Resumo: O objetivo deste artigo é investigar processos de racionalização da força de trabalho e modernização dos modos de vida presentes na periferia de São Paulo baseados na experiência da vida sem salário. Para isso, estabelece como premissa que as ocupações não assalariadas estão no cerne do modo de vida popular, em que o anseio por autonomia é sua principal característica; junto dele, sobrevivem valores e costumes tradicionais. Por sua vez, o empreendedorismo como discurso de alcance global, ao mesmo tempo que remete ao individualismo presente nesses modos de vida, carrega, através dos negócios de impacto social, uma enfática iniciativa de modernização voltada a jovens em busca de ascensão e prestígio social, mas também para os mais velhos, como renovada esperança de uma vida mais satisfatória. Baseado em etnografia conduzida na periferia de São Paulo e entrevistas aprofundadas, o artigo conclui que o empreendedorismo, ao propor a racionalização das relações de trabalho, resulta tanto na ressignificação de saberes tradicionais quanto em sua reassimilação por meio da forma cultural do empreendedorismo popular.
Palavras-chave: Periferias urbanas, cultura popular, vida sem salário, negócios de impacto social, empreendedorismo.
Abstract: The aim of this article is to investigate processes of rationalisation of the workforce and modernisation of custom practices in the periphery of São Paulo, based on the experience of a wageless life. To this end, it establishes the premise that unwaged work is at the heart of the popular way of life, in which the desire for autonomy is its main characteristic; alongside this, traditional values and customs survive. In turn, entrepreneurship as a globally disseminated discourse, while referring to individualism present in these ways of life, carries, through social impact businesses, an emphatic modernisation initiative aimed at young people in search of social ascension and prestige, but also at older people as a renewed hope of a better life. Based on ethnography conducted on the outskirts of São Paulo and in-depth interviews, the article concludes that entrepreneurship, by proposing the rationalisation of work relations, results in both the resignification of traditional knowledge and its reassimilation through the cultural form of popular entrepreneurship.
Keywords: Urban peripheries, popular culture, wageless life, social impact businesses, entrepreneurship.
Resumen: El objetivo de este artículo es investigar los procesos de racionalización de la fuerza laboral y modernización de los modos de vida presentes en la periferia de São Paulo, a partir de la experiencia de vida sin salario. Para ello, establece como premisa que las ocupaciones no asalariadas están en el corazón del modo de vida popular, en el que el deseo de autonomía es su principal característica; Junto a él sobreviven los valores y costumbres tradicionales. A su vez, el emprendimiento como discurso de alcance global, si bien hace referencia al individualismo presente en estas formas de vida, lleva a través de las empresas de impacto social una enfática iniciativa de modernización dirigida a los jóvenes en busca de ascenso social y prestigio, pero también a las personas mayores como esperanza renovada de una vida más satisfactoria. A partir de una etnografía realizada en la periferia de São Paulo y de entrevistas en profundidad, el artículo concluye que el emprendimiento, al proponer la racionalización de las relaciones de trabajo, resulta tanto en la resignificación del conocimiento tradicional como en su reasimilación a través de la forma cultural del emprendimiento popular.
Palabras clave: Periferias urbanas, cultura popular, vida sin salario, negocios de impacto social, emprendimiento.
Dossiê Mercados Transnacionais
Da vida sem salário ao empreendedorismo popular: aspirações de modernidade na periferia de São Paulo
From a wageless life to popular entrepreneurship: crave for modernization in São Paulo’s periphery
Desde una vida sin salario al emprendimiento popular: aspiraciones de modernización en la periferia de São Paulo
Recepción: 29 Junio 2024
Aprobación: 18 Septiembre 2024
Em anos recentes, o conjunto dos trabalhadores brasileiros, formais e informais, tem observado, em produtos da indústria cultural, nos discursos de políticos e do mercado, uma proliferação de termos e prescrições que visam exprimir valores e expectativas de conduta individual laboral genericamente definidos como “empreendedorismo”. Entretanto, o empreendedorismo não pode ser visto como um fenômeno isolado, restrito ao âmbito da economia como um avesso do assalariamento – precarização, portanto. Tanto o trabalho por conta própria quanto sua variante moderna, propriamente “empreendedora”, reúnem características comuns ao cotidiano popular e periférico. Acima de tudo, são manifestações da vida sem salário brasileira, em que resiste uma utopia de liberdade, mesmo quando esta é sentida simplesmente como uma fuga provisória do trabalho alienado, mal remunerado e, eventualmente, indigno.
Vidas sem salário não se caracterizam apenas pela ausência de contratos formais, mas também pela incerteza econômica e transitoriedade entre empregos mais ou menos precários, imbricados em relações familiares. Suas expectativas de futuro refletem uma economia moral guiada por cálculos não necessariamente monetários e ambições moderadas (Denning, 2010; Beckert, 2013; Thompson, 1998; Scott, 1976). Além disso, esse modo de vida reflete o individualismo da luta contra a pobreza, que tem tanto seu lastro histórico quanto reflexos presentes: meus interlocutores trabalham sozinhos, apenas excepcionalmente contam com funcionários e têm como objetivo a realização de um projeto familiar de progresso (Candido, 2017; Kowarick, 2019; Souza, 1982; Koselleck, 2006; Sader, 1988).1
O objetivo deste artigo é investigar processos de racionalização da força de trabalho e modernização dos modos de vida presentes na periferia de São Paulo por meio de iniciativas de empreendedorismo social ou de impacto, ressignificando a vida sem salário em termos empreendedores. A acepção de empreendedorismo que utilizo o captura como uma forma cultural emergente, como sugere Raymond Williams (2011). Como procuro demonstrar, as persistentes iniciativas de racionalização nos territórios populares e o atravessamento de formas sociais tradicionais que os caracterizavam colocam seus modos de vida em risco de “empreendedorização”, ao subverter o individualismo popular enraizado na experiência.
Eva Illouz (2008, p. 60) observa, contudo, que “‘racionalidade’ e ‘interesse próprio’ não são categorias evidentes e pré-determinadas de ação social”, elas são codificadas e institucionalizadas de forma generalizada. A sagacidade dos discursos empreendedores está em exprimir em linguagem de autoajuda a fuga do sofrimento do trabalho precário, valendo-se da análise de que “a vida emocional se tornou imbuída das metáforas e da racionalidade da economia; por outro lado, o comportamento econômico foi consistentemente moldado pela esfera das emoções e dos sentimentos”. Assim, afirma-se a centralidade cultural do autorreconhecimento e, por conseguinte, o autogerenciamento econômico do indivíduo. Se, por um lado, tal fenômeno robustece o fardo do indivíduo na busca de sua própria cura, “a autoajuda ganha espaço considerável, pois que responde às questões individuais de forma simples e rápida dando a sensação de que é viável alcançar as mudanças desejadas num curto espaço de tempo” (Martelli, 2010, p. 217).
Na periferia da zona sul de São Paulo, a agenda de modernização é liderada por agentes de negócios de impacto social inseridos em um ecossistema que abarca fundações empresariais, organizações sociais (OSs), aparelhos públicos e privados e escolas de administração e negócios. Por meio de convênios e parcerias, feiras e eventos de formação, o empreendedorismo é difundido em duas frentes: para o público mais jovem, descaracterizando e renovando o perfil do trabalhador sob uma nova cultura empreendedora; para os mais velhos, desconstruindo modos de vida tradicionais, invalidando costumes, mas oferecendo saídas terapêuticas.
O texto a seguir busca subsidiar essas afirmações utilizando dados etnográficos (Costa, 2024). Como pressuposto da análise, a escolha por esta abordagem implica: 1) interpretar o empreendedorismo popular como expressão contemporânea de modos de vida lastreados no passado e nos costumes – práticas e normas que se reproduzem lentamente como um “vocabulário completo de discurso, legitimação e expectativa” (Thompson, 1998, p. 14); 2) deslocar a ênfase da literatura sociológica sobre o discurso empreendedor do viés de precarização para sua determinação pela cultura. A escolha pela etnografia alude ainda observar os “caminhos e significados ‘vividos’ em sociedades que atravessam processos profundos de reestruturação e de destradicionalização” (Willis & Trondman, 2008, p. 212-214; Beck, 2011).
Caso emblemático para o argumento, o artigo explora a experiência de vida sem salário de Geraldo, pedreiro de 61 anos, nascido na Bahia e residente em São Paulo há quase 50 anos.2 Ele aprendeu a cozinhar pratos da culinária de matriz africana ainda jovem, e no momento da pesquisa buscava aplicar esse repertório em um novo negócio de acarajés, com o suporte de uma OS instalada no distrito do Campo Limpo.3 Na relação com a família, com suas crenças religiosas e com as noções de racionalização do empreendedorismo, Geraldo procura conciliar aspectos contraditórios da formação do empreendedorismo popular. As várias dimensões de sua trajetória de trabalho infantil no interior baiano, passando pela vida sem salário na periferia de São Paulo até a assimilação de discursos empreendedores expõem excepcionalmente a formação do empreendedorismo popular.
O artigo se divide em duas partes além desta introdução e das considerações finais. A primeira seção analisa a inserção do empreendedorismo na periferia da zona sul de São Paulo através das iniciativas de impacto social, junto do relato etnográfico de duas OSs e suas estratégias de destradicionalização e fomento do empreendedorismo social; posteriormente, exponho a trajetória de Geraldo e Soraia e as marcas em suas subjetividades deixadas por esse projeto. Por fim, reservo as conclusões para a última seção.
Interpretações recentes sobre o fenômeno do empreendedorismo em territórios populares têm apontado em geral tanto para um processo de precarização das relações de trabalho quanto para uma vinculação ideológica, notadamente de cunho neoliberal, ao empreendedorismo e, de qualquer maneira, vê essas atividades como o negativo do assalariamento.4 O trabalho assalariado seria tanto a condição normal do trabalhador, associando a ele uma dignidade que o trabalho não regulado não teria (Machado da Silva, 2018), quanto seu paradigma, baseado nas sociedades salariais do Norte global. Por outro lado, as transformações no mundo do trabalho por volta dos anos 1990 reviraram as perspectivas de inserção dos mais jovens, em que trabalho formal e informal e as experiências de trabalho e de cidade se entrecruzaram (Telles, 2006). Nesse contexto, o empreendedorismo aparece para governos, empresas e terceiro setor como saída para a geração de renda ou mesmo como canal de “pacificação” de territórios (Araújo, 2017).
Na origem do trabalho por conta própria no Brasil, são os termos trazidos pelo passado que saturam o espaço de experiência: o individualismo, a família, a comunidade e o trabalho em sua temporalidade tradicional, incluindo seus períodos de reprodução (Cardoso, 2019; Candido, 2017). Para Reinhart Koselleck (2006, p. 311), o que se distingue no espaço de experiência é sua qualidade de “passado atual”, em que “um todo em que muitos estratos de tempos anteriores estão simultaneamente presentes, sem que haja referência a um antes e um depois”. Isto é, tudo o que se pode recordar da própria vida ou da vida alheia, transmitido por gerações e instituições. Para os fins deste artigo, tal experiência é essencialmente constituída pela precedência da vida sem salário, “pois o capitalismo começa não com a oferta de trabalho, mas com o imperativo de ganhar a vida” (Denning, 2010, p. 81).
Viver sem salário é também abdicar da administração do tempo imposto pelo empregador e que, frequentemente, entra em conflito com outras temporalidades de indivíduos e famílias, o que permite visualizar a configuração de uma categoria para além do “econômico”, visto exclusivamente como planejamento, racionalização e cálculo de custo-benefício, abrindo espaço para a experiência. Como observa Benoît de L’Estoile (2020), esta liberdade se relaciona com um diferencial de poder, ou seja, com uma capacidade ansiada de “governar o tempo” e que estimula a refazer constantemente cálculos que, por sua vez, não são apenas monetários (Narotzky & Besnier, 2020; Weber, 2002; De L’Estoile, 2020; Neiburg, 2010).
Em contextos populares, a definição schumpeteriana de empreendedorismo, que ressalta seu papel na inovação de produtos e processos produtivos geralmente associados ao próprio desenvolvimento do capitalismo (Schumpeter, 1982), reveste-se de condições concretas dadas de antemão – insuficiência de capitais econômicos e culturais, por exemplo, de modo que estes precisam ser buscados externamente. Um dos meios em voga para isso é o do empreendedorismo social ou de impacto.5 Como observa Ananya Roy (2010), o objetivo de uma ampla rede global inspirada pelo economista bengali Muhammad Yunus, fundador do banco especializado em microcrédito Grameen Bank é “refazer o capitalismo” e promover “pequenos mundos de desenvolvimento” através do microcrédito.
Embora Yunus estruture sua visão de microfinanças na linguagem dos direitos humanos, suas ideias estão, na verdade, mais preocupadas com empreendedorismo do que com redistribuição, com oportunidades em vez de igualdade. Sua forte ênfase na autossuficiência cria um modelo de redução da pobreza que é simultaneamente centrado nos pobres e anti-bem-estar. Assim, Yunus repetidamente observa que o trabalho autônomo, em vez do emprego assalariado, é o objetivo dos empréstimos do Grameen Bank [...]. É uma combinação curiosa – do cálculo moral traçado pela estrutura dos direitos humanos, e do empreendedorismo ativo e da autossuficiência disciplinada evocada pela promessa de uma sociedade de oportunidades
(Roy, 2010, p. 24).Roy (2010) traça uma genealogia das políticas de microcrédito que levam diretamente às iniciativas implementadas pelo Banco Mundial em meados dos anos 1990, quando a “agenda para a pobreza” ganhou centralidade no banco. Seu principal resultado foi a inclusão dos pobres no mercado financeiro, inclusive reformulando várias das premissas de Yunus ao defender um “microcrédito minimalista”. O Banco Mundial não apenas contribuiu para uma renovação dessas políticas como também para a padronização de um certo discurso global de acesso aos seus financiamentos. Para chegar na população pauperizada de todos os cantos do mundo, para quem destinava uma pequena parte do seu dinheiro, o banco passou a exigir uma linguagem “universal”, que carrega não apenas termos técnicos, mas normatividades políticas de sustentabilidade ambiental, diversidade, protagonismo juvenil, empoderamento, empreendedorismo etc. (Souza, 2008; Escobar, 1995).
Segundo o Sebrae, estes são empreendimentos cuja “atividade principal deve beneficiar diretamente pessoas com faixa de renda mais baixas, as chamadas classes C, D e E [...] Portanto, viabilidade econômica e preocupação social e ambiental possuem a mesma importância e fazem parte do mesmo plano de negócios”.6 Outro nome de referência é o do economista peruano Hernando de Soto (2001), para quem sanar a defasagem dos países em desenvolvimento envolve colocar os pobres no sistema legal de propriedade, o que permitiria transformar seus capitais mortos, por exemplo, em negócios de impacto social. O desafio político passaria por integrar as elites nesta proposta, mostrando o potencial econômico dos pobres. Enquanto na proposta social de Yunus o lucro deve ser totalmente reinvestido na empresa e destinado à ampliação de benefícios socioambientais (Roy, 2010), o termo impacto social acaba tendo adesão irrestrita, pois incentiva a distribuição de lucro e dividendos entre os sócios e, assim, maiores investimentos (Sales, 2022).7
Nessas políticas de desenvolvimento, portanto, há uma metamorfose discursiva que normatiza não só a maneira como sujeitos com uma demanda social devem se expressar – nos termos dos editais públicos e privados de financiamento de projetos sociais –, mas vai além, pois são convocados a causar impacto social. Esta torna-se uma condição imposta por esses financiadores e esperada pela sociedade, “pois na ausência de direitos assegurados resta aos atores jovens, muitas vezes sem nenhum apoio de caráter mais duradouro, a tarefa de construir um projeto voltado para o ‘desenvolvimento local ou comunitário’, deslocando-se para o sujeito a responsabilidade de empreendimentos que não seriam a rigor de sua alçada” (Sposito, Corrochano, 2005, p. 166). Livia de Tommasi (2013, p.197) identificou algumas dessas premissas na “pacificação” das favelas cariocas na primeira metade dos anos 2010, onde se observava “uma significativa difusão de programas, cursos e projetos voltados a estimular o que chamamos de ‘empreendedorismo de base comunitária’”.
Este é um modelo que cresce atualmente na periferia paulistana e cativa seus novos sujeitos. Especificamente na zona sul de São Paulo, formou-se um ecossistema de empreendedorismo social ativo, que reúne organizações e projetos sociais, escolas de negócios, universidades, aceleradoras e fundações. Ele reproduz princípios globais de filantrocapitalismo (Sklair & Glucksberg, 2021) e os difundem entre jovens da periferia em busca de melhores oportunidades e adultos que ainda veem esperança de autonomia tardia. Mais do que uma ideologia implementada de cima para baixo, ou uma razão neoliberal etérea, aproveita-se de uma estrutura de sentimentos que prospera a partir de uma insatisfação crescente com o mercado de trabalho e que estabelece vínculos imediatos de afeto em escala transnacional (Appadurai, 1996; Castells, 2010).
No caso paulistano, o empreendedorismo social ou de impacto se consolidou pela intermediação de projetos socioeducativos que se instalaram nos anos 2000 em bairros como Jardim São Luís e Capão Redondo, ou que já existiam há muitos anos e modularam seus portfólios para os novos termos em voga, notavelmente o empreendedorismo. O Projeto Rede,8 por exemplo, é uma organização social que existe no Campo Limpo desde 1968 e tem sua origem nos clubes de mães da zona sul e na atuação de militantes católicos. Essas mães, segundo um interlocutor que atua no projeto, levaram a demanda da geração de renda e começaram a trabalhar em seus próprios negócios de costura. Eder Sader (1988) conta em seu livro um pouco dessa história, que envolveu além de autonomia (a “organização por elas mesmas”), uma tomada de consciência que as fez trocar o assistencialismo pela luta contra a injustiça, em conjunto com a atuação de agentes pastorais. Seus filhos foram pioneiros no ensino de educação infantil do Rede, e com a sucessão das gerações, o projeto se expandiu. Através de convênios com as secretarias municipais de Educação e de Serviço Social, faz o atendimento a crianças e adolescentes, além de projetos independentes do poder público, financiados sobretudo por fundações. Cerca de 800 crianças, adolescentes e jovens frequentam o espaço, mais uma centena de adultos.
Em 2006, o Rede criou uma área de intervenção social, na qual se destacou uma incubadora de empreendedorismo social. Mas foi em 2014 que a demanda por um espaço de formação para o empreendedorismo foi notada. À época, segundo meu interlocutor, uma parceria com a Fundação Telefónica para a criação de projetos de impacto social resultou em relativo fracasso: os jovens da periferia tinham dificuldades para acompanhar o ritmo das aulas e a demasia de termos técnicos que permeiam esse universo. Desse “desencontro do método com o público”, os agentes chegaram a uma agenda de trabalho que atribuía à Fundação a capacitação técnica dos professores que o próprio Rede, com sua expertise de atendimento aos jovens da periferia, disponibilizaria.
A experiência conferida pelo primeiro ciclo lhes trouxe alguns aprendizados daquilo que consideraram uma quebra de expectativas em relação ao público-alvo: estudantes secundaristas ainda não estariam preparados para desenvolver seu próprio negócio; a prioridade seria, então, os universitários, por meio de parcerias com instituições privadas de ensino nas áreas de Administração e Tecnologias da Informação (TI). Aqueles que decidem pelo empreendedorismo têm um acompanhamento subsequente visando “validar” seu produto e inseri-lo no “ecossistema”. É o que chamam no Rede de “pré-aceleração”: “prototipar” e fazer experiências de vendas, para que depois de cinco meses a concepção tenha sido minimamente testada para a busca de um investidor. Na aceleração propriamente dita, também há uma assessoria que acompanha o empreendedor, além de um investimento para que o negócio tenha o pontapé inicial (Maia, 2024).
Uma demanda por produtos “inovadores” criou perspectivas de empreendedorismo para o público da periferia, especialmente na área de alimentação. Opções veganas e sem glúten são especialmente lembradas como nichos que vêm crescendo. Mas o intercâmbio não se resume a quem compra e quem comercializa. Com a não tão recente mobilidade social que mudou a cara do bairro (Ferrasoli, 2018), o projeto Rede não só foi cercado por condomínios como passou a ser procurado por crianças e jovens da “nova classe média” que apareceu nas periferias. Para meu interlocutor, justamente aí está a resposta tanto para a continuidade do projeto como para uma utopia: a superação das classes sociais. Atividades que misturam jovens do Campo Limpo e do Morumbi já foram testadas para que vejam “o que têm em comum”. Ele vê também uma “luz no fim do túnel” na mudança de postura das escolas públicas, que têm flexibilizado a resistência ferrenha que tinham às parcerias com OSs. Percebem finalmente, segundo ele, que aquele “esquema fechado não os protege da violência social”.
Uma forma contraintuitiva de analisar o impacto desse discurso nos territórios populares é observar o público mais velho que se engaja no empreendedorismo de impacto, cuja individuação na tradicional vida sem salário permite um contraste muito mais intenso do que entre os jovens, já familiarizados com os princípios do empreendedorismo social em outros espaços de formação e difusão (Catini, 2020). No Projeto Rede, uma parceria com outras OSs promove cursos de empreendedorismo inspirados na ideia de impacto social para quem pretende criar negócios ou se reposicionar no perfil proposto por eles. É onde se percebem claramente os ardis pelos quais saberes tradicionais, arraigados nos modos de vida de pessoas adultas e idosas, são ressignificados em um processo de violência simbólica que deslegitima esses costumes em nome de aspirações de modernidade.
Se o reconhecimento no trabalho se voltara para o sofrimento, como defende Christophe Dejours (1999), o empreendedorismo aparece para alguns como possibilidade de redirecioná-lo novamente para seu potencial emancipador. Tal foi a situação experimentada por Geraldo e Soraia, dois dos interlocutores que participaram da pesquisa. Procuro demonstrar, a partir do seu caso, os conflitos e convergências da intersecção entre saberes práticos arraigados na cultura popular e a voga empreendedora, produzindo uma nova síntese no âmago dos modos de vida.
Conheci-os em uma manhã de quarta-feira do mês de fevereiro de 2020, poucas semanas antes da Covid-19 se espalhar pelo país. Chegava de ônibus ao Terminal Campo Limpo, zona sul de São Paulo, sob garoa e frio rigoroso para a época. Poucos dias antes, um imenso temporal havia causado destruição e transtorno na cidade, e como a chuva ainda ameaçava, mantinha-se certa precaução. Meu compromisso naquele dia era acompanhar o Pitch Day – Marketing e Mercado, um curso promovido pelo Projeto Rede para empreendedores aspirantes. Combinado para as 10h, chego um pouco atrasado para o encontro na sede do Rede, mas o evento ainda demoraria a começar. Em uma sala-laboratório, erguida com patrocínio da marca de óculos Ray-Ban, continuavam os preparativos, onde nove pessoas que eu ainda não identificava aguardavam com seus laptops prontos para o pitch, uma apresentação direta e curta, com o objetivo de vender o negócio para algum investidor. Vez ou outra, gracejos com “unicórnios”9 descontraiam o ambiente e pareciam bastante naturais para todos.
Na mesa em formato retangular, homens e mulheres, pretos e brancos, sozinhos ou em casais, alinhavam suas apresentações de power point: uma versão vegana de acarajé, bolos de pote, tortas “saudáveis” ou “ancestrais”. Todos expunham saberes essencialmente populares da gastronomia, porém com algum toque ambientalmente correto ou identitário, que era justamente o que haviam aprendido no curso como sendo inovadores e que, de quebra, ainda lhes conferia o rótulo de “periféricos” – muito mais que uma simples referência de lugar, uma credencial.
Quase um ano depois do meu primeiro pitch presencial, o mundo todo se via abalado pela pandemia de Covid-19. Os candidatos a empreendedores que conheci naquela ocasião viam aquela oportunidade com grande entusiasmo e projetavam esperança no futuro, planos que não se concretizaram como imaginado. Acelerando para o ano de 2021, retomei o contato com alguns deles com a pandemia ainda devastadora, mas com as medidas de isolamento já pouco eficazes entre grande parte da população que, com mais ou menos precaução, havia voltado à rotina normal. A situação entre os participantes do projeto era mais complicada, pois seus negócios estavam ainda pouco estruturados, e absorver as lições do curso não era mais simples do que cozinhar bolos, tortas e acarajés, o que, por sinal, eles já sabiam fazer muito bem.
Dentro de certos limites de classe e de procedência geográfica, era um conjunto bem variado de experiências no ramo da comida que, curiosamente, se homogeneizava naquele espaço, para que pudessem se diferenciar fora dele nos termos propostos pelos instrutores da instituição. Aquele era um lugar para pessoas que efetivamente queriam uma porta de entrada para o empreendedorismo, e o curso lhes prometia ferramentas intelectuais para isso. Os candidatos a empreendedores precisam passar por uma seleção que é feita por sorteio, pois a demanda é bastante grande, e há ainda uma taxa de participação. Quando chegam lá, são apresentados à terminologia própria às noções de empreendedorismo e inovação,10 aprendem a fazer uso de instrumentos básicos de administração e contabilidade e a fazer a análise SWOT de planejamento empresarial – sigla em inglês para Forças (Strengths), Fraquezas (Weaknesses), Oportunidades (Opportunities) e Ameaças (Threats). Por fim, resta definir e apresentar o produto, que evidentemente deve ser inovador. É neste ponto que a ideologia incide submetendo saberes populares, combinando termos à primeira vista aleatórios como “guerrilha” e “afeto” e misturando cozinha saudável (no sentido popular de caseira) com versões veganas de pratos tradicionais.
Foi apenas na segunda tentativa que Geraldo conseguiu ser aceito. Na ocasião em que fui convidado a avaliar o protótipo que ele preparou para seu negócio de acarajé, chamou-me a atenção o carisma desse baiano de 61 anos, desde 1976 morando em São Paulo. Seu sorriso emoldurado pela barba grisalha só concorria com a face igualmente simpática de sua esposa Soraia, que o acompanhou em toda a jornada pelo curso de empreendedorismo e que fazia as vezes de anfitriã do pitch de Geraldo.
Depois das apresentações, foi-nos oferecido um almoço no refeitório do Rede, em que eu pude me sentar junto ao casal. A refeição era simples e honesta, a mesma que era oferecida para as crianças e adolescentes que frequentavam a escola, que funciona por convênio com a prefeitura. Geraldo me contou sobre como preparava seu acarajé (que, segundo ele, superava os famosos quitutes vendidos em Salvador) e Soraia me mostrou em seu smartphone sua atividade de apresentadora de programa de auditório de um canal de TV comunitária – ela, aliás, usou dessa experiência para alinhar o pitch. De fato, não apenas eu tinha uma lembrança vívida daquele dia; quando entrei em contato com eles um ano depois, recebi uma calorosa resposta de aceite para uma conversa.
A vida de Geraldo foi praticamente toda sem salário. Ele começou a trabalhar em feiras livres com 12 anos de idade na sua cidade natal Terra Nova, nos arredores de Feira de Santana. Entre o gracejo e a melancolia, ele narra seus dias na feira, primeiro montando as barracas com o dia ainda escuro e depois vendendo água, “mas não era água de garrafinha que nem é aqui, não. A gente botava as garrafas pra gelar na casa dos vizinhos, que o calor da Bahia é infernal, lá é quente mesmo!”. Ainda carregava as compras dos frequentadores por mais alguns trocados, dependendo da distância. E foi assim que Geraldo já tinha o que ele chama de “certa independência”, uma característica notável da passagem da infância para a juventude no mundo popular, em que os pais suam para garantir o básico e o jovem, em seu processo de individuação, busca seus primeiros trabalhos para ter uma renda própria com que possa comprar um tênis ou um boné. É uma trajetória típica que perdura, mesmo que tensionada por outras formas de acesso rápido ao mundo do consumo.
É divertido e um pouco exasperante acompanhar seu relato com Soraia ao lado, dando-lhe broncas quando ele parecia se estender demais. Sua mulher, que é paulista de Osasco, ficava especialmente atenta quando ele falava da Bahia e da saudade que tem da terra natal, onde ainda vive sua mãe, prestes a fazer 90 anos. Mas Geraldo é realista e sabe bem que uma vida toda construída em São Paulo não é fácil de trocar, ainda mais para ele que não pode contar com uma aposentadoria tranquila, no que o empreendedorismo é uma saída previsível. Seu filho, de 33 anos, trabalha com ele na construção e lhe deu uma neta, à época com dois anos e meio e que ele ajuda financeiramente. Mais de quatro décadas depois de sua partida, ele ainda vê na capital paulista oportunidades que não teria no estado nordestino: “eu costumo falar assim, do nada que você ganhe aqui, você ganha mais do que na Bahia, porque se você sair na rua pra catar latinha, você consegue chegar no final do dia e comprar uma lata de óleo, um quilo de arroz, um pedacinho de linguiça ou qualquer coisa nesse sentido”.
Logo que chegou a São Paulo foi ser cobrador de ônibus, mas ficou na função por apenas um ano e sete meses. Ainda nessa época ele aprendeu a fazer acarajé e outras comidas típicas de matriz africana com a família-de-santo com quem viajou para o Sudeste. Quando a mãe da família faleceu, Geraldo foi morar por conta própria, “teve que ir batalhar a vida”.11 Aos 21 anos e com o primeiro grau completo, foi quando teve mais dificuldades, sobretudo para arrumar emprego. Mas se estabeleceu em Taboão da Serra, colado ao distrito do Campo Limpo, e não saiu mais de lá. Começou a trabalhar como pedreiro quando tinha por volta de 17 anos e se mantém fazendo pintura, textura e piso, atividades das quais tira sua renda. “Eu trabalho com construção, essa é a minha renda, nas horas vagas eu piloto a cozinha como ninguém”, conta com seu largo sorriso habitual. Na função de mestre de obras, Geraldo trabalha por contrato e, apesar do trabalho pesado, não se queixa de seu ganha-pão.
Porque esse trabalho paga minhas dívidas, eu consigo pagar minhas contas, eu consigo botar meu alimento dentro da minha casa e vez em quando dá pra eu sair pra alguma coisa, me divertir em algum lugar, levar minha família, minha mulher, meu filho, então eu gosto do que eu faço, entendeu?
(Geraldo, 61 anos, Taboão da Serra, pedreiro e cozinheiro).As ambições modestas de Geraldo parecem contrastar com a iniciativa tardia de buscar uma nova ocupação. Sua trajetória é típica e ao mesmo tempo peculiar, reunindo a imigração do Nordeste para São Paulo com a religiosidade, isto é, um deslocamento que não tinha apenas a ver com a busca por trabalho. Com a família do axé, ele aprendeu a cozinhar e, por volta de 1999, resolveu comercializar seu acarajé, apenas nas proximidades e de maneira informal. Para realizar seu objetivo de começar um negócio na cozinha, Geraldo contava com seu profundo conhecimento da culinária de matriz africana, cuja experiência acumulou desde a juventude, e com os elogios de quem já provou seu talento. De modo que a decisão de migrar teria consequências inesperadas para ele, que muitas décadas depois veria nessa mesma justificativa religiosa o cerne de uma nova chance de, justamente, revertê-la em fonte de renda e uma velhice com mais tranquilidade.
Em Salvador, Iansã é homenageada no dia 4 de dezembro em um grande evento sincrético que, para os católicos, é dedicado a Santa Bárbara; para os devotos do candomblé, é costume oferecer acarajé à orixá – o elemento mágico confere um caráter especial ao bolinho de feijão-fradinho e frito no azeite de dendê do “Pai Geraldo”, título que ele assume tanto no terreiro quanto para o propósito comercial. “É o saber fazer o acarajé”, salienta, com uma postura que transmite orgulho e confiança no que faz. Mas só há poucos anos ele resolveu transformar esse conhecimento prático em empreendimento, e isso foi resultado também da pressão familiar para que superasse o que viam nele como uma limitação: sua suposta indisposição para operar intelectualmente um negócio próprio. E aí entra o Rede.
Eu quis fazer esse curso pra aperfeiçoar o que eu já sabia fazer, porque eu achava que fazendo o curso lá no Rede eu ia conseguir... por exemplo, eu não sabia quanto custava o meu acarajé, o custo-benefício, eu não sabia quanto eu tava gastando e quanto eu tinha de lucro. Hoje eu sei quanto [custa] a unidade do meu acarajé, quanto eu compro, o que eu vou comprar, o que eu vou gastar, eu aprendi através do curso a fazer uma planilha. Essa planilha eu consegui fazer custo e benefício, quanto eu tava investindo e quanto eu tiro de lucro
(Geraldo, 61 anos, Taboão da Serra, pedreiro e cozinheiro).Soraia, sua companheira por 35 anos, esteve presente em quase todos os encontros semanais para que Geraldo não se abatesse com aquele universo intimidador que se abria para ele. Mas ela mesma, com 57 anos no momento da entrevista, tem suas batalhas, que começaram com uma aposentadoria forçada da antiga profissão de auxiliar de enfermagem. Para que hoje ela vivesse com saúde, exibindo-se orgulhosamente como modelo e apresentadora de TV (ela prefere o título de “CEO”), precisou passar por anos de profunda tristeza e desesperança. Foi no mesmo bairro do Campo Limpo em que fica o Rede que ela sofreu, em 1996, um acidente que mudaria sua vida para sempre. Dentro da ambulância em que trabalhava fazendo resgate (serviço público hoje conhecido como Samu), teve uma queda e bateu um dos joelhos; voltou uma semana depois e percebeu que era muito mais grave do que imaginava. “A princípio foi uma queda, bati o joelho, fiquei uma semana em casa, quando voltei pro serviço não consegui pisar, a perna tava grandona... três meses, e foi-se sete anos e aí que eu me aposentei”, conta com a voz embargada. Daí se seguiram quatro anos sem andar, em que era cuidada integralmente pelo filho que tinha apenas oito anos e se tornou responsável pela casa enquanto Geraldo trabalhava na obra. “Eu tava ali meio que vegetando, o meu espaço era da cama pro sofá. Chorei muito, chorei muito porque ninguém quer essa vida, eu sempre fui muito ativa e foram três anos eu ali chorando”, o que lhe custou a saúde: pesando 110 quilos, Soraia seria diagnosticada com obesidade mórbida.
Geraldo esteve todo tempo a seu lado quando o trabalho lhe permitia, e a cumplicidade dos dois é corroborada por olhares afetuosos entre pequenas provocações de quem se conhece por uma vida. “De vez em quando tenho vontade de dar uns tapas nesse preto, mas assim, não troco por nada, não troco por nada, é o meu melhor companheiro”, responde Soraia. Em 2013 sua vida mudaria novamente, quando foi chamada pelo Hospital das Clínicas para realizar a ansiada cirurgia bariátrica, depois de mais de quatro anos na fila. Como se precisasse se justificar, Soraia ressalta que não fez o procedimento por estética, mas porque “queria ser dona de mim”.
O resultado é que, com a saúde física e mental recuperada, ela buscaria ser uma trabalhadora autônoma assim como Geraldo, a partir de uma semente plantada muito tempo antes. Por pouco Geraldo não desistiu do curso, pois sentia muita dificuldade com o uso do computador. Soraia diz que ele tinha “preguiça mental”, mas não deixou de incentivá-lo. O pitch, Geraldo achava “um bicho de sete cabeças”. Com esse espírito decidiram mirar juntos para o sol que parecia brilhar para eles, o do empreendedorismo, para o qual Soraia tem uma definição muito concreta, mas que se adapta à terminologia aprendida no Rede.
Olha, a minha visão pode até ser equivocada, mas empreender é você mostrar pro mundo que você pode fazer, só que você tem que ter algum nicho que você goste e que você faça com carinho e que você traga pessoas pra somar porque você não pode dizer “eu sou uma empreendedora porque eu acho bonito empreender em alguma coisa”, não, você tem que fazer bem o que você faz e tem que dar oportunidade pra que outras pessoas, se não venham com você, tenham vontade também de querer ser o seu próprio patrão. Na minha visão é mais ou menos isso, porque tem muita gente aí que se diz empreendedor porque acha que é a onda do momento, você não pode entrar em nada achando que é a onda do momento. Eu amo empreender, eu amo elevar a autoestima dos outros porque você como empreendedor você tem essa função também, você tem que mostrar que sim é possível, mas você tem também que levantar a autoestima porque tem muita gente que fala “ai, mas eu não consigo, mas isso não é pra mim” porque ninguém foi lá e falou franca com ele, tá? O que você faz de melhor? De melhor que eu faço é passar um pano no chão, então vamos procurar alguma coisa que você consiga desenvolver isso. Pra mim o empreender é isso e eu gosto muito e o que eu puder eu vou tá sempre trazendo mulheres pro nosso lado.
(Soraia, 57 anos, Taboão da Serra, comunicadora).Empreender foi sonho ou necessidade? Não é fácil identificar em situações como a desse casal, em que uma coisa termina e a outra começa. Na experiência popular, geralmente não há grandes reflexões sobre isso, simplesmente porque a fluidez entre um trabalho assalariado e um bico faz com que eles se sobreponham, se sucedam, desapareçam. No caso de Soraia e Geraldo, há um diagnóstico, tarefas a cumprir e um objetivo: ver a versão vegana de seu acarajé ser reconhecida pela qualidade que eles acreditam ter. Sob a orientação dos professores do Rede, Geraldo foi convocado a inovar em seu produto, fez dezenas de testes e chegou a uma fórmula que afirma não ter concorrência, opinião corroborada por quem provou o acarajé sem camarões na composição. Mas há também as dificuldades de fazer circular seu bolinho para além dos típicos consumidores de produtos veganos e vegetarianos, que no caso deles se encontram nas feiras de empreendedorismo e gastronomia de que costumam participar, como o festival Percurso realizado pela Agência Solano Trindade no Campo Limpo ou em regiões ricas da cidade, onde a modernidade acontece. A pandemia colocaria um veto a esses eventos. “Como o Geraldo falou, ele trabalha, eu também, só que não dá pra gente tirar, dá pouco pra manter uma loja, porque alguma coisa vai ficar faltando e conseguir um patrocínio hoje em dia tá complicado”, explica Soraia, referindo-se aos “investidores-anjos” que aparecem nos pitches de aceleradoras, corretoras e fundos de investimento, alguns deles especificamente voltados para negócios de impacto social.
Assim, o empreendedorismo triunfa nas brechas das dificuldades que se acumulam na vida dessas pessoas, as quais aprenderam por experiência própria que do Estado mal se pode esperar para o básico. “Eu queria ser dona de mim!”, como expressou Soraia, depois de décadas em que nem pela casa caminhava por causa de um acidente de trabalho e da negligência que se seguiu. É a liberdade de poder ditar os próprios rumos que domina o anseio de quem sofreu por uma existência sob o jugo do desrespeito, gente que o controverso desenvolvimentismo empurrou para as margens. Soraia e Geraldo superaram muitas batalhas, mas sabem que outras ainda os aguardam.
Eles são a própria representação do empreendedorismo popular e de suas ambiguidades, vivendo a vida sem salário e se ajustando a uma modernidade que não foi feita para eles. Tanto que, mesmo diante da mesma proposta de ressignificar seu acarajé, cada um acrescenta sua própria camada de entendimento sobre o que é, para um empreendedor, ter conhecimento: Geraldo acredita na prática, no saber fazer e na técnica; Soraia insiste no estudo e no aprendizado contínuos. Mas será que são coisas díspares? Elucidando em seus termos seu ethos empreendedor – “você mostrar pro mundo o que você pode fazer” – e sobre como aprimoraram isso nas aulas semanais no Rede, Soraia tentava explicar que “a gente já empreendia, vendendo os produtos, mas sem ter o conhecimento de...”, quando Geraldo completou, como se seguissem no mesmo raciocínio: “técnica”.
Mas ela o corrigiu. “Valores, né...”.
Ao longo deste artigo, busquei dialogar com a literatura pertinente e traçar considerações sobre a formação de um empreendedorismo de perfil popular em São Paulo, onde as pressões no sentido da modernização de costumes e racionalização de processos produtivos são especialmente intensificadas pelas características de seu próprio desenvolvimento urbano (Holston, 2013; Marques, 2014; Kowarick, 1980). Sob a forma de empreendedorismo, prescrições de alcance global se entrecruzam com a vida sem salário, cunhando novas expressões dentro da cultura popular contemporânea. Através da etnografia e do relato dos meus interlocutores de pesquisa, Geraldo e Soraia, pude demonstrar que esses dois vetores caminham lado a lado, transformando um ao outro e gerando uma nova síntese.
O empreendedorismo popular é um movimento de continuidades e mudanças, em que práticas residuais da cultura popular são atravessadas por tendências de modernização, que se atraem e se rejeitam. Ele se posiciona na intersecção entre a ética individualista do trabalho por conta própria e do pequeno comércio tradicionais, de um lado, e a utopia libertadora prometida pelo discurso terapêutico de outro, gerando tentativas de acomodação, tensões e conflitos na relação entre esses dois ethos. Conflitos que revelam diferentes compreensões do significado do trabalho, decomposto entre saberes tradicionais e pretensões de modernização.
Como um espaço de acomodação desses conflitos, a cultura popular os incorpora e ressignifica. Hall (1981, p. 233) nota que, a despeito de seu caráter manipulativo, nas manifestações da cultura popular “existem também elementos de reconhecimento e identificação, algo que se aproxima de uma recriação de experiências e atitudes reconhecíveis, ao qual as pessoas estão respondendo”. O empreendedorismo é parte de uma cultura contemporânea global, mas que precisa estabelecer um paradigma popular e utópico: isso significa responder a necessidades reais das pessoas não como uma distração vazia ou mera “falsa consciência”, mas transformando ansiedades em presença efetiva nas mercadorias culturais para que elas posteriormente sejam administradas (Jameson, 1992). O empreendedorismo ressignifica um sonho de trabalho ideal e, ao mesmo tempo, uma fuga da realidade do trabalho degradado. Por um lado, estimula a agência do indivíduo, curtido em um desejo disseminado de viver por conta própria (Caldeira, 1984; Durham, 1988). Por outro lado, reestabelece nas subjetividades a centralidade do trabalho ressaltando a negatividade do assalariamento, substituindo-o por um vislumbre de satisfação individual.
Um obstáculo para o impulso modernizador representado pelo empreendedorismo se encontra justamente no âmago da cultura popular, ou seja, na lógica familiar e no costume. Como diz meu interlocutor no Projeto Rede, em tom de lamento, “a cultura das famílias na periferia ainda não é empreendedora”. Curiosamente, espelham hoje o comportamento que Wanderley Guilherme dos Santos (1979) interpretou como “inércia social” e um limite para a ação coletiva. Este é um obstáculo não apenas para o jovem que precisa negociar seus termos dentro da família, mas também para os mais velhos que procuram no empreendedorismo um último respiro da vida árdua de trabalho. Estes “são em certa medida demasiado velhos ‘em suas próprias cabeças’; velhos em razão dos esquemas que interiorizaram e dos quais têm muita dificuldade em se desfazer, para não se sentirem excluídos da ‘modernidade’” (Pialoux & Beaud, 2012, p. 316). Neste esforço de se vincularem a uma modernidade que lhes parece irrefutável, Geraldo e Soraia não deixam de manifestar mais uma contradição: neste processo, eles precisam desconectar a racionalização imposta pelo empreendedorismo de sua consequência mais importante: a própria subversão de seus costumes.
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