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Vida cotidiana e preservação do patrimônio em centros históricos: as cidades-patrimônio mundial de Olinda e Ouro Preto, Brasil
Rogerio Proença Leite; Eder Claudio Malta Souza
Rogerio Proença Leite; Eder Claudio Malta Souza
Vida cotidiana e preservação do patrimônio em centros históricos: as cidades-patrimônio mundial de Olinda e Ouro Preto, Brasil
Daily life and heritage preservation in historic downtowns: world heritage cities Olinda and Ouro Preto, Brazil
Vida cotidiana y preservación del patrimonio en los centros históricos: ciudades patrimonio de la humanidad Olinda y Ouro Preto, Brasil
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 12, e-rbs.980, 2024
Sociedade Brasileira de Sociologia
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Resumo: O artigo analisa os centros históricos das cidades de Olinda, em Pernambuco, e Ouro Preto, em Minas Gerais, com vista a observar duas dimensões da cidade, nomeadamente, a ville (a cidade em sua dimensão física e funcional) e a cité(a cidade compreendida em seus modos de vida e sua dimensão sociocultural). O artigo confronta o modo como se manifestam, nos casos estudados, as dinâmicas urbanas de reocupação residencial das áreas centrais e suas repercussões na vida cotidiana, nas condições de moradia e nos usos dos espaços da cidade.

Palavras-chave: Habitação, modos de vida, centros históricos.

Abstract: The article analyzes the historic downtowns of the cities of Olinda, in Pernambuco, and Ouro Preto, in Minas Gerais, with a view to observing two dimensions of the city, namely the ville (the city in its physical and functional dimension) and the cité (the city understood in its ways of life and sociocultural dimension). The article contrasts the studied cases as to the urban dynamics of reoccupation of central areas for housing and their repercussions on daily life, housing conditions and the use of city spaces.

Keywords: Housing, lifestyle, historic centers.

Resumen: El artículo analiza los centros históricos de las ciudades de Olinda, en Pernambuco, y Ouro Preto, en Minas Gerais, con el objetivo de observar dos dimensiones de la ciudad, a saber, la ville (la ciudad en su dimensión física y funcional) y la cité (la ciudad entendida en sus modos de vida y su dimensión sociocultural). El artículo confronta la forma en que, en los casos estudiados, se manifiestan las dinámicas urbanas de reocupación residencial en áreas centrales y sus repercusiones en la vida cotidiana, las condiciones de vivienda y el uso de los espacios de la ciudad.

Palabras clave: Vivienda, modos de vida, centros históricos.

Carátula del artículo

Artigos

Vida cotidiana e preservação do patrimônio em centros históricos: as cidades-patrimônio mundial de Olinda e Ouro Preto, Brasil

Daily life and heritage preservation in historic downtowns: world heritage cities Olinda and Ouro Preto, Brazil

Vida cotidiana y preservación del patrimonio en los centros históricos: ciudades patrimonio de la humanidad Olinda y Ouro Preto, Brasil

Rogerio Proença Leite
Universidade Federal do Sergipe, Brasil
Eder Claudio Malta Souza
Universidade Federal do Sergipe, Brasil
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 12, e-rbs.980, 2024
Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepción: 08 Noviembre 2023

Aprobación: 12 Junio 2024

Introdução

Há um certo consenso entre os estudiosos do patrimônio cultural de que a preservação dos centros históricos é abertamente favorecida pela presença ativa de moradores permanentes. A conclusão advém de pesquisas que demonstram a existência de certo nível de envolvimento positivo da população residente com as demandas institucionais da preservação continuada (Smith, 1996; Zukin, 1991; Arantes, 2000; Butler, 1997; Guimarães, 2014; Leite & Corrêa, 2023). Os mesmos autores, contudo, ressaltam também que a coexistência de moradores com essas demandas de preservação nem sempre é pacífica.  É natural que haja, por vezes, desencontros de interesses entre moradores e órgãos oficiais de patrimônio, que resultam em desacordos e conflitos. Em seu importante estudo sobre Ouro Preto, a arquiteta e pesquisadora do Iphan, Lia Motta (1987), revela como houve forte resistência da população ouropretana aos primeiros esforços de patrimonialização da cidade, sugerindo que a Ouro Preto que conhecemos hoje é uma cidade reinventada pelas políticas de patrimônio, muito distante da cidade original. Essa recriação das cidades-patrimônio é parte incontornável das políticas de patrimônio e resulta em processos complexos de atribuição de novos sentidos, que nem sempre beneficiam moradores e usuários nativos.

É nessa direção que este artigo se propõe a analisar essa complexa e necessária relação entre moradores e demandas institucionais de preservação do patrimônio, tendo como referentes empíricos duas cidades-patrimônio brasileiras: Ouro Preto, MG; e Olinda, PE. O recorte que seleciona essas duas cidades não é exclusivo ou excepcional.1 A escolha recai sobre o fato de terem sido estas as duas primeiras cidades a receberem a chancela de Patrimônio Mundial da UNESCO (Outro Preto, em 1980, e Olinda, em 1982), por serem cidades históricas tipicamente residenciais, com vida cotidiana intensa e ordinária (Certeau et al., 1998; Leite, 2010)

A análise se baseia em um duplo escopo analítico, que busca articular a dimensão física construída, expressa na arquitetura e na formação urbanística, e a dimensão social da vida urbana, expressa nas sociabilidades, nas interações e usos do espaço. Essas duas dimensões, respectivamente denominadas de ville e de cité (Sennett, 2018), têm raízes nas duas tradições dos estudos urbanos que marcaram o debate moderno sobre a emergente cidade industrial. De um lado, os estudos socioecológicos de inspiração simmeliana da Escola de Chicago (Park & Burgess, 1970) focaram principalmente a compreensão do urbanismo como modo de vida, negligenciando, contudo, a própria cidade construída. Por outro lado, o urbanismo francês, influenciado pelo modernismo de Le Corbusier (1998), parecia estar mais preocupado com os traçados e quartiers – os aspectos físicos – da ville, como se a cidade pudesse prescindir de seus habitantes. Essa falsa dicotomia entre ville e cité animou o debate da emergente sociologia urbana e do urbanismo moderno, mas hoje se encontra superada (Sennett, 2018). A abordagem aqui adotada, centrada tanto na ville quanto na Cité, pode indicar um caminho metodológico para a superação das análises univariadas que por vezes se sobrepõem nos estudos urbanos, que ora focam mais as estruturas urbanísticas, ora as interações e sociabilidades.

Afora essa caricatura – já descreditada – de separação entre pessoas e lugares, pode-se afirmar que não há urbanismo qualificado que recuse entender a dimensão humana dos usos dos espaços da cidade, nem sociologia urbana robusta que não leve em conta a forma como o espaço construído e socialmente qualificado pelos usos sociais intervém nos modos de vida urbanos (Arantes, 2000; Leite, 2013; Malta, 2017; Fortuna, 2020). No contexto do debate sobre a revitalização de antigos centros urbanos supostamente desabitados e abandonados, reconhece-se que as áreas centrais das cidades continuam a ser habitadas, disputadas e a possuir um forte apelo econômico.

Pesquisas recentes sobre o perfil socioeconômico dos domicílios urbanos em áreas tombadas pelo Iphan, como parte de um projeto da Unesco, corroboraram a visão de que os centros históricos brasileiros estão de fato habitados (Leite, 2018; Corrêa, 2021; Leite & Corrêa 2023). Esses estudos se concentraram em caracterizar os domicílios particulares e analisar o perfil socioeconômico dessas áreas. A partir deles, constatou-se que, apesar do valor econômico e simbólico dos centros históricos, há uma parcela da população de baixa renda que historicamente habita e é socialmente ativa, mas há poucos dados disponíveis sobre os modos de vida dessa população e sua relação com o patrimônio histórico-cultural.

Os centros históricos são áreas habitadas e com sua própria vitalidade. Em contrapartida, são áreas, em geral, em situação de vulnerabilidade social devido aos baixos níveis de renda. A pesquisa aponta que a maioria dos domicílios (60,80%) que integram as poligonais de tombamento estudadas possui renda nominal per capita na faixa de um a dois salários-mínimos. Embora essa faixa de renda esteja acima do limiar de “meio salário-mínimo” formalmente usado para definir uma família de baixa renda (conforme Decreto nº 6135 de 26 de julho de 2007 e IPEA), os domicílios não seriam categorizados como de baixa renda, mas encontram-se em extratos inferiores de renda.

A análise busca confrontar como se manifestam, nos dois casos estudados, as diferentes repercussões que os diversos projetos urbanos (como “revitalização” urbana, gentrificação, conservação ou habitação, patrimonialização e reconversão de atividades econômicas) têm sobre as condições de moradia e serviços urbanos (infraestrutura urbana da ville), bem como sobre a caracterização dos moradores, dos usos dos espaços e das sociabilidades públicas (práticas sociais da cité).  O estudo é parte integrante de um projeto mais abrangente que pretende estudar o perfil dos moradores e usos dos espaços nos centros históricos brasileiros.2

1. Breve descrição das cidades do estudo
1.1. Olinda

Fundada em 1535, Olinda (ver Figura 1) foi uma das mais importantes vilas do Brasil Colônia e é uma das mais importantes cidades históricas reconhecidas pela Unesco como Patrimônio Mundial.  Segundo o Censo-IBGE de 2017, a população estimada de Olinda era de 390.771 pessoas. O centro histórico de Olinda, que integra a poligonal de tombamento, tem uma população de 22.463 habitantes, correspondendo a 5,9 % da população total do município.


Figura 1
Localização da cidade de Olinda, Pernambuco, Brasil.
Fonte: Leite, 2018.

A Poligonal de Tombamento de Olinda (Figura 2) é caracterizada por uma maioria de imóveis próprios e quitados (70,4%) e alugados (22,6%).  A área tombada possui infraestrutura urbana adequada, com índices positivos nos itens básicos como água encanada, banheiro exclusivo, coleta de lixo e rede elétrica, todos com taxas superiores a 96%). Dos 6.248 domicílios, 51,5 % possuem pavimentação e 75,8% têm acesso à energia elétrica. Além disso, existem 46 rampas para cadeirantes no perímetro (Leite, 2018).


Figura 2
Localização do Centro Histórico de Olinda, PE, Brasil
Fonte: Leite, 2018.

Olinda tem uma população residente autodeclarada predominantemente parda (52,1%) e 33,3% se declara branca; e é formada por pessoas de diferentes faixas etárias, com maior frequência na faixa de 10 a 39 anos. O alto número de crianças e jovens sugere níveis dinâmicos na renovação populacional. A composição familiar predominante é a nuclear, com cônjuges, filhos e netos. A maioria dos responsáveis pelos domicílios é do sexo masculino e se encontra na faixa etária de 40 a 49 anos (Leite, 2018).

No conjunto de domicílios da área tombada de Olinda, a renda nominal per capita é baixa, principalmente na faixa de um a dois salários-mínimos. Essa tendência também é observada na renda mensal dos chefes de domicílio, com a maioria concentrada nas faixas de renda mais baixas, entre um e três salários-mínimos. Essa configuração de baixa renda também é confirmada nos dados relacionados a todas as pessoas com rendimento mensal, com 87,6% situando-se na faixa entre um e três salários-mínimos (Leite & Corrêa, 2023).

1.2. Ouro Preto

Uma das mais importantes cidades históricas brasileiras, Ouro Preto (Figura 3) foi a primeira cidade a ser tombada no Brasil e a primeira a receber o título de Patrimônio da Humanidade pela Unesco. A população de Ouro Preto foi estimada em 74.659 habitantes em 2017. Dentro do escopo deste estudo, o centro histórico de Ouro Preto, que está incluído na área de tombamento, possui a maior população em números absolutos, contabilizando 33.999 pessoas, equivalente a 48,4% da população total do município.


Figura 3
Localização da cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil
Fonte: Leite, 2018.

Em relação à ocupação dos domicílios particulares dentro da área de tombamento de Ouro Preto (Figura 4), a maioria é composta por imóveis próprios e totalmente quitados (73,4%). Essas residências possuem infraestrutura urbana adequada, com elevados índices positivos acima de 95% nos itens básicos, como água encanada, banheiro exclusivo, coleta de lixo e eletricidade (Leite, 2018).


Figura 4
Localização do Centro Histórico de |Ouro Preto, MG, Brasil
Fonte:  Leite, 2018.

Do total de 9.982 domicílios, cerca de 91,4 % têm seu entorno pavimentado e 88,5% possuem energia elétrica. No perímetro tombado, existem 17 rampas para cadeirantes. Quanto à composição étnica, a população residente de Ouro Preto é majoritariamente autodeclarada parda (50%), sendo que 30,6% se declara branca e 17,3%, preta. Ouro Preto se destaca por ter uma das maiores populações autodeclaradas pretas dentre as cidades contempladas por este estudo. A cidade possui uma faixa etária diversificada, com maior concentração na faixa entre 10 e 29 anos (Leite, 2018).

A composição familiar predominante é a nuclear, com cônjuges, filhos e netos. A maioria dos chefes de domicílios é do sexo masculino e está na faixa etária entre 40 e 49 anos. O conjunto de domicílios que integra a poligonal de tombamento de Ouro Preto apresenta uma baixa renda nominal per capita, com predominância na faixa de um a dois salários-mínimos. Essa tendência também se aplica à renda mensal dos chefes de domicílio, com uma predominância notável nas faixas mais baixas de renda, entre um e três salários-mínimos. A configuração de baixa renda mensal também se reflete nos dados relativos ao conjunto de todas as pessoas com rendimento mensal: 78,6% entre um e três salários-mínimos (Leite & Corrêa, 2023).

2. Usos dos espaços e vida cotidiana
2.1. Olinda, a Marim dos Caetés

Diz-se que as colinas do que hoje é Olinda eram chamadas “marim” pelos indígenas Caetés, os povos originários da região. Até hoje, a cidade é chamada assim, a Marim dos Caetés. Na canção popular de Alceu Valença se perpetua o velho nome:



Não chore, menina bonita
se Deus quiser
te vejo na Marim guerreira dos Caetés
de novo pra subir ladeira
te dou meus pés
Olinda Marim tão bonita dos Caetés

Fuente: (Valença, 1983)

Fundada em 1535, por Duarte Coelho, Olinda (Figura 5) é uma das mais antigas cidades brasileiras e foi sede da capitania de Pernambuco. O historiador Vanildo Bezerra Cavalcanti (1977) gostava de dizer que, em Olinda e Recife, “o princípio era o porto”.  O porto da Capitania de Pernambuco situava-se na restinga da capital Olinda, em cujo istmo se fixaram os primeiros habitantes, numa estreita faixa de terra entre o mar e o mangue. Uma breve descrição do primeiro cronista pernambucano, Pero Magalhães de Gândavo, datada de 1576 e citada pelo historiador Leonardo Dantas, oferece uma primeira impressão: “Uma légua da povoação de Olinda para o sul está um arrecife ou baixo de pedras, que é o porto onde entram as embarcações. Tem a serventia pela praia e também por um pequeno rio que passa junto da mesma povoação” (Dantas, 1999, p. 323).


Figura 5
Vista de Olinda, do Alto da Sé
Fonte: Brasil de Fato (https://cdn.brasildefato.com.br/media/4f7e69f45869951ea725a776f0d5b582.jpg)

A primeira grande alteração nos usos e modos de vida decorreu da invasão holandesa, em 1630. Após se fixarem no istmo de Olinda, que deu origem ao povoado dos arrecifes, os holandeses incendiaram a vila, então sede do governo português. O resultado imediato, do ponto de vista da evolução urbana do Recife, foi a migração em massa dos moradores de Olinda para o estreito istmo dos arrecifes. Estima-se que, em um curto período, pelo menos 7.000 pessoas se mudaram para o novo povoado holandês (Dantas, 1999, p. 327).

Olinda permaneceu uma cidade importante, mas perdeu centralidade para o emergente Recife holandês. Com a expansão do porto e a mudança da capital para o Recife, Olinda entrou em um processo crescente de estagnação econômica, o que contribuiu para a preservação de seu sítio histórico e arquitetônico. Devido à própria pujança da economia do açúcar e ao crescimento do porto do Recife, Olinda foi se transformando em uma típica cidade-dormitório, característica que prevaleceu por um longo período.

O processo de reapropriação e revalorização do centro histórico de Olinda foi, com as devidas proporções e singularidades, semelhante à reocupação do bairro Soho, em New York (Harvey, 1992). Em ambos os casos, foram os intelectuais e artistas que os escolheram como lugar de morada e, em razão disso, surgiu uma série de outros serviços que agregaram valor à antiga área.

No caso de Olinda, o contexto também teve um aspecto político. Após o golpe militar de 1964, no Brasil, vários artistas procuraram Olinda como uma alternativa para a continuidade de suas atividades, pois contavam com o apoio à cultura e às artes pelo então prefeito Eufrásio Barbosa (Barreto, 2008).

Seguindo o recorte temporal proposto pelo estudo da urbanista Juliana Cunha Barreto (2008), destacamos aqui três momentos centrais da emblemática relação entre moradores e usuários com o Centro Histórico de Olinda: o movimento da Ribeira (1964); o movimento que originou a criação da Associação de Moradores e Amigos de Olinda Antiga (Amoa), entre 1979 e 1981; e a criação da Sociedade em Defesa da Cidade Alta (Sodeca), entre 1984 e 1992.

O Movimento da Ribeira decorre da primeira onda de ocupação do Centro Histórico de Olinda por parte das classes médias urbanas e intelectuais. A chegada desses novos moradores-usuários impulsionou novas demandas para os poderes públicos, despertando maior atenção à preservação do patrimônio edificado da cidade. A denominação do movimento faz uma alusão ao antigo Mercado da Ribeira (Figura 6), situado na parte alta da cidade. Curiosamente, esse local, um antigo mercado de carne e grãos, passou por uma inusitada patrimonialização:  hoje transformado em centro de cultura popular e artesanato, foi restaurado sob alegação de ter sido um antigo mercado de escravos. Um interessante depoimento de um dos envolvidos na recuperação revela o propósito da “invenção da tradição”:

Nós inventamos que aqui era um mercado de escravos. Nunca foi mercado de escravos. Agora, nós queríamos o apoio do Iphan pra poder mexer no patrimônio. Aí, o Iphan mandou um técnico, Ferrão. Ferrão chegou aqui, fez os instrumentos, ensinou a gente a fazer os instrumentos para a gente começar a fazer a restauração. Daí, inventamos isso, escrevemos um artigo no jornal, foi até Adão que escreveu, botamos umas correntes lá em cima, entende? (risos) Aí, a coisa pegou, que até hoje pra tirar essa mentira, não tem jeito. [...] Nunca foi mercado de escravos, era açougue

(depoimento de Ypiranga Filho apudBarreto, 2008, p. 69).


Figura 6
Mercado da Ribeira, Olinda
Fonte: Foto de Alcir Lacerda. Mercado da Ribeira em 1970. (https://olinda.pe.gov.br/wp-content/uploads/2013/03/1362_h.jpg)

Até hoje persiste no imaginário social a ideia de que o Ribeira teria sido um mercado de escravos. Na plataforma de viagens Tripadvisor.com pode-se visualizar várias imagens do Mercado, com a descrição: “O antigo mercado de escravos merece uma visita”.

A presença dos novos moradores contribuiu para a valorização da cidade como patrimônio, mas também gerou tensões inerentes aos processos de enobrecimento residencial (Leite, 2010). O principal aspecto dessas tensões decorre do conhecido efeito de rent gap, estudado por Neil Smith (1996) para se referir à variação dos preços dos imóveis e da especulação imobiliária decorrentes da presença (real ou potencial) de residentes com rendas mais elevadas. Uma das mais perversas consequências desses processos é a substituição de moradores nativos com menor renda, fato que constitui um traço fundamental dos processos de gentrificação. Há uma importante referência a esse fato no Plano de Preservação dos Sítios Históricos da Região Metropolitana do Recife (RMR).

Note-se já, claramente, na cidade histórica de Olinda, o fenômeno “espontâneo” de substituição da população, devido às pressões econômicas sobre ela. Reflete-se isso nas inúmeras casas reformadas, quase reconstruídas dentro de novos padrões de conforto, nem sempre respeitando as características fundamentais da capacitação original

(Fidem, 1978, p. 110 apudBarreto, 2008, p. 100).

Naturalmente, sabe-se que esse movimento de substituição de moradores não é nada espontâneo. Ao contrário, implica relações de poder adversas que resultam praticamente na expulsão de moradores antigos. Para Juliana Barreto (2008), houve sempre uma certa hostilidade entre os moradores antigos e os novos, desde o Movimento da Ribeira.

[...] desde o Movimento da Ribeira, já havia sido registrado um clima de hostilidade entre os moradores nativos e as pessoas externas ao sítio – os artistas e visitantes. A década de 1970 adentrara com tal característica, confirmada por Vera Milet, em entrevista concedida em agosto de 2006, ao indicar que os moradores recentes foram comumente chamados de invasores pelos moradores nativos e, pejorativamente, apelidados de ‘cogs’, como abreviatura de ‘incógnita’. Segundo o jornalista José Ataíde Melo, ‘cog’ ou ‘cogue’ é um “termo provinciano usado pelos olindenses para definir quem não é de Olinda”, ou seja, pessoas sem raízes no local

(Barreto, 2008, p. 103).

Com o influxo da intelectualidade em Olinda, também aumentou o interesse pela vida noturna e boêmia. A partir dos anos 80, o número de bares na cidade alta cresceu, o que intensificou o tráfego de veículos e visitantes na área mais sensível do sítio histórico. Esse contexto possivelmente motivou a criação da Associação de Moradores e Amigos de Olinda (Amoa).

A atuação da Amoa a favor do bem-estar dos moradores combateu, especialmente, os incômodos provocados pela introdução de bares e boates no casario histórico, que era essencialmente de uso residencial. Nesse sentido, cabe destacar os abaixo-assinados encaminhados ao prefeito, solicitando a proibição de instalação e funcionamento de bares no Setor de Preservação Rigorosa 155 do sítio, como foi o caso dos relativos à Rua do Amparo e Praça de São Pedro

(Barreto, 2008, p. 131).

Esse período é bastante controverso para as sociabilidades e usos do espaço em Olinda. A existência dos bares em casarios antigos assegurava uma vitalidade às práticas sociais da cidade, mas o aumento do fluxo de visitantes acabava por incomodar os moradores, sobretudo nos finais de semana. Para os moradores, a presença intensiva de pessoas e veículos ameaçava a integridade do patrimônio, fato que motivou a terceira onda dos moradores de Olinda, com a criação em 1984 da Sociedade Olindense de Defesa da Cidade Alta – Sodeca.

A Sodeca reagiu de forma emblemática à ocupação cada vez mais intensa dos visitantes e turistas a Olinda. Durante a segunda metade dos anos 80, a vida noturna de Olinda era intensa, o que culminava em congestionamentos nos fins de semana, sobretudo nas mediações da Igreja da Sé. Foi também neste período que o carnaval de Olinda (Figura 7), antes restrito a pequenos e tradicionais blocos, ganhou maiores proporções com milhares de pessoas a ocupar suas ladeiras, sobretudo na parte mais antiga da cidade alta, à altura dos Quatro Cantos. No carnaval, era comum alguns moradores alugarem suas casas para temporada, aumentando a presença um tanto predatória de turistas sem muito compromisso com a preservação das edificações históricas. Neste período, a Sodeca inicia um grande debate e mobilização para restringir o acesso à cidade alta, sob o argumento da necessidade preservar o patrimônio edificado da cidade.

A Sodeca partiu de uma reação contra o carnaval, pois havia uma tendência à descaracterização do sítio. Nesse momento, a Sodeca se reunia nos Quatro Cantos, com alguns moradores que tinham a necessidade de discutir isso mais profundamente. Então, foi, na verdade, a partir de uma tendência do Carnaval de descaracterização, que [se] cria[m] mecanismos de pressão na população (depoimento de Alexandre Aguiar, membro da Sodeca, concedido em 01/09/2006 a Barreto, 2008).


Figura 7
Carnaval nas ruas históricas de Olinda
Fonte: Foto de Ed Machado. Folha de Pernambuco. (https://cdn.folhape.com.br/img/pc/1100/1/dn_arquivo/2020/02/edw-5511.jpg)

Com ampla mobilização, a Sodeca conseguiu a polêmica liminar em 1987, por meio de uma ação cautelar, que impediu o tráfego de veículos na área de preservação rigorosa (parte alta da cidade), permitindo apenas veículos de moradores e aqueles em desempenho de atividades profissionais. Através de correntes e obstáculos de concreto, as principais vias de acesso à cidade alta foram fechadas ao público em geral.

O debate público que se seguiu foi intenso, com muitos prós e contras. Os comerciantes dos bares e setores ligados ao turismo foram diretamente prejudicados, já que o acesso à cidade alta teve que ser feito a pé, através das íngremes ladeiras da cidade. Diante da polêmica gerada, foi feito um plebiscito. Conforme Barreto (2008, p.178), “o Plebiscito ocorreu em 10/05/1987, somando quase 2.200 eleitores que votaram em 11 urnas itinerantes, distribuídas em ruas e praças do sítio histórico. O resultado foi favorável à interdição (68,9% a favor e 26,9% contra)”.

A reabertura de Olinda foi lenta e gradual. Apesar dos aspectos negativos, o fato mobilizou a opinião pública e serviu para se discutir medidas protetivas do Centro Histórico que preservassem o patrimônio edificado (Ville) sem aniquilar a vida pública da cidade (Cité).

2.2 Ouro Preto, a Cidade Monumento

As narrativas sobre a história de Ouro Preto (Figura 8) reconhecem que seus espaços e patrimônio edificado são considerados autênticos testemunhos do passado colonial do país, quando ascendeu como uma próspera vila (Vila Rica) e, uma década depois, tornou-se a sede da Capitania de Minas Gerais. Ouro Preto foi fundada em 1711 e emergiu como um importante centro urbano, econômico e político no auge da extração aurífera no Brasil, atraindo uma grande quantidade de colonos, mineradores, exploradores e aventureiros para o interior do Brasil, em busca de riqueza, que se estabeleciam em inúmeras vilas e povoados na região (Werkema, 2018; Felix, 2021).


Figura 8
Vista panorâmica de Ouro Preto e o Pico do Itacolomi ao fundo
Fonte: Acervo de Priscila Musa (https://www,flickr.com/photos/whltravel/3707571023),

O crescimento populacional fez com que a Corte promovesse o ordenamento dos espaços e importantes transformações na paisagem urbana com os arruamentos, os aforamentos, as reformas das fachadas das matrizes eclesiásticas para o Neoclássico e de reafirmação da unidade e poder do Império e da Igreja. Identifica-se neste período um número significativo de novas construções religiosas, políticas e a implantação de uma série de equipamentos urbanos, como a Estação Ferroviária, as Escolas de Farmácia, de Minas,3 de Direito e o Liceu de Arte e Ofícios (Aguiar, 2013; Malta, 2018; Lemos & Lobato, 2021).

A arquitetura colonial de Ouro Preto, marcada por imponentes edifícios e monumentos religiosos em estilos barroco, rococó e neoclássico, é resultado da abundância de recursos financeiros, oriundos da mão de obra escrava e da tradição artística e artesanal que floresceu na cidade (Felix, 2021). Nos fins do século XIX, houve a estagnação da produção aurífera e da economia da cidade, além da perda da centralidade política no estado. A transferência da capital para Belo Horizonte, em 1897, resultou em uma perda significativa da população local, que abandonou grande parte das construções.

Apesar do esvaziamento populacional, alguns imóveis preservados mantiveram sua arquitetura clássica, assim como as artes da escultura e pintura. Além disso, Queiroz (2019) argumenta que, por um lado, o patrimônio edificado e artístico de Ouro Preto pôde ser preservado dos possíveis impactos do crescimento econômico e dos processos de modernização urbana das cidades brasileiras e manteve os elementos tradicionais em sua materialidade. Por outro lado, a perda de centralidade chamou a atenção do movimento modernista na década de 1930 e suas personalidades engajadas na Semana de Arte Moderna de 1924, reconhecidas nacionalmente, como Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Mario de Andrade que iniciaram um movimento pela preservação da cidade.

Nesse entretempo, quase três décadas antes da “redescoberta” da Ouro Preto colonial, os estudantes da Escola de Minas ocuparam os sobrados do Centro Histórico e criaram as primeiras repúblicas estudantis que assumiram um importante papel na conservação e na divulgação do patrimônio histórico. O Iphan posteriormente atuou na recuperação do traçado urbano, na conservação e restauração das casas em deterioração.

Conforme Motta (1987, p.111), a preocupação maior do Iphan foi a de “ajustar melhor a arquitetura nova ao quadro antigo, diminuindo o contraste entre o passado e o presente sem reproduzir as velhas construções”, que teve como referência a nova arquitetura modernista, a exemplo da construção do Grande Hotel de Ouro Preto, projetado por Oscar Niemeyer no início dos anos 1940. No entanto, em outro contexto, a parte da população considerada “nativa” solicitava projetos de reforma ou de construção de novas casas no entorno do centro histórico, mas o Instituto estabeleceu normas estéticas, definidas por “estilo Patrimônio”, para padronizar construções e fachadas que se estendiam às novas áreas que surgiam na periferia e nos morros para garantir coerência visual e uma continuidade estilística em todo o contexto urbano (Motta, 1987; Leite, 2018).

Este período marca a transição de uma pequena cidade parcialmente abandonada para a ville idealizada através das políticas de preservação patrimonial e de chancela das paisagens culturais e dos espaços simbólicos que dão concretude à narrativa da memória e da identidade nacional. O tombamento do conjunto, em 1986, pelo Iphan, visou a construção de uma imagem patrimonialista e monumental. O Instituto considerou a formação urbana até a consolidação da imagem setecentista, comumente designada de “Cidade Colonial”, o que inclui as obras arquitetônicas dos renomados artistas Aleijadinho e Mestre Ataíde e suas esculturas que ornamentam igrejas e praças, particularmente significativas na criação da paisagem colonial ouro-pretana (Queiroz, 2019).

Desde então, dois processos ocorreram transversalmente: a patrimonialização do centro histórico e o enobrecimento residencial e comercial decorrente das políticas urbanas voltadas para o turismo. Estes processos atingiram moradores antigos e estudantes de baixa renda, os quais não acessam os serviços de comércio varejista e noturnos mais caros. Para Cunha e Caldeira (2017), a patrimonialização do centro histórico resultou em um processo de gentrificação, que levou à periferização da população mais humilde para os morros no entorno do sítio tombado. Além da inflação imobiliária no centro histórico, ocorreu também a valorização dos aluguéis nas áreas comerciais e nas áreas com grande concentração residencial de estudantes de ensino superior, dentro e fora do sítio tombado, o que gera o efeito de rent gap (Smith, 1996), impulsionada pelo aumento e concentração de estudantes em bairros específicos, devida à falta de acomodações no campus que leva os estudantes a procurarem moradia no setor privado.

Como referido, são os usos da cité que enfocamos para compreender a relação entre os habitantes e o patrimônio cultural, e, com isso, analisarmos os espaços públicos que integram a área de tombamento pelo Iphan. Para tanto, compreende-se quatro aspectos importantes que constituem o patrimônio material e imaterial ouro-pretano: as manifestações culturais; as festividades civis e religiosas; a universidade e as repúblicas estudantis; e o turismo.

Em um estudo sobre religiosidade em Ouro Preto, Pereira (2017a) compreende que, em meio às construções barrocas relacionadas ao Ciclo do Ouro, as igrejas destacam-se como fontes de expressão do modo de vida católico predominante na cidade. Elas evidenciam conteúdos e práticas religiosas, e a dinâmica da composição social do patrimônio material e imaterial de Ouro Preto. De um modo geral, o catolicismo, presente nos templos, festas e formas de organização religiosa, desempenha um papel constitutivo no ideário do interior de Minas Gerais e como referência do Iphan na elaboração do discurso da identidade nacional. Dos 1149 bens tombados pelo Iphan, 40% são de natureza religiosa, dentre os quais 97% são católicos.

Este “conteúdo”, que serve à elaboração da nacionalidade, não ocorreu sem conflitos na prática cotidiana local, inclusive no entendimento do significado das tradições dos modos de vida passados. Nesse contexto, as festas religiosas de Ouro Preto ganham importância como expressões não apenas de devoção, mas também como referentes culturais. Estas festas incluem celebrações dos santos padroeiros da cidade e dos distritos: a Semana Santa, o Corpus Christi, as Folias de Reis e do Divino, as Cavalhadas e a Dança de São Gonçalo etc. Dentre essas festas, a Semana Santa (Figura 9) é destacada por não representar exclusivamente os valores de um grupo étnico-racial ou social específico, diferentemente da festa de Nossa Senhora do Rosário, que é reconhecida como uma tradição afro-brasileira presente em Ouro Preto (Pereira, 2017a).


Figura 9
Procissão do Encontro na Praça Tiradentes durante a Semana Santa
Fonte: Tino Ansaloni. (https://jornalvozativa.com/semana-santa-2022/veja-programacao-completa-semana-santa-2022-ouro-preto-mg/)

Ouro Preto possui quatro paróquias: duas na região central, fundadas no século XVIII, Antônio Dias (1707) e Nossa Senhora do Pilar (1711), e outras duas nas regiões do entorno, Santo Cristo (1964) e Santa Efigênia (1994). Pereira (2017a) destaca, em sua pesquisa sobre a religiosidade em Ouro Preto, os aspectos conflitantes que constituem a tradição da Semana Santa, considerando-a uma “tradição” que reúne e separa.

Embora a festa seja associada a um senso de comunhão social e fortalecimento dos laços comunitários, ela também revela uma história de rivalidade entre as principais paróquias, Antônio Dias e do Pilar, que seriam, no passado, dois arraiais que se contrapunham, onde se concentravam, respectivamente, os paulistas e os portugueses. Essa divisão, que tem como zona limítrofe a atual Praça Tiradentes, remonta ao período de formação da antiga Vila Rica e persiste até os dias de hoje. Para evitar conflitos, as paróquias alternavam a responsabilidade pela celebração da Semana Santa, sendo o revezamento realizado nos anos pares sob responsabilidade do Pilar, e nos anos ímpares, a cargo de Antônio Dias (Queiroz, 2019).

Além disso, Pereira (2017a; 2017b) explica que essa dinâmica conflituosa do passado da festa é encenada nas procissões como um aspecto singular do patrimônio cultural e arquitetônico e próprio da identidade local para atrair turistas, destacando-se uma parte específica da cidade, especialmente aquela incluída no perímetro urbano tombado como Patrimônio Histórico. Ao utilizar várias ruas, igrejas e capelas como cenário da via crucis, as encenações transformam o centro histórico em um amplo espaço cênico-ritual, em que os padres e os fiéis deixam o interior das igrejas e conduzem as imagens dos santos pelas ruas, criando um lugar de representação da paixão cristã, ao mesmo tempo que é palco da rivalidade existente entre os moradores das duas principais e mais antigas paróquias. Essa integração entre o espaço sacro e o espaço público “trata-se, portanto, não apenas de planos paralelos sobre um mesmo universo social, mas sim de formas de relação com a cidade e sua história que se influenciam mutuamente” (Pereira, 2017a, p. 15).

Além das intersecções das práticas paroquianas e do modo de vida religioso católico com o patrimônio cultural ouro-pretano, podemos compreender os modos de vida estudantis, os usos do espaço público patrimonializado e suas formas de habitar, que têm ressignificado cotidianamente (e de maneira muitas vezes irreverente) os usos dos antigos sobrados. A vida estudantil da cidade histórica existe desde 1839, com a fundação da Escola de Farmácia, mas a cultura universitária (suas práticas, tradições, rituais etc.) enuncia-se somente a partir da criação de sua primeira instituição de nível superior, a Escola de Minas de Ouro Preto (Emop), em 1876, durante o período de transição do Segundo Reinado brasileiro para o regime republicano. (Malta, 2018).

Conforme os estudos realizados por Machado (2014) e Leite (2018) sobre a vida estudantil universitária, alguns sobrados existentes no perímetro tombado foram abandonados após a crise político-econômica da cidade nos fins do século XIX e foram transformados em repúblicas estudantis que, atualmente, conformam os espaços de sociabilidade, de práticas rituais, festivas e formais dos estudantes (Figura 10). Isto ocorreu após os investimentos públicos com a compra de casas para repúblicas a partir de 1958 pela Escola de Minas.4


Figura 10
Repúblicas estudantis na rua Paraná, Ouro Preto
Fonte: Acervo pessoal de Eder Malta, 2009.

As repúblicas passaram a exercer um importante papel na conservação e na divulgação do patrimônio histórico, tornando-se um espaço histórico e cultural, de modo que a “Cidade Patrimônio” ficou também conhecida como a “Cidade das Repúblicas” pelo público universitário (Machado, 2014). As moradias estudantis são regulamentadas pela Ufop e se tornaram espaços de socialização contínua entre os estudantes, ex-estudantes e professores, embora ocorram fronteiras socioespaciais e culturais e conflitos com os “nativos”, como são chamados os residentes permanentes da cidade desde a fundação das primeiras repúblicas, na medida em que provocaram uma inversão do cotidiano na cidade tradicional e religiosa, sendo retratadas em romances e contos sobre a cidade (Lessa, 1981; Dequech, 1984).

As mais conhecidas são as “repúblicas federais” que funcionam tanto por meio de códigos culturais tradicionais e de um sistema de autogestão das “repúblicas tradicionais”, com normas e estatuto próprio que estabeleceram, ao longo do século XX, os usos e formas de habitar a casa (Leite, 2018). Seus moradores vivenciam uma experiência direta com o patrimônio arquitetônico, pois habitam alguns dos mais antigos casarios edificados no centro histórico e bairros do entorno (Antonio Dias, Lajes, Pilar e Rosário) ou nas áreas de propriedade da Ufop, que detém vasto acervo patrimonial de bens culturais materiais e imateriais.

Elas estão no entremeio das igrejas e dos diversos empreendimentos turísticos da rede hoteleira, restaurantes e museus, e aderem à paisagem histórica da cidade.  Dada sua estrutura, que remonta aos usos do passado, com as dezenas de corredores e quartos, as repúblicas tornaram-se espaços de visitação turística e destacam-se juntamente com o turismo cultural e religioso. O turismo estudantil é um aspecto relevante para as repúblicas, principalmente em períodos festivos como o Carnaval e a tradicional Festa do 12 de outubro que atraem turistas de todo o país, quando elas se tornam espaços de hospedagem para visitantes e ex-moradores.

Após a patrimonialização, quaisquer intervenções nos imóveis tombados passaram a ser fiscalizadas pelo Iphan, de acordo com os artigos 17 e 18 do Decreto-Lei n° 25 de 30 de novembro de 1937. Caso ocorra uma intervenção sem a devida autorização, os proprietários estarão sujeitos a multas, o que se aplica tanto aos estudantes quanto a outros moradores que possuem residências na área tombada (Iphan, 2010). De acordo com Leite (2018), os estudantes realizam intervenções nas casas como melhorias na fiação elétrica, criação de salas de estudo, informática e bibliotecas compartilhadas. Dos usos lúdicos, o autor constatou também diversas inovações no interior dos porões dos sobrados que se transformaram em áreas de socialização como espaços de exposição de artes, de baladas noturnas com boates e equipamento de som instalados, filmes, mesas de jogos e churrasqueiras etc. Apesar de ocorrerem conflitos entre os moradores e o órgão em situações diversas, essas intervenções trazem benefícios para a manutenção do espaço e permitem a autogestão de cada residência.

Há ainda as festividades que conectam o patrimônio cultural à universidade e ao turismo: o Festival de Cinema (CineOP), promovido pelos governos Federal e Estadual, ocorre na Praça Tiradentes e no Centro de Artes e Convenções, um antigo Parque Metalúrgico do séc. XX, localizado no Centro Histórico, e enfoca o cinema como patrimônio, preservação, história e educação; o Festival de Inverno UFOP (Figura 11), que ocorre, desde 1967, durante grande parte do mês de julho, ocupando as ruas, praças e espaços culturais das cidades de Ouro Preto, Mariana e João Monlevade com uma diversificada programação gratuita de shows, espetáculos cênicos, exposições, mostras de filmes, oficinas e seminários.5


Figura 11
Estudantes da UFOP em atividade na Festival de Inverno
Fonte: Acervo pessoal de Eder Malta, 2009.

Outros aspectos ligam a vida urbana ouro-pretana ao patrimônio cultural e aos marcadores históricos da cidade: festividades civis como o Carnaval, do qual se destaca como patrimônio o Clube Carnavalesco Zé Pereira dos Lacaios, fundado em 1867 e retradicionalizado após a substituição das bandas de axé music por grupos de samba e marchinhas de carnaval como forma associar o patrimônio imaterial e o turismo. No carnaval, destacam-se ainda os blocos carnavalescos criados pelas repúblicas estudantis que desfilam pelas ruas tocando marchinhas tradicionais; a Cerimônia do Dia da Inconfidência Mineira (21 de abril), da qual se destaca a figura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes; o Dia de Aleijadinho e do Barroco Mineiro (18 de novembro), instituído desde o ano 2012 pelo governo do Estado6 para homenagear suas obras de arte que ornamentaram praças e ruas da cidade (Pereira, 2017a, Queiroz, 2019).

Considerações finais

Os dois casos aqui explanados revelam um aspecto emblemático das relações conflitantes entre moradores e patrimônio em sítios históricos residenciais, que se anuncia, em muitos casos, a partir da presença dinâmica e controversa de outsiders (Elias, 2000).  

Em Olinda, observa-se que a principal causa das conflitualidades consistiu na própria ocupação do Centro Histórico de Olinda por parte das classes médias urbanas e intelectuais, justamente a camada que trouxe novos usos ao patrimônio e novas dinâmicas urbanas, contribuindo, inclusive, para a reativação da valorização do patrimônio histórico da cidade alta. Ouro Preto, por sua vez, tornou-se um destacado espaço de efervescência cultural, justamente pela presença das repúblicas estudantis, que passaram a exercer um importante papel na conservação e na divulgação do patrimônio.

Outro aspecto confluente derivado dessas novas dinâmicas cotidianas é a intensa programação artístico-cultural que anima a vida urbana nas villes de Ouro Preto e Olinda, com destaque aos festivais e carnaval, pela grande capacidade de intensificar a presença de turistas em áreas históricas consideradas inapropriadas para a aglomeração de pessoas.

Ambos os casos revelam as tensões entre as dinâmicas de reocupação dos territórios urbanos e a mudança de usos e usuários dos centros históricos, fato que consiste em uma das características mais marcante dos próprios processos de revalorização dos patrimônios urbanos. O estudo modelar sobre o Soho, em Nova York, realizado pela socióloga Sharon Zukin (1991), revela como a presença de artistas, escritores e jornalistas na reocupação do antigo bairro novaiorquino foi vital tanto para reativar as dinâmicas sociais cotidianas e a valorização econômica da área.

Por outro lado, a presença desses outsiders também resulta em uma certa “turistificação” dos lugares, acentuando toda sorte de conflitos de interesses entre moradores antigos, novos moradores, visitantes e órgãos de preservação do patrimônio. A relação complexa entre as demandas urbanas e a preservação do patrimônio histórico se manifesta de forma clara em cidades históricas como Olinda e Ouro Preto. O desafio central reside no confronto entre ville e cité, onde a ville representa a necessidade de proteger e preservar o patrimônio histórico construído, enquanto a cité reflete a vida cotidiana dos moradores e os interesses comerciais do turismo. Esse conflito, visível na busca por manter elementos tradicionais em face das transformações turísticas, destaca um desafio central nas políticas de preservação: encontrar o equilíbrio entre a salvaguarda do patrimônio e a manutenção de uma vida pública diversa e muitas vezes conflituosa. As investigações sobre modelos de preservação bem-sucedidos dos centros históricos requerem uma abordagem que valorize tanto os processos de ocupação, seus usos e intervenções, quanto o perfil das comunidades que habitam nestes lugares.

Nem sempre é pacífica a relação entre as demandas da ville e as da cité. No caso de cidades históricas, com presença ativa de moradores e forte apelo turístico, persistem tensões recorrentes entre os interesses preservacionistas residenciais e o apelo comercial dos interesses turísticos. Nas villes históricas de Olinda e Ouro Preto, as cités se dividiram: parte dos atores e suas sociabilidades defendia a restrição dos usos (através da restrição de repúblicas, bares, pousadas e festas, sobretudo o Carnaval); e outra parte defendia a abertura da cidade para o mundo da vida. Em síntese, esse talvez seja um dos mais importantes desafios e dilemas para as políticas de preservação de centros históricos residências: garantir a preservação do patrimônio ao tempo em que assegure as possiblidades de usos relativamente regulares e normais de uma diversa e, por vezes, conflitante vida pública cotidiana.

Material suplementario
Referências
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Notas
Notas
1 Outras importantes cidades históricas poderiam compor estudo semelhante, a exemplo de Goiás Velha, GO; e Salvador, BA; ou Congonhas. MG; e Laranjeiras, SE.
2 Projeto “Habitar: Centros históricos brasileiros em perspectiva comparada” (Projeto 409416/2022-3 da Chamada CNPq/MCTI/FNDCT Nº 40/2022 - PRÓ-HUMANIDADES - Linha 3A – Políticas públicas para o desenvolvimento humano e social).
3 Sob o Decreto-Lei n° 778, de 21/08/1969, as centenárias Escola de Farmácia (1839) e Escola de Minas (1876) deram origem à Universidade Federal de Ouro Preto.
4 Entre as décadas de 1960 e 1970, período anterior à revalorização dos antigos sítios brasileiros, protestos e manifestações estudantis resultaram na compra sistemática de casas que se tornaram repúblicas e foram tombadas como patrimônio da Universidade, pois os preços dos imóveis no centro histórico eram considerados razoáveis e havia forte demanda por moradia. Nos anos seguintes, houve a construção de alojamentos estudantis no Morro do Cruzeiro, onde se localiza atualmente o campus da UFOP.
5 Para mais informações conf. “Abertura do Festival de Inverno de Ouro Preto, Mariana e João Monlevade 2022 é marcada por Encontros”, disponível em: https://ufop.br/noticias/festival-de-inverno/abertura-do-festival-de-inverno-de-ouro-preto-mariana-e-joao-monlevade. Consultado em jun 2023.
6 Lei Estadual 20.470, de 2012, com o objetivo de valorizar o patrimônio histórico relativo à obra de Antônio Francisco Lisboa. A celebração é marcada pelo aniversário de seu falecimento em 18 de novembro de 1814.
Notas de autor

rproleite@gmail.comecmsouza@gmail.com


Figura 1
Localização da cidade de Olinda, Pernambuco, Brasil.
Fonte: Leite, 2018.

Figura 2
Localização do Centro Histórico de Olinda, PE, Brasil
Fonte: Leite, 2018.

Figura 3
Localização da cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil
Fonte: Leite, 2018.

Figura 4
Localização do Centro Histórico de |Ouro Preto, MG, Brasil
Fonte:  Leite, 2018.

Figura 5
Vista de Olinda, do Alto da Sé
Fonte: Brasil de Fato (https://cdn.brasildefato.com.br/media/4f7e69f45869951ea725a776f0d5b582.jpg)

Figura 6
Mercado da Ribeira, Olinda
Fonte: Foto de Alcir Lacerda. Mercado da Ribeira em 1970. (https://olinda.pe.gov.br/wp-content/uploads/2013/03/1362_h.jpg)

Figura 7
Carnaval nas ruas históricas de Olinda
Fonte: Foto de Ed Machado. Folha de Pernambuco. (https://cdn.folhape.com.br/img/pc/1100/1/dn_arquivo/2020/02/edw-5511.jpg)

Figura 8
Vista panorâmica de Ouro Preto e o Pico do Itacolomi ao fundo
Fonte: Acervo de Priscila Musa (https://www,flickr.com/photos/whltravel/3707571023),

Figura 9
Procissão do Encontro na Praça Tiradentes durante a Semana Santa
Fonte: Tino Ansaloni. (https://jornalvozativa.com/semana-santa-2022/veja-programacao-completa-semana-santa-2022-ouro-preto-mg/)

Figura 10
Repúblicas estudantis na rua Paraná, Ouro Preto
Fonte: Acervo pessoal de Eder Malta, 2009.

Figura 11
Estudantes da UFOP em atividade na Festival de Inverno
Fonte: Acervo pessoal de Eder Malta, 2009.
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