Dossiê Mercados Transnacionais
Conexões globais desiguais: a gestão de veículos em fim de vida útil e os mercados de automóveis e peças usados
Uneven global connections: end-of-life vehicle management and used car and car parts markets
Conexiones globales desiguales: gestión de vehículos al final de su vida útil y mercados de automóviles y repuestos usados
Conexões globais desiguais: a gestão de veículos em fim de vida útil e os mercados de automóveis e peças usados
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 12, e-rbs.1024, 2024
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepción: 18 Junio 2024
Aprobación: 18 Septiembre 2024
Resumo: O presente artigo objetiva analisar conexões entre dispositivos estatais que regulam a destinação de veículos em fim de vida útil e a conformação de economias, locais e transnacionais, de automóveis e autopeças usados. Para tal discussão, partiremos do que aprendemos de três contextos empíricos específicos: os mecânicos de rua em Saint-Denis, norte da Grande Paris, França; o comércio de autopeças na região de Abossey Okai, em Acra, Gana; e a desmontagem de veículos para venda de peças na Avenida Riacho, em São Paulo, Brasil. Essa discussão se baseia em resultados preliminares do projeto Globalcar, uma pesquisa etnográfica multissituada e coletiva sobre circuitos econômicos (in)formais e (i)legais de veículos e autopeças de segunda mão, em desenvolvimento desde 2021. No contexto contemporâneo, veículos em fim de vida útil são recursos globais valiosos, disputados por diferentes circuitos econômicos – como a indústria da reciclagem, a reutilização de peças usadas e até mesmo a exportação para reparação e revenda como veículo de segunda mão para territórios com regulações menos restritivas ou mais facilmente burláveis. Tais redes transnacionais representam vias secundárias da cadeia automotiva, mecanismos de expansão e capilarização do “sistema” da automobilidade nas periferias do capitalismo. Suas dinâmicas desvelam conexões e fricções globais, levantando um debate sobre as geografias desiguais de políticas ambientalistas, do desenvolvimento econômico e da globalização.
Palavras-chave: Veículos em fim de vida útil, economias informais, dispositivos estatais, globalização.
Abstract: The aim of this article is to analyze the connections between state provisions regulating the disposal of end-of-life vehicles and the formation of local and transnational economies for used automobiles and auto parts. For this discussion, we will draw on what we have learned from three specific empirical contexts: Street mechanics in Saint-Denis, north of Greater Paris, France; the trade in used auto parts in the Abossey Okai region of Acra, Ghana; and the dismantling of vehicles for the sale of parts on Avenida Riacho, in São Paulo, Brazil. This discussion is based on the preliminary results of the Globalcar project, a multi-sited and collective ethnographic research project on the (in)formal and (il)legal economic circuits of second-hand vehicles and auto parts, which has been under development since 2021. In the contemporary context, end-of-life vehicles are valuable global resources, disputed by different economic circuits – such as the recycling industry, the reuse of second-hand parts and even the export for repair and resale as second-hand vehicles to territories with less restrictive or more easily circumvented regulations. These transnational networks represent backroads of the automotive chain, mechanisms for expanding and spreading the “system” of automobility in the peripheries of capitalism. Their dynamics reveal global connections and frictions and raises a debate about the unequal geographies of environmental policies, economic development and globalization.
Keywords: End-of-life vehicles, informal economies, state devices, globalisation.
Resumen: El objetivo de este artículo es analizar las conexiones entre las disposiciones estatales que regulan el destino de vehículos al final de su vida útil y la formación de economías locales y transnacionales para automóviles y autopartes usados. Para este análisis, nos basaremos en lo que hemos aprendido de tres contextos empíricos específicos: los mecánicos callejeros en Saint-Denis, al norte del Gran París, Francia; el comercio de autopartes usadas en la región de Abossey Okai en Acra, Ghana; y el desmantelamiento de vehículos para la venta de partes en la Avenida Riacho, en São Paulo, Brasil. Este debate se basa en los resultados preliminares del proyecto Globalcar, un proyecto de investigación etnográfica colectiva y multisituada sobre los circuitos económicos (in)formales e (il)legales de vehículos de segunda mano y autopartes, que se viene desarrollando desde 2021. En el contexto contemporáneo, los vehículos al final de su vida útil son valiosos recursos globales, disputados por diferentes circuitos económicos, como la industria del reciclaje, la reutilización de piezas de segunda mano e incluso la exportación para su reparación y reventa como vehículos de segunda mano a territorios con regulaciones menos restrictivas o más fáciles de eludir. Estas redes transnacionales representan carreteras secundarias de la cadena automotriz, mecanismos de expansión y difusión del “sistema” de la automovilidad en las periferias del capitalismo. Su dinámica revela conexiones y fricciones globales, y plantea un debate sobre las geografías desiguales de las políticas ambientales, el desarrollo económico y la globalización.
Palabras clave: Vehículos al final de su vida útil, economías informales, dispositivos estatales, globalización.
Introdução
O presente artigo objetiva analisar conexões entre dispositivos estatais que regulam a destinação de veículos em fim de vida útil e a conformação de economias de automóveis e autopeças usados, em escalas local e transnacional. Esta discussão se baseia em resultados preliminares do projeto Carros globais: uma pesquisa urbana transnacional sobre a economia informal de veículos – Globalcar1 –, uma pesquisa etnográfica multissituada (Marcus, 1995) e coletiva (Feltran 2022) sobre circuitos econômicos (in)formais e (i)legais de veículos e autopeças de segunda mão, em desenvolvimento desde 2021. Para tal discussão, partiremos de material de campo produzido em três contextos empíricos específicos: os mecânicos de rua em Saint-Denis, norte da Grande Paris, França; o comércio de autopeças usadas na região de Abossey Okai, em Acra, Gana; e a desmontagem de veículos para venda de peças na Avenida Riacho2, na zona leste de São Paulo, Brasil. A partir desses contextos, buscaremos analisar as dinâmicas das economias que fazem tais objetos circularem e, também, recompor as trajetórias de construção e de tensionamento dos dispositivos estatais que as regulam.
Ao longo de suas vidas sociais (Appadurai, 1986), automóveis envelhecem, são vendidos, sofrem desgaste, danos, sinistros3 – até se tornarem inutilizáveis, irrecuperáveis, obsoletos. Essas trajetórias de consumo são registradas através de dispositivos regulatórios, que envolvem uma dimensão normativa (Foucault, 1988), referente à produção de categorias e critérios técnicos de classificação e também uma dimensão material, referente aos instrumentos tecnopolíticos (Hecht, 2011) que operacionalizam tais categorizações. Em territórios distintos, diferentes dispositivos atuam visando classificar veículos “em fim de vida útil”, estabelecendo empecilhos legais e técnicos para que eles sejam reparados, regularizados e voltem a circular. Isso não significa que tais bens não possuam valor de troca. No contexto contemporâneo, eles são recursos globais (Jacquot & Morelle, 2023) valiosos, disputados por diferentes circuitos econômicos.
O contexto francês pontua a emergência de um debate contemporâneo sobre a proteção do meio ambiente e o fomento à reciclagem, que vem resultando no recrudescimento de regulações ambientais na Europa (Alexander & Reno, 2012). A implementação de restrições à circulação de veículos considerados velhos ou poluentes exemplifica isso. Retirados de circulação, esses veículos se inserem em outros mercados – como a reciclagem e o comércio peças usadas –, sendo requalificados enquanto mercadoria e se inserindo em regimes de valor (Crang et al., 2012) distintos. Eles também podem ganhar novas vidas úteis enquanto bens de consumo, ao serem exportados para outros territórios, sobretudo no Sul Global, onde poderão ser reparados, vendidos e consumidos como veículos funcionais. Isso é demonstrado no contexto ganense, exemplar do que se passa em toda a África Ocidental, onde a imensa maioria da frota local é composta por veículos importados usados, inclusive batidos e em fim de vida útil. Já o contexto brasileiro possui algumas especificidades com relação a esses dois. A regulação estatal da cadeia econômica da desmontagem de veículos em fim de vida útil, nesse caso, atende não a demandas ambientalistas, mas sobretudo de segurança pública, referentes ao combate ao roubo de veículos (Motta et al., 2022), sinalizando um profundo imbricamento entre esse mercado e as economias e trajetórias de veículos roubados.
Automóveis são objetos que agenciam uma pluralidade de circuitos econômicos, cadeias produtivas, infraestruturas, formas de apropriação dos espaços e repertórios culturais, estéticos e identitários (Featherstone et al., 2005; Miller, 2001). Veículos em fim de vida útil, por sua vez, mobilizam dispositivos gestionários estatais dos mais diversos, e também agenciam redes econômicas (in)formais e (i)legais em escala transnacional. Tais redes figuram como vias secundárias (Knowles, 2017) da cadeia automotiva, como mecanismos de expansão e capilarização do “sistema” da automobilidade (Urry, 2005) nas periferias do capitalismo. A conformação de tais redes desvela conexões globais, constituídas através de fricções (Tsing, 2005), e levanta um debate sobre as geografias desiguais de políticas ambientalistas, do desenvolvimento econômico e da globalização.
Do ponto de vista teórico, nossa reflexão dialoga com contribuições que propõem a desconstrução de representações hegemônicas sobre a economia, pautadas exclusivamente por uma certa ideia de racionalidade e objetividade, que ignoram os aspectos sociais e subjetivos envolvidos na construção de mercados (Feltran, 2019, 2022; Bize, 2020; Callon, 2021; Garcia-Parpet, 2003; Guyer, 2004; Zelizer, 1994). Frequentemente, abordagens normativas e economicistas também são muito centradas em um ideal de “economia formal/legal”, que tende a descrever economias informais e ilegais como formas menos avançadas em uma pretensa escala evolutiva, ou até mesmo como “economias paralelas” (Feltran, 2019; Beckert & Dewey, 2017).
Economias (in)formais e (i)legais são parte importante e cada vez mais expressiva da economia global contemporânea e representam mecanismos produtores de globalização nas margens do capitalismo. Longe de se produzir exclusivamente nas grandes “cidades globais” (Sassen, 2007), através de circuitos superiores da economia (Santos, 2017), ela também se produz “por baixo” (Portes, 1997; Tarrius, 2002), através de vias secundárias (Knowles, 2017), e envolve conexões globais compostas por fricções diversas (Tsing, 2005). As redes que fazem circular mercadorias que alimentam economias populares (Rabossi, 2015; Pinheiro-Machado, 2017; Telles & Cabanes, 2006; Rangel, 2019), inclusive mercadorias usadas (Brooks, 2012; Cohen, 2023; Hernández, 2022), também são dimensão central para a compreensão desse fenômeno. Há, aqui, também um diálogo metodológico com trabalhos que apostam na análise de trajetórias de objetos (Appadurai, 1986; Knowles, 2017; Tsing, 2015) como forma de compreendê-los. A recomposição das jornadas dos bens de consumo transacionados por tais economias globais desvela a formação de redes pessoais, relações, vínculos e valores – e, também, interações com dispositivos gestionários e táticas de contornamento, visando explorar as fronteiras entre o legal e o ilegal, entre o formal e o informal (Telles, 2010).
Entendemos essas fronteiras como construções sociais que envolvem disputas políticas entre empreendedores morais (Becker, 2009), munidos de discursos de justificação (Boltanski & Thévenot, 2006), visando construir determinadas práticas enquanto problemas públicos (Cefaï, 2017) e propondo estratégias específicas para criminalizá-las. Tais estratégias gestionárias são referentes importantes para a conformação de economias ilícitas e suas dinâmicas. Tanto os ilegalismos quanto sua gestão se constituem não através de uma dicotomização entre o legal e o ilegal, mas sim através de jogos complexos com a lei (Foucault, 2016; Hirata 2022). Além de espaços de interação entre a gestão estatal e seus alvos, essas fronteiras são também locais de intersecção entre diferentes regimes normativos, que nos permitem pensar a gestão de populações e de territórios como não produzida exclusivamente pelo Estado, mas sim como algo disputado e negociado também por outros atores – inclusive atores criminais (Feltran, 2018).
Este artigo se divide em quatro partes. Na primeira, partindo dos mecânicos de rua em Saint-Denis, analisaremos a trajetória de produção dos dispositivos que regulam a destinação de veículos em fim de vida útil na França, bem como seus impactos nas dinâmicas de economias formais e informais. Já na segunda, partiremos do comércio de autopeças usadas em Abossey Okai, para analisar a formação de redes transnacionais de exportação de veículos de segunda mão (incluindo veículos em fim de vida útil) para Gana, bem como disputas políticas em torno de sua legitimação ou criminalização. Na terceira parte, partiremos dos desmanches de veículos na Avenida Riacho, para analisar as dinâmicas da economia da desmontagem veicular e sua regulação no Brasil. Por fim, teceremos algumas breves considerações finais, com base no material exposto.
Os mecânicos de rua em Saint-Denis e a economia da reciclagem automotiva na França4
Estamos em Saint-Denis, comuna localizada a norte da Grande Paris. Uma região periférica com relação à capital francesa, uma das maiores cidades globais (Sassen, 2007) do mundo, e com forte presença de imigrantes, especialmente oriundos do continente africano. Em muitas ruas dessa região, que tem sua paisagem visivelmente marcada pelas ruínas de antigas indústrias, é notável a concentração de carros avariados, alguns deles eram consertados ali mesmo. Os homens que consertam esses carros são os chamados “mecânicos de rua”. Trata-se de uma atividade econômica muito presente na região. Os mecânicos são, em grande parte, imigrantes, muitas vezes não documentados, vindos da Costa do Marfim ou de países vizinhos. Seus clientes são majoritariamente pessoas de baixa renda, que necessitam reparar seus antigos e desgastados automóveis a preços mais acessíveis. Essa atividade é publicamente tratada como “informal”, supostamente conduzida às margens das leis (sobre o descarte de resíduos poluentes, a segurança no ambiente de trabalho, a ocupação de espaços públicos, entre outras). Por conta disso, ela é muito estigmatizada – recorrentemente descrita por empreendedores morais (Becker, 2009) ligados ao poder público ou à imprensa, de forma pejorativa, como “mecânicos selvagens”.
Estamos em Saint-Denis, comuna localizada a norte da Grande Paris. Uma região periférica com relação à capital francesa, uma das maiores cidades globais (Sassen, 2007) do mundo e com forte presença de imigrantes, especialmente oriundos do continente africano. Em muitas ruas dessa região, que tem sua paisagem visivelmente marcada pelas ruínas de antigas indústrias, é notável a concentração de carros avariados, alguns deles consertados ali mesmo. Os homens que consertam esses carros são os chamados “mecânicos de rua”. Trata-se de uma atividade econômica muito presente na região. Os mecânicos são, em grande parte, imigrantes, muitas vezes não documentados, vindos da Costa do Marfim ou de países vizinhos. Seus clientes são majoritariamente pessoas de baixa renda, que necessitam reparar seus antigos e desgastados automóveis a preços mais acessíveis. Essa atividade é publicamente tratada como “informal”, supostamente conduzida às margens das leis (sobre o descarte de resíduos poluentes, a segurança no ambiente de trabalho, a ocupação de espaços públicos, entre outras). Por conta disso, ela é muito estigmatizada – recorrentemente descrita por empreendedores morais (Becker, 2009) ligados ao poder público ou à imprensa, de forma pejorativa, como “mecânicos selvagens”.
Em nosso projeto coletivo, os mecânicos de rua de Saint-Denis foram a porta de entrada para analisarmos o mercado de autopeças usadas na França. O trabalho de Marie Morelle, Sébastien Jacquot e Dennis Giordano trouxe inicialmente os elementos sociais envolvidos nas dinâmicas de funcionamento dessa economia – como a construção de identidades, etnicidades, sociabilidades, vínculos, moralidades e discursos de legitimação mobilizados pelos mecânicos (Giordano, 2016; Jacquot & Morelle, 2019). Mais adiante, em contato com dinâmicas que a equipe brasileira trazia, inicia-se também na França a busca pelas trajetórias das mercadorias que alimentavam esses mercados informais. Como coletivo, questionávamo-nos, por exemplo, de onde vinham as peças automotivas utilizadas no reparo desses automóveis? Eram peças novas ou de segunda mão? Originais ou “paralelas”? De origem “legal” ou “ilegal”?
Através desse estudo sobre os mecânicos de rua, nossa equipe pôde acessar a própria trajetória de construção dos dispositivos de gestão de veículos em fim de vida útil na França. Conhecemos, por esse trabalho, os ferros-velhos e os Centres VHU5– espaços para os quais estes veículos deverão ser destinados, para a coleta de material para reciclagem, sobretudo sucata ferrosa, e também para a revenda de peças usadas. Esses espaços conectam economias populares, como a reparação automotiva de rua, e grandes economias transnacionais, como indústrias que atuam com a reciclagem, produtores de automóveis e peças, o mercado de seguros automotivos, entre outros (Jacquot & Morelle, 2023).
A França foi líder mundial na produção de automóveis no início do desenvolvimento dessa indústria, entre o final do século XIX e o início do XX. Através da pujança da indústria automotiva local, a antiga potência colonial se reafirmava como centralidade econômica no início da era industrial. Ao mesmo tempo, o objeto automóvel, descrito por Urry (2005, p. 28) como “a verdadeira ‘gaiola de aço’ da modernidade”, em alusão a Weber, representaria uma inflexão na própria forma de se pensar a ideia de modernidade (Inglis, 2005). Isso envolveu também novas formas de planejamento urbano, que suscitaram intervenções concretas que alterariam drasticamente a paisagem da capital francesa no início do século XX (Berman, 1986). Tudo isso impulsionaria a massificação do consumo de automóveis no país. De acordo com dados da OICA (Organização Internacional de Produtores de Automóveis, fundada e sediada em Paris), apenas no ano de 2023, a indústria francesa produziu mais de 1,5 milhão de veículos.6 Ainda, de acordo com dados da organização, no ano de 2020 o país possuía a terceira maior frota de toda a Europa, estimada em pouco mais de 45 milhões de veículos, e uma expressiva média de 704 veículos para cada 1000 habitantes7. Os números referentes ao processamento de veículos em fim de vida útil na França, por sua vez, também são expressivos: estima-se que cerca de 1,3 milhão desses veículos sejam processados anualmente.8
Ainda em meados do século XX, a destinação de veículos em fim de vida útil se tornaria questão de interesse público, e os ferros-velhos surgem como destinos possíveis para veículos descartados. Os ferros-velhos se constituíram como uma “economia de sobras” (Bize, 2020), que atuava tanto com a recuperação de sucata ferrosa para reciclagem quanto com a venda de peças usadas. Essa posição de mediação entre grandes cadeias produtivas e economias populares é algo presente desde o início na economia dos ferros-velhos. Por um lado, os veículos descartados representavam a oferta de matéria-prima para a indústria siderúrgica. Por outro, eles representavam também a oferta de peças de segunda mão para o reparo de outros veículos, alimentando economias locais que figuravam como alternativa às redes de concessionárias e oficinas ligadas às montadoras.
Nas décadas seguintes, no entanto, os ferros-velhos passariam a ser representados como uma “economia informal”. Isso era visto como um problema público (Cefaï, 2017), por supostamente comprometer a regulação estatal e a eficiência do processo de reciclagem. Nessa época, a reciclagem já era vista como atividade central para a mitigação dos impactos ambientais da produção industrial – sobretudo de automóveis, que já figuravam como grandes “vilões do meio ambiente” (Featherstone et al., 2005). A partir dos anos 2000, foram instituídos os Centres VHU – Centros de Veículos em Fim de Vida Útil. Eles são espécies de ferros-velhos institucionalizados e formalizados. Esse processo de institucionalização se deu através de políticas implementadas no âmbito da União Europeia (como a ELV Directive, no ano 2000) e também em nível nacional. Desde então, apenas Centres VHU formalizados são legalmente autorizados a emitir os Certificados de Destruição, documento exigido para “dar baixa” no carro, e que permite acessar descontos para a aquisição de veículos mais novos e menos poluentes (elétricos ou híbridos). Os Certificados de Destruição, nesse caso, atuariam como dispositivos tecnopolíticos (Hecht, 2011), que assegurariam o monopólio de Centres VHU institucionalizados enquanto espaços de destinação de veículos em fim de vida útil.
Gradualmente, os Centres VHU foram se inserindo em cadeias econômicas globais, como a indústria da reciclagem e a indústria automotiva, através da formação de redes de parceria e eco-organizações. Em diálogo com um debate sobre a “economia circular” (Eude, 2019), produtores de automóveis passariam a se envolver mais no processo e reciclagem de sucata e resíduos, e, futuramente, também com o reaproveitamento de peças para remanufatura. Peças de segunda mão extraídas de veículos em fim de vida útil, atualmente, são recursos disputados tanto por economias populares criminalizadas, que atuam com a reparação automotiva independente e voltada a um público de baixa renda, como os “mecânicos de rua” de Saint-Denis, quanto por grandes montadoras de automóveis, que vêm se inserindo cada vez mais no mercado de peças remanufaturadas como estratégia para o cumprimento de metas de despoluição – e, não menos importante, como oportunidade de construção de uma legitimação pública, sob o rótulo de “empresas ecologicamente responsáveis”. Esses deslocamentos contemporâneos, no entanto, envolvem também certos conflitos. Alguns agentes ligados aos Centres VHU, por exemplo, queixam-se dessa crescente relação com grandes corporações transnacionais, alegando que elas tiram sua autonomia e os colocam em posição subalternizada (Jacquot & Morelle, 2023).
Por um lado, dispositivos de regulação estatal buscam estabelecer e estabilizar as trajetórias de destinação de veículos em fim de vida útil. Por outro, eles também são referentes para a conformação de linhas de fuga. Grande parte dos veículos em fim de vida útil na França, por exemplo, acaba sendo destinada não a Centres VHU instituídos, mas a “ferros-velhos ilegais”.9 Estes ferros-velhos representariam um problema por diversos motivos, como o desrespeito a procedimentos legalmente instituídos, o descarte irregular de resíduos e a poluição, a competição desleal com Centres VHU formalizados e a “conexão com mercados ilegais”. Outra destinação econômica possível para esses veículos é a exportação para países da Europa Oriental ou até mesmo para o continente africano. A principal rota de exportação de veículos europeus para a África, incluindo veículos franceses, seria via porto de Antuérpia, na Bélgica (que, cabe pontuar, também é uma rota importante para a entrada de cocaína no continente europeu). Na capital do país, Bruxelas, regiões inteiras são ocupadas por diversas empresas que exploram esse mercado – de pequenas garagens a grandes empreendimentos, com grandes escritórios e pátios enormes capazes de abrigar centenas de veículos.
O comércio de autopeças usadas em Abossey Okai e a importação de veículos em fim de vida útil em Gana10
Estamos agora muito distantes de Saint-Denis. Estamos no bairro de Abossey Okai, em Acra, capital de Gana. Nas ruas estreitas e não asfaltadas que cortam a região, vemos uma enorme quantidade e diversidade de peças automotivas, acumuladas no interior ou nas fachadas dos imóveis, empilhadas e penduradas em prateleiras de madeira dispostas na rua. O fluxo de pessoas e carros é intenso. Clientes de diversas regiões, algumas muito distantes, vão àquele lugar para comprar autopeças usadas. A região é um importante hub desse mercado na África Ocidental. Em um dado momento, no meio da confusão, observamos um caminhão com um contêiner, que chegava diretamente do Porto de Tema, passar pela multidão. O contêiner se abre. Quatro homens jovens, contratados por diária, aproximam-se dele, munidos de um carrinho de transporte bastante velho e de uma chapa de ferro improvisada como rampa, e começam a descarregá-lo. O contêiner traz motores, que são colocados no chão, no meio da rua, para que lojistas da região possam analisá-los.
Por vezes, os contêineres vindos do porto carregam também veículos inteiros, geralmente antigos ou batidos. As importações de veículos e de peças usadas são economias intimamente conectadas. A reparação e revenda de veículos usados em Gana demanda disponibilidade de peças, como as comercializadas cotidianamente em Abossey Okai. Veículos que, por motivos legais, técnicos ou econômicos, não poderão mais circular em seus territórios de origem, podem ser exportados para Gana, onde poderão novamente ser consumidos como “veículos funcionais”. Se a reciclagem é uma economia que permite a requalificação e a revaloração de veículos sucateados e seus componentes, a possibilidade de reparação e de remanufatura possibilita que esses veículos se insiram em um regime de valor (Crang et al., 2012) completamente distinto, com enorme valorização.
Em nossa pesquisa na região de Abossey Okai, fomos guiados por Shawn, um homem de 32 anos, pai de quatro filhos. Ele entrou no ramo através do sogro, que comprou sua primeira lojinha de motores na região com o recurso obtido trabalhando como faxineiro em Madrid. Além do sogro, trabalha junto com um tio e um irmão. A loja é basicamente uma porta de garagem, onde ficam Shawn e seus parentes, e cerca de 50 motores em estoque. Ela integra uma associação de revendedores de peças. Nós visitamos essa associação, porém foi difícil falar com seu presidente. A todo momento, o homem falava no celular com algum parceiro de negócios, interrompendo a conversa. Ele era bastante ocupado, a economia é dinâmica ali. Os mercados de peças e veículos de segunda mão em Gana são altamente lucrativos. Para empreendedores como Shawn, eles representam oportunidade de grandes lucros, mesmo sem escolaridade ou treinamento formal. Para seus operadores menos qualificados, como os homens que descarregavam motores do contêiner vindo do porto de Tema, eles representam possibilidade de trabalho com rendimentos escassos. Para os consumidores, Abossey Okay representa a possibilidade de acesso a carros importados a preços mais acessíveis.
A OICA não dispõe de dados públicos sobre a produção e a frota de veículos em Gana – que, diferentemente da França, por exemplo, não é uma centralidade na cadeia global da produção automotiva. Segundo dados produzidos pelas autoridades de trânsito locais, no ano de 2022 o país possuía uma frota de 3,2 milhões de veículos registrados.11 Estimativas apontam que, em 2017, Gana tinha pouco mais de dois milhões de carros em circulação, o que é pouco se comparado à frota francesa, mas representaria à época um crescimento de 300% em 20 anos (Ayetor et al., 2020apudCohen, 2023, p. 70). A pesquisa de campo também corroboraria essa percepção de expansão dos mercados, viabilizada pela importação de veículos avariados e em fim de vida útil, sobretudo oriundos dos Estados Unidos. Gana teria importado mais de um milhão de veículos entre 2005 e 2016.12 Concessionários de marcas europeias em Gana, que enfrentavam dificuldade para impulsionar a venda de veículos novos, revelaram em entrevista que, entre os quase 100 mil carros vendidos no país em 2021, 90% eram importados usados (Cohen, 2023, p. 70).
Se automóveis são objetos cuja massificação da produção e do consumo desloca representações e experiências da modernidade, práticas como a importação de veículos batidos e sucateados pontuam formas específicas de percepção e engajamento nesse fenômeno. A ideia de modernidade é bastante conectada à ideia de desenvolvimento – ambas são referentes importantes para o estabelecimento de hierarquizações, entre as grandes cidades do Norte Global e as “cidades comuns” do Sul Global (Robinson, 2006). Essa relação de alteridade hierarquizada pode ser também pensada em escala nacional. Aqui, a produção automotiva desempenha um papel importante. Via de regra, países que historicamente figuraram como protagonistas globais da produção automotiva – muitas vezes apropriada como metáfora para se pensar o próprio modo de produção capitalista industrial (Urry, 2005) – puderam se afirmar como potências industriais, “economias desenvolvidas”. Países menos industrializados, por sua vez, ocupam uma posição diferente nessa divisão internacional do trabalho, figurando como importadores de produtos manufaturados dos países “desenvolvidos”. Tais conexões globais se tornam mais radicalmente assimétricas quando a sucata e a poluição do Norte Global são exportadas para o Sul Global (Alexander & Reno, 2012), onde serão recondicionadas e colocadas “de volta no mercado”.
Essas conexões têm sua história. Se os veículos usados ou sucateados exportados da França ou da Bélgica têm como principal destinação os países africanos francofônicos, como Costa do Marfim, Benin, Mali ou Senegal, nas revendas de veículos usados e reparados em Gana importa-se carros dos Estados Unidos. Veículos de origem europeia, inclusive franceses, são menos presentes em Gana, Nigeria ou Togo, embora existam, dadas as redes oriundas do período colonial. Dos Estados Unidos (por vezes também do Canadá), veículos usados, sinistrados, batidos, chegam ao Porto de Tema, às vezes tendo passado antes por Dubai, um hub global importante na cadeia de suprimento de veículos e autopeças usados.13
Em entrevista, o responsável pelo setor de veículos na alfândega nos relatou que carros e autopeças representariam algo entre 20% e 30% dos contêineres que chegam ao porto de Tema, sendo responsáveis por parcela significativa do total de impostos arrecadados pelo governo (Cohen, 2023, p. 78). Legalmente, importar veículos batidos ou com mais de dez anos de idade é proibido em Gana, mas na prática isso ocorre com frequência. Há ainda outros eventuais ilegalismos envolvidos na importação desses veículos. Há registros, por exemplo, da existência de redes de exportação de veículos roubados nos Estados Unidos e no Canadá (e, também, na França, em menor escala) para países africanos, como Gana e Nigéria. Através da falsificação de documentos nos países de origem, e do baixo controle local – mobilizações subversivas dos dispositivos tecnopolíticos (Hecht, 2011) que regulam suas trajetórias de consumo –, esses veículos chegariam ao mercado ganense sem grandes problemas.
Recentemente, produtores automotivos vêm investindo na região, através da instalação de linhas de montagem de grandes marcas globais, como Volkswagen, Toyota, Nissan e Peugeot em Gana. No país, há também uma montadora nacional, a Kantanka. Ainda assim, o consumo de veículos de produção nacional em Gana é muito limitado, restrito às elites (Amoah, 2024). Ao mesmo tempo que buscam afirmação no mercado local, os produtores nacionais articulam uma tentativa de criminalização da importação de veículos usados, alegando que ela dificultaria o controle sobre as condições físicas e a emissão de poluentes da frota nacional, além de causar prejuízos ao desenvolvimento da indústria e da economia locais. O Estado parece ocupar uma posição dúbia nessa controvérsia. Ele reconhece publicamente a importância do desenvolvimento da indústria local para o desenvolvimento econômico, mas não combate de forma rigorosa práticas ilícitas ligadas à importação de usados. Embora as economias de veículos e peças de segunda mão no país se situem nas fronteiras entre o legal e o ilegal, entre o formal e o informal, empreendedores desses mercados possuem relativa interlocução com o Estado. Eles possuem, também, uma organização interna enquanto classe – não constituída a partir de organismos institucionalizados, como associações ou sindicatos, mas sim através de uma irmandade.
As irmandades representam formas específicas de organização social e política, constituídas através de redes de confiança e apoio mútuo entre “irmãos”. Elas podem ser observadas em contextos bastante distintos, desde as chamadas “sociedades secretas”, como a maçonaria, até mesmo grupos criminais, como o PCC (Feltran, 2018). Apesar da aparente discrepância entre esses exemplos, existe algo que os aproxima: a maneira como produzem governança de mercados, que destoa de uma lógica institucional ligada ao funcionamento do Estado burocrático-legal mas que, ao mesmo tempo, interage com esses dispositivos de gestão estatal, podendo afetá-los. No caso ganense, a irmandade que reúne lojistas de autopeças usadas (que se apresenta como associação apesar de institucionalmente não o ser) compõe uma elite local que desfruta de legitimidade social, o que lhe dá um maior poder perante os produtores automotivos nessa disputa política em torno da criminalização da atividade.
Os desmanches de veículos na Avenida Riacho e a economia da desmontagem veicular no Brasil14
Por fim, estamos agora na Avenida Riacho – nome fictício –, zona leste de São Paulo. Aquela região toda, mas em especial essa estreita avenida, é conhecida pela grande presença de desmanches, estabelecimentos que atuam com a desmontagem de veículos em fim de vida útil para venda de peças. A Avenida Riacho é um local conhecido para a compra de peças usadas a preços baixos e figura como espécie de “fronteira urbana”, conectando bairros mais elitizados a regiões periféricas. Peças expostas e carros batidos empilhados, nas dependências das lojas ou mesmo nas calçadas, compõem a paisagem da região. O movimento de veículos é grande, e o vai-e-vem de clientes é notável. Muitos entram e saem rapidamente dos desmanches da avenida, gritando da porta o nome de alguma peça específica que procuram, ao que os vendedores respondem rapidamente se dispõem dela para venda ou não. Raramente os consumidores encontram o que querem em uma primeira tentativa, é necessário “garimpar”.
Nos últimos anos, alguns clientes preferem fazer essa “garimpagem” através de plataformas de comércio eletrônico, recurso cada vez mais utilizado por desmanches de todo o país para incrementar suas vendas. Essas ferramentas reforçam a centralidade dos desmanches de São Paulo no mercado nacional, facilitando com que suas peças abasteçam compradores no país todo (Pimentel et al., 2023). Apesar disso, o movimento presencial de clientes na região ainda é considerável.
Em uma das muitas vezes em que estivemos na Avenida Riacho para trabalho de campo, estávamos acompanhados de um amigo, que “garimpava” e orçava peças para reparar seu Fiat Palio ano 2010 (modelo popular no mercado brasileiro). Em um dos muitos desmanches da avenida em que passamos naquele dia, o atendente, um homem que aparentava ter entre 30 e 40 anos nos diz que tinha as peças procuradas, mas que o carro de onde elas seriam retiradas não estava lá naquele momento. Pediu para voltarmos no dia seguinte.
Meu amigo não entendeu, e perguntou “mas o carro não está aqui? Ele está onde?”. O homem estranhou a pergunta e se afastou, parando de nos atender quase imediatamente. Logo em seguida o ouvimos falar no celular com alguém; ele parecia estar nervoso com a presença de policiais em um desmanche de um conhecido seu. “O quê que os polícia tão fazendo lá?”, perguntava o homem. Pelo que ele falava ao telefone, pela desconfiança que sucedeu a pergunta do nosso amigo, e pela sequência do que observamos nessa interação, ficou evidente que o Palio de que ele falava havia sido roubado recentemente e estava “esfriando” em outro local. Havíamos feito uma pergunta que não se faz. Com o tempo, entendemos que esses carros ilegais, em geral furtados, chegam aos desmanches como “pacotes”, conjuntos de peças já desmontadas em um local mais seguro e distante, que podem ser transportados de forma mais discreta, escondidos no interior de outro veículo.
São muitas as trajetórias que podem percorrer os veículos destinados aos desmanches. Ao longo de nossa pesquisa, muitas vezes nossos interlocutores – trabalhadores e empreendedores do setor – tendiam a tipificá-las em duas categorias: as “legais” – veículos em fim de vida útil legalmente comprados (por desmanches “honestos”), diretamente de seus donos ou em leilões – e as “ilegais” – veículos roubados ou furtados. Para ladrões e receptadores, a desmontagem de um veículo roubado e a venda de suas peças são práticas que permitem ocultar o veículo e ainda obter retorno financeiro. A “desmontagem ilegal” é um destino frequente para veículos roubados em São Paulo, cidade que concentra, sozinha, mais de 15% de todos os roubos de veículos do país.15 E a Avenida Riacho é uma região bastante estigmatizada, vista por autoridades públicas e também por agentes do mercado (especialmente aqueles que atuam em outras regiões) como local de grande concentração de “desmanches clandestinos”.
Para compreender melhor as dinâmicas do mercado automotivo brasileiro, é importante retomar a trajetória de formação da indústria local. Atualmente, o Brasil possui uma indústria expressiva, figurando como potência continental e estando entre os dez maiores produtores de automóveis do mundo (Anfavea, 2024). Seu desenvolvimento, em meados do século XX, foi elemento central em um projeto estatal que apostou na industrialização e na substituição de importações como estratégia para desenvolver e modernizar a economia brasileira. Esse debate nacional-desenvolvimentista é muito inspirado em uma tradição de pensamento latino-americano, que mobiliza leituras específicas sobre o subdesenvolvimento (e estratégias para combatê-lo) (Cepal, 1998). Na América Latina, as trajetórias do (sub)desenvolvimento são diferentes das do contexto africano. Gana, por exemplo, nesse momento ainda lutava pela sua independência dos britânicos, conquistada apenas em 1957. O dito “Sul Global” não é algo homogêneo, ele envolve trajetórias, processos e temporalidades específicos, e conexões globais desiguais das mais diversas – porém, em alguma medida, conectadas e compartidas.
Em 2023, o Brasil possuía uma frota estimada em pouco mais de 47 milhões de veículos – 28,5% dela concentrada no estado de São Paulo (Sindipeças, 2024). Nos últimos anos, no entanto, o cenário vem sendo visto como difícil pela indústria nacional, em virtude de quedas de produção e vendas (Pimentel et al., 2023). Para aqueles que atuam nos mercados (in)formais e (i)legais de carros e peças de segunda mão, esse cenário representa oportunidade de crescimento. Assim como para leiloeiros e seguradoras, que todos os dias colocam milhares de veículos sinistrados a leilão, atraindo empreendedores em busca de bons negócios. Veículos classificados como “irrecuperáveis” legalmente são de uso exclusivo para a desmontagem e retirada de peças – que poderão ser utilizadas na reparação daqueles classificados como “recuperáveis”, que ainda poderão voltar ao mercado como veículos usados.
No Brasil, a importação de veículos usados é proibida.16 Dessa forma, a oferta de veículos em fim de vida útil, que alimentará economias locais de autopeças usadas, é limitada a veículos licenciados no país, com grande protagonismo de veículos nacionais – que ainda são maioria da frota local mesmo mais de trinta anos após a liberação da importação de veículos novos (Sindipeças, 2024). Ainda assim, veículos em fim de vida útil brasileiros também são recursos valiosos e disputados por economias globais. Prova disso é a presença da Car Auction Corp no mercado nacional. A Car Auction Corp é uma empresa multinacional de leilões de veículos sinistrados, formada nos Estados Unidos e atuante em diversos outros países do mundo (Pimentel & Pereira, 2022). Veículos vendidos em leilões da Car Auction Corp nos Estados Unidos, por exemplo, podem ser exportados para reparação e revenda em Gana (Amoah, 2024).
A desmontagem é uma economia importante para o mercado de veículos usados, por permitir a aquisição de autopeças a preços mais acessíveis, viabilizando maiores margens de lucro para empreendedores que atuam com reparação e revenda. São Paulo é o grande hub nacional desse mercado e também o grande “modelo” em termos de sua regulação estatal. A desmontagem de veículos para venda de peças é uma atividade antiga em periferias de São Paulo. Porém, é uma atividade historicamente estigmatizada, por ser destino frequente de veículos roubados. Assim como no contexto francês, as economias que atuam no aproveitamento de carros descartados surgem nas margens urbanas e, em algum momento, tornam-se alvo de criminalização e intervenções estatais. Diferentemente do contexto francês, os desmanches no Brasil nunca contaram com nenhum incentivo dos produtores de veículos. Não se exige dessas indústrias e nem elas demonstram interesse em participar ou financiar as economias que atuam com o reaproveitamento dos veículos que elas mesmas produziram.
A construção política da demanda por regulação estatal sobre a cadeia da desmontagem veicular no país é amplamente pautada por uma narrativa de segurança pública – essa é a grande diferença com relação ao contexto francês, onde ela foi pautada sobretudo por uma narrativa ambientalista. A proposição e implementação da “Lei do Desmonte”17, em 2014, no estado de São Paulo – considerada um marco no sentido da formalização da economia da desmontagem veicular no país – foi publicamente justificada em prol do combate ao roubo e ao furto de veículos. Apesar da lei supostamente ter contribuído para uma redução dos indicadores de roubos e furtos de veículos no estado (Feltran et al, 2023), a desmontagem ilegal para venda de peças ainda é um destino possível para veículos subtraídos na região – e que alimenta mercados em escala nacional, já que as peças desses veículos podem ser escoadas para estados distantes.
Outro uso econômico possível para veículos roubados no Brasil é a exportação para países vizinhos, como Paraguai e Bolívia. Tais transações frequentemente são mediadas não por dinheiro, mas por mercadorias ilegais, como drogas, armas e produtos falsificados ou contrabandeados. Um exemplo recorrente desse tipo de transação é a troca entre veículos roubados e cocaína nas fronteiras entre o Brasil e a Bolívia. Esses veículos costumam ser roubados no lado brasileiro da fronteira e transportados para o país vizinho através de cabriteiras (estradas vicinais), onde são trocados por pasta base ou cloridrato de cocaína (Pimentel et al., 2022). Na Bolívia, carros brasileiros roubados não encontram dificuldades para serem regularizados e poderão ser consumidos ou revendidos sem problemas. No Brasil, a cocaína boliviana se valoriza quando destinada a mercados domésticos em grandes cidades, e se valorizará muito mais caso seja exportada para grandes mercados consumidores globais, como a Europa.
Considerações finais
Em diferentes territórios, economias de automóveis e autopeças usados são atravessadas por disputas políticas em torno de sua legitimação ou criminalização. Neste artigo, buscamos descrever como os diferentes dispositivos envolvidos que regulamentam a destinação de veículos em fim de vida útil dinamizam essas economias de formas diferentes, inclusive utilizando-se dos mercados “informais” ou “ilegais” como parte dessa dinamização. Em nossa interpretação, a “informalidade” ou a “ilegalidade” não figuram como referentes analíticos, mas sim como objetos de análise – assim como a “formalidade” e a “legalidade” –, cujos sentidos são construídos de forma situacional por atores interessados. A alta regulamentação do contexto francês, que não impede a existência de “mercados informais”, utiliza-se de uma retórica ambientalista para fazer com que centenas de milhares de veículos em fim de vida útil possam se revalorizar – e poluir o continente africano. Já no contexto brasileiro, o protecionismo da indústria automotiva “nacional”, que proíbe a importação de veículos usados, exerce papel bem mais central na conformação do mercado automotivo e de autopeças. No Brasil, são as centenas de milhares de veículos roubados por ano que se revalorizarão, a partir de práticas como a desmontagem para venda de peças e a exportação para troca por mercadorias ilícitas, agora sob o manto da retórica da segurança pública. Enquanto isso, em Gana, a regulamentação é de tal forma pouco exigente que aquilo que seriam “mercados informais” combatidos pelo estado no Brasil ou na França são ali mercados que operam sem obstáculos. Ali nem discurso ambiental nem de segurança aparece como relevante. Mobiliza-se um discurso ambíguo, de um lado apoiando o comércio de importados, desregulamentando-o o quanto possível, e de outro defendendo a indústria local, sem que haja um enrijecimento do controle, seja sobre a indústria ou sobre o comércio.
Interessa-nos notar que, seja sob o manto de uma pauta ambientalista, de segurança ou de desregulamentação, há um mecanismo em andamento. Há uma distribuição diferencial do controle estatal, com mais regulação sobre alguns elos da cadeia e mais desregulamentação em outros. Ambos esses processos atuam em um mesmo sentido – transformar veículos em fim de vida útil em mercadorias com valor de troca. Quanto mais valorização, melhor para todos nessa cadeia. As economias locais, nacionais e transnacionais de veículos em fim de vida útil são economias pujantes e em expansão nas periferias da globalização, e disputas em torno de sua (des)regulação, nos centros e nas margens, são, também, importantes fronteiras para a expansão do capitalismo contemporâneo.
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Notas
Notas de autor
andre.pierip@gmail.comgabriel.feltran@sciencespo.fr