é um dos reformadores que criticou o currículo proposto pela reforma de Fernando de Azevedo.

Na Reforma Fernando de Azevedo (1927-1928), no Distrito Federal, o problema de maior extensão do curso foi conjuntamente considerado com o da separação dos estudos propriamente pedagógicos. [...] Parece que a necessidade de maior e mais aprofundado preparo dos mestres começa a tocar, então, a consciência dos responsáveis pela educação do país

(Lourenço Filho, 1934, p. 16 e 17).

Por sua vez, na reforma idealizada por Anísio Teixeira foi dada maior ênfase à formação prática, por meio de estágios e vivências em escolas, possibilitando aos futuros professores uma experiência direta e concreta do contexto educacional. Além disso, a formação pedagógica ganhou destaque, com disciplinas voltadas para didática, metodologia e compreensão das questões educacionais.

Essa mudança no currículo reflete a influência do movimento escolanovista, que propunha uma educação mais participativa e voltada para as necessidades e interesses dos alunos. Nesse contexto, a Sociologia passou a ser vista como uma disciplina capaz de contribuir para a formação de cidadãos capazes de compreender e transformar a realidade social em que estão inseridos. A mudança para Sociologia Educacional também reflete essa perspectiva, evidenciando a preocupação em integrar os conhecimentos sociológicos à prática educativa. Assim, podemos concluir que a mudança da disciplina de Sociologia para Sociologia Educacional foi resultado de um processo de transformação do currículo escolar, influenciado pelas ideias escolanovistas da época.

Ao analisar o caso da Sociologia e Sociologia Educacional sob o prisma dos padrões de estabilidade e mudança nas disciplinas escolares propostos por Goodson (1997), podemos afirmar que a estabilidade na disciplina se dá através da repetição de maneiras de abordagem em sua sistematização, gerando sua própria identidade. Por outro lado, a mudança disciplinar consiste em propostas de abordagem que se adaptam aos enfoques tradicionais da disciplina sem que sua identidade se perca.

No caso da Sociologia Educacional, a mudança ocorreu através da criação de uma nova construção curricular que incluiu elementos da Sociologia já existente. Assim, a Sociologia se manteve no currículo do Curso Normal do Instituto de Educação, mas houve a necessidade de mudança para melhor se adequar ao modelo de formação de professores proposto pelos reformadores na década de 1930. Em resumo, a mudança não foi uma ruptura com o passado, mas sim uma adaptação para atender às novas demandas da época.

Considerações finais

O estudo em questão buscou investigar o lugar ocupado pela disciplina de Sociologia no currículo da Escola Normal durante o final da década de 1920 até meados de 1930, em consonância com o projeto de educação dos principais educadores brasileiros da época. A hipótese inicial era de que a Sociologia teve um papel relevante nesse contexto e que sua importância estaria associada ao modelo escolanovista de formação de professores primários.

Os resultados obtidos indicaram que a Sociologia de fato ocupou um lugar privilegiado no currículo da Escola Normal durante o período estudado, sendo uma disciplina valorizada e com grande destaque na formação de professores. Sua relevância era ainda mais evidente dentro do modelo escolanovista, que enfatizava a necessidade de uma formação mais completa e voltada para a realidade social e cultural dos alunos. Entretanto, a pesquisa também revelou que a influência da Sociologia na Escola Normal não se deu sem polêmicas e conflitos. A disputa entre católicos e liberais foi um fator importante que chegou a resultar no cancelamento do concurso para a cadeira de Sociologia na Escola Normal. Esse fato evidencia a intensidade do debate em torno da disciplina e sua relevância no contexto da educação brasileira na época.

A perspectiva adotada por Goodson (1995), sobre os currículos escolares como espaços conflituosos de produção e reprodução de valores e normas comportamentais, também foi corroborada pelos resultados da pesquisa. Os objetivos diretamente relacionados ao ensino muitas vezes são submetidos a um conjunto mais amplo de finalidades políticas e sociais, o que acaba por criar tradições que precisam estar enraizadas em um passado histórico apropriado.

Dessa forma, os resultados deste estudo contribuem para uma melhor compreensão do papel da disciplina de Sociologia na Escola Normal e da influência do modelo escolanovista na formação de professores primários. Além disso, evidenciam a importância de se considerar o contexto histórico e as disputas políticas e ideológicas na análise dos currículos escolares. Esperamos que este artigo contribua para outras pesquisas, a fim de investigar a história da Sociologia como disciplina escolar em outras instituições e em outros períodos.

Referências

Accácio, Liéte O. (2001). Docentes e catedráticos: os concursos para professor da Escola Normal do Distrito Federal. Tese [Doutorado em Educação], Universidade de São Paulo.

Arquivos do Instituto De Educação. (1937). Centro de Memória da Educação Brasileira – ISERJ, 1 (3), Distrito Federal.

Arquivos do Instituto De Educação. (1936). Centro de Memória da Educação Brasileira – ISERJ, 1 (2), Distrito Federal.

Arquivos do Instituto De Educação. (1934). Centro de Memória da Educação Brasileira – ISERJ, 1 (1), Distrito Federal.

Alves, Eva Maria S., & Costa, Patrícia Rosalba S. M. (2012). Aspectos históricos da cadeira de sociologia nos estudos secundários (1892-1925). Revista Brasileira de História da Educação6 (2 [12]), 31-52.

Azevedo, Fernando de. (1971). História de minha vida. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.

Bodart, Cristiano das N. (2015). Fragmentos de Sociologia préacadêmica no ensino normalista de 1935. Em Debate, 13 (1), 30-51. https://doi.org/10.5007/1980-3532.2015n13p30

Bodart, Cristiano das N., & Cigales, Marcelo P. (2021). O ensino de sociologia no século XIX: experiências no estado do Amazonas, 1890-1900. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 28 (1), 123-145. https://doi.org/10.1590/S0104-59702021000100007

Bodart, Cristiano das N., & Paula, Brena S. L. de. (2022). O ensino de Sociologia nos programas para o Colégio Pedro II e nos manuais escolares de Delgado de Carvalho (1926-1933). Imagens da Educação, 12 (3), 1-27. https://doi.org/10.4025/imagenseduc.v12i3.57619

Boletim de Educação Pública. (1930). Centro de Memória da Educação Brasileira – ISERJ. Distrito Federal, ano I, nº 01, 24-58.

Bomeny, Helena M. (2011). Moral, bons costumes e limites à participação cívica. Desigualdade & Diversidade, 9, 181-192.

Brasil. (1879). Decreto no 7.247, de 19 de abril de 1879. Reforma o ensino primário e secundário no município da Corte e o superior em todo o Império. Coleção de Leis do Império do Brasil, P. 196, Vol. 1 pt. II (Publicação Original). https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto- 7247-19-abril-1879-547933-norma-pe.html.

Chervel, André. (1990). História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria e Educação, 2, 177-229.

Cigales, Marcelo P. (2019). A Sociologia católica no Brasil: análise sobre os manuais escolares (1920-1940). Tese [Doutorado em Sociologia}, Universidade Federal de Santa Catarina.

Coelho, Patrícia. (2007). A voz do mestre: trajetória intelectual de Carlos Delgado de Carvalho. Dissertação [Mestrado em Educação], Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

De Carvalho, Delgado (1937). Sociologia Educacional. In: Arquivos do Instituto De Educação. Centro de Memória da Educação Brasileira – ISERJ, 1 (3), Distrito Federal.

Goodson, Ivor F. (2008). As políticas de currículo e de escolarização: abordagens históricas. Trad. Vera Joscelyne. Petrópolis, RJ: Vozes.

Goodson, Ivor F. (1997). A construção social do currículo. Lisboa, PT: Educa.

Goodson, Ivor F. (1995). Currículo: teoria e história. Petrópolis, RJ: Vozes.

Goodson, Ivor F. (1993). School subjects and curriculum change. Londres, UK: The Falmer.

Gomes, Perillo. (1930). O concurso de sociologia. Jornal do Brasil. Hemeroteca Digital Brasileira.

Julia, Dominique. (2001). A cultura escolar como objeto histórico. Tradução de Gizele de Souza. Revista Brasileira de História da Educação, 1 (1), 9-43.

Kornis, Mônica A. (2001). Centro Dom Vital. In Abreu, A. A. de (org). Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Rio de Janeiro: Editora FGV; CPDOC.

Lemme, Paschoal. (1984). Manifesto dos pioneiros da Educação Nova e suas repercussões na realidade educacional brasileira. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 65 (150), 255-272.

Liedke Filho, Enno D. (2005). A Sociologia no Brasil: história, teorias e desafios. Sociologias, 7 (14), 376 -437. https://doi.org/10.1590/S1517-45222005000200014

Lopes, Sonia Maria de C. (2003). A oficina de mestres do Distrito Federal: História, memória e silêncio sobre a Escola de Professores do Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Tese [Doutorado em Educação], Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Lourenço Filho, Manoel B. (1934). A Escola de Professores do Instituto de Educação do Rio de Janeiro – notícia histórica. Arquivos do Instituto de Educação, 1 (1), 15-26.

Machado, Celso de S. (1987). O ensino da Sociologia na escola secundária brasileira: levantamento preliminar. Revista da Faculdade de Educação, 13 (1), 115-142. https://doi.org/10.1590/S0102-25551987000100005

Meirelles, Cecilia. (1930). A futura Escola Normal. Diário de Notícias. Hemeroteca Digital Brasileira.

Mesquida, Peri. (2009). A educação na restauração lemista da Igreja: a missão de Tristão de Athayde e Stella de Faro no Ministério da Educação e Saúde Pública: 1934-1945. Rev. Diálogo Educ, 9 (27), 279-295. https://doi.org/10.7213/rde.v9i27.3577

Meucci, Simone. (2015). Artesania da Sociologia no Brasil: contribuições e interpretações de Gilberto Freyre. Curitiba: Editora Appris.

Oliveira, Amurabi, Cigales, Marcelo P., & Engerroff, Ana Martina B. (2021). Disputas e concepções de Sociologia no campo educacional brasileiro: Fernando Azevedo e Alceu Amoroso Lima. perspectiva39 (4), 1–18. https://doi.org/10.5007/2175-795X.2021.e72122

Prefeitura do Distrito Federal. (1932). Decreto no 3.810, de 19 de março de 1932: regula a formação técnica para o Distrito Federal, com a prévia exigência do curso secundário, e transforma em Instituto de Educação a antiga Escola Normal. http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/reorganizacao.html

Prefeitura do Distrito Federal. (1929). Programas da Escola Normal. Centro de Memória da Educação Brasileira – ISERJ, Distrito Federal.

Prefeitura do Distrito Federal. (1928). Decreto nº 2.940, de 22 de novembro de 1928. Regulamento do Ensino. Prefeitura do Districto Federal, Rio de Janeiro, Escola Álvaro Baptista. Av. Mem de Sá, 163.

Prefeitura do Distrito Federal. (1928). Decreto n. 3281 de 23 de janeiro de 1928. Regulamenta a Reforma na Instrução Pública no Rio de Janeiro. In Fonseca, C. S. da. História do Ensino Industrial no Brasil. Rio de Janeiro: SENAI/DN/DPEA.

Prefeitura do Distrito Federal. (1880). Decreto no 7.684, de 6 de março de 1880. Cria no município da Corte uma Escola Normal primaria. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-7684-6-marco- 1880-546874-publicacaooriginal-61438-pe.html.

Reznik, Luiz. (1992). Tecendo o amanhã (a História do Brasil no ensino secundário: programas e livros didáticos 1931 a 1945). Dissertação [Mestrado em História], Universidade Federal Fluminense.

Soares, Jefferson da C. (2015). Ensino de Sociologia no Brasil: o pioneirismo do Colégio Pedro II (1925-1942). Revista Café com Sociologia, v. 4, nº 3.

Soares, Jefferson da C. (2009). O ensino de sociologia no Colégio Pedro II (1925-1941). Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Takagi, Cassiana T. (2013). Formação do professor de sociologia do ensino médio: um estudo sobre o currículo do curso de ciências sociais da Universidade de São Paulo.Tese [Doutorado em Educação], Universidade de São Paulo.

Zacharias, Mariana R. (2013). Espaços e processos educativos do Ginásio Paranaense: os ambientes especializados e seus artefatos (1904-1949). Dissertação [Mestrado em Educação], Universidade Federal do Paraná.

Notas

1 A pesquisa que deu origem ao artigo contou com financiamento da CAPES por meio de bolsa de mestrado na modalidade PROEX/ PUC-Rio.
2 Ao instituir a reforma (Decreto 3.281 de 23 de janeiro de 1928), Fernando de Azevedo e sua equipe desistem de nomear professores catedráticos para as cadeiras novas e as que estavam vagas, optando pelo ingresso por meio de concurso. Segundo o Boletim de Instrução Pública (1930), entre 1928 e 1929 foram abertas inscrições para quinze cadeiras da Escola Normal.
3 Associação civil para estudo, discussão e apostolado, subordinada à Igreja Católica, fundada em maio de 1922 no Rio de Janeiro por Jackson de Figueiredo, com a colaboração do então arcebispo coadjutor do Rio de Janeiro, Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra. Até a criação da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, em 1941, foi considerado o principal centro intelectual do catolicismo brasileiro. Funcionando sob a supervisão das autoridades eclesiásticas, o Centro Dom Vital era uma associação de caráter elitista, cujos objetivos mais importantes consistiam em atrair para a Igreja elementos da intelectualidade do país e formar uma ‘nova geração de intelectuais católicos (Kornis, 2001).
4 Pseudônimo de Alceu Amoroso Lima.

Notas de autor

victoriags@outlook.com.brjefics@puc-rio.br



Buscar:
Ir a la Página
IR
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS por