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As novas modalidades de “cerco” da criminalidade carioca: um estudo comparativo das condições de vida em territórios periféricos no Rio de Janeiro
The new ways of “sieging” by organized crime in Rio: a comparative study of living conditions in peripheral territories in Rio de Janeiro
Las nuevas formas de “sitio” por la delincuencia en Río: un estudio comparativo de las condiciones de vida en los territorios periféricos de Río de Janeiro
As novas modalidades de “cerco” da criminalidade carioca: um estudo comparativo das condições de vida em territórios periféricos no Rio de Janeiro
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 12, e-rbs.969, 2024
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepción: 12 Agosto 2023
Aprobación: 13 Abril 2024
RESUMO: A categoria “cerco” foi proposta por Machado da Silva e Leite (2007) como uma forma de descrever o sentimento de submissão a uma força coercitiva e violenta que produz constantes preocupação e receio de manifestações violentas, com frequência imprevisíveis, que impedem a circulação e o exercício das rotinas locais. Passados quase 20 anos dessa publicação, o Rio de Janeiro descrito pelos autores sofreu grandes transformações nas suas relações entre crime, Estado e moradores de favelas e periferias. A partir de uma análise comparativa de seis localidades, nosso objetivo foi identificar e descrever práticas de atuação de grupos armados nos territórios e os efeitos sobre os moradores dessas localidades. Dessa forma, identificamos como as novas modalidades de “cerco”, notadamente o “cerco pelo terror” e o “cerco panóptico”, implicam novos constrangimentos, riscos, dificuldades, incertezas, e novos tipos de resistência.
Palavras-chave: Milícia, tráfico de drogas, violência, crime, Rio de Janeiro.
ABSTRACT: The “siege” category was proposed by Machado da Silva and Leite (2007) as a way of describing the feeling of submission to a coercive and violent force that produces constant concern and fear of violent manifestations, often unpredictable, which prevented circulation and the exercise of local routines. Almost 20 years after that publication, the Rio de Janeiro described by the authors has undergone major transformations in its relations between crime, the State and residents of favelas and peripheral areas. Based on a comparative analysis of six locations, our objective was to identify and describe the practices of armed groups in those territories and the effects on its residents. In this way, we identify how the new modalities of “siege”, notably the “siege by terror” and the “panoptic siege”, imply new constraints, risks, difficulties, uncertainties, and new types of resistance.
Keywords: Militia, drug trafficking, violence, crime, Rio de Janeiro.
RESUMEN: La categoría “sitio” fue propuesta por Machado da Silva y Leite (2007) como forma de describir el sentimiento de sumisión a una fuerza coercitiva y violenta que produce constante preocupación y temor por manifestaciones violentas, muchas veces imprevisibles, que impiden la circulación y el ejercicio de las rutinas locales. Casi 20 años después de aquella publicación, el Río de Janeiro descrito por los autores ha sufrido grandes transformaciones en sus relaciones entre la delincuencia, el Estado y los residentes de las favelas y zonas periféricas. A partir de un análisis comparativo de seis localidades, nuestro objetivo fue identificar y describir las prácticas de los grupos armados en esos territorios y los efectos sobre sus residentes. Así, identificamos cómo las nuevas modalidades de “sitio”, en particular el “sitio por el terror” y el “sitio panóptico”, implican nuevas limitaciones, riesgos, dificultades, incertidumbres y nuevos tipos de resistencia.
Palabras clave: Milicia, narcotráfico, violencia, crimen, Rio de Janeiro.
Introdução
Em função da presença de grupos armados em seus territórios de moradia, há décadas os pobres do Rio de Janeiro vivem sob “cerco”: submetidos a controles armados diversos, forçados a conviver com tiroteios, chacinas, castigos violentos, controle de suas rotinas e moralidades, segregação e estigma. Mas tal configuração, representada na imagem da “cidade partida” ou “em guerra”, tem ganhado novos contornos a partir das dinâmicas mais recentes. Dos espaços classificados como “dominados por grupos armados”, 50% estaria ocupado por milícias, enquanto as chamadas facções dividiriam entre si a outra fatia das áreas controladas (GENI & Instituto Fogo Cruzado, 2022). Ainda que os efeitos desses diferentes controles territoriais sejam semelhantes em muitos aspectos, no imaginário do Rio de Janeiro as experiências de viver sob tais “cercos” são vistas como bem diferentes. Os territórios dominados por facções foram usualmente representados como palco de operações policiais violentas e local onde drogas ilícitas e armas seriam expostas ostensivamente, porém com um controle mais flexível de rotinas e moralidades (Rocha, 2013; Carvalho, 2014; Machado da Silva, 2008; Zaluar, 1985). Já as áreas dominadas pela milícia foram representadas como locais com um controle muito maior das rotinas e moralidades, porém com um risco bem menor de confrontos e outros episódios de violência cotidiana (Da Motta, 2020; Alves, 2003; Cano & Duarte, 2012).
Contudo, pesquisas de caráter etnográfico indicavam que tais distinções nas formas de atuação de tráfico e milícia seriam insuficientes para compreender as atuais condições de vida dos moradores de áreas periféricas cariocas.1 Assim, interessou-nos investigar mudanças na forma como facções e milícias atuam, tendo como referência suas práticas e presença nos territórios periféricos e os efeitos sobre os moradores das localidades pesquisadas.
Dessa forma, o objetivo deste artigo foi investigar e descrever as atuais dinâmicas de “cerco” produzidas por diferentes grupos armados, seus efeitos sobre as sociabilidades locais e na produção de precariedades2 a que os moradores dessas localidades estão submetidos. Entendemos “cerco” nos termos de Machado da Silva e Leite (2007) especialmente em uma de suas atividades, aproximadamente 50 horas de dinâmica com 15 grupos focais (envolvendo 150 moradores de mais de 40 favelas, ou seja, como uma compreensão por parte dos moradores de favelas e periferias, ao mesmo tempo subjetiva e objetiva, de sua submissão a uma força coercitiva e violenta, e a preocupação e receio constantes com manifestações violentas, em muitos casos, imprevisíveis, que impedem a circulação e a rotina locais. Assim, buscamos identificar como as possíveis novas modalidades de “cerco” implicam novos constrangimentos, riscos, dificuldades, incertezas, e novos tipos de resistência.
Dessa forma, buscamos responder a duas questões específicas: como milícias e facções ocupam os territórios onde atuam e qual a relação de milícias e facções com os moradores dessas localidades?
Nossa abordagem metodológica foi criar indicadores que permitissem a comparação entre territórios distintos.3 Para tanto, produzimos uma matriz comparativa, alimentada a partir de dados etnográficos, que cruzavam as seguintes informações:
Este artigo organiza-se, portanto, da seguinte forma: além desta introdução, uma segunda seção que recupera rapidamente a história recente dos moradores de favela e suas relações com o Estado e os grupos armados que controlam seus territórios de moradia; uma terceira seção onde apresentamos os resultados da pesquisa no que se refere aos tipos de “cerco” observados; uma quarta seção que aprofunda a análise no que diz respeito aos efeitos desses “cercos” sobre a sociabilidade local; e uma quinta e última seção, que traz as considerações finais.
Vivendo sob “cerco” no Rio de Janeiro
Desde o final dos anos 1970, quadrilhas de jovens armados controlam o varejo da venda de drogas ilícitas em favelas e periferias da cidade do Rio de Janeiro. Seu poder está estruturado no uso da força como elemento de coordenação das relações sociais e da vida cotidiana (Machado da Silva, 1999), subalternizando as populações que vivem nas áreas por eles controladas. A disputa pelos pontos de venda com outros grupos de traficantes de drogas ilícitas e a constante negociação com a polícia para sua atuação – cujas condições são muitas vezes definidas a partir de confrontos bélicos (Menezes, 2018; Misse, 2018) – levaram a permanentes conflitos armados que causaram milhares de mortes ao longo dos anos, bem como tornaram a vida dos moradores de favela do Rio de Janeiro imprevisível, marcada por rupturas na rotina, medo, apreensão e silenciamento (Rocha, 2013, 2018b; Farias, 2008a; Leite et al., 2018a, Machado da Silva, 2008). Também como resultado das disputas territoriais, as quadrilhas passaram a se organizar em facções, com disputas e alianças que se alternam ao longo das décadas e com relações diferentes com grupos criminosos, tanto no Rio de Janeiro quanto no resto do país.
Em torno do mesmo período, formavam-se os primeiros grupos do que se convencionou chamar de milícias. O que entendemos atualmente como “milícia” é uma descendência de grupos de extermínio, atuantes sobretudo na Baixada Fluminense (Alves, 2003) e, de forma mais territorializada, na região Oeste do Rio de Janeiro (Mesquita, 2008; Misse, 2011; Pope, 2023a; Werneck, 2015; Zaluar & Conceição, 2007). Segundo Alves (2003), esses grupos de extermínio se tornam milícias quando passam a atuar na política, elegendo parlamentares e criando um braço institucional para sua atuação. Tais relações institucionais produzem redes de influência junto a policiais, políticos, líderes comunitários e funcionários do estado, que tanto garantem o acesso a recursos quanto diminuem conflitos e riscos inerentes a esse tipo de atuação (Arias, 2013; Arias & Barnes, 2017; Hirata et al. 2020; Pope 2023a, 2023b). Por fim, milicianos são conhecidos por comercializarem diversos “recursos” e serviços, que exploram de forma monopolista: segurança, extorsão, habitação, fornecimento de água, gás, internet, transporte complementar e televisão a cabo (gatonet), entre outros (Cano & Duarte, 2012; Cano & Ioot, 2008; Hirata et. al. 2020; Zaluar e Conceição, 2007).
Contudo, nos últimos 15 anos, diversas mudanças foram observadas nesse cenário. Em 2008 o Projeto de “Pacificação” de Favelas foi iniciado, com o objetivo de instalar permanentemente Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) em favelas. Seus efeitos, ainda que o projeto tenha sido encerrado dez anos depois, são observados até os dias atuais: aumento da vigilância e controle sobre a rotina dos moradores, reorganização do tráfico de drogas, aumento da mercantilização de territórios nas favelas, aumento da militarização da vida (Carvalho 2018; Rocha 2018; Leite et. al., 2018a; Menezes, 2018, Miagusko, 2018). No mesmo sentido, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) impactaram a reestruturação e expansão das milícias (Arias & Barnes, 2017; Da Motta, 2020), especialmente porque das 38 UPPs instaladas apenas uma foi em área de milícia. Dessa forma, não houve confrontação direta por parte dos agentes estatais em área de milícia, o que contribuiu para que os milicianos se consolidassem nos territórios já ocupados e expandissem seu domínio para outras áreas da cidade.
A partir de 2015, uma outra série de eventos remodelou as relações entre crime, Estado e moradores de favela. O projeto de “pacificação” entrou em uma crise generalizada, impulsionada pela crise do governo do estado, fazendo com que a lógica situada de “tutela militarizada” (Oliveira, 2014) fosse substituída pelo confronto direto. Entre 2016 e 2017 facções criminosas romperam suas alianças, reorganizando o cenário do crime – resultando em intensificação das disputas entre quadrilhas do tráfico de drogas, aumento do roubo de carga e crescimento substancial dos homicídios na cidade no Rio de Janeiro (Hirata & Grillo, 2019; Machado da Silva & Menezes, 2020). Desde 2018, ano da Intervenção Federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro, abriu-se uma nova temporada de mega operações policiais e chacinas com números recorde de mortes,5 que se estende até os dias atuais. Dessa forma, esse período pode ser lido como um momento de consolidação da gestão das populações faveladas e periféricas baseada no aprofundamento da violência estatal, onde a militarização se dissemina enquanto elemento ordenador da vida social (Leite et al. 2018b) e a guerra se estabelece como o modo atual de governar e gerir – em um modelo colonial (Mbembe, 2003) – a vida na cidade (Magalhães, 2020).
É neste novo contexto, de reorganização das dinâmicas de violência urbana, ação estatal e controle territorial, que realizamos esta pesquisa, com o objetivo de compreender os efeitos dessa reorganização na vida cotidiana de moradores de favelas e periferias cariocas.
O “cerco” hoje
Para compreender como o controle armado se apresenta no território, como se faz visível ou invisível (ou em quais circunstâncias) tanto para quem mora nessas localidades6 quanto para quem é “de fora”, analisamos igualmente os relatos de moradores entrevistados, as falas captadas em campo sobre o “clima” da localidade (Menezes, 2018, Miagusko, 2018) em determinados momentos – que em alguns casos se manifestavam como “rumores” (Magalhães, 2019; Menezes, 2020), bem como notícias veiculadas na mídia convencional e nas redes sociais.
Assim, classificamos as formas de presença territorial como “Ostensiva”, isto é, com presença de armas e uma identificação mais clara dos membros dos grupos armados, e “Difusa”, sem a presença de armas e/ou outros indicadores e na qual a identificação de quem são os membros do grupo armado seria mais difícil. Dessa classificação original derivamos três tipologias, que apresentamos a seguir.
Controle consolidado da milícia, presença territorial difusa
Uma das localidades pesquisadas é caracterizada pela antiga atuação de milícias e ausência de registro de confrontos armados.7 Naquele local, foi preciso que um morador apontasse discretamente para nosso pesquisador os milicianos que estavam vigiando a rua, porque ele não conseguiu fazer a identificação sozinho. Contudo, após localizar quem eram e onde estavam os milicianos, o pesquisador relatou que a atmosfera local se tornou mais pesada em função dessa vigilância. Segundo os relatos obtidos nessa ocasião, todos que frequentam o território “aprendem” quem são os milicianos com o tempo. Mas aqueles que possuem relação econômica com os grupos armados – seja porque alugam casas que pertencem ao grupo, porque utilizam o serviço de transporte controlado por eles, entre outros – precisam adquirir com maior precisão essa capacidade de leitura de “quem é quem”. Quem tem comportamentos considerados disruptivos, em desacordo com as regras impostas pelo grupo miliciano, é alvo mais ativo da vigilância que esse grupo exerce, sendo mais diretamente afetado por essa opressão: é a “molecada” do bairro.
Vale ressaltar, contudo, que esse conhecimento é tácito, no sentido de ser o suficiente para a “navegação” dos indivíduos pelo espaço, evitando confrontações desnecessárias e acionando a proteção oferecida quando preciso. Os moradores da localidade, quando se referem aos milicianos que ali atuam, utilizam mais frequentemente os nomes próprios do que o pertencimento desses a grupos conhecidos – como “ligas” ou “bondes”. A relação entre território e controle armado é mais pessoalizada, e mencionada em conversas privadas ou na base do “rumor” (Magalhães, 2019; Menezes, 2020), do que algo afirmado em público ou reconhecido – mais próximo de um registro “doméstico” do que de um “assunto público”.
Assim, nessa localidade onde a presença do grupo armado é difusa, o conhecimento sobre quem é miliciano, quem é policial e o que cada um desses indivíduos representa no território é fundamental para a “navegação” dentro dessa dinâmica. A presença difusa não significa que o ambiente é considerado por quem mora ali ou o frequenta menos vigiado, apenas que tal vigilância é exercida de forma mais sutil – o que exige maior capacidade de leitura do ambiente e suas dinâmicas.
Em um outro grande bairro da Zona Oeste, também sob o controle de um tradicional grupo de milicianos que atua na localidade desde meados dos anos 1990, acontece situação semelhante. Em um primeiro olhar, não é fácil reconhecer quem são os milicianos, pois não há nenhum traço distintivo que os identifique como tais. Segundo os interlocutores, qualquer pessoa pode, a princípio, ser um miliciano. Mas, apesar de não ser fácil identificá-los, o grupo exerce forte controle sobre o território; ainda que não saibam quem são, os moradores sabem que estão ali, “camuflados”. E é essa camuflagem que garante o sucesso no monitoramento e a vigilância do cotidiano do bairro, garantindo que a “segurança” oferecida pelos milicianos seja considerada pelos moradores como eficiente. De uma maneira geral, há uma promessa de segurança que se cumpre na prática e que faz com que os moradores se sintam seguros, como mostra o trecho de uma entrevista:
Por exemplo, na [local] eles não andam armados, mas eles andam com rádio. Então eles estão se comunicando a todo tempo. Nas ruas e tal, tem sempre alguém [deles]. Eu sempre falo, eu saía de bares às vezes de madrugada e não tinha condução. Eu ia a pé às vezes para a casa, do [local] para a minha casa é 20 minutos andando, bêbado, então você vai voando né, você nem sente. E aí às vezes eu voltava para a casa bêbado com dinheiro no bolso, celular, e não acontecia nada e até hoje não acontece. [...] até Uber mesmo quando eu pego Uber da casa da [nome da namorada] para a minha casa eles [...] falam “ah, eu gosto de pegar corrida para [nome da localidade], porque é tranquilo”
(Homem, negro, 30 anos).Assim, nessas situações, classificamos a presença dos grupos armados como difusa, marcada por não ser facilmente perceptível, mas fortemente sentida.
Controle consolidado do tráfico, presença territorial “ostensiva”
Outra localidade pesquisada, na região central do Rio, já foi palco de muitas disputas de facções rivais pelo controle da venda de drogas ilícitas no local. Atualmente ela segue controlada por uma facção específica, que pode ser considerada consolidada e, na percepção dos moradores, a localidade está sob permanente ameaça de invasão/confronto pela facção rival, que controla territórios vizinhos. Na fronteira entre esses territórios é possível observar a exposição ostensiva de armas, bem como a presença dos rapazes do “radinho”. De forma semelhante, nas ruas de acesso é possível notar a presença de indivíduos controlando a circulação de carros e motos, que só é permitida quando o motorista é identificado como morador. Neste “posto de controle”, é exigido que os condutores de moto entrem sem capacete e os carros devem estar com os vidros abertos e luz interior acesa. Os moradores também afirmaram que não utilizam equipamentos de GPS e câmeras no painel dos carros, para que não sejam confundidos com “inimigos” gravando a localidade.
Em função da necessidade constante do grupo armado local de “defender” seu território, a espacialidade dessa localidade é marcada por traços e registros físicos que remetem a cenários de guerra. Barricadas foram colocadas recentemente em algumas entradas, segundo os “rumores” locais, visando dificultar uma possível invasão, tanto de outra facção quanto da polícia. Algumas ruelas internas foram fechadas com portões e cadeados para evitar a circulação de membros do grupo de tráfico de drogas ilícitas. Da mesma forma, muitas casas na localidade possuem portões altos, muros com caco de vidro e arames farpados, entre outras evidências da arquitetura de uma “cidade de muros” (Caldeira, 2020). Assim, a própria produção do espaço físico local remete à apreensão e preocupação constantes com os confrontos armados, mesmo que apenas enquanto possibilidade ou latência – o que permitiria ampliar o conceito de ostensividade territorial também para a dimensão da produção material do espaço da localidade.
Controle territorial em disputa, presença “ostensiva”
Em outro bairro da Zona Oeste, o trabalho de campo se concentrou em três favelas que possuem modalidades diferentes de presença: i) uma ocupada pela milícia “desde sempre” ou “desde quando era só a polícia mineira”; ii) uma ocupada por milicianos oriundos da favela citada anteriormente desde os anos 2000; e iii) uma sob controle de uma facção de drogas conhecida como “inimiga histórica” da milícia. Por essa conformação territorial, que reúne grupos milicianos em expansão e a facção de tráfico de drogas rival, a região tem sido palco de intensos conflitos armados entre grupos que se revezam na disputa pelo domínio das favelas. Assim, ainda que em boa parte seja considerado “área de milícia”, o bairro é palco da presença ostensiva desses grupos armados.
Na primeira favela, de ocupação “consolidada” por um grupo miliciano, os moradores relataram que é fácil identificar quem são os milicianos porque eles estão “todos os dias no mesmo lugar” – assim, “todo mundo sabe” quem eles são. Tal presença, contudo, não é acompanhada de uma exposição permanente das armas, que ficam fora da vista dos moradores, a não ser que ocorra “algum problema”: aí elas aparecem. Na segunda, considerada um território “em disputa”, o grupo de milicianos se comporta de forma ostensiva e violenta: armas aparentes e muita agressividade com os moradores, especialmente na hora de cobrar a taxa de segurança. Segundo relatos, eles adentram os becos, semanalmente, gritando “Segurança!”, indicando o momento de pagar a taxa. E na terceira, com ocupação consolidada por uma facção de traficantes de drogas ilícitas, mas com recorrentes tentativas de invasão por grupos milicianos (por enquanto sem sucesso), a presença é ostensiva, com a boca de fumo plantada na entrada da favela a poucos metros da viatura da polícia militar. Nesse sentido, no caso deste bairro, a presença territorial dos grupos armados combina diferentes modalidades: mais difusa nos locais de atuação consolidada de milicianos, mais ostensiva nos locais de atuação de facção de tráfico de drogas e na localidade “em disputa”.
A relação entre disputa territorial e ostensividade também pode ser observado no caso de uma favela da Zona Oeste, também pesquisada. Local de uma das primeiras Unidades de Polícia Pacificadora inauguradas, a favela conviveu durante anos com a presença discreta de traficantes de drogas, segundo seus moradores. Mas, após o encerramento das atividades da UPP, o tráfico de drogas voltou a ser ostensivo na localidade, ainda que somente em áreas específicas. Atualmente o local é palco de confrontos entre facções que se revezam no controle do comércio local de drogas ilícitas, o que foi paulatinamente expandindo para o restante das áreas da favela a presença de indivíduos armados de forma ostensiva.
Relatos recolhidos no trabalho de campo indicam também que há na favela uma milícia “residual”, vestígios de um grupo armado que atuou no local nos anos em que o território foi área de atuação de milicianos. Contudo, os membros desse grupo não teriam mais interesse em atuar na localidade exercendo forte controle moral da rotina e sociabilidade dos moradores, como a milícia fez em momento anterior (Da Motta, 2020; Mendonça, 2014). Assim, conformar-se-ia na localidade uma espécie de “operação consorciada” entre tráfico e milícia, em que o primeiro opera o controle territorial – fundamental para a continuidade do comércio de drogas ilícitas –, enquanto o segundo explora economicamente certos recursos locais (cobrando taxas e exercendo o monopólio sobre a oferta de serviços como fornecimento de gás, tv a cabo, abastecimento de água, entre outros). Dessa forma, o tráfico de drogas se apresenta de forma ostensiva e garante a gestão da ordem no território – exercendo, portanto, um controle político –, enquanto a milícia se configura como uma organização quase invisível, porém presente na exploração de serviços e cobrança de taxas. A convivência dos dois grupos no mesmo espaço teria como objetivo garantir benefícios econômicos para ambos.
A mesma correlação entre disputa territorial e ostensividade foi observada em território controlado no momento por um grupo de traficantes de drogas. Desde 2019, o bairro localizado na Zona Norte é palco de inúmeras operações policiais bem como de confrontos entre facções. Recentemente, as ruas da localidade transformaram-se em um cenário de batalha, com barricadas pelas vias principais, perseguições e operações, sendo estas realizadas por vários dias seguidos e em locais simultâneos. Por algumas manhãs consecutivas a população acordou ao som de tiros em áreas identificados como do “asfalto”, algo que era incomum há pouco tempo. Em função desses confrontos, barricadas nas ruas que dão acesso às favelas já fazem parte do cenário, bem como a prática de abordar motoristas. Um motorista de aplicativo relatou que um colega havia sido abordado “pelos caras”, chegando ao destino da passageira “todo urinado de medo”. Outro motorista de aplicativo disse que era proibido subir com o telefone fixado no vidro da janela do carro (para facilitar a visão do equipamento de GPS), pois os traficantes poderiam achar que se tratava de uma filmagem. O “cerco” observado neste local (como no bairro da região central) incide diretamente na circulação dos moradores e faz a presença do grupo armado local ser ostensiva e incontornável.
Portanto, os diversos confrontos com as forças policiais e as mudanças na hierarquia de comando das facções que atuam no local modificaram o tipo de presença territorial: se antes os traficantes buscavam acobertar mais sua presença, para evitar conflitos e não atrapalhar seus negócios altamente lucrativos, atualmente a experiência da violência cotidiana tem aumentado, inclusive se alastrado para outros territórios. Quando o principal grupo de traficantes de drogas atuante no bairro era comandado por uma figura de autoridade – reconhecida por sua violência, mas também por seu carisma – o bairro gozava da reputação de ser “tranquilo”. Agora, contudo, as relações entre traficantes, policiais e moradores têm se tornado instáveis, duvidosas e vulneráveis, minando o sentimento de segurança daqueles que ali vivem.8
A sensação de insegurança experimentada pelos moradores e o desejo por uma rotina mais tranquila e estável se expressou, em um dos relatos recolhidos, na afirmação da diferença de tratamento da população por parte dos diferentes grupos armados:
Pesquisadora: Entrando mais nesse assunto, tem o tráfico, que a gente tem mais uma noção do que é, e tem o que parece ser uma milícia. O que difere esses dois grupos na sua percepção? Tem uma atividade específica que um faz que o outro não faz? Ou é mais na maneira de agir?
Interlocutor: É mais na maneira de agir. O que eles fazem é praticamente a mesma coisa, que é tirar dinheiro. Cobrança de taxa, essas coisas. Vans, motos… é a mesma coisa nos dois. Agora, o trato é diferente.
Pesquisadora: Você diz com os moradores ou entre eles mesmos?
Interlocutor: Com os moradores, porque o bandido trata de uma forma e a milícia trata de outra. Milicias têm as regras mais rígidas comparadas aos bandidos. Bandido tem mais liberdade, no caso. Mas, é aquilo. É aquela liberdade que, se você quebrar ou fizer alguma coisa errada, você vai pagar um preço também. Tanto faz para os dois.
(Homem, negro, 25 anos).Correlações entre tipos de controle territorial e modos de presença dos grupos nas localidades: variações nos “cercos”
A partir dos dados levantados, observamos uma correlação entre o controle armado na localidade ser consolidado ou se tratar de um território “em disputa”, a presença do grupo armado no território ser difusa ou ostensiva e o “cerco” experimentado pelos moradores.9 A ausência de confrontos nos territórios de ocupação armada consolidada produz uma presença difusa dos membros dos grupos pelo território, provavelmente porque sem a ameaça de confrontos esses não precisam ostentar suas armas para sinalizar seu poderio bélico a possíveis rivais e as forças policiais. Os grupos que atuam nesses territórios desfrutam, dessa forma, das “vantagens políticas” mencionadas por Hirata et. al. (2020) – menor frequência ou até ausência de operações policiais, eventos privilegiados onde os confrontos irrompem no território, alterando rotinas e levando o terror aos moradores. Como destacado no estudo citado, são os grupos de milicianos que se beneficiam dessas vantagens. Nos territórios controlados por quadrilhas de traficantes de drogas, por outro lado, estar ou não “em disputa” importa menos – ser “de tráfico” explica a ostensividade da presença territorial. Porém, observamos que quando o território está sob controle de milicianos, mas está “em disputa”, a presença se torna mais ostensiva, sobretudo pela exposição das armas como sinalização para grupos rivais – aproximando assim o tipo de “cerco” imposto aos moradores da experiência daqueles que moram em localidades de atuação de grupos de traficantes de drogas.
Como consequência, observamos que a ostensividade da presença territorial também influencia diretamente no tipo de relação que o grupo armado estabelece com a população sobre seu domínio. A frequência dos confrontos ou sua ameaça constante de irrupção produzem uma sociabilidade local mais conflituosa, com altos graus de vigilância e monitoramento e uma constante reclamação dos moradores pela ausência da “paz” existente em momentos anteriores, seja pelos grupos milicianos, seja pelas facções de traficantes de drogas. A partir dessas conexões produzimos uma tipologia de “cercos” experimentados: enquanto os moradores de territórios “em disputam” experimentam um “cerco pelo terror”, os moradores de territórios de controle consolidado vivenciam um “cerco panóptico”. Argumentamos que é esta distinção que produz mais profundamente efeitos sobre a sociabilidade local e a rotina dos moradores. Portanto, são esses efeitos que exploramos na próxima seção.
As tipologias de “cerco” e seus efeitos sobre a sociabilidade local
Controle territorial “em disputa”: “cerco pelo terror”
No bairro da Zona Norte, território “em disputa” e sob controle de grupos de traficantes, o ex-“chefe” da maior favela do local adotava uma política assistencialista, visando ganhar apoio dos moradores. Mas essa “política da boa vizinhança” também era construída a partir do uso de uma rede de olheiros, uma grande quantidade de armas e acordos com os policiais do Batalhão de Polícia Militar responsável pela área, pagando a eles uma alta propina. Ademais, também evitava confrontos com a polícia para não chamar atenção, em especial, das mídias. Com o atual “chefe”, contudo, aumentou o número de confrontos e de operações policiais, produzindo críticas por parte dos moradores. Segundo um dos interlocutores da pesquisa “o antigo chefe tinha mais controle sobre os bairros e evitava a exposição”. Dessa forma, para muitos dos moradores ouvidos pela pesquisa, o atual comando dos traficantes é considerado “fraco”, por não ter controle sobre as desordens cotidianas, como o aumento do número de assaltos e roubos – algo que era raro no comando do “chefe” anterior.
O pouco controle exercido sobre as demonstrações de violência local, nas palavras dos interlocutores, contrasta com o avanço do controle sobre a vida moral dos moradores. Um dos principais traficantes do local converteu-se à religião evangélica10 e passou a proibir manifestação de religiosidade de matriz africana dentro da favela (com ameaça de morte e expulsão dos moradores praticantes). Proibiu o uso de roupas brancas e guias de proteção e atacou e destruiu terreiros – obrigando os próprios religiosos a derrubarem os locais destinados às práticas, arrebentarem suas guias, quebrarem imagens e demais artefatos usados em suas atividades. Mesmo após seu assassinato tais práticas permanecem vigentes.
Já no bairro da Zona Oeste, também classificado como “em disputa”, mas sob controle de milicianos, muitos interlocutores mencionaram que o maior problema que enfrentam no momento são os conflitos armados entre os grupos pelo domínio das favelas. Alguns interlocutores apontaram ainda que, no período em que um tradicional miliciano atuava no local e controlava a maioria das favelas, o bairro gozava de ordem e segurança. Já o grupo atual serviria apenas para cobrar taxa de segurança, mas sem efetivamente garanti-la.
O caso da favela da Zona Oeste, por sua vez, caracteriza-se pela disputa territorial entre diferentes facções pelo controle do comércio de drogas ilícitas no local, que se intensificou após a saída da UPP em 2018, e a “operação consorciada” entre tráfico e milícia, que ainda permanece em atuação. Contudo, em termos do tipo de “cerco” experimentado, são os confrontos armados resultantes das disputas que caracterizam a rotina na localidade e que levam insegurança e imprevisibilidade para os moradores. Assim, embora a milícia local não esteja envolvida nos episódios de violência armada que ali acontecem, essa “vantagem política” não é estendida aos moradores, os quais convivem com “o pior dos dois mundos”: a extorsão praticada pela milícia e o risco dos tiroteios que envolvem o tráfico.
As localidades reunidas neste grupo possuem em comum, portanto, a experiência de viver uma situação de conflito armado aberto, uma violência que pode irromper a qualquer momento e transformar as ruas das localidades em “cenários de guerra”. Assim, embora sejam territórios sob controle de grupos armados de categorias diferentes (quadrilhas de tráfico de droga e milícias), o que os aproxima é a experiência do “cerco pelo terror”, que submete os moradores a condições de vida marcadas pelo medo, pela insegurança e pela imprevisibilidade.
Controle territorial “em disputa”: “cerco panóptico”
No bairro da região central, sob controle consolidado de um grupo de traficantes de drogas, a violência se encontra latente, sobretudo como ameaça. Assim, a vigilância e o monitoramento dos moradores são constantes e sentidos de forma muito forte por eles. O receio de se indispor com algum traficante, de ser confundido com um informante ou de quebrar alguma regra implícita determinada por eles condiciona toda a rotina dos moradores. Para além das restrições no ir e vir e a preocupação de ter sempre que “pedir autorização” – seja para construir uma casa, abrir um comércio, realizar uma atividade pública etc. – os moradores também se sentem impedidos de acessar direitos e garantias, especialmente quando esses envolvem órgãos da justiça e/ou segurança. Em campo observamos a situação de um atendimento pelos membros da associação de moradores a uma mulher em situação de violência doméstica. A orientação foi que ela buscasse outra casa na favela para escapar do marido abusivo, mas sem recorrer à Delegacia da Mulher – para não quebrar a proibição imposta pelos próprios traficantes de “levar polícia para a favela”. Assim, tais “dispositivos de controle” já são incorporados pelos próprios moradores, orientando suas condutas (Farias, 2008b, p. 175).
Também na favela da Zona Oeste de controle consolidado por grupos milicianos a sensação de vigilância e monitoramento se repete, ainda que de forma mais difusa – em consonância com o tipo de presença territorial exercido pelo grupo armado local. Mas os momentos de encontro entre moradores e milicianos estão restritos às transações comerciais – são os momentos das cobranças ou de uso dos serviços oferecidos pelos últimos. Assim, estão mais submetidos a um possível encontro violento com os milicianos aqueles moradores que mais dependem dos serviços oferecidos por esses – como quem alugas suas casas, por exemplo.11 Quem mais depende dos serviços da milícia estaria, consequentemente, mais exposto à extorsão por ela realizada. Contudo, conforme observamos em campo, todos os moradores buscam saber quais são as expectativas em relação a suas condutas por parte dos milicianos – pois atender a elas é condição para evitar ser vitimizado pelas retaliações. Assim, o conhecimento tácito sobre quem seriam os milicianos, que conforme dito anteriormente não são facilmente identificados, e quais tipos de práticas são proibidas12 é fundamental para sobreviver nessas condições.
Por sua vez, no bairro da Zona Oeste de controle consolidado pela milícia, os interlocutores da pesquisa relataram que muitas vezes não conseguem identificar quem são os milicianos no cotidiano local, por estes não ostentarem, muitas vezes, sinais distintivos específicos. Contudo, essa invisibilidade dá aos membros do grupo armado uma “camuflagem”, que seria favorável ao exercício mais efetivo da vigilância. Se “qualquer um pode ser miliciano”, então como saber quando está sendo vigiado? Um interlocutor relatou que estava em um bar com amigos, a maioria jovens negros, após participarem de uma manifestação política em outro bairro, e que quando discutiam episódios de racismo sofridos por eles foram abordados por um homem negro, mais velho, que entrou na conversa questionando a fala dos presentes. Segundo o relato ele teria dito: “E aí a galera fica nesse negócio de racismo, mas todo mundo que eu conheço aqui que tem grana é preto. Tipo o delegado da [número da delegacia de polícia], que é preto”. Para nosso interlocutor o homem, sem se identificar diretamente como miliciano, estava indicando seu pertencimento ao grupo através da menção a uma relação de proximidade com um delegado, e estaria também constrangendo os jovens, que não responderam à suposta provocação e acabaram deixando o local.
Os relatos apresentados nesta seção expressam, portanto, uma experiência de “cerco” que não é exatamente a do “terror” descrita anteriormente, mas que se caracteriza por uma sensação de constante vigilância e a decorrente necessidade de autocontrole, buscando evitar a quebra de alguma regra imposta pelo grupo armado local – seja ela explícita ou compreendida como possível. Nesse sentido, classificamos essa modalidade de “cerco” como de tipo panóptico – remetendo ao conceito de Foucault, que descreve a sensação de potencial vigilância contínua, a qual leva as pessoas a se comportarem de acordo com normas e expectativas compartilhadas, moldando seu comportamento de forma disciplinada (Foucault, 1977). Ainda que esta forma de “cerco” pareça ser menos violenta que o “cerco do terror”, Farias reforça que essa experiência pode ser descrita como uma forma de “asfixia”, cujos efeitos podem ser sentidos de forma mais gradual, mas que, ao fim provocam igualmente a impossibilidade de respirar (2008b, p. 189).
Seja enquanto experiência de terror, seja enquanto uma “asfixia”, a vida dos moradores de favelas no Rio de Janeiro permanece “sob cerco”, ainda que em modalidades diferentes. A perpetuação dessa condição marca, portanto, a vida dos cidadãos cariocas moradores de favelas e periferias.
Considerações finais
Neste artigo, buscamos identificar, a partir de um trabalho de campo etnográfico em seis áreas da cidade, a diversidade de dinâmicas de controle territorial praticadas por grupos armados no Rio de Janeiro. Para tanto, investigamos e descrevemos as atuais dinâmicas de “cerco” (Machado da Silva, 2008) produzidas por diferentes grupos armados, seus efeitos sobre as sociabilidades locais e na produção de precariedades a que os moradores dessas localidades estão submetidos.
Desse modo, argumentamos que “viver sob cerco” de grupos armados no Rio de Janeiro, hoje em dia, é menos determinado pelo tipo de grupo que controla o território e mais pelas práticas que esses assumem na gestão de territórios e populações – práticas que podem ser exercidas em uma multiplicidade de combinações. Ao relacionar as dimensões “tipo de grupo armado atuante no local” (tráfico ou milícia) e “tipo de controle territorial” (consolidado ou em disputa), identificamos que essas produzem duas modalidades diferentes de presença territorial: ostensiva e difusa. Essas, por sua vez, quando recombinadas com as variáveis anteriores produzem diferentes formas de “cerco”: o “cerco pelo terror”, experimentado pelos moradores de territórios onde a disputa pelo controle territorial impede qualquer previsibilidade na rotina e sensação de segurança, e o “cerco panóptico”, experiência daqueles que vivem em territórios menos submetidos aos confrontos armados cotidianos, mas onde a vigilância pelos grupos armados e a vigilância de si determina a sociabilidade.
Menezes (2018) argumenta que o programa de “pacificação” de favelas produziu uma modificação na dinâmica entre traficantes de drogas e forças policiais, cujos efeitos podem ser resumidos na expressão “campo minado”. Segundo a autora, as localidades “pacificadas” não se caracterizariam mais por ser apenas palco de eventos de violência ostensiva entre traficantes e policiais (o “fogo cruzado”), mas também um “campo minado” onde se realiza um “jogo de gato e rato” entre eles. Os efeitos para os moradores dessa nova dinâmica seriam o “monitoramento da vida cotidiana, em seus movimentos mais infinitesimais” (2018, p. 212).
Os resultados de nossa pesquisa apontam para experiências de “cerco” semelhantes, combinações de “fogo cruzado” com “campo minado”, de “cerco pelo terror” com “cerco panóptico”. Mas em qualquer dessas combinações, o retrato que extraímos é o do Rio de Janeiro como uma “cidade sitiada” (Graham, 2011), onde grupos armados “governam” a população de forma violenta e abusiva, variando apenas na dosagem entre o controle e o exercício do poder de matar (Leite, 2018). Nesse retrato, todavia, o Estado encontra-se destacado em seu papel de coprodutor e cogestor desse governo armado, seja através de sua política repressiva, seja através da intencional ausência de políticas públicas que garantam a essa população seus direitos a serviços públicos, desenvolvimento econômico e segurança. Em nossa cidade, violência armada, sociabilidade cerceada e precariedade se reproduzem continua e historicamente, delimitando as possibilidades de viver e sobreviver da população.
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Notas