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Dilemas da modernidade no limiar do novo século: desafios teóricos

Dilemmas of modernity on the threshold of the new century: theoretical challenges

Dilemas de la modernidad en el umbral del nuevo siglo: desafíos teóricos

Fernando Lima
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil

Dilemas da modernidade no limiar do novo século: desafios teóricos

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 12, e-rbs.978, 2024

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepción: 10 Octubre 2023

Aprobación: 09 Julio 2024

Resumo: O presente artigo situa o problema teórico da modernidade no contexto histórico de virada do século XX para o século XXI. As novas teorias da modernização indicam um ponto de maturação da reflexividade moderna, que deixa de ser apenas objeto, firmando-se também como recurso metodológico de análise. A intensificação e a expansão do encontro entre modernidade e mundo não ocidental têm oferecido à sociologia um campo empírico fértil para a revisão teórica de suas ferramentas de interpretação da realidade. A partir da abordagem teórica de Wittrock sobre a constituição cultural da modernidade, recorro a autores como Eisenstadt e Therborn para comparar as teorias das modernidades múltiplas e das modernidades entrelaçadas. À luz dessas delimitações gerais, remeto às contribuições de Chaterjee, Samman e Göle para explorar a discussão sobre modernidade na perspectiva de sociedades não ocidentais. No geral, essas teorias enfatizam a não coincidência entre modernização e ocidentalização e o fato de que o projeto moderno se tornou global, mas não universal. As recentes conexões de sentido que têm conferido legitimidade à experiência moderna no mundo não ocidental constituem um novo campo empírico para uma velha questão teórica: o que é a modernidade?

Palavras-chave: Teoria sociológica, modernidade, modernidade múltiplas, modernidades entrelaçadas, modernidades não ocidentais.

Abstract: The present article puts the theoretical problem of modernity in the historical context of the turn of the 21st century. The new theories of modernization indicate a turning point of modern reflexivity, which ceases to be merely an object, also establishing itself as a methodological resource for analysis. The intensification and expansion of the encounter between modernity and the non-Western world have offered sociology a fertile empirical field for the theoretical revision of its tools for interpreting reality. Drawing from Wittrock’s theoretical approach on the cultural constitution of modernity, I refer to authors like Eisenstadt and Therborn to compare the theories of multiple modernities and entangled modernities. In light of these general delineations, I refer to the contributions of Chatterjee, Samman, and Göle to explore the discussion on modernity from the perspective of non-Western societies. Overall, these theories emphasize the non-coincidence between modernization and Westernization and the fact that the modern project has become global but not universal. The recent connections of meaning that have conferred legitimacy to the modern experience in the non-Western world constitute a new empirical field for an old theoretical question: what is modernity?

Keywords: Sociological theory, modernity, multiple modernities, entangled modernities, non-Western modernities.

Resumen: Este artículo sitúa el problema teórico de la modernidad en el contexto histórico del cambio de siglo XX al XXI. Las nuevas teorías de la modernización señalan un punto de maduración de la reflexividad moderna, que ya no es sólo un objeto, sino que se constituye como un recurso metodológico para el análisis. La intensificación y expansión del encuentro entre la modernidad y el mundo no occidental ha ofrecido a la sociología un campo empírico fértil para la revisión teórica de sus herramientas de interpretación de la realidad. Basándome en el enfoque teórico de Wittrock sobre la constitución cultural de la modernidad, recurro a autores como Eisenstadt y Therborn para comparar las teorías de las modernidades múltiples y las modernidades enredadas. A la luz de estas delimitaciones generales, me remito a las contribuciones de Chaterjee, Samman y Göle para explorar la discusión sobre la modernidad desde la perspectiva de las sociedades no occidentales. En general, estas teorías enfatizan la no coincidencia entre modernización y occidentalización y el hecho de que el proyecto moderno se ha vuelto global, pero no universal. Las recientes conexiones de significado que han dado legitimidad a la experiencia moderna en el mundo no occidental constituyen un nuevo campo empírico para una vieja pregunta teórica: ¿qué es la modernidad?

Palabras clave: Teoría sociológica, modernidad, modernidades múltiples, modernidades enredadas, modernidades no occidentales.

Introdução: história e política na teoria sociológica

Os eventos históricos que transformaram o contexto geopolítico e cultural do mundo ao longo dos dois últimos séculos constituem o pano de fundo das várias análises sociológicas sobre modernidade. Prevalece nessas teorias a preocupação em estabelecer critérios gerais que possam ser associados ao conjunto dessas transformações. De tempos em tempos, surgem novos modelos teóricos e correntes de pensamento que propõem interpretações divergentes sobre como definir sociologicamente a modernidade. Nas páginas que seguem, tenho por objetivo expor algumas alternativas teóricas recentes para enfrentar este desafio. Inicio com questões mais gerais sobre as transformações históricas da virada deste século, levando em consideração a abordagem teórica de Bjorn Wittrock (2000) sobre a constituição cultural da modernidade. Em seguida, comparo as teorias das modernidades múltiplas e das modernidades entrelaçadas a fim de identificar delimitações teóricas gerais sobre o atual debate sobre modernidade. À luz dessas delimitações gerais, exponho na seção seguinte algumas análises sobre a modernidade no oriente médio contemporâneo. No geral, as novas teorias da modernidade enfatizam a não coincidência entre modernização e ocidentalização e o fato de que o projeto moderno se tornou global, mas não universal. A questão da reflexividade permanece como fundo das preocupações e, mais ainda, torna-se recurso metodológico de análise.

Condições epistêmicas da modernidade contemporânea

Menos por conta dos modelos teóricos propostos por seus atores e mais como um testemunho heurístico das transformações de nossa época, duas teses sociológicas têm merecido destacada atenção dos sociólogos contemporâneos. No fim do século passado, duas obras em particular se tornaram referências frequentes nos debates teóricos da sociologia histórica sobre o tema da modernidade: O choque das civilizações, de Sammuel Huntington (1993), e o Fim da história, de Francis Fukuyama (1992). A primeira defende a ideia de que a democracia liberal constitui a finalidade da evolução ideológica da humanidade, concebendo a história como um processo singular, coerente e evolutivo (Fukuyama, 1992, p. 1). A segunda sustenta que, após o fim da Guerra Fria, os conflitos da política mundial moveram-se para fora do ocidente e começaram a ser direcionados pela interação entre civilizações ocidentais e não ocidentais (Huntington, 1993, p. 23). De fato, são duas teses conhecidas e influentes na sociologia contemporânea. Contudo, atualmente, a maior parte das referências feitas a esses trabalhos são realizadas como uma espécie de contraposição teórica, posto que os autores costumam partir das discussões de Huntington e Fukuyama para formular conclusões bastante diferentes, por vezes mesmo opostas às destes dois.

Se, por um lado, é inegável que os princípios liberais aplicados na economia, o mercado livre, têm obtido relativo êxito na produção de bens materiais, apesar da persistência de problemas relativos à sua distribuição, por outro lado, isso de forma alguma atesta um desenvolvimento natural e teleológico da humanidade. Por sua vez, também é persuasiva a formulação de Huntington no que tange à afirmação de que os conflitos da política mundial contemporânea não são mais prioritariamente econômicos ou ideológicos. Contudo, muito menos convincentes são o essencialismo cultural e o evolucionismo histórico presentes em sua teoria. Além disso, pode também ser objetado que tratar a noção de civilização como a principal unidade analítica na compreensão da política mundial apenas reproduz em nível teórico as mesmas dificuldades do nacionalismo metodológico.

Em todo caso, um ponto comum que permeia a argumentação de ambos os autores e que aguça a imaginação de muitos outros é a ideia de que, após sua gestação durante os dois últimos séculos, o projeto clássico da modernidade chegou a um ponto de maturação. Embora partindo de tradições teóricas distintas, as duas teses situam as transformações da vida política mundial no fim do século passado como o marco definidor de uma nova época histórica. Nesse sentido, de alguma forma, elas materializam a percepção tácita e geral de que o arranjo geopolítico mundial pós-guerra fria e a intensificação de processos históricos convencionalmente relacionados à ideia de globalização configuram juntos um problema sociológico sem precedentes históricos. No entanto, o sucesso obtido no diagnóstico das novas condições históricas do conhecimento sociológico não é repetido nas suas prescrições teóricas. De fato, essas análises não exploram as possibilidades mais gerais de autorrevisão crítica da sociologia. De um modo ou de outro, as premissas sobre convergência e evolução que caracterizaram boa parte das teorias da modernização dos anos 50 são criativamente reeditadas nessas abordagens. Enquanto uma noção hegeliana de devir histórico leva Fukuyama a acreditar que existe um ponto final para onde convergem todas as formas de governo humano, Huntington sustenta que os conflitos entre civilizações representam o último estágio no processo de evolução da modernidade (Huntington, 1993, p. 22).

Como, então, compartilhar preocupação semelhante com os desafios do presente sem endossar qualquer reedição das teorias da modernização? Esta parece ser uma questão que tem mobilizado parte significativa dos esforços teóricos em sociologia contemporânea. Trago inicialmente à exposição a contribuição de um desses autores, Bjorn Wittrock (2000). Embora seja menos lembrado que Huntington e Fukuyama, este autor também está decidido a analisar em que medida o mundo contemporâneo retrata o desenvolvimento de processos históricos de longa duração, convencionalmente relacionados à noção de modernidade. Porém, Wittrock oferece uma formulação macroteórica mais convincente ao argumentar que a grande transformação de nosso tempo não é universal e institucional, mas global e epistêmica. Entende que o marco definidor do atual momento histórico diz respeito à consolidação de uma nova visão de mundo, cujo alcance global vem, desde os dois últimos séculos, trazendo consequências imediatas e diferenciadas em todo o planeta. Vejamos brevemente.

Para Wittrock, o grande problema com a questão da convergência é o perigo de superposição entre empiria e teoria, isto é, os analistas da convergência se concentram em constatar empiricamente a correspondência entre determinadas estruturas institucionais e padrões específicos de comportamento ao longo do mundo, mas não definem quais são, de fato, as condições necessárias que caracterizam uma sociedade moderna (Wittrock, 2000, p. 34). Esta é, justamente, a questão que Wittrock procura enfrentar. Contrário a boa parte das análises mais tradicionais sobre modernidade, Wittrock argumenta que projetos institucionais modernos, como a democracia política e o liberalismo econômico, não são causas suficientes para definir o que caracteriza a modernidade. Mesmo se levamos em consideração apenas a experiência europeia, as formas de ordem econômica e política que são usualmente relacionadas à noção de modernidade possuem uma história muito recente. Exemplo disso está no fato de que até o final da I Guerra nenhum país europeu possuía o tipo de ordem política que os analistas hoje definem como típicos da modernidade, isto é, o estado-nação democrático (Wittrock, 2000, p. 34-36).

A ideia central de sua tese é que os dois principais projetos institucionais da modernidade, a democracia e o liberalismo, não podem ser compreendidos isoladamente de suas constituições culturais. Os avanços e retrocessos na implementação desses projetos em todo o mundo estão intimamente relacionados com mudanças epistêmicas no modo como as pessoas organizam os pressupostos ideais que legitimam suas vidas em sociedade. Seu objetivo é correlacionar os vários projetos institucionais da modernidade a projetos de ordem cultural e cognitiva, aquilo que chama de “notas promissórias”. Wittrock entende “notas promissórias” como o horizonte hermenêutico de conhecimento mediante o qual as pessoas mobilizam concepções gerais sobre a natureza humana, próximo da ideia weberiana de “quadro de valores” (Weber, 1964, 2001). Trata-se, portanto, de um quadro de valores e crenças que conformam pontos de referência generalizada no debate e na criação das formas institucionais que organizam a vida em sociedade. Apenas através desta reconstituição cultural é possível identificar uma história ocidental da modernidade que se estende ao longo dos dois últimos séculos. Não sendo assim, uma abordagem institucional levaria à conclusão de que a realização da moder nidade possui menos de meio século e é restrita a algumas partes do ocidente (Wittrock, 2000, p.36-38).

Wittrock sustenta que, na virada do século XVIII para o século XIX, ocorreu na Europa uma série de transformações epistêmicas que inauguraram novas concepções de agência e de sociedade. Nessa época, as condições estruturais da vida política deixam de ser objeto exclusivo da filosofia política e moral e passam a ser analisadas pelas ciências sociais. Essa transição instituiu os conceitos-chave modernos “agência”, “reflexividade” e “consciência histórica”, consagrando as instituições políticas e a esfera pública como as principais arenas de decisão sobre questões relativas à organização e legitimação da ordem social. Em outras palavras, o pertencimento coletivo deixou de ser algo “dado” e passou a ser compreendido como construído pela atividade política das próprias pessoas. O autor entende que foi a partir desta profunda “virada cultural” que puderam ser inicialmente formulados os projetos institucionais da modernidade, como a democracia política e o liberalismo econômico (Wittrock, 2000, p. 47).  A formação da modernidade na Europa é, portanto, resultado de um processo contínuo de transformações políticas, econômicas e culturais que se reforçaram mutuamente.

Nesse sentido, a Revolução Francesa e outros eventos que aconteceram entre os séculos XVIII e XIX na Europa fazem parte de um processo que teve seu ápice apenas após a II Guerra Mundial.  Os projetos institucionais da modernidade não foram universalmente realizados nem mesmo no contexto europeu originário. Muito pelo contrário, esses novos projetos institucionais permaneceram em disputa e sujeitos às mais variadas controvérsias dentro dos assuntos práticos europeus até pouco tempo atrás.

Mesmo se limitarmos nossa atenção à parte ocidental da Europa, a maioria dos Estados europeus nessa região ainda eram monarquias constitucionais em vez de democracias parlamentares até o final do século XIX. Na parte oriental, como já apontado, a transição de formas de governo absolutistas para monarquias constitucionais não estava de forma alguma completa na virada do século XIX [...] Mesmo na Europa Ocidental, uma ordem política moderna em termos de sufrágio verdadeiramente universal não se tornou uma realidade institucional até o final da Segunda Guerra Mundial

(Wittrock, 2000, p. 49).

Em todo caso, os novos projetos institucionais da modernidade, independentemente de suas aceitações ou rejeições, tornaram-se pontos de referência em uma escala global. Além de não terem se desenvolvido de modo progressivo e linear, esses diferentes projetos institucionais também não constituíram uma forma social única. O abandono da herança universalista do Iluminismo em favor de formas de representação e concessão de direitos baseados na territorialidade ou na participação em comunidades linguísticas e históricas foi e continua sendo um fenômeno de dimensões planetárias (Wittrock, 2000, p. 46). Nesse sentido, Wittrock compreende a modernidade como uma era em que “certos princípios estruturantes vieram a definir uma condição global comum”. Argumenta ainda que a existência dessa condição global comum não implica a renúncia de concepções ontológicas e cosmológicas de agrupamentos culturais particulares, menos ainda a renúncia de suas instituições tradicionais. Antes, significa que a interpretação e transformação dessas estruturas da tradição não podem ser realizadas fora do contexto comum da condição global moderna (Wittrock, 2000, p. 55-56).

Em suma, Wittrock sustenta que não é possível pensar a modernidade sem levar em consideração as alterações epistêmicas modernas que instauraram um processo de reinterpretação cultural ainda em curso na história da humanidade. Sem dúvida, um atestado seguro do sucesso dessa transformação epistêmica está no fato de que mesmo os oponentes das instituições modernas não podem expressar sua posição ou formular seus programas sem fazer referência às ideias modernas de “agência”, “reflexividade” e “consciência histórica”. Contudo, acredito que essa observação não deva conduzir a conclusões como as de Fukuyama, que compreende os projetos institucionais da democracia e do liberalismo como uma finalidade histórica da humanidade. Certamente, parece ser mais proveitoso pensar como Wittrock e considerar a difusão da modernidade nos termos de sua constituição cultural. Se, por um lado, a hipótese da convergência deve ser rejeitada, por outro, a noção de modernidade como condição global comum deve ser mantida. Vejamos na seção seguinte em que medida os analistas das correntes das “modernidades múltiplas” e das “modernidades entrelaçadas” satisfazem essa dupla condição teórica em que Wittrock assenta suas conclusões.

Múltiplas e entrelaçadas: a retomada crítica das teorias da modernização

Pensar as transformações epistêmicas que inauguraram a experiência moderna europeia na virada entre século XVIII e XIX envolve considerar a concepção de um projeto globalizante. De fato, como lembra Wittrock, este projeto não logrou êxito completo mesmo dentro da Europa até pouco tempo atrás. Contudo, os eventos políticos que ocorreram no mundo nas últimas três décadas parecem indicar que o projeto da modernidade está agora mais sedimentado e tem ampliado o escopo da sua realização em boa parte do mundo. Propostas teóricas como as de Huntington e Fukuyama podem ser consideradas como produto dessas transformações. No entanto, como vimos antes, no plano analítico essas duas propostas apenas reendossam aspectos centrais das teorias da modernização da metade do século XX. Como procurei expor recorrendo à teoria de Wittrock, há a possibilidade de analisar os fenômenos contemporâneos sobre democracia e liberalismo a partir de uma reelaboração crítica das teorias da modernização. Não apenas Wittrock, mas muitos sociólogos contemporâneos estão dedicados a esta tarefa. Em geral, boa parte deles argumenta que a realização do projeto globalizante da modernidade foi obstruída por dois produtos do próprio capitalismo moderno: o colonialismo e o socialismo (Dirlik, 2003, p. 276). Estes autores tendem a encarar o limiar do século XXI como marco seminal para reelaboração crítica das teorias da modernização.

Contrariamente às suposições básicas dos modernistas, o capitalismo se espalha de maneira desigual; a formação dos Estados-nações está ligada a conflitos e guerras étnico-nacionais; a democratização é desafiada por retrocessos para regimes autoritários e autocráticos [...] e a globalização é acompanhada por crescente desigualdade social, exclusão e fragmentação

(Spohn, 2006, p. 11)

Um primeiro aspecto que cumpre ser ressaltado nessa retomada crítica das teorias da modernização é o seu enfoque na transição de uma modernidade eurocêntrica para uma modernidade global. Mesmo reconhecendo o berço europeu ocidental da modernidade, essas análises não incorrem em formas de eurocentrismo, já que o objetivo principal é compreender de que modo o projeto original moderno transformou e foi transformado por experiências e atores históricos não ocidentais. Nesta seção, irei expor um esboço geral e breve das ideias principais de duas correntes teóricas que têm fortalecido essa nova tradição de pensamento sobre a modernidade: a teoria das modernidades múltiplas e a teoria das modernidades entrelaçadas. Ambas estão relacionadas a diferentes orientações políticas e normativas, bem como a diferentes abordagens e metodologias dentro da sociologia comparativa. Contudo, tomam por objetivo uma mesma tarefa: a reformulação crítica das teorias da modernização.

A grande referência da teoria das modernidades múltiplas é o trabalho de S. N. Eisenstadt, em especial seu postulado geral sobre o modo como tradições e modernidade se engendram mutuamente (Eisenstadt, 1991). Ao contrário do que pressupunham os modernistas clássicos, Eisenstadt entende que a tradição não é uma antípoda ou obstáculo para os processos de modernização. Muito pelo contrário, a última não pode existir sem a primeira já que a própria história da modernidade envolve a constituição e reconstituição contínua de uma grande variedade de tradições e estruturas culturais.

Embora uma tendência geral em direção à diferenciação estrutural tenha se desenvolvido em uma ampla gama de instituições na maioria das sociedades [modernas] – na vida familiar, nas estruturas econômicas e políticas, na urbanização, na educação moderna, na comunicação de massa e nas orientações individualistas – as formas pelas quais essas arenas foram definidas e organizadas variaram enormemente, em diferentes períodos de seu desenvolvimento, dando origem a múltiplos padrões institucionais e ideológicos

(Eisenstadt, 2000, p. 1-2).

De início, esta premissa já indica a não coincidência entre os conceitos de ocidentalização e modernização. Para Eisenstadt (2000, p. 2-3), os padrões ocidentais da modernidade não são as únicas modernidades autênticas, ainda que possuam precedência histórica e que continuem a servir como referência básica para outros padrões. Mesmo no ocidente europeu, face à variedade cultural e política dessa civilização, a modernidade já nasceu plural. Nessa perspectiva, a modernidade no singular não seria mais do que um simulacro. Religiões, culturas e identidades coletivas atuam de maneira diversificada no processo contínuo e contingente de reprodução criativa dos diferentes padrões de modernização. Nesse sentido, a abordagem das modernidades múltiplas formaliza analiticamente um tipo de multiculturalismo global que enfatiza a dinâmica inclusiva da modernidade, que se torna compatível com as diversas tradições culturais das sociedades humanas.

Ao reconhecer que existem padrões variados e distintos de processos de modernização, a primeira tarefa que uma teoria sobre modernidade deve se propor a alcançar é a definição do que constitui seu núcleo comum. Para Eisenstadt, desde a gestação da modernidade, há uma possibilidade de correlação variada entre dois projetos modernos específicos. Por um lado, há o projeto cultural baseado na ideia de autonomia do homem e destinado a estimular a participação das pessoas na construção da ordem política e social. Por outro lado, o projeto político é aquele que institui os espaços e mecanismos de construção da ordem política coletiva, como, por exemplo, a esfera pública e o protesto. Nesse sentido, “reflexividade” e “emancipação” são dois princípios gerais que permanecem constituindo a base dos projetos cultural e político da modernidade nos seus mais variados processos. A vinculação entre identidade coletiva e territorialização, a ênfase nas formas autocráticas de governo e as tensões ideológicas entre hierarquia e igualdade são exemplos da correlação triunfante entre esses dois projetos (Eisenstadt, 2000).

Este núcleo comum da modernidade constitui um conjunto de princípios gerais cuja realização prática está sujeita a variação a partir das diferentes experiências históricas e culturais das sociedades humanas. As promessas culturais e políticas da modernidade europeia vêm desde sempre sendo transformadas. Para Eisenstadt, a primeira transformação radical dessas premissas culturais e políticas ocorreu quando da sua expansão para as Américas, momento em que emergem na história moderna novos padrões de vida institucional, novas concepções de self e novas formas de consciência coletiva (Eisenstadt, 2000, p. 13). Por um lado, o imperialismo econômico e militar do ocidente ajudou a expandir a modernidade para outras regiões do mundo, estabelecendo por todo lugar a adoção do modelo básico de estado territorial nacional, bem como a adoção de símbolos, premissas e instituições ocidentais. Por outro lado, contudo, o encontro da modernidade com sociedades não ocidentais implicou também a reformulação dessas premissas, símbolos e instituições. Em geral, as elites e intelectuais de sociedades não europeias rejeitaram seletivamente muitos dos aspectos da tradição ocidental moderna (em especial as formulações de seu programa cultural). Esses grupos incorporaram alguns elementos da modernidade ocidental na construção de suas novas identidades coletivas sem necessariamente abrir mão de componentes específicos de suas identidades tradicionais (Eisenstadt, 2000, p. 14-15). Sociedades ancoradas em fundamentalismos religiosos ou em princípios comunistas, por exemplo, formularam de maneira particular temas comuns do discurso moderno, como, dentre outros, o jacobinismo, a reconstrução das identidades individuais e coletivas e a autoconsciência da ação política (Eisenstadt, 2000, p. 19).

Nessa linha de raciocínio, as transformações do final do século XX não representam o esgotamento da modernidade, mas sim uma nova fase de um velho processo. Os eventos históricos corriqueiramente associados à ideia de globalização podem assinalar a decomposição do modelo do estado nação, mas não dos problemas básicos da modernidade. Não apenas as modernidades múltiplas continuam a emergir para além do estado nação, mas também emergem novos questionamentos e interpretações de diferentes dimensões da modernidade (Eisenstadt, 2000, p. 24). Na seção seguinte, este ponto será mais explorado. Por ora, cumpre ressaltar a ideia geral da teoria das modernidades múltiplas, segunda a qual padrões específicos de tradição modelam de forma diferente a experiência moderna das sociedades humanas.

Se, por um lado, logra êxito no afastamento do princípio teórico da convergência, por outro, um dos pontos questionados com relação à teoria das modernidades múltiplas é aquele referente à dimensão culturalista de sua abordagem. O perigo de essencialismo cultural reside em duas frentes. Primeiramente, na intenção de fazer de noções como “nação” ou “civilização” unidades de análises fechadas e independentes (Spohn, 2006). Além disso, esta perspectiva tende a fazer o projeto cultural da modernidade prevalecer sobre seu projeto político na definição do objeto de estudo (Dirlik, 2003). Em conjunto, essas duas dificuldades acabam por criar uma lacuna conceitual no que diz respeito ao modo como os vários processos de modernização são condicionados não apenas pelas tradições culturais singulares de etnias, nações e civilizações, mas também pelas interações históricas entre essas unidades. É a partir dessa crítica que surge a proposta das modernidades entrelaçadas. Enquanto a abordagem das modernidades múltiplas visa as especificidades culturais de diferentes nações e civilizações que desenvolvem processos de modernização distintos, a abordagem das modernidades entrelaçadas concentra atenção nas interrelações de poder transnacionais e transcivilizacionais entre esses múltiplos processos de modernização, vejamos brevemente.

A teoria das modernidades entrelaçadas, assim como a das modernidades múltiplas, busca refutar o eurocentrismo, mesmo reconhecendo a origem europeia da modernidade. Ambas chamam atenção para o caráter heterogêneo da experiência inicial europeia. No entanto o fazem de maneira bastante diferente. Enquanto os teóricos das modernidades múltiplas buscam reconstituir internamente a heterogeneidade de uma civilização marcada por diversos encontros entre religiões e culturas diversificadas, os teóricos das modernidades entrelaçadas se esforçam por reconstituir essa heterogeneidade dirigindo atenção para eventos externos relacionados ao imperialismo e colonialismo. O enfoque está, portanto, no compartilhamento de histórias que são entrelaçadas e não apenas homólogas.

A modernidade, nesse sentido não eurocêntrico, envolve várias narrativas diferentes e concorrentes, diferentes forças sociais de modernidade e anti-modernidade e diferentes conceitualizações culturais do contraste entre passado e futuro. Mas essas diferentes variedades não simplesmente coexistem e se desafiam, elas estão entrelaçadas de várias maneiras

(Therborn, 2003, p. 293).

A ênfase da teoria das modernidades entrelaçadas está não apenas na coexistência das diferentes modernidades, mas também nas suas interrelações, atuais e pretéritas. Para isso, a condição global da modernidade é pensada em termos de relações de poder que estruturam ininterruptamente os aspectos culturais, políticos e sociais das sociedades modernas. Dado o seu caráter de reversibilidade e contingência, afinal trata-se de disputas políticas pelo poder, a cronologia deste processo não pode ser estabelecida nem homogênea nem unilinearmente. Nessa perspectiva, a modernidade não designa por si mesma um período cronológico ou um conjunto de instituições particular, sendo a sua história marcada pelos avanços, retrocessos e reformulações de seus projetos originais.

Uma das variações mais conhecidas desta abordagem é aquela proposta pelos estudos pós-coloniais. Análises como as de Randeria (2007)Mignolo (2005; 2011) e Grosfoguel (2003, 2022) destacam que a experiência colonial europeia acarretou consequências decisivas no modo como o ocidente e o mundo não ocidental se modernizaram, consequências essas que são influentes até os dias atuais. Para os autores do pós-colonialismo, a dinâmica de relação entre centro e periferia é uma referência constante na análise das relações contingentes de poder que estruturam o campo de forças da modernidade. Algumas vezes, entretanto, essas análises tendem a assumir a forma eminente de denúncia política, tornando ainda mais porosas as fronteiras entre ciência e política.

Em geral, podem ser admitidos pontos fortes e pontos fracos tanto na corrente das modernidades múltiplas quanto na corrente das modernidades entrecruzadas. Como já foi mencionado anteriormente, a primeira propõe um modelo de análise da modernidade sem recorrer ao princípio da convergência, mas reforça algum essencialismo culturalista. Com relação à segunda, parece haver maior ambiguidade no que tange à definição de avanços e limitações teóricas. O ponto forte das modernidades entrelaçadas é trazer à baila a discussão do poder que, de certo modo, é negligenciada pela corrente das modernidades múltiplas. No entanto, a atenção praticamente exclusiva ao fenômeno do colonialismo tende a obscurecer outros aspectos não prioritariamente políticos. Muitas vezes, especialmente nas formas da variação pós-colonialista e decolonialista, o reducionismo cultural é execrado, mas apenas em favor de um reducionismo do poder, quando a experiência colonial assume a forma de causa suficiente para explicação dos fenômenos da modernidade. Em outras palavras, minimizam a relevância daquilo que um autor como Wittrock chama de “notas promissórias”.

Para além dessas diferenças, há também fortes concordâncias entre as duas correntes; retenho aqui dois aspectos. O primeiro diz respeito à ênfase no tema da reflexividade como epicentro das transformações modernas. O rompimento com critérios puramente transcendentais de ordenação da vida política assinalou o fortalecimento de formas de autoconsciência histórica como marca permanente da modernidade em qualquer período histórico ou região do mundo (Eisenstadt, 2000, p. 4; Therborn, 2003, p. 294). Em segundo lugar, há a concordância de que modernização e ocidentalização não são sinônimas. Tanto em uma quanto em outra perspectiva, a modernidade envolve a realização de um projeto que se tornou global em seu escopo, mas que não é propriamente universal, pois está sujeito a variações políticas, históricas e sociais (Eisenstadt, 2000, p. 67; Therborn, 2003, p. 295). Neste ponto ganha relevância a atual discussão sobre o fortalecimento global de atores não ocidentais e modernos. Isso é o que procurarei explorar na próxima seção, quando esses dois critérios de concordância serão analisados em contextos empíricos e históricos específicos: a Índia, o Oriente Médio e a Turquia. Esses exemplos são particularmente importantes por comportarem processos de modernização cujas variantes institucionais, políticas e, também, culturais são radicalmente diferentes das observadas no contexto da Europa ocidental.

Refrações no espelho: a modernidade não ocidental

Problema recorrente nas novas teorias críticas da modernidade, a tensão entre princípios gerais da experiência moderna e as singularidades de seus processos históricos é ainda mais acentuada no mundo não ocidental. Tradicionalmente, essas regiões do mundo sempre foram associadas ao que há de mais diferente em relação ao ocidente. Muitos autores já se dedicaram a analisar motivação política dessa associação, sendo Edward Said (1990) um dos mais conhecido deles. Said (1990, p. 209) define o que chama de “orientalismo” como um estilo de pensamento ocidental baseado em uma distinção ontológica feita entre o oriente e o ocidente, isto é, uma instituição organizada pelo ocidente para negociar com o oriente, fazendo declarações a seu respeito de modo a legitimar uma relação de poder e alteridade. Em outras palavras, se uma identidade só se realiza através da diferença (uma coisa só é igual a outra se é diferente de uma terceira), a invenção do oriente teve como objetivo estabelecer um modelo de autoridade que consolidasse a própria ideia de ocidente. Partindo das considerações de Said, muitos autores se propõem a analisar o impacto recente dos processos de modernização nessas regiões do mundo. Para isso, diferentemente de Said, esses autores intentam compreender não a construção ocidental do oriente como sua alteridade, mas sim o modo particular como as sociedades não ocidentais reagem, hoje, a essa construção. Nesta última seção menciono brevemente três desses autores: Partha Chatterjee (2000), Khaldoun Samman (2005) e Nilufer Göle (2000)

Chatterjee retoma criticamente a tese de Benedict Anderson (1989) para argumentar que os modelos de imaginação nacional construídos em países pós-coloniais estão repletos de antíteses e descontinuidades com relação ao modelo clássico europeu. Tomando como objeto de análise a construção nacional na Índia, Chatterjee identifica a emergência da escola de arte bengalesa no início do século XX, a luta pela legitimidade da organização familiar indiana, a retificação do drama sânscrito e a criação de redes alternativas de ensino secundário como elementos constitutivos da cultura indiana, que não apenas foram modelados, mas também modelaram os imperativos modernos que estabeleceram sua soberania nacional. Chatterjee não nega a presença de elementos ideológicos do moderno estado democrático na construção do Estado nacional indiano, como, por exemplo, a separação entre as esferas pública e privada. Entretanto, argumenta que a liderança moral-intelectual nacionalista indiana disputou sua soberania principalmente se posicionando em um campo de lutas que não coincidia com aquele traduzido pela distinção ocidental entre público e privado. A proclamação da soberania nacional passou primeiramente por um campo constituído por outras distinções, tais como espiritual e material, interno e externo, essencial e não essencial. Ao se posicionarem neste campo, tais lideranças impediram que o projeto hegemônico nacionalista mutilasse as especificidades da língua, religião e demais aspectos relacionados ao modo de vida indiano (Chatterjee, 2000).

Outro autor preocupado em pensar o modo como sociedades não ocidentais reagem ao projeto moderno ocidental é Khaldoun Samman (2005, 2012). Interessado em compreender o modo como sociedades médio-orientais constroem formas de identidade coletiva no confronto direto com o discurso do orientalismo, Samman sustenta que o alcance global do discurso orientalista produz resultados diferenciados dentro do Oriente Médio. O autor situa três posições no processo de (re)apropriação dos preceitos gerais da modernidade para formação de identidades nacionais árabes: os partidários da modernização (nacionalistas árabes), os partidários da ocidentalização (sionismo e kemalismo) e os defensores da orientalização (movimento islâmico). Os primeiros, os mesmos analisados por Chatterjee, são os que defendem a modernização da economia, da política, da ciência e da tecnologia, isto é, a modernização do “domínio externo” da sociedade, mas sem que isso polua o “domínio interno ou espiritual”, em que está depositada a marca singular de suas identidades culturais. Os segundos, sionistas e kemalistas, defendem a desorientalização e desislamização da sociedade com a intenção de ocidentalização da cultura nativa. Já os partidários do movimento islâmico são, na visão de Samman, os únicos a refutar completamente os preceitos ocidentais, defendendo a ideia de que tanto a esfera pública quanto a esfera privada fazem parte do “domínio interno da sociedade”, devendo permanecer imunes ao ocidente (Samman, 2005, p. 30 - 32).

Samman observa que em meio a essas três posições divergentes há em comum uma espécie de obsessão com a divisão entre ocidente e oriente. Argumenta que isso atesta o poder e sucesso do discurso orientalista, cujas dicotomias são reproduzidas e naturalizadas no modo como não ocidentais entendem ideias como as de civilização, nação, cultura e religião. Discordam na questão sobre a posição do oriente nesta divisão. Uma parte, os dois primeiros, intenta levar o oriente para mais próximo do ocidente, enquanto a outra parte, os partidários do islamismo, busca afastar o oriente para mais longe do ocidente. Contudo, em todos os casos o ocidente permanece sólido em seu lugar. Além disso, argumenta, a fim de “nacionalizar” as mentes da população, todos os três projetos acabam por requerer um aparato disciplinar e repressivo que só o mundo moderno pode produzir (o que inclui televisão, mídia impressa, publicidade etc.) (Samman, 2005, p. 44- 15). Em suma, Samman entende que, seja as aceitando ou as refutando, o mundo árabe-islâmico reproduz as dicotomias forjadas pelo ocidente.

Outra análise sobre modernização não ocidental é a realizada por Niluffer Göle (2000, 2015). Esta autora oferece uma interpretação sobre o movimento islâmico contemporâneo bastante diferente daquela elaborada por Samman. Para começar, Göle entende que os movimentos islâmicos são exemplos daquilo que no ocidente tem sido chamado de “emergência de novos movimentos sociais”. Tal como os movimentos sociais do ocidente, o islamismo elabora uma crítica à tradição iluminista e aos valores industriais. No entanto, argumenta Göle, se os novos movimentos sociais do ocidente são “civis, societários e não revolucionários” (isto é, formam uma crítica interna da modernidade), os movimentos islâmicos rejeitam características dominantes da modernidade ao reafirmarem uma concepção histórica de mudança social orientada pelo retorno ao passado, por concepções hierárquicas de relações entre gêneros e pela submissão do self a preceitos religiosos (Göle, 2000, p. 92-93).

Para Göle, a modernidade não é apenas rejeitada ou readaptada, mas crítica e criativamente reapropriada pelos novos discursos religiosos e práticas sociais em contextos não ocidentais. A autora entende que islã e modernidade estão em interação dialógica, transformando-se mutuamente. Partindo desta interação, Göle procura analisar as consequências não planejadas do atual projeto islâmico. Observa que o radicalismo deste movimento está tanto na resistência ao conservadorismo religioso quanto no criticismo da modernidade. Enfatiza a reinterpretação seletiva da religião islâmica à luz dos problemas colocados pela experiência não ocidental moderna. Sua tese é que a agência das mulheres, a autoreflexividade, a individuação, a mídia, as forças de mercado e os espaços públicos são forças transformativas que estão subjacentes à dupla afetação entre islã e modernidade (Göle, 2000, p. 94-95).

Uma característica fundamental do novo movimento islâmico é o sentido particular conferido à reapropriação do passado e de suas tradições. Ao contrário dos preceitos modernos ocidentais, a mudança revolucionária deste movimento não é orientada para o futuro, mas para o passado. Mais do que preservar suas tradições, o islamismo contemporâneo tem por objetivo transformá-las à luz do que chamam de “verdadeiro islã”. A idade de ouro do islã (asri saadet) provê um modelo ideal de comunidade, um modelo mítico dos anos formativos do islã que teria sido desde então deturpado ao longo dos séculos pelas várias formas de estado islâmico. O processo de restauração e renovação do islã é, portanto, inspirado por um exemplo de experiência passada e não por uma autoconsciência inovadora ou pela esperança de um futuro utópico. Nesse sentido, a ideia de ruptura se dá não com o passado propriamente, mas com a continuidade histórica. Como observa Göle, por um lado, o objetivo de mudança radical legitimada pela oposição política e pela tomada do poder estatal é uma característica da política moderna, especialmente aquelas formuladas pelos movimentos revolucionários socialistas. Negação do passado, priorização da ação política e desejo por mudanças sistêmicas são também características de movimentos sociais modernos. Contudo, por outro lado, os movimentos islâmicos se distinguem dos movimentos políticos revolucionários por causa da relação paradoxal que cultivam com o passado. Para os muçulmanos, assinala Göle, a existência histórica de uma sociedade ideal islâmica não requer qualquer validação por parte das forças progressistas da história.

Há uma orientação temporal diferente no projeto islamista. O ideal não é concebido em termos voltados para o futuro, exigindo validação pelas forças progressistas da história, mas ancorado no passado. A sociedade ideal existe para os muçulmanos: é uma “utopia realizada”, um modelo eterno a ser emulado

(Göle, 2000, p. 98).

Göle enfatiza a relevância da agência de mulheres muçulmanas na formação particular deste movimento político-religioso. Tradicionalmente, o papel das mulheres nas sociedades islâmicas estava confinado à vida doméstica e associado a valores de castidade, fertilidade e respeitabilidade. Todavia, isso tem mudado recentemente. O aumento do nível educacional entre as mulheres tem permitido sua participação na vida pública, em assuntos da vida política e religiosa. As mulheres têm se tornado mais atuantes dentro do próprio movimento islâmico. De certo modo, argumenta Göle, o islamismo confere legitimidade ideológica para os novos papéis públicos conquistados pelas mulheres. Muitas vezes é lembrado o fato de que mulheres ativas na educação, no comércio e na política era algo comum na idade de ouro dos muçulmanos. Por sua vez, o recente ingresso das mulheres na política traz consequências não intencionadas ao movimento islâmico ao possibilitar que mulheres muçulmanas participem da vida pública, organizem encontros, publiquem artigos, estabeleçam associações, enfim, que abandonem a esfera doméstica privada e os papéis tradicionalmente a elas associados (Göle, 2000, p. 99).

No entanto, essa liberação ainda não é completa, e está imersa em profundas ambiguidades. Se, por um lado, as mulheres experimentam um modo de empoderamento através do islamismo, por outro, as mulheres na política consentem com o modo de vida islâmico, com a moralidade islâmica e com a comunidade islâmica. Marcas sociais e corporais, como a segregação hierárquica dos sexos e o uso de véus pelas mulheres, são fundamentais para manutenção da diferença muçulmana. Para Göle, ao mesmo tempo que convoca a agência das mulheres, o islamismo também a restringe (Göle, 2000, p. 101-102). Apesar de saírem da esfera privada para a pública, sua noção de pessoa é altamente submetida e refreada pelos preceitos religiosos. Ou seja, ao mesmo tempo que o islamismo político empodera as mulheres muçulmanas, torna-se também um obstáculo para sua autoexpressão, para suas próprias subjetividades. Göle, contudo, parece expressar algum otimismo, pois acredita estar em curso a passagem do coletivismo político islâmico para a emergência de uma subjetividade muçulmana. A tendência à construção da ideia de pessoalidade entre os muçulmanos tem ganhado força especialmente com o fortalecimento de gêneros literários, como autobiografias e romances (Göle, 2000, p. 106). Nesse sentido, entende a autora, o islamismo é atualmente desafiado pela criação de uma subjetividade crítica, pelo amor romântico e por debates públicos (como os que têm ocorrido sobre casamento religioso na Turquia) (Göle, 2000, p. 109).

No geral, Göle enfatiza o aspecto ambíguo do empoderamento de atores islâmicos. Por um lado, os movimentos islâmicos dotam muçulmanos de agência coletiva, permitindo que utilizem recursos políticos modernos, que ocupem espaços públicos e urbanos, que façam uso de ferramentas de comunicação e que tenham maiores oportunidades educacionais. Tudo isso favorece a formação de classes médias, de elites profissionais, empreendedores e intelectuais, todos operando dentro de uma sociedade mais pluralista e aberta. Contudo, por outro lado, a política islâmica demanda também a manutenção de determinadas fronteiras que limitam bastante esse processo participativo (Göle, 2000, p. 113). A autora sintetiza seu pensamento afirmando que sociedades não ocidentais não estão fadadas a escolher entre a submissão às forças globais da modernidade ou o fundamentalismo nativo. Antes, argumenta, o que tem ocorrido é a reapropriação da modernidade em suas margens, tanto em relação aos centros ocidentais quanto ao próprio movimento islâmico (Göle, 2000, p. 114).

Finalizando, as análises de Göle, Chatterjee e Samman vão na direção de problematizar processos de modernização sem ocidentalização. Ao fazerem isso, estes autores contribuem para constatação de que o tema da reflexividade moderna não pertence ao domínio exclusivo do pensamento ocidental, sendo também criativamente reapropriado por sociedades que rejeitam seletivamente alguns dos seus pressupostos ocidentais. Em todo caso, é também concordância a tese de que essa reapropriação seletiva transforma não apenas os preceitos gerais da modernidade ocidental, mas também os padrões tradicionais da vida cultural e religiosa das próprias sociedades não ocidentais. Tomando por empréstimo o termo de Wittrock, as três interpretações parecem indicar que ocorrem, hoje, em parte do leste do mundo, as primeiras transformações modernas de suas “notas promissórias”. Isso acaba por favorecer o fortalecimento da sociologia nessas regiões do mundo, diversificando não apenas seus objetos de análise, mas também suas ferramentas teóricas de interpretação.

Considerações finais

Seja na discussão seminal proposta pelos clássicos da sociologia, nas teorias críticas dos anos 60-70 (Moore Jr, [1966] 1983; Bendix, [1969] 1996; Skocpol [1979] 1985) ou nos debates da virada deste século que são objeto do presente artigo, uma dimensão permanente nas análises sobre modernidade é ter como epicentro o tema da reflexividade. A relação entre consciência histórica e agir reflexivo tem sido o fio condutor das análises sociológicas sobre moral, poder e cultura na modernidade. No entanto, hoje, essa relação se torna ainda mais complexa e intensa ante os fenômenos relacionados à ideia de globalização. As novas teorias da modernização indicam um ponto de maturação da reflexividade moderna, que deixa de ser apenas objeto, firmando-se também como recurso metodológico de análise. A intensificação e a expansão do encontro entre modernidade e mundo não ocidental têm oferecido à sociologia um campo empírico fértil para a revisão teórica de suas ferramentas de interpretação da realidade. Nesse sentido, como discutido nas seções precedentes, se, por um lado, o projeto da modernidade se tornou globalmente influente, por outro, em nenhum momento ele foi universal. O modo como são definidas as questões gerais da experiência moderna está absolutamente condicionado pelos quadros valorativos em que elas ocorrem. Desse modo, as recentes conexões de sentido que têm conferido legitimidade à experiência moderna no mundo não ocidental constituem, por assim dizer, um novo campo empírico para uma velha questão teórica: o que é a modernidade.

Referências

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Notas de autor

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