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Sociologia e estatística de Auguste Comte a Pierre Bourdieu: uma tradição francesa?
Julien Duval
Julien Duval
Sociologia e estatística de Auguste Comte a Pierre Bourdieu: uma tradição francesa?
Sociology and statistics from Auguste Comte to Pierre Bourdieu: a French tradition?
Sociología y estadística de Auguste Comte a Pierre Bourdieu: ¿una tradición francesa?
Sociologie et statistique d’Auguste Comte à Pierre Bourdieu : une tradition française ?
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 12, e-rbs.1001, 2024
Sociedade Brasileira de Sociologia
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RESUMO: Este texto defende que existe, no interior da sociologia francesa, uma tradição pouco conhecida e raramente evidenciada do uso das estatísticas. Sua originalidade reside no esforço para escapar da alternativa habitual da defesa incondicional ou da crítica sistemática das estatísticas. Esta tradição considera que as estatísticas são uma ferramenta potencialmente preciosa, potente e, às vezes, incontornável, mas desde que o uso seja acompanhado de uma reflexão sobre seus limites e seu alcance. Nesse sentido, convida a um uso reflexivo das estatísticas em sociologia, o que significa a integração entre a reflexão sociológica sobre os limites desta ferramenta, e sobre o que significa e implica recorrer a ela em sociologia. Embora não seja majoritária no interior da sociologia francesa, esta tradição tende a reunir figuras eminentes. O artigo se debruça sobre Augusto Comte, os sociólogos durkheimianos (particularmente Francois Simiand e Maurice Halbwachs) e Pierre Bourdieu, e se esforça em fazer aparecer, apesar das diferenças que separam estes sociólogos (especialmente pelo fato de terem trabalhado em épocas diferentes), uma continuidade em sua reflexão sobre as estatísticas.

Palavras-chave: Estatísticas, Augusto Comte, Emile Durkheim, Pierre Bourdieu, reflexividade.

ABSTRACT: This article argues that, within French sociology, there exists a little known and rarely demonstrated tradition in the use of statistics. This tradition is original in as much as it attempts to escape from the usual alternative of unconditional defense of statistics or its systematic criticism. This French tradition considers statistics to be a potentially valuable, powerful and sometimes irreplaceable tool, provided that their use is accompanied by a reflection on their limits and scope. In this sense, this tradition advocates a reflexiveuse of statistics in sociology, i.e., a use that integrates sociologicalreflection on statistics, on their limits, and on what it means and implies to use them in sociology. This approach is not shared by all French sociologists, though it tends to bring together some of their leading figures. The article focuses on Auguste Comte, Durkheimian sociologists (mainly François Simiand and Maurice Halbwachs) and Pierre Bourdieu. Despite their differences, due particularly to the fact that they worked at different times, one can identify a continuity in their thinking on statistics.

Keywords: Statistics, Auguste Comte, Emile Durkheim, Pierre Bourdieu, reflexivity.

RESUMEN: Este texto defiende la idea de que existe en la sociología francesa una tradición poco conocida y raramente destacada en cuanto al uso de la estadística. Su originalidad reside en que intenta evitar la alternativa habitual de la defensa incondicional de la estadística o de su crítica sistemática. Esta tradición francesa considera que la estadística es una herramienta potencialmente valiosa, poderosa y a veces insustituible, pero a condición de que el uso que hagamos de ella vaya acompañado de una reflexión sobre su objeto. En este sentido, aboga por un uso reflexivo de la estadística en sociología, es decir, un uso que incorpore una reflexión sociológica sobre la estadística, sobre los límites de esta herramienta y sobre lo que significa e implica utilizarla en sociología. No se trata de una tendencia general, ni siquiera probablemente mayoritaria, en la sociología francesa, pero tiende a reunir a algunas figuras eminentes en este campo. Este artículo se centra en Auguste Comte, los sociólogos durkheimianos (en particular François Simiand y Maurice Halbwachs) y Pierre Bourdieu, e intenta mostrar que, a pesar de las diferencias entre estos tres sociólogos (en particular el hecho de que trabajaron en épocas diferentes), existe una continuidad en su pensamiento sobre la estadística.

Palabras clave: Estadísticas, Auguste Comte, Emile Durkheim, Pierre Bourdieu, reflexividad.

RÉSUMÉ: Ce texte défend l’idée qu’il existe, au sein de la sociologie française, une tradition, méconnue et rarement mise en évidence, en matière d’usage des statistiques. Son originalité réside dans le fait qu’elle entreprend d’échapper à l’alternative habituelle de la défense inconditionnelle des statistiques et de sa critique systématique. Cette tradition française considère que les statistiques sont un outil potentiellement précieux, puissant et parfois irremplaçable, mais à la condition que l’usage qu’on en fait s’accompagne d’une réflexion à leur sujet. En ce sens, elle plaide pour un usage réflexifdes statistiques en sociologie, c’est-à-dire un usage qui intègre une réflexion sociologiquesur les statistiques, sur les limites de cet outil, sur ce que signifie et implique le fait d’y recourir en sociologie. Elle n’est pas générale, ni même sans doute majoritaire, au sein de la sociologie française mais elle tend à réunir d’éminentes figures de celle-ci. Cet article s’arrête sur Auguste Comte, les sociologues durkheimiens (particulièrement François Simiand et Maurice Halbwachs) et Pierre Bourdieu et s’emploie à faire apparaître, malgré les différences qui séparent ces trois sociologues (notamment du fait qu’ils ont travaillé à des époques différentes), une continuité dans leur réflexion sur les statistiques.

Mots-clés: Statistiques, Auguste Comte, Emile Durkheim, Pierre Bourdieu, réflexivité.

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Sociologia e estatística de Auguste Comte a Pierre Bourdieu: uma tradição francesa?

Sociology and statistics from Auguste Comte to Pierre Bourdieu: a French tradition?

Sociología y estadística de Auguste Comte a Pierre Bourdieu: ¿una tradición francesa?

Sociologie et statistique d’Auguste Comte à Pierre Bourdieu : une tradition française ?

Julien Duval
Centre national de la recherche scientifique, France
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 12, e-rbs.1001, 2024
Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepción: 05 Marzo 2024

Aprobación: 03 Abril 2024

Amplamente difundida no mundo, a obra de Pierre Bourdieu se caracteriza por um uso das estatísticas que causa espanto fora de seu país de origem (e algumas vezes também em seu interior), pois ela não coincide com os usos habituais, feitos em escala internacional, pela sociologia “estatística” ou “quantitativa”. Além de utilizar uma técnica estatística de origem francesa e pouco conhecida, Bourdieu atribui, por exemplo, uma atenção pouco comum às operações de codificação e de categorização, integra às análises estatísticas resultados advindos de pesquisas etnográficas etc. Sem dúvidas, uma chave de compreensão para este uso original se situa na inscrição de Bourdieu em uma tradição bastante especifica da sociologia francesa e, em certo sentido, muito anterior a ele. Este texto se propõe a colocar em evidência essa “tradição” original, mas bastante desconhecida, ou raramente percebida como tal, mesmo na França.1 Essa tradição pretende escapar à alternativa habitual de defesa incondicional das estatísticas, ou de sua crítica sistemática – que afirma, por exemplo, que à estatística faltaria estatuto teórico, que ela seria um instrumento grosseiro, ou ainda intrinsicamente conservador. Essa oposição divide a sociologia entre partidários de uma sociologia teórica e partidários de uma sociologia empírica e, entre os últimos, entre partidários de uma sociologia exclusivamente quantitativa e partidários de uma sociologia que faz uso de entrevistas, métodos etnográficos ou análise documental. Ela aborda as estatísticas como uma ferramenta potencialmente preciosa, potente e, às vezes, insubstituível, mas sob a condição de que seu uso seja acompanhado de uma reflexão sobre suas possibilidades e limites. Um modo de exprimir a unidade dessa tradição consiste em retomar a noção de reflexividade: essa tradição defende o uso reflexivo das estatísticas em sociologia, quer dizer, um uso que integre uma reflexão sociológica sobre as estatísticas, sobre os limites desta ferramenta, sobre o que significa e o que implica recorrer às estatísticas em sociologia. Formulado deste modo, este apelo à reflexividade pode parecer abstrato, até mesmo gratuito. Para tentar torná-lo mais concreto, as páginas que seguem evocam as circunstâncias nas quais eles foram escritos e os debates em que eles se inscrevem, podemos melhor compreender por que seus autores assumiram as posições que assumiram. Este trabalho de contextualização conduz à imersão no contexto francês e, ao mesmo tempo, a questionar se essa tradição é expressão somente das especificidades francesas ou se ela expressa embates mais amplos.

Matemática social e sociologia

Para compreender esta tradição, é útil voltar no tempo e evocar a difusão, na língua francesa, da palavra “estatística”. A palavra se impõe ao final do século XVIII. O que ela designa, no entanto, aparece mais recentemente. De um lado, o desenvolvimento do capitalismo, e principalmente dos mecanismos de seguridade, levou os matemáticos a se interrogar sobre a probabilidade de certos eventos, especialmente dos “riscos” cobertos pelos sistemas de seguridade. De outro lado, a construção do Estado (as palavras “Estado” e “estatística” têm a mesma origem) é acompanhada por um esforço para reunir informações numéricas sobre o país, em particular sua população e sua riqueza que condicionam a reserva militar e os impostos que o poder real pode cobrar. Em francês, a palavra “estatística” é um tanto vaga. Às vezes, ela designa números que, pouco a pouco, são produzidos em domínios muito variados (economia, demografia, medicina, …), outras vezes, o ramo da matemática que produz ferramentas para explorar esses dados. Em francês, a palavra é frequentemente empregada no singular quando se refere ao primeiro sentido (“a estatística”), no plural quando se refere ao segundo (“as estatísticas”), mas isso não é uma regra absoluta.

O fim do século XVIII é um momento importante na história da estatística, assim como na história das relações entre estatísticas e ciências sociais. Isso ocorre pois dois fenômenos relativamente independentes estão se acelerando.2 De um lado, os matemáticos, notadamente Pierre-Simon de Laplace, aprofundam a teoria das probabilidades, o que possibilitou o desenvolvimento de ferramentas úteis em domínios do saber confrontados por fenômenos de incerteza. Por outro lado, a monarquia, fragilizada às vésperas da Revolução Francesa, foi brevemente tentada por uma forma de reformismo que se apoiava no conhecimento preciso e quantificado do país. Condorcet situa-se na intersecção desses dois movimentos: ganhou fama como matemático e, nas vésperas da Revolução, trabalhou para um dos ministros mais “reformadores” da monarquia. Gradualmente, Condorcet desenvolveu uma “matemática social” que exploraria o crescente volume de informações econômicas e sociais produzidas a partir de novos instrumentos matemáticos, em especial aqueles de Laplace.

Como uma das primeiras tentativas de estabelecer uma “ciência social”, esta “matemática social” suscitou, em uma figura importante na história da sociologia na França, Auguste Comte, uma reação muito interessante3, pois ela pode parecer fundadora de uma tradição sociológica à qual este artigo se dedica a elucidar. Comte possuía um elevado nível de formação em matemática, mas era muito crítico aos matemáticos de seu tempo e, sobretudo, ao que lhe aparecia como prolongamentos da obra de Laplace. Ele exprime fortes reservas à “matemática pura” e às aplicações das matemáticas em diferentes ciências. Ao longo de sua obra, ele qualifica a aplicação do cálculo das probabilidades aos domínios econômicos e sociais de “pueril e deslocada”, “vã”, “sofística”, “aberrante”...4 Ele nunca redigiu uma crítica sistemática, mas suas objeções direcionam-se, entre outras coisas, ao fato de que aquilo que os matemáticos denominam “probabilidade” engloba apenas uma parte irredutível da subjetividade. Ele considera também que as aplicações da teoria das probabilidades conduzem a resultados pobres ou “triviais”. A discrepância entre a sofisticação dos instrumentos utilizados e os resultados sociológicos, por vezes muito limitados, seria, em períodos posteriores, um argumento regularmente utilizado pelos opositores ou críticos da “sociologia quantitativa”.

As reservas de Comte são bastante compreensíveis no contexto de sua “epistemologia diferencial”.5 Comte estabelece uma hierarquia das ciências. Das matemáticas à sociologia, passando pela astronomia, a física, a química e a biologia, vai das ciências mais antigas às mais recentes, das que atingiram cedo o “estado positivo” às que ainda não o fizeram, das ciências que têm objetos relativamente simples àquelas cujos objetos são mais complexos. Para Comte, a ausência de continuidade entre o orgânico e o inorgânico, entre a natureza morta e a natureza viva, entre o reino vegetal e o reino humano, exclui a possibilidade de uma epistemologia única. Uma nova ciência, como a sociologia, não pode se basear apenas sobre os empréstimos às ciências que a precederam, as quais, estando mais estabelecidas, são tentadas a exercer sobre ela uma forma de tutela ou domínio. Embora Comte reconheça e louve um dos fundadores do cálculo de probabilidades (Jacques Bernouilli) por ter “projetado este primeiro modo geral de tornar positivas as principais teorias sociais” 6, não pode aprovar um projeto que, como aquele de uma “matemática social”, reduz a sociologia ao estatuto de aplicação ou de braço de uma ciência anterior. É, como se sabe, para afirmar a necessária autonomia da nova disciplina que Comte passa a chamá-la de “sociologia”, e não mais de “física social” como ele fazia até então, e como Adolphe Quetelet, astrônomo belga marcado por sua disciplina de origem, começou a fazer nos anos 1830.

Aos olhos de Comte, ele realiza uma espécie de extensão dos trabalhos de Laplace aos fatos sociais. Sua “física social” é, no entanto, um pouco diferente da “matemática social” de Condorcet. Ela não é apenas o produto do desenvolvimento da teoria das probabilidades, mas também de um período anterior: no século XIX, a acumulação de dados estatísticos avançou ainda mais, e revelou regularidades dificilmente perceptíveis a “olho nu” e que eram, até então, colocadas sob suspeita. À medida que os dados estatísticos se tornam mais abundantes, uma das regularidades de que os cientistas vão se apercebendo é a constância, em uma formação social determinada, do número anual de suicídios. A forma da distribuição de um atributo como a altura, em uma grande população, é outra: os indivíduos tendem a se repartir de forma regular – e simétrica – em torno de uma altura média, sendo a proporção de pessoas de uma altura determinada tanto menor quanto mais distante esta esteja da altura média. Trata-se daquilo que, a partir do século XX, será chamado de “distribuição normal”. No tempo de Quetelet, falava-se em “curva de erros”. A expressão denota o empréstimo às ciências da natureza: a altura em uma população se distribui como os erros de medição quando o astrônomo ou o físico multiplica as medições, todas imperfeitas, de uma mesma grandeza (o peso de um corpo). Partindo da hipótese de que o conjunto dos atributos humanos (físicos – altura ou peso –, mas também morais – propensão ao suicídio, ao casamento ...) se distribui em torno de um valor médio, Quetelet avança na ficção heurística de um “homem médio” que, em uma dada sociedade, teria os atributos “médios” da população. Os indivíduos reais seriam a realização imperfeita deste “homem médio”. É compreensível que Comte se distancie da “física social” deste astrônomo de formação: ele realiza uma transposição de uma teoria física (a dos erros de medição), e da mecânica celeste de Laplace7 para as ciências morais.

Em pontos importantes, Durkheim se inscreve na continuidade de Comte. Também para ele, o uso da palavra “sociologia” é deliberado (mesmo se, tendo mudado o contexto, seja com relação às “ciências morais e políticas”, muito conservadoras, que ela ganha significado) (Chamboredon, 2017/1984, p. 22), e a ambição de fundar uma disciplina com objeto e lógica próprios é, evidentemente, central. Mas Durkheim dá espaço importante às regularidades estatísticas. As primeiras páginas de seu livro sobre o suicídio se apoiam em uma constatação muito próxima à de Quetelet. Baseando-se num quadro que compatibiliza, ano a ano, o número de suicídios registrados em seis países da Europa entre 1841 e 1872 (Durkheim, 1995, p. 9), evidencia que este número permanece “constante durante longos períodos de tempo”, assim como as diferenças entre os países. A partir disso, contudo, Durkheim não tira conclusões, como Quetelet, sobre a inclinação do “homem médio” ao suicídio. Identifica a manifestação propriamente social do suicídio: se o número de suicídios tem baixa variação de um ano para outro, é porque ele tem uma dimensão supraindividual; isso significa que, para além das “condições que podem incidir na gênese dos suicídios particulares”, uma necessidade social está em curso. A taxa de suicídio de um grupo é a expressão de uma “corrente suicidógena” comparável à gravitação ou à corrente elétrica: não pode ser observada a olho nu, mas a estatística registra seus efeitos.

A constância da taxa de suicídios atesta que o suicídio corresponde à definição do “fato social” presente em As Regras do Método Sociológico: ele se apresenta como uma “realidade sui generis” irredutível às suas manifestações individuais. No livro, a partir do método das “variações concomitantes”, também apresentado em As Regras do Método Sociológico, o estudo sociológico do suicídio assenta-se sobre as variações, conforme os grupos sociais, das taxas de suicídio. De modo geral, sabemos que O Suicídio é uma aplicação e uma ilustração das “regras do método sociológico” formuladas três anos antes, e poderíamos nos ater a elementos bem conhecidos: o “método sociológico” de Durkheim considera a estatística como um instrumento privilegiado, e mesmo único, para apreender e estudar os “fatos sociais”. Ela é um substituto da experimentação praticada nas ciências da natureza. Remi Lenoir nota que em seu primeiro artigo científico, “Suicide e natalité. Étude de statistique morale”, Durkheim deposita muitas esperanças em dados numéricos de característica demográfica para “apreender com segurança os fenômenos da vida doméstica, mesmo que não tenham assumido uma forma jurídica” (Lenoir, 2004, p. 200).

No século XX, a “sociologia quantitativa” de origem anglófona reivindicou, algumas vezes, a obra de Durkheim. Inversamente, os adversários desta sociologia estatística alçaram Durkheim como símbolo de uma sociologia objetivista incapaz de se desvencilhar de modelos (e de procedimentos como a matematização) emprestados das ciências naturais. No entanto, o lugar das estatísticas na sociologia durkheimiana é mais sutil. A sociologia da religião desenvolvida por Durkheim, que conduziu em 1913 para As Formas Elementares da Vida Religiosa, é praticamente livre de dados numéricos, dissuadindo de vê-lo como precursor desses que definem a vitalidade da sociologia como sinônimo de prática estatística. Certamente, Durkheim não defendia uma “matemática social”: em seu livro sobre o sistema educativo francês, ele se mostra muito crítico àqueles que consideram que “uma ciência não pode verdadeiramente ser chamada de ciência a não ser que faça parte da natureza das matemáticas”. Ao contrário, Durkheim sustenta que “os conceitos [matemáticos] são simples, pobres em caracteres e em elementos” e que, além disso, “nós os construímos”; eles são incapazes de exprimir as “coisas que só conhecemos pela experiência, coisas do mundo sensível ou do mundo moral” (Durkheim, 2014, p. 168).

Poder e limites da estatística

Além dos grandes livros de Durkheim, a sociologia durkheimiana produziu uma reflexão elaborada e original sobre as estatísticas. De autoria de “sociólogos durkheimianos”, para utilizar a fórmula comumente empregada para designar a geração subsequente a Durkheim e que fizeram parte de sua formação com ele, notadamente no L’Année Sociologique. O longo artigo redigido por Paul Fauconnet e Marcel Maus8 em 1901, para uma enciclopédia, é um dos primeiros textos a abordar a questão das estatísticas – sabe-se que contaram com a contribuição de Durkheim, mesmo que ele não tenha co-assinado artigo (Fournier, 2007, p. 469-472) –, e uma espécie de síntese dos grandes princípios da sociologia durkheimiana, em termos de objeto e de método. No que diz respeito às estatísticas, Fauconnet e Mauss reiteram que elas são um poderoso instrumento de objetivação na sociologia, mas insistem, mais do que fizera Durkheim em As Regras do Método Sociológico, nas precauções que seu uso exige. Eles explicam que, ao produzir dados em uma pesquisa, é necessário explicar “como chegamos aos dados que estamos utilizando”, e que, se forem utilizadas fontes existentes, é tão necessário um exame crítico prévio como no caso de um documento histórico (Mauss, 1971, p. 33). Fauconnet e Mauss afirmam peremptoriamente que “[...] em sociologia [mais do que] em qualquer outra ciência, não existem fatos brutos que poderíamos, por assim dizer, fotografar”.

Mas são François Simiand (1873-1935) e Maurice Halbwachs (1877-1945) que, vinte anos mais tarde, iniciam uma discussão aprofundada sobre as estatísticas. Estes dois autores são pouco conhecidos, mesmo na França (onde se produziu uma “redescoberta” de Halbwachs, especialmente a partir de 1990), embora sejam, junto com Mauss, os mais produtivos dos sociólogos durkheimianos que sobreviveram à primeira guerra mundial (Heilbron, 1985). Continuaram o trabalho de Durkheim para a fundação e o reconhecimento da sociologia, combatendo as objeções à possibilidade de uma ciência dos fenômenos sociais e reivindicando uma sociologia metódica que se abstivesse, explicitamente, de raciocínios falaciosos. Simiand estabeleceu-se muito cedo no grupo do L’Année Sociologique como especialista em economia. É um forte crítico – mas também um grande conhecedor – da ciência econômica de seu tempo, que se torna cada vez mais matematizada. Sua grande pesquisa sobre os salários (Simiand, 1932) é essencialmente estatística. O mesmo é válido para os trabalhos de Maurice Halbwachs9 que se debruçam sobre a classe trabalhadora, ou o estudo sobre o suicídio, que ele publica trinta anos após aquele de Durkheim. Praticantes da estatística, acompanham o avanço dos trabalhos na área e os resenham no L’Année Sociologique ou em outras revistas. Eles escrevem também reflexões gerais sobre as estatísticas em ciências sociais. No entreguerras, eles frequentam sociedades científicas de estatística e atuam ativamente para desenvolver e promover a estatística pública na França em questões econômicas e sociais. Como salienta Olivier Martin (1999, p. 70), as visões sobre estatística de ambos são fortemente convergentes, e mesmo Halbwachs, que se apresenta como um divulgador de Simiand, tem contribuições originais.

Simiand e Halbwachs permanecem fiéis às grandes convicções de Durkheim: os instrumentos estatísticos podem ser muito poderosos, e por vezes “insubstituíveis”, em uma “sociologia positiva”; a estatística revela aspectos dos fenômenos sociais que são invisíveis, inacessíveis por outras vias, e que remetem à sua dimensão propriamente social; ela é o “único meio de reconhecer as regularidades sociais”. Simiand (1922, p. 10) reexamina, também, de forma aprofundada, a ideia de que a estatística seria o equivalente da experimentação em ciências sociais. Como a experimentação em ciências da natureza, ela permite “substituir um sistema complexo por um sistema simples”. Entretanto, ela exige uma “metodologia especial” (p. 19), pois o sociólogo que recorre a comparação estatística não dispõe da salvaguarda da “verificação material”, tal como um físico ou um biólogo que fez uma experiência em laboratório: “se o físico eliminou fatores essenciais, o fenômeno não se reproduzirá mais. Aqui, os números podem ser sempre combinados com números” (Halbwachs, 1972, p. 338-339). 

Embora prolongassem as intuições e teses de Durkheim, Simiand e Halbwachs consideraram que, às vezes, a utilização da estatística em O Suicídio não era suficientemente prudente. Convém salientar que ambos não eram simples “discípulos” (Halbwachs, especialmente, integra um grupo durkheimiano com aproximações à tradição marxista, à psicologia e a Bergson). No que diz respeito às estatísticas, o contexto de 1920 e 1930 difere fortemente daquele em que O Suicídio havia sido escrito. A produção de dados havia melhorado – para estudar o suicídio, Halbwachs dispunha de séries mais longas e de melhor qualidade do que as utilizadas por Durkheim trinta anos antes. No contexto de difusão acelerada de estatísticas, era preciso responder ao ceticismo que também se propagava e se exprimia, por exemplo, no argumento de que “a estatística prova tudo ou nada”, declaração que Simiand examina em 1922 em Statistique et experience (Estatística e Experiência). Outras mudanças importantes, no período, relacionam-se ao fato de os instrumentos estatísticos serem muito mais numerosos e normalizados, e de as sociedades cientificas e as formações de estatística ganharem uma importância que não tinham no final do século XIX.10 A Grã-Bretanha, que dá início a uma tradição estatística diferente da francesa, também passa a afirmar sua hegemonia.11 Assim, enquanto Durkheim podia se contentar em afirmar o poder das estatísticas de modo geral, Simiand e Halbwachs precisaram se situar ante os usos então mais diversificados e, em alguns casos, mais sofisticados da estatística. Sua reflexão, portanto, se inscreve em um espaço particularmente marcado, como salienta Remi Lenoir (1997, p. 49), pela potência crescente de uma “demografia pura” e de uma “economia matemática” rodeadas de prestígio. Seus textos contêm referências explícitas a trabalhos de demógrafos (Kuczynski e Lotka) e de economistas (Gibrat, Fischer, Jevons), ou a revistas especializadas na estatística ou em suas aplicações (Metron e Econometrica) no entreguerras.

Por essas diferentes razões, as reflexões de Simiand e Halbwachs não são apenas um simples desenvolvimento das análises de Durkheim. Halbwachs, por exemplo, mantém-se ligado, assim como Durkheim, ao indicador de média para apreender a regularidade dos fenômenos sociais, mas recorre também, por exemplo, aos indicadores de dispersão. Toma uma posição clara frente a Quetelet, cuja obra abordou em uma dissertação universitária de 1913: reconhece seu papel no desenvolvimento que abriu as possibilidades à sociologia de Durkheim, mas o critica por confundir dois tipos diferentes de média (a medida média do tamanho de um objeto – que poderia ser idealmente verificada por um instrumento de medida perfeito – e o tamanho médio em uma população – que não pode se realizar em nenhum indivíduo), e, no plano mais geral, de transpor análises emprestadas da física ou da astronomia muito apressadamente aos fatos sociais (Halbwachs, 1913). Simiand, por seu turno, desenvolveu uma prática da estatística que, pela atenção que dedicava ao processo de “produção do fenômeno”12 e à observação da variação no tempo dos indicadores estatísticos, já não era inteiramente a de Durkheim. De maneira geral, defendeu e praticou um exercício ascético da estatística que se tornara, segundo suas palavras, “ingrato, mas necessário” e que passa por múltiplos “ensaios, provas, contraprovas, controles cruzados” (Simiand, 1922, p. 35).

No contexto em que os usos das estatísticas se diversificam em formas hierarquizadas, Halbwachs e Simiand defendem a estatística, mas não de uma maneira geral, e sim apenas para os usos que lhes parecem justificados. São frequentemente levados, se não a subverter a hierarquia dos estatísticos que tendem a colocar no topo as técnicas mais sofisticadas e mais recentes, a enfatizar que os instrumentos estatísticos mais elaborados só podem produzir resultados fracos quando aplicados a dados mal construídos. Portanto, embora a categorização das populações estudadas seja considerada pelos estatísticos como uma tarefa técnica, ela é, para eles, uma etapa fundamental dos embates sociológicos.

Distinguir categorias da população é construir grupos. A noção de grupo é uma categoria muito importante na sociologia de Durkheim, que sempre esteve atento ao fato de que o grupo social pode constituir uma realidade superior aos indivíduos, dotado de consistência e de uma “consciência coletiva”. Para Simiand e Halbwachs, as categorias estatísticas não poderiam ser construídas a não ser por referência aos grupos sociais realmente constituídos. Ao dividir, por exemplo, faixas etárias com base em um critério aritmético, os demógrafos arriscam produzir resultados, qualquer que seja a sofisticação das técnicas utilizadas, que representem “coleções empíricas” arbitrárias, agrupamentos de indivíduos desprovidos de “interesses e [de] preocupações realmente comuns” (Halbwachs, 1972, p. 334), e podem mesmo não ter consciência do critério – ou da forma – com que o estatístico os aproxima. “Nem toda contagem é uma estatística” (Simiand, 1922, p. 14), advertiam Simiand e Halbwachs. Só pode haver boas estatísticas por referência a “divisões sociais reais” ou a “conjuntos reais e consistentes”. A divisão em categorias deve seguir, segundo uma fórmula que Simiand toma de empréstimo a um filósofo que ele não nomeia13, “as articulações da realidade” (p. 29). Com efeito, os dois sociólogos reconhecem que sua análise conduz a um “círculo vicioso” (p. 34): o conhecimento prévio dos grupos sociais é necessário para realizar estatísticas destinadas a aumentar o conhecimento desses grupos (“Como podemos construir grupos se ainda não os estudamos”, resume Maurice Halbwachs, 1972, p. 332). Para eles, este paradoxo é inerente ao trabalho estatístico e não se poderia escapar dele.

A categoria construída de forma arbitrária é apenas uma das “abstrações estatísticas” sobre as quais Simiand e Halbwachs chamam a atenção. Outras residem no raciocínio que preside operações estatísticas tal como a “taxa de mortalidade retificada”, assinalada por Halbwachs.14 Os demógrafos observam que a comparação entre taxas de mortalidade (ou seja, o número de mortes expresso em proporção da população) em dois países não responde à questão sobre a expectativa de vida. Ao contrário, é provável que a taxa de mortalidade seja mais elevada na medida em que o país tenha uma população mais velha. A divisão por faixa etária, portanto, é um “elemento perturbador” nos dois países. Um modo de neutralizá-lo é calcular a taxa de mortalidade “retificada”, ou seja, as taxas que observaríamos se os dois países tivessem a mesma pirâmide etária. Mas um raciocínio deste tipo é infinito, já que os “elementos perturbadores” suscetíveis de falsear a comparação são muito numerosos. Ao mesmo tempo que Halbwachs chama a atenção para a engenhosidade do argumento, denota também seu caráter paradoxal: conduz à neutralização da diferença entre os dois países, o que, em uma abordagem comparativa, é central. Desemboca, portanto, em “problemas muito paradoxais” e que não têm necessidade a não ser no raciocínio dos demógrafos. Halbwachs o ilustra por uma brincadeira de Simiand: “Quanto tempo viveriam os alemães se, permanecendo alemães, eles vivessem nas mesmas condições dos franceses? [...] como viveria um camelo se, permanecendo camelo, fosse transportado para as regiões polares, e como viveria uma rena se, permanecendo rena, fosse transportada para o Saara?”. Este tipo de raciocínio ceteris paribus é um exemplo da situação, evocada por Simiand, em que o estatístico mimetiza a experimentação “real” das ciências da natureza, mas sem dispor das salvaguardas do físico ou do biólogo. Os mesmos argumentos tornam Halbwachs cético sobre a abordagem que consiste em isolar, na análise de um fato social, o efeito próprio de uma variável. Para Simiand e Halbwachs, a estatística corre o risco de criar, pela lógica própria de seus instrumentos, problemas que não se colocam sociologicamente.

Quase todas as principais críticas de Simiand e Halbwachs resumem-se ao princípio segundo o qual “as matemáticas [devem] reger-se pelo progresso das ciências positivas”, ao passo que “muito frequentemente, é o inverso que ocorre” (Halbwachs, 2002/1930, p. 347). Aos seus olhos, a estatística deve ser concebida como um “instrumento”, uma técnica a serviço de uma “ciência positiva” que deve impor seus próprios problemas e não se deixar conduzir por fatores externos, tais como a lógica própria aos instrumentos estatísticos. Ela deve reafirmar a especificidade de seu objeto, garantir que a estatística seja submetida às “articulações naturais das sociedades” (Halbwachs, 1972, p. 346). De certa forma, assim como Comte, os durkheimianos afirmam a autonomia da sociologia ante a matemática e a estatística. Também acompanhando Comte, eles invocam a particular complexidade do objeto da sociologia – é isso que, para Halbwachs, torna ilusória a esperança de encontrar “explicações [...] matemáticas” (1972, p. 348). Ainda na linha de Comte, eles constatam que diversos trabalhos estatísticos chegam a resultados sociologicamente pobres. Isso não remete, contudo, aos defeitos intrínsecos aos instrumentos matemáticos: ao contrário, sua reflexão distingue, incessantemente, as ferramentas estatísticas e seus usos e, entre eles, as utilizações rigorosas daquelas que infringem as “condições de prova mais elementares da experimentação geral” (Simiand, 1922, p. 21-22).

Simiand e Halbwachs propuseram uma argumentação original, mas aquela de Halbwachs parece ter caído no ostracismo.15 A mesma conclusão se aplicaria a Simiand: Statistique et expérience parece, conforme catálogo da Bibliothèque nationale da França, nunca ter sido reeditado após sua primeira publicação e, de modo geral, sua posteridade tem sido mais presente em história econômica do que em sociologia ou economia. O desaparecimento dos dois se inscreve no declínio geral da sociologia durkheimiana no pós-Segunda-Guerra, na França. Outros fatores influenciaram. Olivier Martin detecta uma ambivalência, até mesmo uma contradição, em Halbwachs, que, em suas declarações de princípios, havia se mostrado muito inclinado à estatística, mas, na prática, muito crítico diante das abordagens quantitativas. Ele considera que essa ambivalência pode explicar não apenas a fraca posteridade de Halbwachs, mas também, ainda em vida, sua posição marginal entre os estatísticos de seu tempo (Martin, 1999, p. 95-98). Tratava-se de um universo dominado pela formação cientifica, e Halbwachs – como Simiand e mesmo Durkheim – tinha formação filosófica, o que enfraquecia sua posição, já potencialmente heterodoxa. Remi Lenoir não identifica uma “ambivalência” em Halbwachs, mas salienta a defesa de uma “forma de realismo da razão” que, ao contrário do “nominalismo”, do “fetichismo” e/ou do “positivismo”, focaliza a “realidade [como] um objeto a ser construído e não [como] substância que tem em si mesma sua própria explicação” (Lenoir, 1997, p. 57). Se Remi Lenoir também parece considerar que Halbwachs estava condenado a uma marginalidade no mundo dos estatísticos, não faz isso insistindo no fato do domínio de engenheiros dotados de uma formação matemática, mas por este universo ser caracterizado por sua proximidade com o poder econômico e estatal. Nessa ótica, Halbwachs situa-se em uma posição dominada na medida em que ele representa uma espécie de intelectual “puro”, estruturalmente dominado nesta região do “campo do poder” .16

Entre sociologia estatística e sociologia da estatística

As diferenças entre esses dois textos escritos por Remi Lenoir e Olivier Martin nos anos 1990 podem decorrer do fato de que, escrevendo sobre Halbwachs, seus autores remetem também, de modo mais ou menos consciente e deliberado, a Pierre Bourdieu. Expoente maior da sociologia francesa do período, ele defendia, desde 1960, uma posição sobre a estatística em sociologia que, em alguns aspectos, ressuscitava a dos durkheimianos. Bourdieu havia, inclusive, contribuído para que os textos de Simiand e Halbwachs saíssem do esquecimento.17 O ofício de sociólogo, publicado em 1968, reproduz um excerto de Statistique et expérience e, em 1972, Bourdieu publica, em uma coleção que coordenava, uma seleção de textos de Halbwachs, incluindo La statistique en sociologie. É tentador comparar algumas das observações de Bourdieu sobre estatística e aquelas dos durkheimianos. Encontramos, por exemplo, proximidade entre o “círculo hermenêutico” do primeiro (Bourdieu & Wacquant, 1992, p. 83) e o “círculo vicioso” dos segundos; entre as interrogações de Halbwachs sobre a operação que consiste em isolar o efeito específico de uma variável e a insistência de Bourdieu sobre a “causalidade estrutural” (Bourdieu, 1979, especialmente pp. 114-119); entre as observações de Halbwachs sobre as faixas etárias construídas por critérios aritméticos e aquelas de Bourdieu sobre o mesmo tema (Bourdieu, 1992); entre as advertências de Simiand (1922, p. 29) sobre o risco de, no trabalho estatístico, formular “uma entidade livremente criada pelo espírito científico, à maneira das entidades da escolástica medieval” e alguns argumentos de Bourdieu sobre o “viés escolástico”; entre aquilo que aparece entre os durkheimianos como “ambivalência” frente às estatísticas e formulações de Bourdieu que afirmam que a estatística é “uma ferramenta de objetivação que sempre corre o risco do objetivismo” (Bourdieu & Saint-Martin, 1978, p. 5).

Se há uma proximidade entre os sociólogos durkheimianos e Bourdieu, é que as relações de força entre as disciplinas permanecem, em linhas gerais, as mesmas. Bourdieu, por exemplo, precisa enfrentar uma “economia matemática” (ver Bourdieu, 2017) que permanece bastante poderosa e prestigiosa e, em função do desenvolvimento da “econometria” nesse meio tempo, talvez ainda mais do que na época de Simiand.18 Contudo, como no caso da aproximação entre os durkheimianos e Comte, é necessário ter em mente algumas transformações do contexto.

Especialmente, Bourdieu posiciona-se em um espaço onde a “sociologia estatística”, praticamente inexistente no entreguerras, estava muito desenvolvida. Esta evolução deve-se muito ao trabalho de Paul Lazarsfeld: sociólogo nascido na Áustria que era, como Condorcet e Quetelet antes dele, um trânsfuga das ciências da natureza. Após partir para os Estados Unidos, em 1933, tornou-se um defensor cada vez mais intransigente de uma sociologia empírica destinada a responder pequenas questões (frequentemente respondendo a demandas econômicas) através do uso quase-exclusivo da análise estatística de pesquisas por questionário. A matematização pela qual passou a física, sua disciplina de formação, seria a única maneira de a sociologia ganhar legitimidade científica. Lazarsfeld concebe sua abordagem em oposição à “filosofia social” de origem europeia. Seu empreendimento desacredita os métodos ditos “qualitativos” (entrevistas, observação, análise de documentos históricos...), relegando-os a uma fase exploratória da pesquisa, cujo cerne é a estatística. Aos seus olhos, as técnicas estatísticas são as únicas capazes de produzir conclusões válidas e generalizáveis a partir da população sobre a qual pesquisadores trabalham. São também as únicas que podem explicar e prever, enquanto as outras podem apenas descrever ou ilustrar. Nos anos 1950 e 1960, Lazarsfeld dedicou-se a codificar seu “pensamento matemático”, definindo procedimentos que poderiam ser aplicados a objetos de pesquisa muito variados e eram orientados para a descoberta de “relações entre variáveis” (ele contribui para a importação desta palavra da física para a sociologia). Esforça-se, também, para a difusão internacional de seu pensamento, beneficiando-se do apoio das grandes fundações norte-americanas que, no contexto da guerra fria, buscavam difundir uma ciência social empírica para fazer frente à influência do marxismo.19 Lazarsfeld realiza missões em países europeus. Na França, foi professor convidado em 1961-1962 na Sorbonne, e sociólogos que ocupavam posições importantes na disciplina fizeram eco de sua sociologia estatística (Gemelli, 1998).

Nos Estados Unidos, Lazarsfeld, que era professor em Columbia, foi, juntamente com Merton e Parsons, um dos sociólogos dominantes no pós-guerra. Os sociólogos que praticavam sua sociologia “dura” foram praticamente os únicos a obter cargos. Em sua entrevista, Erving Goffman afirma ter obtido em Berkeley, em 1958, “o único cargo disponível no mercado do período para a sociologia “soft”, e destaca que “era central na sociologia soft e muito periférico ante as forças dominantes da sociologia” (Winkin, 1984, p. 85-87). Então, a fieldwork sociology, concorrente da sociologia quantitativa, que desenvolvia, ou ao menos continha, uma crítica à sociologia de Lazarsfeld, permaneceu bastante dominada. No “interacionismo”, se Blumer ou Hughes não atacam abertamente Lazarsfeld (Chapoulie, 2001, p. 243-245), adotam práticas de pesquisa que, repousando primordialmente na observação prolongada do que os indivíduos pesquisados fazem, diferem profundamente da técnica da pesquisa por questionários, que apenas recolhe informações a partir de uma interação rápida entre investigador e investigado. Ao contrário, a etnometodologia produz críticas explícitas à sociologia estatística. Em 1964, Cicourel publica uma crítica fundamentada da matematização praticada por Lazarsfeld, em sua visão, prematura (Cicourel, 1964). À pesquisa estatística, que cria variáveis compartimentalizadas em categorias dotadas de propriedades lógicas específicas (cada indivíduo se vincula a apenas uma categoria etc.), os etnometodólogos opõem os modos de categorização ordinários que constituem, aos seus olhos, o objeto central da sociologia. Nessa perspectiva, as pesquisas estatísticas são, na melhor das hipóteses, objetos de investigação sobre os modos de categorização que os estatísticos aplicam.

Bourdieu tem interesse pelas correntes “heterodoxas” e contribuiu para fazer reconhecer, na França, alguns de seus representantes. No entanto, não reage como eles ao desenvolvimento da “sociologia estatística” e julga desastrosa a importação, para a França, da divisão do trabalho americana entre “quantitativistas” e “qualitativistas”. Bourdieu nunca rejeitou a estatística. Ao contrário, elogiou sua capacidade de produzir totalizações insubstituíveis e a mobiliza regularmente em suas pesquisas para se distanciar das verdades oficiais ou nativas. Em suas primeiras pesquisas na Argélia, por exemplo, ele se apoia em contagens para mostrar que o casamento entre primos cruzados é uma prática minoritária (Bourdieu, 1972, p. 71-128). Em suas pesquisas sobre desigualdades escolares nos anos 1960, quadros sobre a origem social de estudantes são ativamente mobilizados contra uma percepção comum que tende a privilegiar os casos espetaculares, os indivíduos “miraculosos”20 – mas estatisticamente raros. Mais tarde, Bourdieu encontrou na análise de correspondências uma ferramenta preciosa para construir os campos e os espaços sociais, essas “realidade[s] invisível[is], que não podemos mostrar ou tocar com os dedos” (Bourdieu, 1994, p. 25).

Bourdieu reconhece o avanço na metodologia da pesquisa por questionários realizado por Lazarsfeld, mas mantém-se distante dos sociólogos franceses que a introduzem na França.21 Recusou-se a apoiar a superioridade das técnicas estatísticas sobre os métodos etnográficos e a abandonar a teoria e a herança europeias, como queria Lazarsfeld. Ao contrário, Bourdieu buscou combinar as contribuições da tradição europeia à sociologia empírica de origem especialmente estadunidense. Desde seus primeiros trabalhos, abordou grandes questões (por exemplo, a interrogação weberiana sobre a passagem da economia pré-capitalista para uma economia capitalista) à luz da combinação entre pesquisa etnográfica e pesquisa por questionários (Bourdieu, 1963). Na Argélia, colaborou com os estatísticos do INSEE22. Desde o início, Bourdieu considera que as duas técnicas, longe de se opor, são complementares: as grandes relações que a sociologia pode estabelecer só podem ser verdadeiramente compreendidas e explicadas pela pesquisa etnográfica. Ele desenvolve essa ideia num texto curto em que alerta sobre a relação irracional – que assume a forma de fascinação ou, ao contrário, de rejeição – que sociólogos tendem a estabelecer com a estatística (Bourdieu, 1963). Em suas pesquisas de campo na França, procura, sempre que possível, valer-se de diferentes métodos. Ao longo da década de 1960, mantém sua colaboração com os estatísticos que conheceu na Argélia, mesmo que ela não seja isenta de tensões, conforme atesta parte de sua correspondência: “é necessário que a sociologia tenha uma certa autonomia, e que ela não seja obrigada a se dobrar sempre ao molde estatístico. A colaboração, repito, não será fecunda a não ser que a sociologia e a estatística (neste caso, essencialmente a sociologia) mantenham sua especificidade, quer dizer, seu objeto e seus métodos próprios”. 23

A pesquisa sobre os museus europeus que ele realiza com um desses estatísticos [Alain Darbel] entre 1963 e 1965, e que é retomada no livro O amor pela arte (Bourdieu et al., 1969), é bastante exemplar de um ponto de vista metodológico.24 Empiricamente, ela repousa sobre uma pesquisa por questionários que sustenta uma questão central (a relação estatística entre a frequência aos museus e o nível de instrução), mas é complementada por uma pesquisa observacional e por entrevistas com os visitantes de museus. Na intenção de concorrer com Lazarsfeld em seu próprio domínio, um modelo matemático que buscava prever a frequência aos museus é elaborado. O Ofício de Sociólogo, publicado em 1968, atribui a Lazarsfeld uma “contribuição original [...] à racionalização da prática sociológica, e reproduz um de seus textos. Mas o livro, escrito no “auge da invasão lazarsfeldiana na França”,25 é fundamentalmente direcionado contra o “positivismo”. A palavra, conforme de Bourdieu, pode ser entendida no sentido pejorativo para designar o ideal lazarsfeldiano de uma “ciência sobre a teoria”, produzindo “puras constatações estatísticas” e buscando na sofisticação dos instrumentos a resposta aos problemas que a estatística não pode resolver. À metodologia desenvolvida por Lazarsfeld, o Ofício de sociólogo opõe uma reflexão epistemológica que concebe a atividade científica como um trabalho de construção. O livro termina com um apelo, ainda que vago (tomará uma forma precisa nos trabalhos posteriores de Bourdieu), a uma sociologia da sociologia que deve, notadamente, tomar por objeto as práticas científicas.

Sem parar de praticar a estatística, Bourdieu e a equipe de pesquisadores ao seu redor desenvolveram, entre outras coisas, uma sociologia e uma história social da estatística (e da estatística na sociologia) que quase não tinham precedentes (quando muito, tinham proximidade com a tradição etnometodológica). Em 1979, o texto de Michael Pollak sobre Lazarsfeld e sua multinacional científica se inscreve nessa tradição (Pollak, 2018/1979). Na esteira de Bourdieu, podemos nos debruçar sobre dois outros pesquisadores franceses que contribuíram amplamente para esta sociologia das estatísticas. O primeiro, Alain Desrosières (1940-2013), não era um acadêmico, mas um estatístico do INSEE excepcionalmente marcado pela sociologia (enquanto estudante, frequentou aulas de Pierre Bourdieu). Ele dedica uma parte de sua carreira a refletir e a trabalhar sociologicamente sobre estatísticas. Sua principal obra é uma tentativa de história social das estatísticas (Desrosières, 2000/1993). O segundo, Dominique Merllié, é um filosofo de formação que se converteu à sociologia e se juntou ainda jovem ao centro de pesquisa de Bourdieu. Ele propõe, notadamente, uma espécie de atualização das reflexões dos sociólogos durkheimianos num texto com uma dimensão pedagógica (Merllié, 1989)26 e realiza um longo trabalho de história social sobre as pesquisas estatísticas sobre a mobilidade social, especialidade sociológica que, após os anos 1950, tornou-se um dos mais quantificados e internacionalizados domínios da sociologia (Merllié, 1994).

O interesse pelas nomenclaturas estatísticas é um dos temas que motiva as reflexões desses dois pesquisadores. Muitos trabalhos, diversamente influenciados por Bourdieu, colocam em evidência, nos anos 1970 e 1980, seu diagnóstico de que as nomenclaturas utilizadas para codificar variáveis eram como um par de óculos: vemos através delas, mas esquecemo-nos de observá-las, mesmo que elas não sejam neutras e influenciem nosso olhar sobre o mundo. Luc Boltanski, em 1970, redige um artigo sobre as taxonomias populares e científicas sobre consumo alimentar. Ao mesmo tempo, estatísticos do INSEE se interessam pela gênese das nomenclaturas desenvolvidas e utilizadas pelo Instituto (Guibert et al., 1971). Desrosières, especialmente, trabalha sobre a gênese da nomenclatura das categorias socioprofissionais (ou “PCS”)27 (Desrosières & Thévenot, 1988), sistematicamente utilizada na França para identificar a posição social dos indivíduos. Elaborada em 1954 pelos estatísticos e, desde então, periodicamente atualizada por estatísticos que discutem com sociólogos e representantes de grupos profissionais, esta nomenclatura distingue categorias com base em diferentes critérios (o estatuto do emprego – assalariado, autônomo...; o setor de exercício – função pública ou setor privado; o nível hierárquico etc.). Ao passo que sociólogos e estatísticos as utilizam sem questioná-las, Desrosières mostra que sua gênese envolve um certo número de escolhas que, às vezes, respondiam a considerações bastante contingentes.

Em um longo artigo (Merllié, 1983) que Bourdieu publica como abertura de um número da Actes de la recherche en sciences socialesem 1983, Dominique Merllié evoca essas pesquisas sobre a produção ou a elaboração de nomenclaturas, mas procura ir mais longe, olhando para além da gênese das categorias socioprofissionais e levantando a questão de sua aplicação. Fazendo analogia com bens culturais, que podem ser apropriados (ou “decodificados”) pelo público a partir de lógicas diferentes daquelas norteadoras de sua concepção (ou sua “codificação”)28, ele observa que quem aplica as nomenclaturas não o faz de acordo com os mesmos princípios daqueles que a conceberam. O exemplo que ele retém é o modo como a profissão dos pais é registrada nas estatísticas sobre origens sociais de estudantes. A partir disso, mostra que os quadros estatísticos que, no conjunto das universidades francesas, repartem os estudantes em função de sua origem social, os quais são habitualmente comentados como se sua fabricação não pusesse nenhum problema, são a agregação de operações efetuadas em cada universidade e em diferentes condições, e mesmo no interior de uma dada universidade, de uma maneira não totalmente uniforme. Dominique Merllié coloca em evidência, assim, uma variedade de fatores suscetíveis a afetar, em diferentes sentidos, os quadros sobre os origens sociais dos estudantes construídos em escala nacional: os equipamentos informáticos, o modo como a questão da profissão dos pais é colocada em cada universidade (profissão escrita por extenso ou pré-codificada; coleta ou não de informações complementares), o processo de registro, as propriedades sociais das pessoas em contato com os estudantes e que são mais ou menos especializadas em tratar os registros, as interações entre estas pessoas e os estudantes etc.

Esta “pesquisa sobre uma pesquisa” aproxima-se da abordagem dos etnometodólogos. Assim como estes, Merllié identifica e discute que os pressupostos colocados em prática pelos estatísticos se revelam bastante variados. Mas sua proposta não reside apenas na crítica. Merllié também procura explorar a representação que as pesquisas produzem sobre o mundo social, contribuindo para melhorar a leitura e os usos dos quadros estatísticos frequentemente comentados na França. A abordagem adotada – que o leva a utilizar, de maneira engenhosa, um material “qualitativo” (observações nos serviços de inscrição universitária, entrevistas com pessoas envolvidas na codificação da profissão dos pais dos estudantes...), para lançar luz sobre um material quantitativo (tabelas sobre a origem social de estudantes) – se situa para além do confronto ritual entre métodos quantitativos e qualitativos. A crítica do material estatístico é concebida como uma etapa necessária para analisar os resultados de modo rigoroso. Nessa perspectiva, a sociologia da estatística aparece como uma condição fundamental para a máxima utilização da estatística em sociologia.

A ideia de que a sociologia deve afirmar sua lógica própria é defendida por Alain Desrosières (2001). Quando se trata de estatísticas, Desrosières considera que a sociologia deve se dotar de uma epistemologia específica e resistir à tentação de se curvar àquela das ciências da natureza ou da vida. Aos seus olhos, a sociologia esforça-se para abandonar o realismo direto ou indicado das ciências mais antigas, muitas vezes definido como norma de cientificidade. Ao não resistir a esta constrição, tende a atribuir aos seus objetos a mesma existência daquela da estrela polar, que existe independentemente dos modos de medi-la e classificá-la, operando, assim, uma confusão semelhante àquela que Halbwachs atribui ao uso da média por Quetelet. Desrosières desenvolve suas ideias em 2001, quando havia se distanciado intelectualmente de Bourdieu após os anos 1980. Acompanhara Luc Boltanski, quem, após ter trabalhado vinte anos ao lado de Bourdieu, havia fundado seu próprio centro de pesquisa ao se aproximar de economistas que, contra a economia neoclássica, insistiam na importância das “convenções” para a vida econômica.29 É esta noção que Desrosières utiliza no texto: uma especificidade dos objetos que se prestam ao registro estatístico em sociologia é que estes são o produto de “convenções”, ou seja, de acordos bastante amplos que se estabelecem no interior da sociedade. Em diversos casos, estes acordos estão inscritos na lei ou no direito, mas, mesmo assim, não deixam de incluir um elemento de arbitrariedade no sentido de que poderiam ser diferentes do que são. O “desemprego”, o “crime”, o “suicídio”, ao contrário da estrela polar, não existem fora dessas representações coletivas (Desrosières, 2001, p. 117).

Bourdieu não utiliza a noção de “convenção”, mas ideias próximas podem ser encontradas em seus artigos e livros, especialmente em sua reflexão sobre as crenças sociais e o poder simbólico. A partir dos anos 1980, principalmente, Bourdieu analisa o mundo social como sendo o lugar de uma luta simbólica onde os grupos sociais se confrontam, com poderes e chances de sucesso muito desiguais, para impor crenças e visões de mundo que servem aos seus interesses. O Estado, pelo qual Bourdieu se interessou muito nos anos 1980 e 1990, tem, especialmente através dos usos do direito, um poder bastante específico para transformar as crenças de origem particular e subjetiva em “ficções jurídicas” que, compartilhadas potencialmente, deixam de ser ficções e passam a existir na objetividade.30 Essas considerações têm um impacto concreto no que tange ao trabalho estatístico: as informações de mais fácil acesso, aquelas que colocam menos problemas aos estatísticos e parecem mais confiáveis, remetem frequentemente às reconhecidas, definidas e consagradas pelo Estado. Se, na França, é bastante simples conhecer o número de médicos, pois o exercício da profissão supõe uma autorização emitida por uma instância oficial, a Ordem dos Médicos, a população de jornalistas (e de vários outros grupos profissionais) é muito mais difícil de definir, pois, ao menos na França, o exercício do jornalismo dispensa a posse de diplomas específicos ou o reconhecimento profissional pelo Estado.

Além disso, o trabalho estatístico contribui para dar existência a essas categorias. Ao fazer a contagem do número de desempregados ou de crianças vítimas de violência, por exemplo, os estatísticos contribuem para a existência, nas crenças coletivas, da questão do “desemprego” ou do “abuso infantil” (Desrosières, 2001, p. 119). Assim, a estatística não é apenas um instrumento à disposição dos cientistas e dos pesquisadores. Nas sociedades contemporâneas, como destaca Bourdieu, “ela se inscreve no mundo social” (Bourdieu, 1989, p. 451). Bastante difusas, suas reflexões sobre estatísticas se encontram em textos que mobilizam ferramentas estatísticas ou que desenvolvem explicitamente considerações de caráter epistemológico ou metodológico. A dispersão resulta em uma variedade de textos em que Bourdieu aborda as estatísticas: no já mencionado curso Sobre o Estado, durante o qual faz afirmações mais ou menos acidentais sobre estatística; nos textos sobre “opinião pública” e a técnica estatística das pesquisas de opinião que tomaram uma importância crucial no debate político31; suas análises sobre a passagem de um modo de reprodução familiar para um modo de reprodução escolar que assegura uma “reprodução estatística” dos grupos dominantes (ver Bourdieu, 1989, p. 409)... Bourdieu nunca reuniu o conjunto de suas reflexões sobre estatística, mas é certo que, ao mesmo tempo que prolongou em pontos importantes as reflexões dos durkheimianos, desenvolveu perspectivas novas ausentes nos trabalhos de Halbwachs e Simiand, por exemplo, a sociologia da estatística, das pesquisas estatísticas, dos usos da estatística no mundo social.32

Uma última questão que merece ser abordada é o uso feito por Bourdieu da análise de correspondências. Foi nos anos 1970 que Bourdieu e pesquisadores que com ele trabalhavam começaram a utilizar esta técnica desenvolvida por matemáticos – Jean-Paul Benzecri e sua “escola francesa de análise de dados” – que ocupam no mundo da estatística uma posição, ao menos sob certos aspectos, homóloga à que ocupam no mundo da sociologia: se Bourdieu havia desenvolvido, desde seus trabalhos sobre a Argélia, uma prática estatística que se diferenciava dos usos dominantes marcados pelo empreendimento (estadunidense) de Lazarsfeld, Jean-Paul Benzecri desenvolveu, igualmente, a “análise de dados” contra a hegemonia estadunidense de uma estatística praticada numa linha dedutiva e pelo uso de modelos probabilísticos.33 O interesse de Bourdieu pela análise de correspondências engloba também a afinidade entre uma técnica estatística e um tipo de análise sociológica: a análise dos campos. Trata-se de um exemplo de utilização da estatística em função de um raciocínio sociológico, um raciocínio “estrutural” ou “relacional”. Para retomar as expressões dos durkheimianos, trata-se de um caso em que é a estatística que se ajusta à “ciência positiva”. Não é por acaso que, buscando explicitar o modo concreto como se deve proceder para construir um campo com a ajuda da análise de correspondências, Bourdieu remete a temas caros aos durkheimianos: por exemplo, o “construtivismo realista” evocado lembra a injunção durkheimiana a respeitar, no trabalho estatístico, “as articulações da realidade”.34

Para ilustrar o debate epistemológico acima referido, Alain Desrosières utiliza exemplos da análise de correspondências e da regressão, técnicas concorrentes (ao menos em certo sentido) (Desrosières, 2001, p. 117). Sem caricaturizar a oposição, situa a regressão no polo de uma sociologia das variáveis, de hipóteses probabilísticas e de raciocínio experimental importado das ciências da natureza, o que conduz a neutralizar o “efeito de estrutura”. A análise de correspondências, por sua vez, permite prescindir das hipóteses probabilísticas, pois ela é parte de uma abordagem mais indutiva e permite raciocinar em função da composição de grupos e de estruturas de relações. Articulada à teoria dos campos, a análise de correspondências tem mais chances de satisfazer aqueles que, recorrendo às estatísticas, pensam que a sociologia deve impor sua própria “razão” e sua própria lógica.

Na França, alguns de seus defensores valeram-se das advertências de Simiand e Halbwachs contra os “problemas bastante paradoxais” subjacentes à análise de regressão, especialmente ancorados no raciocínio ceteris paribus e no objetivo de medir os efeitos específicos das variáveis. Desrosières questiona o alcance e a eficácia desse tipo de operação, que ele qualifica como “cognitiva”. Trabalhando no INSEE, uma instituição situada entre o universo científico e o mundo burocrático, Desrosières está bem-posicionado para identificar que estes argumentos, embora eficientes em um campo científico puro, não são determinantes em espaços mais híbridos. No INSEE e lugares comparáveis, a regressão beneficia-se do prestígio que reveste o que é importado do mundo anglófono, mas também tem a vantagem de estar adaptada à demanda política de uma expertiseque, por exemplo, permite prever o efeito que terá determinada medida prevista pelo governo. Desrosières destaca, assim, que os debates metodológicos nunca estão inseridos em um espaço científico “puro”. Em seu primeiro texto sobre estatísticas, Bourdieu (1963) já havia alertado que os discursos metodológicos de pesquisadores corriam o risco de não ser nada além da racionalização das competências ou incompetências que eles deviam à formação recebida.

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Ensaiamos aqui de desenvolver a hipótese de que existe uma tradição particular na reflexão sobre as estatísticas em sociologia, orientada para a definição de uma prática especificamente sociológica da estatística e que considera a especificidade dos objetos sociológicos. Ela reúne a sociologia durkheimiana e o conjunto dos trabalhos realizados em torno de Pierre Bourdieu. Sugerimos que ela teria, se não um momento fundador, um antecedente na oposição de Comte a toda forma de “matemática social” ou de “física social”. Esta tradição não defende a ideia de que as ciências sociais são de um tipo completamente diferente das ciências da natureza, mas considera que os procedimentos destas últimas não podem ser importados tais e quais para o estudo dos fatos sociais, como preconizam outros pesquisadores, normalmente trânsfugas das ciências da natureza.

Possivelmente, essa tradição tem equivalentes em outros países. Contudo, nos moldes que assumiu na França e que foram destacados aqui, é possível que haja relação com algumas especificidades francesas, como o papel assumido pelos pesquisadores provenientes da filosofia e que se viam atraídos pelas ciências, ou talvez as relações, às vezes estreitas, entre alguns segmentos da sociologia universitária e a estatística pública. Mas, mesmo que se tratasse de uma especificidade francesa, essa tradição tem ao menos uma questão que ultrapassa as fronteiras nacionais: como destacado em diversas ocasiões neste texto, ela parece ser parte central nos esforços de constituição e progresso de uma sociologia capaz de dominar os métodos que ela utiliza. Sem dúvidas, esta é uma das diferenças primordiais desta tradição frente a outras, mais conhecidas, de reflexão sobre as estatísticas em sociologia.

Material suplementario
Referências
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Notas
Notas
Artigo traduzido do francês por Rodrigo da Rosa Bordignon.
1 Convém precisar, no entanto, que, embora esta tradição exista em certo sentido na sociologia francesa, os sociólogos franceses geralmente não a reclamam e, mesmo os que participam dela, dificilmente tornam explícita sua posição.
2 Sobre o que se segue, ver Johan Heilbron (2006), em especial, pp. 183-205 e 229-266..
3 Sobre essa reação e os pontos seguintes, ver Heibron (2006, pp. 304-314).
4 Para uma exposição detalhada das opiniões de Comte sobre essas questões, ver Ernest Coumet (2003)..
6 A citação é de Emile Coumet (2003).
7 Sobre este último ponto ver Heilbron (2006, p. 240).
8 N. T. Reproduzido em Ensaios de Sociologia, Marcel Mauss, Perspectiva, 1999.
9 La Classe ouvrière et les niveaux de vie (1912), L’Évolution des besoins dans les classes ouvrières(1933), ambos reeditados em 2002 em Le Destin de la classe ouvrière, PUF; Les Causes du suicide (1930), reeditado pela PUF em 2002.
10 Sobre a importância do início do século XX no desenvolvimento da estatística como disciplina, ver Desrosières (2000).
11 Ver, em especial, Mackenzie (1981).
12 Ver Simiand (1922), p. 39-43.
13 Trata-se, possivelmente, de Bergson, quem falou com frequência sobre as “articulações da realidade”..
14 Para o que se segue, ver Halbwachs, 1972, p. 336-338.
16 Sobre este conceito ver Bourdieu (1989).
17 Sobre este ponto, ver especialmente Duval e Noël (2023), em particular p. 390 e seguintes.
18 Alain Desrosières (2001) evoca a abordagem econométrica.
19 Sobre este ponto, ver Michael Pollack (2018/1979).
21 Ver, especialmente, Bourdieu (2004, p. 94-98).
22 NT. Institut National de la Statistique et des Etudes Economiques.
23 Carta a Abdelmalek Sayad citada por Amín Pérez (2022, p. 219-220).
24 Para mais detalhes, consultar Duval (2023).
25 Pierre Bourdieu, “Sou um pouco como um velho médico que conhece todos os males que acometem o entendimento sociológico.” Entrevista com Pierre Bourdieu realizada por Beate Krais (dezembro de 1988) », in Bourdieu et al. (2005, p. V).
26 Jean-Claude Combessie (2003), membro do centro de pesquisas de Bourdieu, publicou textos didáticos sobre as estatisticas em sociologia.
27 NT: Profissões e categorias socioprofissionais.
28 Empregamos as palavras de Stuart Hall (1973), mas trata-se de uma ideia que foi bastante desenvolvida nos trabalhos de sociologia da cultura de Bourdieu e de seu grupo nos anos 1960.
30 Com relação a essas questões, ver Bourdieu (2012, 2015, 2016, 2001).
31 Ver Bourdieu (1984/1973). Para desenvolvimentos desses artigos, ver Champagne (1990).
32 Não há espaço para desenvolver aqui, mas seria interessante tratar paralelamente o modo como estas mesmas questões começaram a ser objeto, em outras tradições teóricas, especialmente no mundo anglo-saxão, de trabalhos de reflexão no mesmo momento.
33 Para desenvolvimentos sobre pontos abordados neste parágrafo, ver especialmente Lebaron & Le Roux (2013) e Duval (2013, s.d.)
34 Ver especialmente Bourdieu (2016, p. 25 ss.).
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