Resumo: A partir da análise de um evento em que empreendedores de startups apresentam seus projetos de negócios após os qualificarem em um tradicional programa público de apoio a empresas incipientes (PIPE/Fapesp), o artigo trata do papel do business model Canvas na construção do valor de firmas nascentes. Apoiado em conjunto de dados qualitativos, o artigo revela que, por meio desse dispositivo, os agentes buscam transformar projetos de negócios em ativos financeiros que tencionam participar do portifólio de investidores de capital de risco. O artigo aporta, ainda, a ideia de que os eventos promovidos por organizações conhecidas como aceleradoras de startups conformam torneios de valor que contribuem ao agenciamento de novos empreendedores e ao fluxo de novos ativos no mercado de capital de risco. As startups têm sido vastamente abordadas segundo lentes interessadas no papel de suas redes sociais e arranjos institucionais. Já este artigo enfoca dispositivos que, acionados no interior de organizações intermediadoras, constroem o valor de firmas essenciais ao atual movimento de financeirização e renovação do capitalismo.
Palavras-chave: Empreendedorismo, startups, aceleradoras, financiamento, organizações.
Abstract: Based on the analysis of an event in which startup entrepreneurs present their business projects after qualifying them in a traditional public program for incipient companies (PIPE/Fapesp), the article addresses the role of Canvas business model in building the value of nascent firms. Supported by a set of qualitative data, the article reveals that, through this device, agents seek to transform business projects into financial assets intended to be a part of the portfolio of venture capital investors. The article also argues that events promoted by organizations known as startup accelerators constitute tourneys of value that contribute to the recruitment of new entrepreneurs and the flow of new assets in the venture capital market. Startups have been widely approached from the perspective of the role of their social networks and institutional arrangements. This article focuses on devices that, activated within intermediary organizations, build the value of firms essential to the current movement of financialization and renewal of capitalism.
Keywords: Entrepreneurship, startups, accelerators, financing, organizations.
Resumen: A partir del análisis de un evento en el que emprendedores de startups presentan sus proyectos de negocio después de calificarlos en un programa público tradicional para empresas incipientes (PIPE/Fapesp), el artículo aborda el papel del modelo de negocios Canvas en la construcción de valor de las empresas nacientes. Apoyado en un conjunto de datos cualitativos, el artículo revela que, a través de este dispositivo, los agentes buscan transformar proyectos empresariales en activos financieros con el fin de participar en la cartera de inversores de capital de riesgo. El artículo también sostiene que los eventos promovidos por organizaciones conocidas como aceleradoras de startups constituyen torneos de valor que contribuyen al reclutamiento de nuevos emprendedores y al flujo de nuevos activos en el mercado de capital de riesgo. Las startups han sido ampliamente estudiadas desde una perspectiva interesada en el papel de sus redes sociales y arreglos institucionales. Este artículo se centra en los dispositivos que, activados desde el interior de las organizaciones intermediarias, construyen el valor de empresas esenciales para el actual movimiento de financiarización y renovación del capitalismo.
Palabras clave: Emprendimiento, startups, aceleradoras, financiación, organizaciones.
artigo
Futuros imaginados: aceleradoras de startups e seus dispositivos de atração de capital de risco
Imagined futures: startup accelerators and their devices to attract venture capital
Futuros imaginados: aceleradores de startups y sus dispositivos de atracción de capital de riesgo
Recepción: 16 Junio 2024
Aprobación: 18 Septiembre 2024
São profícuas as pesquisas dedicadas aos arranjos institucionais e redes sociais que sustentam as startups, firmas nascentes comumente associadas à introdução de produtos, serviços e processos inovadores nos mercados. O conglomerado regional do Vale do Silício é o paradigma das relações que os seus empreendedores tecem (Castilla et al., 2000). Sem embargo, as ferramentas que habilitam a construção do valor mercantil dessas firmas ainda restam pouco conhecidas. Este artigo avança nessa direção ao refletir sobre o papel de dispositivos mobilizados por agentes intermediadores das trocas entre empreendedores de startups e investidores de capital de risco.
Partimos da ideia de que um empreendedor pretende que seu projeto seja reconhecido por um potencial investidor como crível, promissor e merecedor de recursos (Knorr-Cetina, 2015). Ou seja, vemos o empreendedor como o agente que apresenta uma promessa de lucros futuros, enquanto o investidor como aquele que compra essa promessa (Knorr-Cetina, 2015). Com efeito, um dos problemas centrais da economia é como as pessoas que têm capital para investir encontram as pessoas que demandam capital para empreender (Fligstein & Choo, 2005). Um dos aspectos a tornar o caso das startups interessante é que tanto empreendedores quanto investidores carecem de informações suficientes para calcular a probabilidade de os resultados referentes às firmas que constroem serem atingidos. Orientados ao futuro, os investidores mobilizam preferências quanto aos produtos desenvolvidos, às oportunidades em mercados consumidores e aos atributos dos empreendedores à frente das startups. Do outro lado, os empreendedores à procura de capital também têm preferências sobre aqueles que detêm esse recurso, uma vez que a reputação, a rede de influência e a expertise de investidores cumprem papel no desenvolvimento de novas firmas. Esse duplo contingenciamento é uma das características mais relevantes da coordenação de mercado.
A coordenação diz respeito ao modo como os atores tornam uma troca mercadológica possível por meio da formação de expectativas compatíveis com seus interesses materiais e ideais (Beckert, 2009). Uma das caraterísticas que torna a coordenação das trocas entre startups e seus financiadores diferente daquela observada entre firmas estabelecidas e seus financiadores é que os primeiros precisam formar expectativas não apenas sobre o desempenho das firmas em um contexto socioeconômico futuro, mas – e primeiramente – sobre o que será a firma em si. Note-se que, em suas fases incipientes, as startups são projetos de negócios que dependem de financiamento externo ainda antes de se constituírem burocraticamente, antes de produzirem valor e antes de capturarem valor.
Nesse sentido, as startups podem ser vistas como organizações ancoradas em imagens sobre o futuro ou, para usar um termo consagrado por Beckert (2016), como empresas que são essencialmente “ficcionais”. Ao entendermos que as relações privilegiadas pelos atores envolvidos no desenvolvimento de startups descansam sobre o futuro, ou seja, sobre a temporalidade própria do mercado de capital de risco (Birch, 2023), definimos as startups como projetos de negócios que, por meio da qualificação levada a termo em organizações especializadas conhecidas como aceleradoras, tornam-se ativos financeiros que competem por um lugar nos portifólios de investidores de capital de risco. Mas como selecionar e valorar um bem cujo potencial para se tornar um ativo financeiro ainda não está qualificado?
É nesse ponto que os dispositivos que habilitam a troca se destacam. Como as promessas de rendimentos financeiros são “contingentes do futuro acontecendo conforme o esperado” (Knorr-Cetina, 2015, p. 106), as formas de persuasão são essenciais para a efetivação do investimento, podendo elas assumir a forma de planos de negócios, discursos, relatórios, projeções gráficas, dentre outras (Birch, 2023; Beckert & Bronk, 2018; Schmidt, 2015; Maia, 2019). Este artigo argumenta que a mobilização do business model Canvas é condição de possibilidade para o alinhamento de expectativas entre empreendedores e investidores, bem como para a mercantilização de tecnologias desenvolvidas no contexto acadêmico. Ademais, este estudo interpreta os eventos em que empreendedores apresentam os seus modelos de negócios a potenciais investidores como torneios de valor que contribuem ao recrutamento de novos empreendedores interessados em converter seus projetos em ativos financeiros. Ao tratar de firmas nascentes combinando achados recentes da sociologia dos mercados, da valoração e das organizações calcadas na temporalidade futura (Shestakofsky, 2024; Birch, 2023; Thompson & Byrne, 2022; Wenzel et al., 2020), a reflexão visa contribuir com o debate sobre as transformações do capitalismo brasileiro, ao apontar que não apenas as grandes empresas as ensejam (Niederle et al., 2021).
O material empírico que fundamenta este artigo tem caráter qualitativo e está apoiado em entrevistas qualitativas e cadernos de campo das observações etnográficas. Foram realizadas 30 entrevistas com empreendedores de startups que passaram por aceleradoras. A coleta ocorreu em duas ondas, sendo a primeira realizada entre maio e agosto de 2021; e a segunda, em agosto de 2022. As observações etnográficas foram realizadas em três eventos presenciais e cinco eventos virtuais (no período de pandemia da Covid-19) promovidos por aceleradoras de startups, sendo que este artigo descreve apenas um deles. Este material compõe um conjunto de dados mais amplo que reúne, desde 2014, mais de 70 observações etnográficas de apresentações de empreendedores e cerca de 50 entrevistas com agentes de mercado.
Na primeira seção deste artigo, localizaremos o debate acerca das startups e nossa proposta de abordar o financiamento dessas firmas nascentes enquanto um mercado. Na segunda, apresentaremos as aceleradoras enquanto organizações que mobilizam dispositivos que qualificam as startups como objetos econômicos aptos à circulação entre investidores. Na terceira, introduziremos o Programa de Pesquisa Inovativa em Pequenas empresas (PIPE), mantido, desde 1996, pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), e passaremos a refletir sobre o papel do dispositivo Canvas na construção do valor. Na quarta seção, por meio da noção teórica de torneios de valor, discutimos o papel das aceleradoras no agenciamento de novos empreendedores.
Apesar da importância das startups nas economias e sociedades contemporâneas, são raros os estudos socioantropológicos que se debruçam sobre elas. Nesse campo, ao sistematizar a produção acadêmica latino-americana sobre empreendedorismo de 2012 a 2021, Fontes (2023) identifica apenas quatro artigos dedicados a empreendimentos de tecnologias digitais, categoria mais próximas às startups. De fato, segundo Ferreira et al. (2020), os artigos sobre empreendedorismo publicados entre 2004 e 2020 se concentraram em revistas especializadas em Administração de empresas.
Na literatura sociológica brasileira, o enfoque analítico em torno do empreendedorismo se localiza nos atores antes que nas firmas. Destaca-se o interesse pelo denominado “empreendedor de si”, um ator que não se reconhece como “empregado, subordinado e membro de um coletivo”, mas como “empresa individual, que deve se preocupar com seu próprio desenvolvimento, garantir sua empregabilidade e aprimorar seu capital humano” (Pires, 2021, p. 14) e cujos valores e propostas de emancipação correspondem “diretamente aos valores de lucratividade das empresas e do próprio indivíduo” (Zanon, 2019, p. 173).
Em nossa leitura, esse enfoque no trabalho que os empreendedores desempenham não é sem razão, em primeiro lugar porque ele remete a problemas que têm desafiado a sociologia ao longo de sua trajetória no Brasil (Prandi, 1978; Machado da Silva, 2002; Kowarick, 2019) e, em segundo lugar, porque, hoje, a atividade empreendedora organiza discursos institucionais e referências individuais tanto nos estratos populares (Costa, 2024; Silva, 2017; Araújo, 2011; Rizek, 2007) quanto naqueles formalmente qualificados, como consultores e executivos de negócios (Lima, 2010, Leite & Melo, 2008).
Quando nos dirigirmos especificamente às firmas enquanto unidades de análise, três campos de teorização se destacam na literatura nacional e internacional. O primeiro deles argumenta que redes sociais densas podem encorajar o empreendedorismo e a inovação (Martinelli, 2009; Aldrich, 2005; Saxenian, 2006; Castilla et al., 2000). Ao enfrentar a insuficiência analítica da noção de organização enquanto unidade básica da ação (Lie, 1997), essa leitura ecoou amplamente no Brasil (Neves, 2021; Vale & Guimarães, 2010). O segundo campo debruça-se sobre a coordenação das cadeias globais de produção, apontando o constrangimento de autonomia enfrentado pelas organizações da periferia do capitalismo (Gereffi & Korzeniewicz, 1994), incluindo as startups brasileiras (Parra, 2023; Wolff, 2019). Já o terceiro campo parte da concepção de que a atividade empreendedora de caráter inovador é o motor do desenvolvimento econômico para compreender os arranjos político-institucionais (“sistemas nacionais de inovação”, “ecossistemas”, dentre outros) capazes de impulsioná-la (Lundvall et al., 2011; Adner & Kapoor, 2010; Edquist, 2005). Ao tratar da produção e captura de valor de maneira menos hierárquica do que aquela adotada pela perspectiva das cadeias de valor, essa lente repercute no Brasil ao tratar das políticas que permitiriam ao país incrementar a sua competitividade (Arbix et al., 2018; Toledo, 2015; Lemos, 2012).
Em comum, esses estudos reconhecem que as relações entre empreendedores de startups e investidores de capital de risco é crucial, seja porque, segundo a perspectiva das redes, os investidores abrem caminho para interações capazes de dinamizar a construção de novas firmas (Ferrary & Granovetter, 2009), seja porque, na perspectiva das cadeias de valor, a baixa regulamentação financeira das cadeias de produção leva grandes organizações a externalizarem seus laboratórios de inovação (Wolff, 2019) ou, ainda, porque, na leitura dos pesquisadores dedicados ao arranjos institucionais, o desenvolvimento das relações entre empreendedores e investidores depende de políticas do Estado (Evans, 2004; Mazzucato, 2011).
Esses corpos teóricos desenvolvem suas ideias em torno do pressuposto de que os investidores prospectam inovações capazes de agregar valor às empresas. Já este artigo suporta seu raciocínio na premissa de que as empresas que acumulam valor, apesar do que produzem, são aquelas prospectadas pelos investidores. Nossa interpretação parte da constatação de que as startups brasileiras mais comemoradas pelos agentes de mercado não se destacam pela tecnologia que desenvolvem.
Dos cerca de US$ 8,8 bilhões investidos por fundos de capital de risco em startups brasileiras em 2021, US$ 2,5 bilhões foram aportados em cinco startups (Distrito, 2022). Nenhuma delas desenvolve atividades intensivas no que conhecemos como Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) – o grupo é composto por duas imobiliárias (QuintoAndar e Loft), duas financeiras (Nubank e Ebanx) e um varejista (Facily). A inovação que elas apresentam se refere mais à digitalização de serviços tradicionais, à intensificação do trabalho e à automatização organizacional do que à introdução de novos produtos, serviços ou processos nos mercados consumidores. De fato, o capital de risco privado está concentrado em projetos de negócios relativos ao ambiente digital. Das 24 startups que valiam mais de US$1 bilhão em 2023, nove (38%) se referem a serviços financeiros digitais e quatro a atividades de marketing digital (17%). Essas 24 startups atraíram a soma de US$ 11,6 bilhões de investimentos privados em 2023 (Distrito, 2023, p. 28).
Trata-se de um mercado de circulação global. Segundo a Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (Abvcap, 2024, p. 32), os fundos de capital de risco estrangeiros alocaram R$ 43,3 bilhões em novas empresas brasileiras, sendo aqueles sediados nos Estados Unidos os que mais transacionaram ativos no Brasil no período de 2019 a 2023 (p. 33). Para o líder do Softbank no Brasil, uma das venture capital mais atuantes no país, as startups brasileiras começaram a despertar a atenção global em meados de 2019, quando investidores que atuam em países como China estavam buscando diversificar seus portfólios e quando “o [banco digital] Nubank ganhou destaque entre investidores internacionais, fundos americanos e europeus” (Pacete, 2022).
Assim, a partir da ideia de que “na economia real a inovação se refere à primeira comercialização de uma ideia ou projeto; por isso mesmo, seu locus privilegiado é a empresa” (Arbix, 2010, p. 169) e perante aqueles três campos de estudos bastante explorados, abordaremos as startups segundo um olhar dirigido a um problema menos pesquisado, o da construção do valor. Para tal, lançaremos mão de uma proposta que define as startups como projetos que, por meio da mobilização de dispositivos específicos, tornam-se ativos financeiros. Como essa mobilização ocorre no interior das aceleradoras, convém conhecermos mais sobre esse agente.
A formação do par empreendedor-investidor não é trivial (Fligstein & Choo, 2005) e, a partir de uma agenda de pesquisas empíricas iniciada em 2014, constatamos que as aceleradoras concentram a rotinização das práticas capazes de tornar uma ideia de negócio em um objeto que é selecionado e valorado por investidores. Também para Faria (2018, p. 195), que investigou o que significa ser empreendedor no Brasil e no Reino Unido, o acesso a investimentos tende a ser facilitado quando ele “é rotinizado e padronizado, aumentando a circulação de capital”. A natureza mercantil das relações entre empreendedores e investidores aponta a conveniência de tratá-la a partir do enfoque em seu agente intermediador.
Atualmente, algumas aceleradoras podem ser vistas como “fábricas de startups” (Mason; Brown, 2014). Para um parâmetro exemplar, note-se a aceleradora Y Combinator. Ela afirma ter recebido 19.000 inscrições de empreendedores de variados países para o seu programa de verão de 2022 e selecionado 240 dessas para se beneficiarem da qualificação e investimento de capital que oferece. No Brasil, segundo estimou a Associação Brasileira de Startups (Carrilo, 2021), o número de startups cresceu cerca de 200% entre 2015 e 2019, passando de 4.151 para 12.727. Atualmente, há cerca de 14.000 startups no Brasil (Abstartups, 2023, p. 4). Na outra ponta da transação, considerando-se apenas os investidores informais, dedicados às startups em fase incipiente, também se contabilizam milhares – apenas a Anjos do Brasil, uma associação de investidores informais, estimava, em 2019, reunir mais de 7.000 investidores.
Um dos entendimentos mais difundidos na literatura econômica é o de que os intermediadores compõem as estruturas edificadas pelos atores para reduzir os custos de aquisição de informações e para diminuir os custos de transação das negociações e contratações (Stigler, 1962; Williamson, 1983). Esse olhar, porém, tende a considerar a atividade dessas organizações como uma sucessão de processos de cálculo de eficiência, o que, desde os primeiros estudos sobre as estruturas interpessoais de conglomerados empresariais, como o do Vale do Silício, mostrou-se insuficiente para explicar a capitalização de firmas nascentes (Castilla et al., 2000).
Inspirados pelo valor heurístico de se entender a atividade de procura de oportunidades econômicas enquanto uma empresa dirigida aos mercados (Guimarães, 2009) e ao assumir que o mercado não é uma simples reunião de transações, mas um quadro que define as regras e os formatos dessas transações (Beckert, 2009, Fligstein, 2001), entendemos que as aceleradoras são agentes envolvidos na atividade de valoração. Valorar é a forma por meio da qual valores são atribuídos a objetos com base em preferências (Aspers, 2018), diferenciando-se, portanto, da atividade de avaliação, uma vez que esta última tem como base padrões que independem de preferências. Em outros termos, “valorar é sobre diferenciar, e avaliar é sobre uniformizar” (Aspers, 2018, p. 9).
Ao entendermos que os intermediadores não são meros facilitadores da troca entre ofertantes e demandantes de bens, mas agentes envolvidos na valoração de organizações (Bessy & Chauvian, 2013), bem como ao atentarmos aos avanços documentados na literatura internacional a respeito das estratégias de persuasão de investidores em situações de interação com investidores (Barman et al., 2021; Garud et al., 2014), refletiremos sobre o papel dos dispositivos que, mobilizados no interior das aceleradoras, qualificam as startups à competição por capital. Em outros termos, trataremos de como os “futuros imaginados são conduzidos pelos agentes e as ferramentas que os materializam” (Doganova & Kornberger, 2021, p. 1).
A análise parte dos elementos destacados pelos empreendedores participantes do evento que encerra a 23ª edição do Programa PIPE, realizado em maio de 2023 de forma virtual e presencial em São Paulo.1 Neste evento típico, os empreendedores apresentaram aos agentes do programa de aceleração de empresas (coordenadores, mentores e outros) quais foram os avanços que alcançaram ao longo das doze semanas do processo de qualificação. Em 2023, o Programa ofereceu R$ 300.000 aos projetos da fase 1, e até R$ 1.500 milhão aos projetos da fase 2 (foram cerca de 350 auxílios em agosto de 2023), não solicitando cotas societais das startups que apoia, como o fazem as aceleradoras privadas. O PIPE é especialmente interessante para notarmos como um agente ligado ao Estado e que ocupa uma posição privilegiada no campo da inovação mobiliza um dispositivo há pouco restrito ao mundo corporativo e, assim, prepara as startups que acolhe para atrair capital de investidores privados.
Diferentemente das corporações estabelecidas, que buscam tornar seus produtos mais alinhados às expectativas de determinados segmentos de consumidores (conhecido no jargão corporativo como “fit to the market”), as startups do PIPE ainda não sabem quais seriam os consumidores interessados nas tecnologias que desenvolvem. Determinar o segmento de mercado de uma nova tecnologia é uma etapa anterior à busca de investimento de risco privado, porque os investidores têm pouca experiência na avaliação de negócios baseados em novas tecnologias. Para um dos coordenadores do PIPE, “o empreendedorismo que apoiamos é majoritariamente o Deep Tech, Hard Science.... O ecossistema [das startups] não está, na sua totalidade, preparado para apoiar negócios dessa natureza. A abordagem [do PIPE] é toda pensada para este perfil”. Para contornar a dificuldade de acesso a capital de risco, o PIPE concentra-se em demonstrar que as novas tecnologias que financia têm adesão entre os consumidores. Assim, nas palavras de um coordenador do PIPE, “olhamos para outras metodologias winner que estão nas escolas de negócios norte-americanas”. Dentre essas, desataca-se o Business Model Canvas aliado à metodologia de “sair do prédio”, que abordaremos na próxima seção.
O Canvas é a principal ferramenta utilizada pelos empreendedores do PIPE. Como vemos na figura 1, trata-se de um esquema visual que conta com nove campos a serem preenchidos pelos empreendedores ao longo do desenvolvimento da startup. Originalmente elaborado como parte da tese de Alex Osterwalder na escola de negócios HEC Lausanne, o esquema foi publicado em livro em 2010, em parceria com Yves Pigneur. Para Blank (2010), um dos gurus do empreendedorismo contemporâneo, o modelo importa aos empreendedores porque “mostra todos os fluxos entre as diferentes partes da sua empresa”, permitindo que se descreva “como sua empresa cria, entrega e captura valor”.
No PIPE, o Canvas é preenchido a partir da coleta de opiniões de potenciais consumidores dos produtos desenvolvidos pelas startups. Essa coleta, que visa reunir cerca de 100 entrevistados, inicia-se pelo recrutamento de pessoas com quem os empreendedores e mentores do PIPE mantêm contanto nos setores econômicos em que pretendem atuar. Conhecida como “sair do prédio”, essa coleta é considerada fundamental para que os cientistas validem suas ideias de negócio e “aprendam como dinamizar o seu modelo [de negócio lucrativo] conforme a realidade se impõe” (Blank, 2010). Nessa linha, para um dos coordenadores da Fapesp, “sair do prédio” pode ser “um tapa na cara” do empreendedor já que ele pode ouvir algo inesperado sobre o produto que desenvolve. O empreendedor pode “chegar na realidade e ver que não é nada do que pensava”. Ainda segundo esse coordenador, o importante é que a negativa [sobre o produto da startup] seja recebida o quanto antes, de modo a levar o negócio ao ajuste de rota, poupando tempo de desenvolvimento de produtos que poderiam ter pouca atratividade em dado mercado consumidor.
Consideremos o caso exemplar da startup Dallas Autonomus, que desenvolve um veículo aéreo de grande porte para pulverização agrícola e foi acelerada pelo PIPE. Ao confrontarmos a figura 2 (que reproduz o Canvas dessa startup antes da realização das entrevistas) e a figura 3 (que reproduz o Canvas dessa startup após a realização das entrevistas), notaremos o refinamento promovido pelos empreendedores no quesito “Segmento de Clientes”. Inicialmente, eles miravam as “fazendas/produtores” e, após entrevistarem 50 potenciais clientes durante o período de qualificação no PIPE, passaram a especificar como alvo as “lavouras acima de 100ha” e as “culturas de topografia complexa”. Também foram adicionados novos segmentos de clientes, como as “empresas de regeneração florestal”. O empreendedor da startup revela, ainda, que a proposta de valor do projeto foi alterada. Ao conversar com produtores que já fizeram experiências de pulverização com helicópteros, aviões e drones, o empreendedor passou a entender que, para bem atendê-los, não basta ofertar um serviço de pulverização de hectares, como havia vislumbrado; é preciso ofertar uma solução completa: “você vai pulverizar café para combater determinado tipo de praga? Então, você vai utilizar essa mistura, com esse bico [pulverizador] e com esse equipamento [para obter um bom resultado final]”.
Por sua vez, o empreendedor da startup Triad for Life, que desenvolve um kit diagnóstico do agravo do acidente causado por abelhas, revela que, inicialmente, a “proposta de valor [da startup] tinha uma coisinha só”. Já, após as entrevistas, passou a incorporar o segmento das empresas responsáveis por trabalhadores do meio rural, como coletores de cana, ao identificar que “há a necessidade de, quando você abre o CAT – o Certificado de Acidente de Trabalho –, mostrar para o sistema [eletrônico de controle] o que está acontecendo”. Os empreendedores de outra startup, a CIM Biotec, seguem a mesma linha ao revelar que “o nosso Canvas estava muito pobre”. Inicialmente o projeto vislumbrava direcionar o produto que desenvolvem – um antisséptico orgânico em processo de bioetanol – à descontaminação industrial da produção de etanol; mas, após “sair do prédio” para coletar as opiniões de profissionais das indústrias de álcool, os empreendedores notam “a possibilidade de trabalhar com outros setores que necessitam de descontaminação” uma vez que “as indústrias químicas começam a se preocupar um pouco mais com os resíduos [descartados]”.
Nas fases conseguintes à definição dos segmentos de consumidores, os empreendedores e seus mentores se empenham em demonstrar que esses são suficientemente interessantes aos investidores. Para isso, os empreendedores obedecem ao modelo conhecido como TAM/SAM/SOM, a saber, Mercado total (Total Addressable Market, TAM, na sigla em inglês), Mercado alvo (Serviceable Addressable Market, SAM, na sigla em inglês), Mercado acessível (Serviceable Obtainable Market, SOM, na sigla em inglês). Como sugerem as próprias denominações, a medida TAM representa todo o mercado, podendo ser calculada pela somatória das receitas geradas por todos os competidores do mercado; enquanto o SAM diz respeito ao segmento desse mercado em que o empreendedor pretende atuar; já o SOM representa a fatia de mercado que o empreendedor espera atender de fato, considerando competição e região focalizada, por exemplo.
De fato, dados quantitativos sobre os tamanhos dos segmentos de mercado são elementos de persuasão considerados obrigatórios nas aceleradoras. Como se nota na Figura 4, extraída da apresentação da startup CSense, participante do 21º Programa PIPE/Fapesp.2
Dansou e Langley (2013) corroboram esse argumento ao constatarem que os empreendedores buscam tornar suas narrativas mais persuasivas por meio da utilização de representações numéricas que emprestam concretude a suas projeções. Trata-se de tornar tangível aquilo que ainda não existe, de antecipar o decurso positivo de um projeto, reificando uma ideia enquanto promissora. Para Barman et al. (2021, p. 5), conjeturar sobre uma contabilidade persuasiva é uma tarefa difícil, uma vez que “os empreendedores precisam imaginar formas pelas quais o método contabilístico e os seus resultados poderiam transmitir as características e os benefícios de uma inovação ainda inexistente e fazê-lo de forma que as partes interessadas considerem plausíveis e críveis”. Beckert e Bronk (2018, p. 13), ao tratarem de dispositivos de cálculo, também observam que “em um plano de negócios, a captura imaginada de um novo mercado é cuidadosamente validada quanto à sua viabilidade à luz de restrições financeiras conhecidas e de mecanismos causais sob vários cenários imaginados”. Nosso material empírico demonstra que, no caso das startups, essa validação quantitativa não é casual, mas produzida e, ainda mais importante notar, tem lugar no interior de organizações intermediadoras.
A centralidade que o Canvas assume no interior da aceleradora PIPE sugere que convém ultrapassar a visão de que se trataria da simples aplicação de uma ferramenta facilitadora do trabalho de aprimoramento das startups.
Quando entendemos que os mercados não emergem espontaneamente, mas são construídos a partir de agenciamentos que se referem a todos os elementos implicados em uma dada configuração, incluindo objetos, estatísticas, gráficos e esquemas, como o Canvas, que modificam o comportamento e o resultado das relações (Latour, 1992), podemos avançar na compreensão da transposição das startups de um contexto acadêmico, como o é o PIPE, para um contexto mercantil.
O principal papel do Canvas é definir o que é a startup. O dispositivo não opera como mero repositório de ideias produzidas ao longo das interações entre empreendedores e potenciais consumidores, mas sim submete essas interações à tarefa de construir a startup de um modo específico, de um modo legitimado, “correto”. O Canvas prenuncia e modifica firmas “ficcionais” ao antever situações mercantis futuras. Note-se que o empreendedor inicialmente imerso no trabalho de desenvolver um veículo aéreo de pulverização agrícola termina por se preocupar com um assunto alheio a tal tecnologia, passando a atentar à composição da mistura de produtos químicos desenvolvidos por outras empresas. Não se trata, portanto, de traduzir a tecnologia para os fazendeiros de modo a torná-la mais atrativa, mas de moldá-la segundo as expectativas dos consumidores. É justamente esse tipo de direcionamento que o Canvas promove (o que tem valor para eles?) ao determinar os tópicos importantes para o desenvolvimento das firmas. Assim fazendo, o Canvas pode ser definido como um dispositivo que reconfigura a discrepância entre a startup concebida (a partir do que seus empreendedores supõem ter valor) e a startup viável (aquela que demonstra desenvolver produtos com relevante adesão dos consumidores).
Ao examinar situações “indeterminadas” de processos intraorganizacionais em que gestores, técnicos e empresários discordam entre si sobre qual caminho adotar, Stark (2009) sugere que os distintos modos de valorar um bem econômico são um recurso que pode ser estimulado pelas organizações. Para o autor, o empreendedorismo resulta justamente dessa forma de “fricção criativa” entre princípios de valor que competem entre si e, por meio de processos de reflexividade, resultam em inovações. Esse é o caso, por exemplo, do processo de reformulação de uma startup norte-americana abalada pela crise do “estouro da bolha da Internet” do final dos anos 1990, que o autor etnografa.
Stark diverge, assim, das interpretações que encontram nas redes sociais o fator explicativo da emergência das startups. As análises de redes reconhecem que as organizações mantêm laços que conformam clusters de troca de informações, de modo que, para acessar informações dos clusters com que não nutrem laços, elas precisam contar com a agência de brokers (Burt, 1992). Stark (2009, p. 27) interpela essa visão ao entender que “o empreendedorismo não ocorre na lacuna, mas através do atrito gerador na sobreposição de estruturas avaliativas”. Para o autor, as inovações não estão “esperando para serem encontradas, elas devem ser geradas” (Stark, 2009, p. 27). A figura 5, na qual se vê, à esquerda, a perspectiva de Burt e, à direita, a de Stark, sumariza esse avanço.
O nosso ângulo de observação das startups – aquele que examina o processo de qualificação que torna firmas nascentes aptas à atração de capital – deixa ver que a produção de fricções não descansa apenas sobre a reflexividade dos empreendedores, mas sim conta com um dispositivo próprio, mobilizado em bases recorrentes no interior das aceleradoras e legitimado pelos investidores de capital de risco. Podemos, assim, avançar na interpretação de Stark ao propor que a fricção criativa é ela própria uma prática institucionalizada. Se, em termos neoinstitucionalistas, construir startups em alta escala industrial requer um campo de ação estável baseado em normas, regras e convenções (Fligstein, 1996), podemos entender que os empreendedores que não mobilizam os dispositivos legitimados no mercado tendem a ver sua trajetória limitada apesar das inovações resultantes de seus processos de reflexividade. Nesse sentido, qualificar uma startup não significa apenas aprimorá-la, mas aprimorá-la de um determinado modo, qual seja, aquele que atende às expectativas dos investidores.
No caso das startups, o atrito de princípios de valor visa antes a mercantilização do que a inovação, já que ele viabiliza a alocação de capital que é condição de possibilidade para que a startup cresça e gere retorno financeiro. Trata-se, portanto, de um “atrito criativo-mercantilizador” que encontra nas aceleradoras o seu aparato institucional mais legítimo. A Figura 6 sumariza visualmente nossa interpretação, apontando que as informações e outros recursos fluem por meio dos brokers, mas que são os intermediadores a interpelar os empreendedores e a explorar os princípios de valor que importam à transformação de firmas ainda “ficcionais” em ativos financeiros aptos a circular no mercado de capital de risco.
Vimos que a conversão de um projeto empreendedor em ativo financeiro acontece por meio da mobilização do Canvas no interior das aceleradoras. A questão que passa a se impor, então, é por que a exposição dos resultados dessa conversão ocorre, frequentemente, em eventos? Nesta seção, argumentamos que os eventos promovidos por aceleradoras, conhecidos como demodays, nos quais as startups recém qualificadas se apresentam para investidores, desempenham o papel de agenciar novos empreendedores por meio da distribuição de signos de valor.
Sabemos que um ator que se lança às incertezas de mercado toma decisões em relação aos demais (Muniesa, 2017). Essa dimensão relacional é central, especialmente em mercados de “singularidades”, nos quais os atributos estéticos dos bens ganham prevalência (Karpik, 2010). Bens cuja qualidade não é óbvia, como é o caso de obras de arte, precisam mobilizar “julgamentos” que os interpretem e, assim, conformem preferências. Tal qual Karpik (2010), estamos, ao observar as startups, diante de objetos considerados singulares e que dependem de interpretações que são construídas e difundidas no próprio mercado. Nessa linha, os eventos promovidos pelas aceleradoras importam à formação de padrões sociais justamente porque são espaços privilegiados para que os agentes estabeleçam e difundam o que é promissor e o que não o é no mercado de capital de risco voltado a startups.
Trata-se de eventos em que se distribuem prêmios sob a forma de títulos (na forma de “destaque da rodada”, “vencedor da edição”, por exemplo), troféus, medalhas, certificados, publicações em veículos de comunicação especializados, dentre outros. Esses emblemas são interpretados por empreendedores e outros agentes como incrementais ao valor potencial das startups. Não sem razão, os prêmios recebidos são sempre mencionados ao final dos chamados pitches, breves apresentações que os empreendedores proferem ao longo da sua trajetória de prospecção por capital (Maia, 2019). Como esse tipo de evento tende “a ser simultaneamente um privilégio daqueles que estão no poder e um instrumento de disputa de status entre eles” (Appadurai, 2008/1986, pp. 36-37), podemos refletir sobre o papel dos prêmios distribuídos em demodays enquanto signos de “torneios de valor”.
Encontramos um exemplo esclarecedor dessa dinâmica na interpretação de Picanço (2018) sobre a Expo HSM Management, uma exposição de tecnologias de gestão corporativa. A autora observa que esse é um espaço em que se valoram as modas gerenciais, já que a empresa organizadora do evento não almeja promover trocas sob a forma do consumo imediato das tecnologias promovidas, mas se estabelecer como uma qualificadora e consagradora dos produtos e serviços ali apresentados. A longevidade e a periodicidade de alguns eventos corporativos, como é o caso da Expo HSM, e de alguns eventos de startups, como é o caso do Global Startup Awards, indicam que a distribuição de emblemas é uma atividade que cativa tanto as editoras de livros de gestão quanto os fomentadores do empreendedorismo.
Nessa linha e se é verdadeiro que “os signos são, eles mesmos, capazes de render lucros se forem manipulados apropriadamente” (Appadurai, 2008, p. 71), a mobilização de signos observada nos demodays também desempenha o papel de fomentar o recrutamento de novos interessados em construir negócios de risco. Quando entendemos os demodays como espaços que engajam os indivíduos em torno de disputas por signos de mérito, podemos reconhecer que figurar em listas de “startups mais promissoras do ano”, estampar matérias jornalísticas, ou ser selecionado para representar as startups brasileiras em eventos internacionais, como é o caso de alguns de nossos entrevistados, são marcas de distinção perseguidas pelos que consideram alocar seu trabalho, inteligência, tempo e recursos na empresa capitalista.
Ora, animar indivíduos a colocar sua capacidade produtiva – na forma de “imaginação” sobre o futuro (Beckert, 2013) – a serviço da criação de firmas também exige coordenação. Em uma atividade livre de barreiras formais de entrada, a promoção de eventos sistemáticos – e sua difusão nos meios de comunicação especializados – é um esforço valioso nesse intento, uma vez que apresenta aos interessados em empreender os dispositivos de persuasão e indica as aceleradoras como espaços de legitimação. Nesse sentido, os eventos demoday contribuem para assegurar um fluxo de candidaturas capaz de abastecer os investidores de ativos financeiros previamente selecionados pelas aceleradoras.
A adoção de dispositivos como o Canvas, até há pouco encontrados apenas nas aceleradoras internacionais, por organizações acadêmicas como a Fapesp, indica a relevância das aceleradoras na promoção do empreendedorismo enquanto um programa de ação coletivo (Latour, 1992). Corrobora essa ideia a criação de aceleradoras por firmas incumbentes no setor financeiro (Cubo-Itaú; Oxigênio-Porto Seguro), no terceiro setor (Artemísia), nas escolas de negócios (Fundação Getúlio Vargas), e nas fundações ligadas a grandes gestores de capital (Fundação Lemann e Fundação Via Varejo).
Afinal, se em meados dos anos 1980 Appadurai (2008, p. 70) reconhecia que, nos mercados futuros, “trocam-se emblemas de valor que só podem ser transformados em outros meios por uma complexa série de etapas em circunstâncias inusuais”, em meados dos anos 2020, podemos afirmar que essas circunstâncias são menos usuais. Os empreendedores de negócios de risco que pretendem fazer o futuro acontecer como esperado pelos agentes detentores de capital excedente se apoiam em dispositivos concretos, como o Canvas, que, institucionalizados por agentes intermediadores, produzem futuros (Beckert & Bronk, 2018).
Este artigo abordou um programa de aceleração de startups que busca tornar tecnologias baseadas em pesquisas acadêmicas aptas à atração de capital de risco. A partir da constatação de que os trabalhos na aceleradora se concentram no Canvas, um esquema visual que se presta à estruturação de negócios, verificamos que ele direciona a conduta dos empreendedores à tarefa de identificar potenciais segmentos de consumidores para aquelas tecnologias, de modo a reunir elementos que demonstrem aos investidores privados de capital de risco a viabilidade dos projetos. Ocorre que as expectativas dos empreendedores quanto à aplicação das tecnologias que desenvolvem e a expectativa de consumidores potenciais são, comumente, dissonantes. Em lugar de buscar o consenso, os agentes das aceleradoras exploram a disputa em torno desses princípios de valor, para que as startups se tornem mais atraentes. Argumentamos, então, que o Canvas é um dispositivo que tanto prescreve condutas em direção àquelas legitimadas no mercado de capital de risco quanto habilita a transformação de achados científicos em ativos financeiros.
Ademais, ao verificar que os demodays concedem prêmios utilizados pelos empreendedores no incremento da atratividade de investidores, propusemos que as aceleradoras realizam torneios de valor, ou seja, que buscam se estabelecer como consagradoras das startups que sugerem aos investidores. A difusão desse formato de evento em espaços variados, tais como universidades e organizações não-governamentais, indica que as aceleradoras também desempenham o papel de recrutar novos atores ao empreendedorismo, assegurando um bom fluxo de projetos de negócios com potencial de sucesso no mercado de capital de risco. Afinal, o artigo avança na interpretação do empreendedorismo contemporâneo ao aportar a ideia de que dispositivos concretos, operados por agentes intermediadores, são mobilizados na produção das condições para que projetos de negócios passem a circular na forma de ativos financeiros.
Sabemos que as regras de troca são o resultado de processos políticos por meio dos quais é estabelecido um equilíbrio de poder entre governos, empresas e trabalhadores, e que o Estado é o produtor do pano de fundo institucional para o desenvolvimento econômico subsequente (Fligstein, 2001), e a sociologia brasileira tem sido enfática ao apontar os efeitos de algumas das modificações institucionais no mundo laboral, descrevendo, por exemplo, as novas formas de exploração do trabalho (Abílio, 2020). Neste artigo, buscamos iluminar esse fenômeno a partir de uma perspectiva diferente, que privilegia não os efeitos da atuação das startups na sociedade, mas os atores e os dispositivos que habilitam seu planejamento, desenvolvimento e valoração.
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