Dossiê Mercados Transnacionais
Ancoradouros para pesquisas móveis: navegando o sistema de automobilidades a partir do Porto de Santos
Moorings for mobile research: navigating the automobility system from the Port of Santos
Anclajes para la investigación móvil: navegando el sistema de automovilidad desde el Puerto de Santos
Ancoradouros para pesquisas móveis: navegando o sistema de automobilidades a partir do Porto de Santos
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 12, e-rbs.1031, 2024
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepción: 29 Junio 2024
Aprobación: 24 Diciembre 2024
Financiamiento
Fuente: FAPESP
Nº de contrato: 2020/07160-7
Descripción del financiamiento: Agradecemos às/aos pareceristas pelas sugestões e leituras cuidadosas, assim como aos integrantes do grupo MTTM, que também fizeram críticas essenciais ao desenvolvimento deste artigo e, por fim, aos integrantes da pesquisa coletiva FAPESP “Carros globais: uma pesquisa urbana transnacional sobre a economia informal de veículos” (2020/07160-7), em especial à Isabelle Paiva (graduanda em Ciências Sociais/USP e bolsista de IC FAPESP 2024/06619-7) e Jonas Tomazi Bicev (bolsista de PD FAPESP 2024/05799-1) por nos auxiliarem com dados e esforços significativos durante o processo de escrita.
Resumo: Este artigo foca na relação entre um dos maiores complexos portuários do mundo e o sistema de automobilidades. Utilizamo-nos estrategicamente do ancoradouro como recurso descritivo e analítico, sugerindo caminhos metodológicos para a identificação, no contexto do Porto de Santos, de algumas das conexões multissituadas e multiescalares de que depende tal sistema. Como apreender analiticamente o regime de mobilidades e que táticas acionar na identificação de chokepoints e checkpoints que restringem ou potencializam os fluxos aí implicados? Atravessa o artigo a intenção de apresentar o ancoradouro como um artifício útil a pesquisas interessadas tanto na dimensão política e sistêmica das mobilidades, quanto nas redes que conectam o “local” e o “global”.
Palavras-chave: Mobilidades socioespaciais, infraestrutura portuária, carros.
Abstract: This article focuses on the relationship between one of the largest port complexes in the world and the system of automobilities. We strategically employ moorings as a descriptive and analytical resource, suggesting methodological approaches for identifying, within the context of the Port of Santos, some of the multi-situated and multi-scalar connections upon which this system depends. How can the mobility regime be analytically grasped, and what tactics can be employed to identify the chokepoints and checkpoints that either restrict or enhance the involved flows? The article seeks to present the anchorage as a particularly useful device for research aimed at understanding both the political and systemic dimensions of mobilities, as well as the networks connecting the “local” and the “global”.
Keywords: Sociospatial mobilities, port infrastructure, automobiles.
Resumen: Este artículo se centra en la relación entre uno de los complejos portuarios más grandes del mundo y el sistema de automobilidades. Utilizamos estratégicamente el anclaje como recurso descriptivo y analítico, sugiriendo caminos metodológicos para identificar, en el contexto del Puerto de Santos, algunas de las conexiones multisituadas y multiescalares de las que depende dicho sistema. ¿Cómo entender analíticamente el régimen de movilidad y qué tácticas utilizar para identificar puntos de estrangulamiento y puntos de control que restringen o mejoran los flujos involucrados? La intención a lo largo del artículo es presentar el anclaje como un dispositivo útil para investigaciones interesadas tanto en la dimensión política y sistémica de las movilidades, como en las redes que conectan lo “local” y lo “global”.
Palabras clave: Movilidades socioespaciales, infraestructura portuaria, automóviles.
Introdução
Este artigo deriva do diálogo entre campos de pesquisa distintos, porém convergentes em pelo menos dois sentidos: por um lado, ambas apostamos nas mobilidades como grade analítica; por outro, compartilhamos o interesse pelas desigualdades urbanas, que os mercados transnacionais ajudam a produzir, como temática transversal de investigação. Nessa confluência de apostas epistêmicas e inquietações empíricas, nosso objetivo é fazer do Porto de Santos – há muito território de investigação de uma de nós1 – um ancoradouro, destacando sua relação com o sistema de automobilidades.
A metáfora do ancoradouro evoca associações marítimas, remetendo de imediato a uma infraestrutura de cordas, cabos e docas que protegem a embarcação em um porto seguro (Molz & Gibson, 2007). Então, desde já, melhor evitar uma possível confusão: apesar de estarmos nos referindo a um porto propriamente dito, ancoradouro aqui não é uma categoria êmica, tampouco sua utilização se dá com intenções metafóricas sustentadas por uma essência prévia que nos autorizaria a tomar qualquer porto como tal. Inspirado nas formulações da chamada virada das mobilidades, esse artifício de aproximação ao campo empírico pretende colaborar com o desenho de novas associações metodológicas, sobretudo para situações de pesquisa transnacionais, multissituadas e multiescalares (Marcus, 1992; Telles, 2006; Telles et al, 2020; Feltran & Motta, 2021; Buscher et al., 2011; Elliott & Urry, 2010, entre outros).
Em Global Complexities, John Urry (2003) introduz e detalha um argumento central que será retomado em várias de suas obras posteriores: há uma relação de complementaridade entre fluxos e infraestruturas relativamente estáveis, pontos de fixação ou apoio – é o que o autor chama de moorings, que estamos traduzindo como ancoragens (ver também Hannam et al. 2006). No caso do sistema de automobilidades, rodovias e dispositivos de navegação, postos de combustível e estacionamentos, oficinas e ferros-velhos, seguros e leilões veiculares, semáforos e demais sistemas de controle de tráfego são infraestruturas que sustentam seu funcionamento cotidiano em diferentes partes do mundo. Como sistema complexo, a automobilidade também depende de outras ancoragens menos evidentes, mas igualmente essenciais, como as campanhas publicitárias e os road movies,que reforçam a duplicidade do carro enquanto artefato material e semiótico (Sheller & Urry, 2006; Urry, 2004; Gilroy, 2001; Miller, 2001).
Mas a nossa intenção aqui não se restringe a sublinhar a relação dialética entre mobilidade e imobilidade. Propomos o ancoradouro como um recurso a ser construído a partir da empiria que concerne a cada situação de pesquisa: sua potência analítica depende da identificação de uma localidade-chave do campo para o qual “circuitos de mobilidade convergem e, já transmutados, são projetados em várias direções” (Freire-Medeiros & Pereira da Silva, 2019, p. 82). Uma vez identificado esse ponto estratégico, passa-se a descrever os constrangimentos sistêmicos, sem reduzir os contextos etnográficos aos termos de qualquer macroconstrução apriorística.2 No ancoradouro, o sentido de sistema surge etnograficamente ao seguirmos o que se move, o que pausa e o que é impedido de se mover. Daí ser possível dizer que esse artifício metodológico e reflexivo se volta, em última instância, ao deciframento do regime de mobilidades que opera em um ancoradouro e é responsável por “restringir ou potencializar, impedir ou promover, fluxos de elementos tangíveis e de signos” (Freire-Medeiros, 2024, p. 429).
O ancoradouro emerge igualmente do diálogo com outras formulações, leituras de referência dos estudos urbanos que se ocupam de observar as mobilidades dos corpos e das coisas. O conceito de “territorialidade itinerante” de Perlongher (1987), por exemplo, é profícuo para pensar a relação entre corpos (e desejos) em deslocamento e a produção de certas áreas da cidade, tendo adquirido usos criativos em diversos contextos empíricos (Frúgoli Jr. & Spaggiari, 2010; Aderaldo, 2013; Rui, 2015). Vera Telles e seu grupo de pesquisa sugerem “conector urbano”, concebido para dar conta dos fluxos diversos, as “linhas de força” que se cruzam em um determinado “emaranhado urbano” de grande complexidade (Rui & Mallart, 2015; Telles, 2017). As “zonas de indiferenciação” de Cibele Rizek (2012), ao problematizar as fronteiras entre espaços (moradia e trabalho) e escalas (a da mundialização e a da periferia localizada), inspiram a suspensão das categorias estanques no entendimento das cidades contemporâneas.
A noção de ancoradouro, tal qual vem sendo coletivamente desenvolvida no âmbito do grupo de pesquisa de que fazemos parte,3 segue essa mesma intenção de ruptura epistêmica com a ideia de território fixo. Interessam-nos, contudo, não apenas as mobilidades físicas (de pessoas e objetos), mas suas justaposições com as mobilidades de elementos simbólicos e intangíveis. Como detalhado adiante, desde o ancoradouro observamos e descrevemos as propriedades sistêmicas do global e as propriedades de entidades variadas que se movem ou são impedidas de se mover, assumindo que interações em copresença e à distância detêm a mesma importância analítica (Freire-Medeiros, 2022).
Ambas as autoras somos igualmente devedoras das interlocuções travadas no âmbito da pesquisa “Carros globais: uma pesquisa urbana transnacional sobre a economia informal de veículos”,4 na qual o sistema de automobilidade é tomado como estruturante da vida contemporânea. Apesar de sua ineficiência energética, o carro se firmou como ideal de conveniência, modernidade e liberdade ao longo do século 20 e por todo o planeta. Neste século, o sistema de automobilidade vem sendo questionado, mas segue dominante e promovendo uma organização profundamente desigual das cidades (Manderscheid, 2014; Feltran, 2021).
Nessa grade interpretativa, o Porto de Santos é um ancoradouro de alta relevância. Um dos maiores complexos portuários do mundo em movimentação de cargas (mais de 170 milhões de toneladas por ano), por ele passam intensos fluxos de importação e exportação necessários às chamadas “cidades carrocêntricas”: veículos de grande porte, carros populares novos e usados, diversas autopeças, componentes eletrônicos essenciais para a produção de veículos – tudo isso entrelaçado à circulação de uma infinidade de pessoas e capitais, imagens e informações.
Mas o Porto de Santos é também palco da maior parte das apreensões de cocaína de todo o país (Pinho, Rodrigues & Zambon, 2023; Feltran, Pinho & Bird, 2023; Pinho, 2024). Esse dado é relevante aqui, na medida em que chama nossa atenção para um regime de mobilidades responsável por colocar em relação mercados (i)legais e (in)formais de que várias cadeias produtivas dependem para existir, inclusive a da indústria automobilística (Feltran, 2021). Recorrer à noção de regime de mobilidades, nessa perspectiva, significa direcionar o foco para os checkpoints, chokepoints, tecnologias de monitoramento e controle que permitem combinações complexas entre movimentos menos ou mais criminalizados e interrupções menos ou mais violentas.
Valendo-nos da potência de síntese e hipérbole que os rituais comemorativos guardam, começamos a próxima seção pela descrição de uma cena “cujo acompanhamento etnográfico”, como sugere Guilhermo Aderaldo em outro contexto de pesquisa móvel (2018, p. 480), “nos obriga a atravessar múltiplas e simultâneas escalas e posições”. Da excepcionalidade da festa oficial, passamos à rotina das mobilidades, pontos de controle e pontos de estrangulamento do Terminal de Veículos (TEV), que nos informam sobre a relação entre o Porto de Santos e a cadeia automotiva. Nas considerações finais, reforçamos o argumento de que o ancoradouro pode ser um recurso particularmente útil quando se quer abordar, a partir de uma localidade específica, conexões translocais e regimes de mobilidades. Antes de atracarmos, vale introduzir a leitora aos termos e definições que são fundamentais a este artigo.
1. Atracando no Porto de Santos
Senhoras e senhores, em 1892, foram concluídas as obras do primeiro trecho do cais de Santos, registrando o momento histórico em que o modesto atracadouro se tornava o primeiro Porto Organizado do Brasil. Em 2024, o Porto de Santos é o maior porto do Hemisfério Sul e sua atuação é vital para a economia nacional e para a segurança alimentar do planeta. Nessa cerimônia são celebrados 132 de história do porto, com anúncios de investimentos importantes para o porto, para a região de Santos e para o Brasil
(Cerimônia pelos 132 anos do Porto de Santos em 02 de fevereiro de 2024).5
A comemoração do aniversário do Porto de Santos estava programada para começar às 8h30 da manhã. Desde a confirmação da presença do Presidente Lula, contava-se como certo que a plateia seria numerosa. E foi: por volta das 7h, uma fila desorganizada de cerca de 100 pessoas aguardava diante do portão da sede da Autoridade Portuária de Santos. Além de estivadores e outros trabalhadores uniformizados, amontoavam-se jornalistas com suas câmeras; militantes com as camisetas de seus partidos políticos, coletivos ou movimentos sociais; e um tanto de mulheres e homens cujos trajes sociais pouco combinavam com o calor que já era inclemente àquela hora.
Funcionários tentavam organizar em três filas – “imprensa”, “pessoas da sociedade civil” e “autoridades” – o acesso seguro desse fluxo. Cada fila se direcionava a mesas em que os documentos de identificação eram confrontados com longas listas de nomes. Algumas pessoas eram barradas e, enquanto aguardavam constrangidas, iam tentando negociar sua entrada. As devidamente liberadas ganhavam um adesivo de identificação, passavam pelo detector de metal e por profissionais de segurança, que faziam a revista das bolsas e demais pertences.
Todo e qualquer porto sustenta, catalisa e hierarquiza interações entre uma infinidade de entes moventes e infraestruturas de tamanhos variados (Birtchnell et al., 2015). Mesmo em dias ordinários, as entradas formais do Porto de Santos assemelham-se aos balcões de inspeção de aeroportos: funcionários inserem informações em computadores, detectores de metal apitam, pessoas e objetos selecionados passam por revista. Como acontece em grandes portos mundo afora, ali também vemos o emanharamento de elementos tangíveis e intangíveis, de interações em copresença (entre sujeitos com menos ou mais poder de definir sua própria rota) e à distância (garantidas por tecnologias de comunicação altamente sofisticadas). Nesse ancoradouro, testemunhamos como o poder de escolher a frequência, a direção, os meios e o ritmo das próprias conexões (e as de terceiros) constitui um fator de estratificação. No vocabulário do giro móvel, é o que se entende por capital de rede (Elliott & Urry, 2010; Freire-Medeiros & Lages, 2020; Lages, 2023; Freire-Medeiros, 2024; Mano, 2024).
Para que o ancoradouro funcione como um descritor potente, é necessário que a espacialidade a que ele se refere possua um posicionamento estratégico em termos da intensidade de circulações e ancoragens. Que a leitora não esqueça: a cidade de Santos é um dos principais nós da cadeia logística do Brasil, conectando diversas redes regionais, nacionais e internacionais de transporte rodoviário, ferroviário e marítimo. A relevância descritiva do ancoradouro não pode ser dissociada dessa localização espacial. Mas dizer “espacial” não é o mesmo que dizer “fixidez”, pois já aprendemos com Doreen Massey (2005) e outras tantas teóricas da chamada virada espacial que desnaturalizar e desessencializar a ideia de “lugar” é pré-condição para compreender que as mobilidades moldam e constituem os lugares, assim como os lugares constituem as mobilidades (Wyss et al., 2023).
O ancoradouro convida a pensar nossos campos de pesquisa não apenas como topografia, mas a partir das linhas que os conectam e que produzem a convergência de mundos translocais. Tomar o Porto de Santos como um ancoradouro implica observar as circulações com seus ritmos e escalas variados, lentas e velozes, microssituadas e globalmente referidas. Quer liberadas, temporariamente barradas ou proibidas de aportar de modo definitivo, é preciso considerar as rotas que levam pessoas e mercadorias ao principal porto brasileiro.
Em dias ordinários, muitos trajetos são feitos via sistema Anchieta-Imigrantes, que forma o maior corredor de exportação de mercadorias e transporte da América Latina, conectando a metrópole de São Paulo ao Porto de Santos. As rotas também passam pela rodovia Perimetral, que circunda toda a margem direita do Porto, e liga as cidades da região da Baixada Santista. Rodovia com tráfego intenso de veículos e cargas, com raros semáforos e radares de velocidade, é pouco convidativa a pedestres comuns, mas não raro vemos trabalhadores portuários uniformizados caminhando nas poucas faixas existentes ou pedalando pela estreita ciclovia. À esquerda, automóveis de passageiros em alta velocidade e veículos da guarda portuária seguem velozes. Em horários de pico, pessoas correm para atravessar a linha férrea antes da chegada do trem, enquanto outras esperam por uma oportunidade mais segura. À direita, grandes caminhões com toneladas de carga fazem fila para entrar. Naquele dia de comemorações, é bem provável que os funcionários tenham usado a mesma lancha que cotidianamente os transporta nas suas idas e vindas para os terminais portuários. Enquanto isso, pequenas balsas percorrem lentamente o canal, transportando sobretudo os moradores dos bairros periféricos até o centro da cidade.
“O Porto de Santos é do Brasil”: alheia a todas as hierarquias e distinções acima descritas, essa declaração direta e factual, projetada em um grande telão, recepcionava o público que atracava para o grande evento. Uma vez no amplo pátio coberto, os adesivos que haviam recebido na entrada determinavam as lógicas de proximidade e distância em relação ao palco. A pequena cerca de ferro azul que separava os corpos não era suficiente para evitar a propagação da presença barulhenta dos militantes e “pessoas da sociedade civil”, que nitidamente incomodava as autoridades – algumas engravatadas, outras de salto alto, porém quase sempre brancas (como nós pesquisadoras). Uma caravana de moradores de periferias ensaiou um pequeno tumulto quando parou na lateral de frente para o palco. Eram sobretudo mulheres que traziam crianças no colo e cartas na mão para entregar ao Presidente.
Mas, naquela manhã quente de verão, Lula não foi a única autoridade a marcar presença. Lá estavam o alto escalão dos três níveis de governo, além de vereadores, dos prefeitos de Santos, São Vicente e Guarujá e do presidente da Autoridade Portuária de Santos (APS). Enquanto essas figuras de prestígio e popularidade variados se acomodavam, a plateia gritava “olê olê olê olá, Lula Lula” e vaiava sem piedade o Governador Tarcísio Freitas,6 até ser interrompida pela trilha sonora de todas as cerimônias oficiais – o hino nacional.
Naquele cais festivo, também foram brevemente concedidos acessos pouco usuais no contexto do Porto de Santos. Em sequência ao discurso de boas-vindas, subiram ao palco quatro beneficiários do “Parque da Montanha”, empreendimento habitacional de 58 milhões de reais, obra realizada graças à parceria entre governo federal, Autoridade Portuária e prefeitura do Guarujá. Aquelas três mulheres e um homem representavam os proprietários das 649 novas moradias populares construídas para acomodar famílias que vivem em palafitas às margens do canal de navegação do Porto. Uma das mulheres fez uma breve fala agradecendo a Deus por sua nova casa, pois onde morava “era complicado”, por conta de enchentes, alagamentos “e o barulho do trem que passa muito próximo”. Se o atracamento daquelas pessoas foi curto no tempo, certamente não foi menos relevante para a apreensão da complexidade socioespacial e das assimetrias de poder que o ancoradouro nos convoca a decifrar. Vejamos.
A exploração do Complexo Portuário de Santos é prerrogativa da União, mas é realizada de forma diferenciada dependendo se a área está localizada ou não no que é considerado “Porto Organizado”.7 Dentro dele, os terminais funcionam sob a jurisdição da APS, que estabelece as normas e regulamentos para sua exploração. Esses terminais são cedidos pelo governo a empresas privadas por meio de arrendamentos, formalizados em contratos que especificam períodos de ocupação e obrigação de realização de investimentos. Fora do Porto Organizado, o Governo Federal explora a atividade portuária cedendo terminais a agentes privados por meio de autorização (não por arrendamento), legalmente definidos como Terminais de Uso Privado (TUPs).
Há, portanto, delimitações formais do que é considerado a área do Porto Organizado de Santos. Mas, na prática, suas fronteiras são instáveis: seu poder espraia-se além de seus limites territoriais (Rodrigues, 2004; Mitchell, 2011). É preciso, então, indagar que circulações, pausas e permanências se dão em suas margens. No caso do Porto Organizado, há diversas instituições diretamente conectadas a ele: sindicatos de trabalhadores portuários, Alfândega, Polícia Federal, armazéns de cargas, empresas de logística, escritórios de agências marítimas, além de muitos bairros em que habitam trabalhadores. Nas vias de acesso, o cenário é composto por caminhões, trens, carretas, cargas diversas, contêineres, maquinários. Em uma região portuária, é difícil captar as fronteiras do que é ou não é porto. O que uma de nós ouviu de um interlocutor, que há anos trabalha no Porto de Santos, traz-nos essa percepção instável e porosa.
O que o pessoal de fora imagina do Porto: “ah, as empresas do Porto são Libra, BTP, Tecon...”. Mas não é só isso! Naqueles prédios todos do centro, em frente ao Carrefour do shopping Praiamar, é tudo empresa movida a Porto: empresa de fita sanitária, que a pessoa vai lá para expurgar,8 motorista de caminhão… Tudo é Porto! Motorista de caminhão é Porto. O pessoal às vezes confunde: “o Porto é trabalhar só no armazém”. Não! Uma portinha que envia alimento para os caras que comem no navio é Porto.
(Registro de campo de Isabela Vianna Pinho em 16 de julho de 2021)Por isso é importante questionar constantemente o significado – teórico e político – do movimento, indagando-se como, quando e para quem ele possui relevância, de acordo com os regimes de mobilidade em jogo durante períodos específicos. É aí, nesse nó analítico, que precisamos nos deter para interpretar as dinâmicas de presença e ausência, proximidade e distância – ou seja, a política de mobilidades com suas hierarquias e desigualdades. Bairros periféricos circundam o Porto de Santos, com casas precárias de madeira sobre palafitas próximas aos terminais de uma empresa privada bilionária (com faturamento bruto na ordem de dois bilhões ao ano e de mais de 400 milhões de lucro líquido). Moradores do precário bairro da Prainha lutam para permanecer ali, enquanto a empresa tenta expandir ainda mais seus terminais de manuseio de carga. Os efeitos das operações portuárias e as tentativas de crescimento territorial e mercantil por parte de empresas privadas globais impactam, em uma escala local, a existência material de pessoas cujas vidas podem até parecer desconectadas do Porto de Santos.
Então vale insistir: não há ancoradouro sem essa dimensão socioespacial. O que cabe à pesquisadora evidenciar é justamente a relação entre um nó e redes mais extensas ou sistemas circulatórios em diferentes escalas (local, regional, nacional, global), que jamais devem ser tomadas como “escalas governamentais fixas” (Dahinden et al. 2023, p. 636). Trata-se, portanto, de buscar uma compreensão mais dinâmica e flexível dos nossos lugares de observação, com suas ancoragens e seus entes moventes, assim como das fricções que ocorrem entre eles e impactam diretamente os processos de produção e regulação dos mercados. No caso do Porto de Santos, poderíamos citar uma infinidade de exemplos que ilustram como essas fricções desafiam a racionalidade homogênea do capitalismo e evidenciam a falácia de sua suposta universalidade. Mas talvez baste mencionar dois casos emblemáticos.
A Dubai Ports World (DPW), presente em 86 países, com 55 terminais marítimos em todo o mundo, atua no Porto de Santos há quase duas décadas. Amparada na nova legislação de 2013, a DPW foi a primeira a aderir à nova lógica de contratações via regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sem intermediação do Órgão Gestor da Mão de Obra (Ogmo). Assim como a DPW, a empresa Brasil Terminal Portuários (BTP) também se colocou como uma grande concorrente no ano de 2013. Resultado da joint-venture entre duas gigantes globais de movimentação de contêineres – a APM Terminals e a Terminal Investment Limited (TIL) –, a empresa diz garantir aos seus clientes “serviços cada vez mais personalizados e integrados com toda a cadeia logística”. Essa estratégia de serviços end-to-end, i.e., de gestão da logística do início ao fim das cadeias de suprimentos, é uma tendência mundial, garantida justamente por alianças apresentadas como solução eficiente para o capitalismo transnacional, mas cujo efeito é uma alta concentração de mercado no setor de transporte marítimo. Como nos lembra Apoena Mano (2024), fricções podem levar a mobilizações: no primeiro caso, essas iniciativas contrariaram interesses dos trabalhadores, sobretudo dos estivadores do cais santista, e serviram de estopim para conflitos e greves cuja intensidade é rememorada com frequência pelos portuários; no segundo caso, contrariaram as empresas privadas concorrentes, que consideraram o risco de monopólio das gigantes marítimas.
Se a expansão ou contração de uma estrutura portuária está condicionada pelo entrelaçamento de – e não subordinação a – regras, regulamentos e práticas que operam em níveis distintos, devemos nos aproximar do ancoradouro com uma lente telescópica ajustável, que permita alterar nosso foco entre o hiperlocal e o global. Será sempre impossível, obviamente, captar toda circulação e toda constrição. Às pesquisadoras cabe posicionar a lente ao que mais interessa – no caso deste artigo, à jornada relacionada aos carros e autopeças no momento específico em que eles cruzam o Porto de Santos. Propomos, então, que a leitora nos acompanhe em um passeio guiado pelo Terminal de Veículos (TEV).[9]
2. Uma visita ao Terminal de Veículos
De capacete amarelo e colete laranja com faixas refletivas, nosso guia direciona a atenção para o gigantesco navio Grimaldi.10
Está vendo essa entrada aqui atrás de mim? Não, não é a entrada de um shopping center. É sim a rampa de acesso deste navio que chama Ro-Ro, porque faz roll on and roll off, ou seja, em português ele rola para dentro e rola para fora. Ele é responsável por levar vários tipos de cargas, como veículos, tratores, tudo que pode ser rolado para dentro desse navio... E tem mais, não é só carro que ele leva não, ele leva contêiner também.
Antes de qualquer navio de grande porte atracar no TEV do Porto de Santos, uma pequena lancha, ou dois barcos rebocadores, irão ao seu encontro em alto mar. O prático11 sobe por uma pequena escada na lateral do casco do navio para guiar o comandante nas manobras necessárias à atracação. Os tripulantes jogam as cordas grossas e pesadas que ajudarão a fixar o navio no cais em segurança. Fisicamente distantes dali, no prédio da praticagem em frente à praia, funcionários podem acompanhar os intensos fluxos de informações graças a diversas telas de alta resolução: tabelas e gráficos mostram os navios que se aproximam, as condições do tempo e do vento, sempre numa tentativa paradoxal de prever qualquer imprevisto.
No caso de um navio Ro-Ro multipropósito como o Grimaldi, a operação será ainda mais complexa: a carga embarca e desembarca pela imensa rampa do próprio navio, rolando com rodas próprias ou por meio de equipamentos específicos. Usados para transportar veículos de diversos tamanhos – carros, caminhões, ônibus, tratores, vagões de trem ou metrô, maquinários agrícolas e de engenharia civil, além de pequenas aeronaves e helicópteros12 –, eles têm aparência diferenciada com costado alto (parte lateral do navio), de proporções comparáveis a uma megacatedral ou a um prédio de dez andares. Não há nada de banal no cálculo para definir o melhor lugar no qual se abrirá a rampa por onde passarão, a cada hora cheia, vinte contêineres imensos que carregam, entre outras mercadorias, as peças dos carros que nos interessa seguir.
Como a política e as regulamentações que operam no sistema de automobilidade, de maneira mais geral, e na cadeia automotiva brasileira, em particular, determinam a forma como as mobilidades dessas mercadorias de fato acontecem? Ou, em sentido inverso e complementar, o que as movimentações dos carros pelo espaço do TEV nos informam sobre o sistema de automobilidades nas escalas nacional e transnacional?
Antes de mais nada, ganha concretude observável e passível de descrição o que é de fato a globalização. O sistema de automobilidades é globalizado não porque há carros nos cantos mais remotos do planeta, mas os carros estão por toda parte porque, ao sistema de automobilidades, está engatada uma série de infraestruturas de transporte e comunicação como as que observamos operar no Porto de Santos. Dito de outro modo: a escalabilidade global da cadeia de produção veicular precisa ser constantemente viabilizada pelas mobilidades de outros agentes sociotécnicos, de pesados navios de proporções gigantescas que rodam o mundo, a minúsculos semicondutores cuja produção é disputada em nível transnacional.13
Há uma espacialidade das rotas a ser observada na distinção entre automóveis usados e novos, importados e para exportação. Funcionários terceirizados do TEV levam os carros novos, que serão exportados, até as proximidades da rampa do nosso navio Ro-Ro. Dali, cada veículo será individualmente dirigido ao cais por um dos muitos estivadores, cuja tarefa é subir a rampa e pausar no imenso estacionamento que, como sugeriu o homem do capacete laranja, confude-se com o de um shopping-center. Uma vez “engolido” pelo Ro-Ro, cada veículo é imobilizado com cordas para ser transportado em segurança.14 Se importados, o processo é inverso. Estivadores desamarram o carro dentro do navio, descem a rampa e entregam aos terceirizados que o estacionarão no enorme pátio do TEV, e depois será transportado em “cegonhas” pelas rodovias do país. Veículos pesados, como tratores, escavadeiras, grandes maquinários, cargas de projeto, cargas gerais, também são transportados pelos Ro-Ro e fazem parte do cenário do TEV.
Os carros importados aguardam voltados para o continente, enquanto os destinados à exportação, sempre em maior número, ficam voltados para o cais. Os principais destinos das exportações de carros do Brasil são outros países da América Latina. Por outro lado, as origens das importações incluem países mais distantes, conforme ilustrado no infográfico a seguir.
Por mais que o Brasil se destaque no setor de indústria automotiva nos níveis nacional e continental, isso não implica autossuficiência na produção. Como mencionado acima, a chamada crise dos semicondutores – também importados e transportados em contêineres que chegam ao Porto de Santos – revela a extensão dos danos que interrupções no fornecimento desses componentes podem causar na cadeia automotiva (Pimentel et al., 2023). Para além dos fluxos de automóveis novos importados e exportados, as mobilidades de partes e componentes automotivos também são essenciais para o sistema de automobilidades. A circulação de autopeças revela origens e destinos fisicamente ainda mais distantes do nosso ancoradouro.
As circulações das mercadorias é tão dependente da mobilidade de tecnologias e sistemas digitalizados quanto da mobilidade de peritos com alto capital de rede, i. e., com competência para acessar e fazer uso de infraestruturas de transporte e comunicação que lhes permitem se beneficiar de relações sociais com outros distantes (Urry, 2007). O Comandante do navio Ro-Ro Grimaldi, que passa pelo Porto de Santos antes de finalizar sua rota no Porto de Antuérpia (Bélgica), é um desses peritos. Há 25 anos na profissão, ele explica que o maior desafio da operação está na garantia de segurança da carga transportada. Os parâmetros regulatórios que determinam como embarcar, armazenar e retirar os carros também vêm de longe, sempre com a missão de evitar as turbulências, porque qualquer tipo de acidente pode atrasar a entrega da carga ao destino final. “Eu não acho que você quer comprar um carro com um arranhão”, aposta o Comandante. Como parte da engrenagem que faz o sistema de automobilidade acontecer, sua missão é mover “toda essa carga o mais rápido possível, da maneira mais segura e entregar”.
Maria Borovnik (2012, p. 60), em sua etnografia das mobilidades marítimas e de suas implicações nos processos econômicos globais, argumenta que navios cargueiros são “símbolos arquetípicos das modernidades que transportam capital e pessoas” e que, obviamente, devem ser pensados como constituídos por e possibilitadores de movimentos. Mas não só: como insiste a autora, a navegação também é feita de barreiras e imobilizações relacionadas tanto ao aumento da velocidade e da rotatividade das operações, quanto ao incremento da segurança nas fronteiras. Em conjunto, essas dinâmicas impõem aos marinheiros (não raro migrantes irregulares do dito Sul global) condições de trabalho precarizadas, com escalas salariais cada vez mais desiguais e acordos variados sobre a duração das estadias a bordo.
Sem esses profissionais, que passam boa parte de sua vidas embarcados, não haveria o vai-e-vem dos automóveis que estamos seguindo. Isso são significa que tenham menos proeminência aqueles profissionais que, relativamente fixos, operam com destreza as infraestruturas portuárias (Gibson & Warren, 2024). Para que essas operações ocorram, a dimensão física de sua infraestrutura e o regime de mobilidades que garante as boas condutas precisam alcançar níveis de altíssima sincronia. É essa combinação que permitiu ao Porto de Santos importar e exportar mais de 180 mil veículos em 2023.15
Assim como o roll on/roll offque vimos atracar no Porto de Santos, também os navios petroleiros e os porta-contêineres estão ligados às viagens globais dos veículos, por transportarem combustíveis e autopeças, além de maquinários e componentes eletrônicos fundamentais à sua produção. Se os navios ro-ro parecem shopping-centers, os TEVs parecem cidades um tanto distópicas: são vastos pátios sem qualquer vegetação, plenos de edificações climatizadas, prédios administrativos, oficinas onde são feitos reparos simples (em caso de danos mais sérios, o carro tem sua trajetória interrompida e volta à montadora), centros de operação e postos equipados com redes sociotécnicas para o severo controle de pessoas e cargas. A cada veículo estacionado no pátio é atribuída uma etiqueta eletrônica que garante o devido rastreamento de seus movimentos. A etiqueta não só indica a posição exata no espaço e no tempo, mas também prevê em quais navios eles serão carregados e seu destino final.
Antes de encerrar esta seção, voltemos à cerimônia comemorativa do centenário Porto de Santos para contar à leitora que o evento foi também palco para o anúncio de outra infraestrutura de automobilidade: o início das obras do primeiro túnel submerso da América Latina, com profundidade de 21 metros, que vai interligar os municípios de Santos e Guarujá. Na obra serão investidos 5,8 bilhões de reais, em parceria público-privada, com recursos do Governo Federal, do estado de São Paulo e de uma futura concessionária estabelecida em leilão.16
Foram “100 anos de espera”17, tempo suficiente para que muitos dissessem ser a “lenda urbana” mais famosa da região, renovada na promessa não cumprida de diversos políticos ao longo de décadas. Atualmente os percursos são feitos em 40 km de rodovia ou em balsas (uma de veículos e outra de pedestres), que podem demorar horas intermináveis a depender da fila. A travessia por mar corre o risco de ser interrompida pelas condições climáticas: com temporal ou muita neblina, é impossível garantir a segurança. A escala de tempo via túnel será da ordem do instantâneo: sua extensão de 870m poderá ser cruzada em apenas dois minutos. Isso, claro, se o cronômetro estiver ajustado à velocidade de um automóvel e não houver engarrafamentos.
O túnel promete “solucionar um dos maiores gargalos logísticos do país” e, por consequência, trazer “possibilidades de desenvolvimento e expansão do Porto de Santos”,18 facilitando as mobilidades diárias dos habitantes da Baixada Santista, como também as mobilidades turísticas de quatro milhões de pessoas que anualmente visitam Guarujá e o litoral Norte paulista. Se gargalos ou chokepoints fossem apenas locais onde fluxos de diversas naturezas são interrompidos ou reduzidos significativamente, causando aumento dos custos ao longo da cadeia de suprimentos, a solução de velocidade, com a qual o novo túnel acena, mereceria de fato muitas comemorações.
Mas, como uma vasta literatura argumenta, conectividade e velocidade precisam ser conceitualmente desvinculadas, pois nem sempre o aumento da primeira garante a aceleração da segunda (Virilio, 1996; Urry, 2007; Cresswell, 2006, 2013). Chokepoints constituem, portanto, “zonas de paradoxo operacional” (Carsen et al. 2020, p. 2), onde não só o aumento da conectividade pode retardar o movimento, mas também onde os regimes de mobilidade são postos à prova.
No interior do TEV, existem inúmeros checkpoints pelos quais os veículos têm de passar. Os portões de entrada, ostensivamente protegidos por câmeras e seguranças, são apenas o primeiro deles. Porque estão localizados em pontos estratégicos de passagem e movimento, funcionam como uma fronteira que tenta delimitar o dentro e fora do Porto. Porém, mais do que simplesmente obstruir o movimento, esses checkpoints têm capacidade de fazer cruzar bens e pessoas de forma extremamente desigual (Schouten et al., 2024).
A tecnologia do escaneamento de contêineres, por sua vez, nos ajuda a pensar sobre essas mobilidades desiguais a partir de uma sobreposição entre as lógicas de checkpoint e chokepoint. Note-se que a Alfândega da Receita Federal19 exige que todos os contêineres importados sejam escaneados. Em relação aos contêineres exportados, é obrigatório que todos com destino ou baldeação para o continente europeu ou africano passem pelo processo de escaneamento. Decorrem daí fricções – conflitos e negociações – entre diferentes instituições e agentes sociotécnicos públicos e privados, cada qual com sua estratégia de circulação e bloqueio: terminais portuários, empresas terceirizadas de segurança que operam os escâneres, Receita Federal, pessoas que tentam burlar ou corromper os funcionários responsáveis pela visualização das imagens. Se os escâneres operam como checkpoints obrigatórios apenas para certos fluxos de contêineres, eles são, ao mesmo tempo, chokepoints em que as operações são desaceleradas e a eficiência é reduzida.
Considerações finais
No geral, são as ancoragens que permitem os movimentos. E é a dialética da mobilidade/ancoragens que produz a complexidade do social
(Urry, 2003, p. 126)Na saída do evento de celebração do aniversário do Porto de Santos, ao menos trinta estivadores protestavam gritando palavras de ordem e empunhando faixas.[20] Estrategicamente posicionados na avenida em frente à sede da APS, improvisavam pequenos pontos de sufocamento, com cones que criavam um funil e limitavam o fluxo de veículos a apenas uma pista. Motoristas eram obrigados a diminuir a velocidade e observar a manifestação. As centenas de pessoas que saíam da solenidade, muitas delas jornalistas, políticos e trabalhadores portuários, involuntariamente engrossavam o protesto, cujo objetivo era interromper uma proposta de alteração no regime de mobilidades do Porto: a obrigatoriedade de concurso público para a categoria impediria a “maior liberdade” adquirida como “trabalhadores avulsos”.
Locais estratégicos, onde atos de “sabotagem e resistência” podem ter efeitos amplificados, portos e seus acessos são utilizados como chokepoints por várias categorias de trabalhadores em suas greves e paralisações (Carsen et al. 2020). Durante visita de campo de uma das autoras no TEV, o gerente do terminal explicou que o fluxo de veículos que seriam exportados atrasara não por questões solucionáveis na escala do Porto de Santos, mas devido a uma greve de caminhoneiros nas rodovias.
Nós conectados a uma cadeia maior, os gargalos escancaram as contradições e vulnerabilidades das cadeias globais de suprimento, especialmente quando se trata de cadeias complexas como a automotiva. Assim como são milhares as peças que compõem um carro, também é exorbitante a quantidade de processos, atividades e entidades envolvidas na produção e distribuição de um veículo. Da concepção inicial até a entrega ao consumidor, enfrentam-se turbulências no fornecimento de matérias-primas, fabricação de componentes, montagem, distribuição e pós-venda.
Seria o bloqueio uma nova forma de luta no capitalismo das cadeias globais de suprimentos? Toscano (2014) argumenta que, em um sistema logístico planetário, faz sentido que disputas e conflitos ocorram nos pontos de estrangulamento da circulação. O autor nos impele a olhar para os pontos onde se localizam tais lutas de sujeitos diversos, em sistemas de armazenamento, transporte e controle, que tornam as cadeias transnacionais integradas e altamente complexas. Não se trata, como já dito, de anular a importância da microescala, ao contrário: cabe reconhecer que acontecimentos realizados ali podem reverberar muito além, tornando-se geograficamente distribuídos em seus efeitos.
Vimos insistindo que o ancoradouro nos serve como um dispositivo descritivo e analítico para a apreensão das conexões, redes e posicionamentos multissituados e multiescalares. Algumas dessas conexões são mais evidentes, outras mais sutis. Isso porque, fosse o mundo social completamente ancorado ou completamente fluido, os sistemas de que é feito não seriam nem dinâmicos nem complexos. A complexidade deriva da “dialética das ancoragens e das mobilidades”, i.e., o caráter complexo de tais sistemas origina-se nas “múltiplas amarrações de espaço-tempo que permitem que os fluxos da modernidade líquida aconteçam” (Urry, 2003). Na ausência dessas amarrações e ancoragens, não poderíamos falar das mobilidades nem como fato social estruturante do contemporâneo, nem as circunscrever como objeto de investigação a partir do ancoradouro, como buscamos fazer neste artigo.
Posicionadas no ancoradouro, observamos as rotas e jornadas de objetos e corpos, informações e tecnologias implicados no sistema de automobilidades, que convergem e são canalizadas para o complexo portuário de Santos. Das mobilidades desses diferentes entes, com suas racionalidades e projetos de circulação distintos (Stepputat & Hagmann, 2019), emergem fricções que podem incrementar sua velocidade ou os obrigar à imobilidade. Vindos de diversas origens, partem para múltiplas direções e destinos, mas jamais saem ilesos, pois, ao passar pelo Porto, passam também por controles de passagem, recebem novos códigos de identificação e novas orientações de rotas.
Em diferentes pontos da trajetória que nos coube retraçar, carros (ou suas partes) são transportados por navios que transitam por portos do mundo todo. Destacamos o TEV como um nó dentro de toda uma rede ou sistema de circulatório maior: desde a interrupção da produção de microchips na China (Pimentel et al., 2023) até uma greve de caminhoneiros nas rodovias Anchieta-Imigrantes podem impactar a circulação de veículos em seu interior. Isso nos faz lembrar de que os pontos de estrangulamento, ainda que localizáveis em um mapa, transcendem a localidade, são mutáveis e móveis.
O mar muito agitado, os ventos ou uma tempestade também podem atrapalhar a operação portuária e dar origem a outros gargalos, criando “artérias obstruídas” nesse sistema circulatório mais amplo da cadeia automobilística. Algo que aconteça ali no TEV pode atrasar toda a operação e a chegada do veículo ao seu destino final, causando grandes prejuízos. Forças de longo alcance transformam e criam novos chokepoints que, por sua vez, impactam as forças de longo alcance. A combinação desses elementos garante a existência de regimes de mobilidades que podem ser duradouros ou tão breves quanto um período de emergência, atravessar fronteiras nacionais ou ser específicos a um determinado território.
O ancoradouro deve ser, como procuramos demonstrar, mais que um contexto ou um pano de fundo em nossos desenhos de investigação. Ali posicionada, a pesquisadora se pergunta como as conexões entre entes moventes e múltiplas ancoragens acontecem em escalas distintas, evitando a tentação de ajustar aquilo que observa a noções de “global’ ou “local” previamente estabelecidas. Se o alcance da observação será sempre limitado, no espaço e no tempo, o que interessa é trazer as mobilidades que se alcança apreender para o mesmo quadro de referência e examinar suas relações, integrá-las em uma mesma estrutura interpretativa. E, em cada ancoradouro, identificar e descrever, com menor ou maior detalhe, os regimes de mobilidade que colocam em relação e conectam instituições públicas e privadas, agentes estatais e paraestatais, operações legais e ilegais.
Agradecimentos
Agradecemos às/aos pareceristas pelas sugestões e leituras cuidadosas, assim como aos integrantes do grupo MTTM, que também fizeram críticas essenciais ao desenvolvimento deste artigo e, por fim, aos integrantes da pesquisa coletiva FAPESP “Carros globais: uma pesquisa urbana transnacional sobre a economia informal de veículos” (2020/07160-7), em especial à Isabelle Paiva (graduanda em Ciências Sociais/USP e bolsista de IC FAPESP 2024/06619-7) e Jonas Tomazi Bicev (bolsista de PD FAPESP 2024/05799-1) por nos auxiliarem com dados e esforços significativos durante o processo de escrita.
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Notas
Notas de autor
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