Resumo: Neste artigo1 proponho uma reflexão sobre três vídeos do YouTube protagonizados por Damares Alves entre 2016 e 2021. No primeiro, centrado na proteção da infância, a então pastora denuncia livros e filmes “impróprios” para crianças. O segundo e o terceiro, já como Ministra do governo Bolsonaro, remetem a duas entrevistas concedidas à jornalista Leda Nagle e à Karina Gomes, da Comissão Permanente junto à ONU em Genebra. O período escolhido é estratégico, porque permite perceber como os discursos sobre família e direitos humanos ganharam a cena pública no governo Bolsonaro, acionando emoções perpassadas por “discursos de ódio”, termo banalizado nas mídias institucionalizadas e redes sociais, mas que mantém sua pertinência analítica.
Palavras-chave: Mídias digitais, “discursos de ódio”, Damares Alves, direitos humanos, emoções.
Abstract: In this article I propose a reflection on three YouTube videos where Damares Alves speaks between 2016 and 2021. In the first, focused on child protection, the then clergywoman denounces books and films that are “inappropriate” for children. The second and third, then as Minister in the Bolsonaro government, she is interviewed by, respectively, the journalist Leda Nagle and Karina Gomes, from the UN Permanent Commission in Geneva. The period chosen is strategic, because it allows us to see how discourses about the family and human rights have taken the public scene in the Bolsonaro government, activating emotions permeated by hate speech, a term that has become commonplace in institutionalized media and social networks, but which retains its analytical relevance.
Keywords: Digital media, hate speech, Damares Alves, human rights, emotions.
Resumen: En este artículo propongo una reflexión sobre tres vídeos de YouTube protagonizados por Damares Alves entre 2016 y 2021. En el primero, centrado en la protección de la infancia, la entonces pastora denuncia libros y películas “inapropiados” para los niños. La segunda y la tercera, ya como ministra en el gobierno de Bolsonaro, se refieren a dos entrevistas concedidas, una a la periodista Leda Nagle y otra a Karina Gomes, de la Comisión Permanente de la ONU en Ginebra. El período elegido es estratégico, porque permite comprender cómo los discursos sobre familia y derechos humanos ganaron atención pública durante el gobierno de Bolsonaro, desencadenando emociones permeadas por el discurso de odio, un término banalizado en los medios institucionalizados y en las redes sociales, pero que mantiene su relevancia analítica.
Palabras clave: Medios digitales, “discurso de odio”, Damares Alves, derechos humanos, emociones.
Artigos
“Discursos de ódio” e a produção do caos social
‘Hate speech’ and the production of social chaos
“Discurso de odio” y la producción del caos social
Recepción: 18 Agosto 2024
Aprobación: 09 Septiembre 2024
“Enxergar o que está diante do nosso próprio nariz requer um esforço constante”. Esta frase de George Orwell faz muito sentido em tempos marcados pela propagação massiva de ideias em enclaves ideológicos e afetivos, próprios de uma esfera pública técnico-midiatizada (Miskolci, 2021). Neste artigo proponho uma reflexão sobre três vídeos do YouTube protagonizados por Damares Alves entre 2016 e 2021. No primeiro, centrado na proteção da infância, a então pastora denuncia livros e filmes “impróprios” para crianças.2 O segundo e o terceiro, já como Ministra do governo Bolsonaro, remetem a duas entrevistas concedidas à jornalista Leda Nagle e a Karina Gomes, da Comissão Permanente junto à ONU em Genebra.3 O período escolhido é estratégico, porque permite perceber como os discursos sobre família e direitos humanos ganharam a cena pública no governo Bolsonaro, acionando emoções perpassadas por “discursos de ódio”, termo banalizado nas mídias institucionalizadas e redes sociais, mas que mantém sua pertinência analítica.
Antes de entrar na análise dos vídeos e seus desdobramentos, situo a discussão sobre os discursos de ódio, não no que remete à sua dimensão jurídica,4 mas sobre como o acionamento de sentimentos perpassa o “fazer do ódio”, nos termos de Sara Ahmed (2004). Nesse processo, o ódio é endereçado às demandas por reconhecimento às diferenças, não incluídas no “cardápio” do que se pensa como relações estruturadas de família, ideia largamente veiculada pela então pastora Damares Alves e, posteriormente, enquanto Ministra do governo Bolsonaro (2019-2022).
Expressões de raiva não necessariamente explicitam discursos de ódio (Galinari, 2020), o que requer um exame de seus efeitos sociais discriminatórios em contextos sociais e históricos. Não estou em busca de uma definição de ódio, mas sim da compreensão efetiva de como manifestações contra pessoas e/ou grupos sociais marcados por raça/etnia, gênero, orientação sexual, religiosa, nacionalidade, localização, entre outras, mobilizam emoções que, em nome da liberdade de expressão, ferem a dignidade humana. Para além de uma emoção, o ódio é uma categoria que tem agência política e não apenas “uma expressão histriônica de uma personalidade repreensível” (Duncan, 2017). A busca por direitos das “minorias” ganhou uma estrondosa visibilidade, incluindo articulações transnacionais, propiciadas pela popularização da internet e das redes sociais, movimentando redes de indignação e esperança (Castells, 2013). As emoções também são mobilizadas pela apropriação de nossos dados, nossas redes, nossas memórias por sistemas corporativos. Centro-me neste último ponto, refletindo sobre como o “incitamento ao ódio”5 ajuda a pensar as conexões entre intolerância, diferenças e violência em rede. Ao modo de Foucault (2002, p; 56), os discursos são aqui pensados “como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”. O incitamento ao ódio circula nas variadas mídias, cuja convergência (Jenkins, 2009) em diferentes meios de comunicação estabelecidos divide a atenção em páginas da Web, blogs, Facebook, tanto de pessoas comuns quanto de movimentos sociais organizados. Vale lembrar que essa circulação não é inerente à internet e/ou redes sociais (Miller & Slater, 2004).
Em nome da proteção dos direitos dos cidadãos, Damares retoma um discurso secular que coloca o bem contra o mal, operacionalizado a partir da articulação de diferenças, especialmente em sua relação com a “ideologia de gênero”,6 que ganha centralidade na classificação de comportamentos. Da mesma forma, a ideia de “família protegida”, que ao mesmo tempo protegeria a sociedade, requer a criação de um contexto de caos anunciado, pautado por narrativas que seguem a lógica da simplificação, incitando o público a se posicionar a partir do medo como uma “autodefesa” de um “outro” ameaçador (Marzochi & Balieiro, 2021), central na produção de narrativas e imagens.
Essa articulação, materializada em discursos e “artefatos gráficos” (Lowenkron e Ferreira, 2014), constrói pânicos morais, antecipando o pânico moral/sexual das discussões sobre o kit gay na eleição de Bolsonaro (Trotti & Lowenkrom, 2023), uma forma de criar dúvidas sobre a credibilidade das demandas dos movimentos sociais, imputando a eles intenções não professadas.
Artefatos gráficos associados à interpretação podem causar adesão ou repúdio às narrativas, ativando emoções. Nesse sentido, o “enquadramento” das imagens serve aos propósitos dos produtores de conteúdo para ter um impacto emocional sobre as audiências, lembrando que o ativamento das emoções guarda uma relação intrínseca com as normas sociais culturalmente apreendidas (Hochschild, 1979). Nesse sentido, os enquadramentos estrategicamente produzidos provocam emoções que, ao mesmo tempo, facilitam a atenção do público e podem formular e reproduzir crenças morais e políticas.7 Pautados pela lógica do excesso, os vídeos aqui analisados recorrem a situações estereotipadas para definir condutas reprováveis, estimulando o “fazer do ódio” aos apresentados como “delinquentes”/ “desviantes”, de modo que a gestão do ódio atinge um público muito maior (Shoshan, 2014), extrapolando as “bolhas”. Assim, o ativamento das emoções pode questionar a ideia de um consumo personalizado (Van Dijck et al., 2018).
Esta imagem não é apenas ilustrativa, dado que nos oferece a dimensão do público presente. Assistir ao vídeo me permitiu perceber as expressões8 do público a cada imagem projetada na tela, o que claramente tinha mais apelo, porque materializava os efeitos do discurso de Damares. Já em 2016, a então pastora escancarava a associação entre orações e política nacional, a exemplo da referência à votação do impeachment da Presidenta Dilma Roussef, realizada naquele momento: essa semana é histórica para o Brasil, nos próximos dias podemos estar tirando do poder a presidente da república, não é golpe, é justiça!9, criando um barulho que, na prática, pôde ser dimensionado no processo eleitoral e após a eleição do presidente Jair Bolsonaro. À defesa do impeachment se articulam críticas ao executivo e ao legislativo, centradas na corrupção, que se estenderam à atuação da Suprema Corte. Segundo a argumentação irônica da então pastora, naquele momento eram discutidos assuntos não relevantes… liberação de drogas ilícitas e se os [sic] travestis e transsexuais poderiam ou não usar os banheiros de nossas meninas. Tomando a nação para si, Damares eleva o tom de voz, encara a audiência de modo inquisitivo e afirma: Minha nação está doente… as instituições piraram… chegou a hora da igreja governar e propor políticas públicas, incitando a plateia a reivindicar cargos no legislativo federal e estadual para enfrentar o desmantelamento da “família tradicional”. Os riscos da destruição da família vão sendo apresentados a partir de críticas aos livros produzidos pelo Ministério da Educação e Cultura brasileiro que circulavam nas escolas públicas e privadas, entre eles, O grande e maravilhoso livro das famílias de Mary Hoffman e Ros Asquith (2011).
O livro – apresentado ao público a partir de recortes de imagens – traz um retrato de diferentes conformações familiares, a partir de elementos cotidianos (habitação, moradia, trabalho, alimentação, lazer, entre outros). O foco nos relacionamentos aponta para a diversidade de famílias – extensas ou reduzidas, heterossexuais, homossexuais ou monoparentais, biológicas ou adotivas – cujo profícuo diálogo entre o texto e as ilustrações sugere o enfrentamento aos preconceitos e estereótipos relativos à família, recorrentemente acionados para sustentar a ideia de uma realidade única e imutável. Os enquadramentos do livro são projetados em um telão durante o Culto, seguidos da leitura indignada da pastora, ressignificando as diferenças em oposição, pelas quais a “família tradicional” seria simbolicamente rebaixada.
a intencionalidade [de mostrar] a família cristã heterossexual como caipira, sem amor entre seus componentes, o menino da família hetero aparece como abobado, retardado, de óculos, cabelo curto... o menino com dois pais aparece com roupas de cores vivas e cabelos compridos... olha o tênis da moda, as roupas da moda... eu posso combater preconceito sem ridicularizar a família tradicional...
Não sabemos de onde saem suas ideias sobre a falta de amor na família heterossexual, mas destaco o paradoxo ao positivar a família com dois pais e um menino, marcando um tipo de masculinidade que se afasta do abobado, retardado, por ela desqualificado como caipira, que alude a uma certa ausência de virilidade. Ao contrastar modelos de família, Damares afirma que a estética da família homossexual tem maior apelo quanto à imagem, transformando o que antes aparecia como “desvio”, muitas vezes associado à “delinquência”, em uma questão de estilo, obnubilando as batalhas políticas empreendidas pelos movimentos sociais acerca da legalização das parcerias homoafetivas, incluindo a adoção.
Em outro enquadramento, Damares ataca o livro de Janaína Leslão (A princesa e a Costureira, 2015), que narra a insurreição de uma princesa, prometida em casamento a um homem, por interesses econômicos e/ou geopolíticos, ao se apaixonar por sua costureira. Na articulação entre gênero e sexualidade, a desconstrução da heteronormatividade e de valores são atribuídas a conteúdos marxistas, socialistas, comunistas.10 Citando, a seu modo, Simone de Beauvoir, Damares afirma que a “ideologia de gênero” foi formulada por um grupo de pensantes que há 30 anos atrás descobriram que a raça humana é tão superior que não existe mais homem, nem mulher… é a ideologia de gênero oficialmente nas escolas.
Expressões de nojo da plateia são acentuadas ante à associação dessas imagens à minuciosa descrição de cenas supostamente ocorridas nas universidades sob o protagonismo das feministas. Na construção da então pastora, acionando a estética do excesso, mulheres que costuram a vagina de outras mulheres com linha e arame no pátio da Universidade Estadual do Rio de Janeiro são associadas à crítica ao I Seminário Queer – Culturas e subversões das identidades, realizado na Universidade Federal da Bahia, em 2015. Ao final das associações do livro infantil a performances culturais, Damares lembra aos jovens que a identidade deve ser bem firmada na rocha de Jesus Cristo. Na sequência, a então pastora recomenda o ensino em casa, cujo conteúdo seria vigiado de perto pelos familiares. Ao reiterar que a escola não é mais um lugar seguro, a articulação dos livros a imaginários de outras produções culturais constitui hierarquização das relações de gênero, o que Teresa Lauretis (1987) chamou de “tecnologias de gênero”.
Às críticas aos livros, juntam-se exemplos de desenhos animados – Aladin apaixonado por outro homem em obra de um artista plástico, o príncipe encantado não acorda a Cinderela com um beijo, porque ele virou gay… A Frozen acorda a Bela Adormecida com um beijo lésbico e finaliza CHEGA IGREJA – deixem as nossas crianças em paz – bordão de vários cartazes de manifestantes contra a “ideologia de gênero” durante as votações dos Planos de Educação nas Casas Legislativas.
A suposta confusão de gênero é associada à confusão espiritual, o que me parece ser um ponto novo para refletir sobre como outras categorias de diferença se articulam na produção do enquadramento construído pela então pastora da ameaça à “família tradicional”.
Damares afirma que se as bíblias foram extintas das escolas, então também não se pode evocar Olorum – criador do mundo e dos orixás, percebido como intermediário entre o Deus supremo e os humanos (Prandi, 2007). O que poderia ser entendido como uma defesa dos princípios constitucionais do Estado laico ganha outra dimensão, na medida em que propõe a volta da Bíblia nas escolas, concorrendo com o que a pastora nomeia de ensino das religiões afro e não da Cultura Afro, projeto aprovado pela Lei nº 10.639 em 2003.11 Imagens projetadas na tela provocam expressões de asco e de incredulidade na plateia, a exemplo do balançar das cabeças, indicando reprovação ao ver a imagem de uma mulher negra e uma criança também negra com uma galinha, aludida por Damares à simulação de rituais de sacrifício, ignorando uma longa história de discriminação. Nessa leitura, o debate sobre racismo e intolerância às religiões de matriz africana se transforma em um problema de “más atitudes”, obnubilando a desigualdade sistêmica e estrutural (Tetrault, 2021).
As ideias consagradas no culto capilarizam em variadas mídias, estimulando o ódio contra defensores das religiões afro-brasileiras, como vemos na violência perpetrada às cerimônias de Candomble e Ubanda, denunciadas em variadas mídias. A impropriedade desse livro é justificada por Damares como um desrespeito à fé das crianças cristãs – evangélicas, espíritas ou católicas, excluindo práticas religiosas de matriz africana, explicadas como “satanização” o que, associado à demonização da “ideologia de gênero”, alimenta ainda mais os processos de exclusão.12 No entanto, a visibilização dessa “verdade” tem gerado contranarrativas de ativistas, organizações da sociedade civil e gente comum, possibilitando o debate sobre os efeitos dos pânicos morais (Balieiro, 2018) operacionalizados pelo medo às diferenças como parte do “fazer” do ódio, que não é simplesmente “feito” no momento de sua articulação, mas produz uma cadeia de efeitos que afetam ao mesmo tempo sua circulação (Ahmed, 2004).
Orgulhosa de sua gestão, já como ministra do governo Bolsonaro, Damares aponta para as modificações do disque 180 – canal de denúncia de violência contra mulheres criado no primeiro governo Lula. Entre as modificações, Damares incluiu no disque 180 o acolhimento de denúncias anônimas sobre a exposição das alunas a conceitos comunistas e ensinamentos de ideologias de gênero, retomando ideias veiculadas no culto realizado em 2016. Ao mesmo tempo, reitera a responsabilidade de direcionar a conduta dos jovens [que] pertence unicamente aos pais e não à escola.
Contra a manipulação de seres humanos indefesos, o Ministério se colocava como o baluarte da defesa dos direitos das crianças e de sua dignidade, incluída na defesa da família heterossexual e dos valores humanos. Um dos motes centrais dos movimentos feministas, a violência contra as mulheres, infelizmente ainda recorrente, é apropriado pela ex-ministra – digam não à violência, tenham coragem de denunciar. Ao ampliar o conceito de violência a partir de valores morais e religiosos, Damares propõe a criação de redes de indignação contra conteúdos produzidos pelos movimentos feministas, associados ao movimento LGBTQIA+, adeptos de religiões de matriz africana, por ela apontados como pilares da desconstrução de valores.
O espetáculo é montado a partir de polos opostos – bem/mal, direita/esquerda, conservador/progressista – mobilizando a fé como propulsora de uma moral a ser seguida. Mas isso não é novo, a novidade me parece que está em como esse projeto é capilarizado por meio de interpretações simplificadoras de enquadramentos estrategicamente produzidos, que se reproduzem na Internet e nas redes sociais, o que deu visibilidade a grupos antifeministas (Beleli, 2022). A princípio pensei ter encontrado uma certa linearidade que associava os discursos de defensores dos direitos às ideias progressistas, enquanto somente os conservadores mobilizavam as diferenças para desqualificar os sujeitos em defesa da ordem e da moral, mas essa linearidade se esvai, na medida em que as moralidades aparecem entramadas nos polos, o que requer puxar os fios dessa trama, no sentido de ampliar a reflexão sobre os públicos em rede (Boyd & Ellison, 2007).
Em defesa dos valores humanos, as feministas têm sido um alvo preferencial, associadas a movimentos sociais, grupos e agremiações partidárias que lutam por direitos, contra os quais se mobiliza o medo da suposta desordem social causada pelos movimentos sociais. Essas narrativas, a princípio dirigidas a públicos específicos, como no caso do Culto de 2016, são amplificadas na gestão da então ministra, ganhando legitimidade e força no ecossistema comunicacional. A corrupção, mote central para desestabilizar o Partido dos Trabalhadores na década passada, levando à ascensão da extrema-direita nas eleições de 2018, foi apenas um dos elementos, pois não se tratava apenas de apontar o erro e cobrar uma punição. Antes, funcionou como uma cortina de fumaça para tramar a ideia de valores humanos e disseminar a noção de cidadãos de bem, entendidos como aqueles que seguem determinados valores inseridos em uma ideia de família. Miskolci e Balieiro (2023) estão certos ao apontar que a moralização da política no enquadramento midiático foi muito além da luta contra a corrupção, vide a espetacularização do kity gay e de eventos culturais que remetiam à articulação de gênero e sexualidade, instigando atos de indignação coletiva contra demandas de grupos organizados e instituições consolidadas na democracia, a exemplo do Superior Tribunal Federal (STF).
Esses atos de indignação foram apropriados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para criar a noção de cidadãos de bem, construída a partir dos afetos como parte de uma campanha cujo objetivo era conscientizar a população sobre a violência contra o público feminino, deslocando os sentidos originários de políticas públicas voltadas aos direitos das mulheres. Para isso, Damares propõe capacitações de profissionais de beleza, de modo que eles identificassem marcas de agressões e incentivassem as clientes a denunciar os agressores,13 apostando nas relações de afeto e intimidade entre profissionais de salões de beleza e clientes. A outra ponta da campanha apontava para atuações preventivas, pautadas por conversas com crianças entre quatro e cinco anos, de modo a ensinar os meninos a amarem as meninas, criando um sentimento já na infância sobre a igualdade de direitos e oportunidades. Paradoxalmente, propõe um tratamento diferenciado para as meninas..., uma forma de construir e manter as diferenças. Nessa construção a batalha de significados é regida por ordenações morais que, perpassadas por emoções como parte das políticas culturais e sociais, reificam as hierarquias de poder e controle social (Ahmed, 2004).
O engodo deste ser especial pleno se traduz na classificação “mulheres de bem” que, necessariamente, devem ter como objetivo a constituição de família, excluindo aquelas que não seguem uma suposta moral que garantiria a ordem social. Nesse sentido, a família heterossexual – percebida como o pilar dos vínculos familiares – torna-se sujeito de políticas públicas, garantindo o acesso de seres humanos a direitos a partir da família (Moschkovich, 2023).
Na entrevista a Leda Nagle, a ex-ministra investe em narrativas que levam à comoção, iniciando com sua própria história de abuso na infância, o que teria pautado sua “investigação” sobre o tema. Damares critica as políticas públicas dos governos anteriores, voltadas apenas à exploração sexual, não enfrentando o tema do abuso infantil. As mudanças na ouvidoria do disque 100 e 180,14 explicadas pela atuação conjunta com a Polícia Federal – permitiu que ela tivesse acesso a vídeos sobre um novo fenômeno – estupro de bebês… o mais jovem tinha 08 dias... o pai fez sexo anal com ela e ela não sobreviveu, porque não tem como reconstruir o intestino. Outras histórias vão sendo contadas, mas o ápice da comoção, estampado no rosto da experiente jornalista, aparece na narração de Damares de um suposto diálogo entre dois homens:
ela está grávida, eu olho para a barriga e faço planos… é o marido, olhando para a barriga da esposa e fazendo planos com o bebê. O futuro pai diz: sei que posso fazer anal com ele a partir de oito meses sem prejuízo para o bebê, e pergunta ao médico: você pode me receitar um anestésico e pomada para assaduras?, ou seja, já estão desejando fetos.
A ex-ministra atribui o crescimento deste tipo de abuso a questões econômicas, assinalando que um vídeo de abuso de crianças pode custar entre 500 e 2000 reais, mas com bebês o valor pode chegar a 50.000 reais na deep web monitorada pela Polícia Federal. A questão econômica é novamente ativada nas declarações de Damares sobre o abuso de meninas na Ilha do Marajó, cujas denúncias às mídias locais ganharam proporção nacional,15 impactando as audiências com narrativas pautadas pela lógica do excesso – crianças da ilha teriam seus dentes arrancados para facilitar o sexo oral, associando a mutilação ao tráfico de crianças e adolescentes para “exploração sexual”. A causa é explicada pela fome, então nós não vamos atacar somente a exploração… vamos levar empreendimentos para a Ilha, propondo a instalação de uma fábrica de calcinhas, porque as crianças não usam calcinhas, também apresentada como causa dessas aberrações, como forma de conter o abuso e alavancar a economia marajoense.16 Em entrevista à DW Brasil, ministra Damares Alves volta a defender o papel das igrejas na transformação do Brasil, é o momento de a igreja ocupar a nação, retomando ideias propagadas no Culto em 2016, cuja denúncia de médicos que estupravam bebês recém-nascidos com o dedo indicava a construção da ideia de uma sociedade sem rumo.
Ao articular estratégias que combinam questões morais e políticas, a construção do caos está intimamente ligada aos “pânicos morais” (Cohen, 2011). Os enquadramentos interpretados por narrativas simplistas mobilizam sentimentos coletivos de medo de pessoas e/ou grupos organizados apresentados como contrários aos valores morais da sociedade, culpabilizando-os pela suposta desordem social.
Na última parte deste texto, proponho uma reflexão sobre um aspecto que me é caro – como as pessoas (re)significam as mensagens veiculadas por variadas mídias, prestando particular atenção aos comentários que circularam no YouTube sobre essas produções. De fato, produtores e consumidores não podem ser pensados separadamente, o que Jenkins et al. (2009, p. 30) chamaram de “cultura participativa”, ainda que esta interação esteja regida por um conjunto de regras que ainda não entendemos completamente. Apesar de esta análise estar centrada em três vídeos veiculados pelo YouTube, os meios operam de modo transversal, particularmente na internet, de modo que a mediação tecnológica da comunicação, antes pensada como “meramente instrumental” se converte em “estrutural”. Vale o alerta de Martín-Barbero (2003, p. xix), “não devemos confundir comunicação com técnicas e meios… a tecnicidade é menos assunto de aparatos que de operadores perceptivos e destrezas discursivas”. São justamente as “destrezas discursivas” que conectam as inovações às experiências sociais.
Nesse sentido, pesquisar quaisquer produtos midiáticos requer considerar seriamente os efeitos da mobilidade, portabilidade, multimidialidade, hipertextualidade e interatividade, na medida em que esses efeitos são parte da elaboração de estratégias de produção, mas também de como são recebidos pelas mais diversas audiências. Nessa articulação, é preciso também refletir sobre os significados da hipervisibilização, que criou uma nova realidade social, estreitando as fronteiras público/privado e pessoal/político. Se a diluição de fronteiras pode ser pensada como um aspecto positivo, na medida em que serviu para debater e complexificar visões do mundo, na atual conjuntura, o escancaramento dos preconceitos, muitas vezes ativados por meio de sentimentos, faz parte de um sistema de crenças, o que Bentes (2018, p. 163) denominou de “fundamentalismo comunicacional”, cujos potenciais argumentos dão lugar a desqualificações pessoais e/ou de grupos organizados, incluindo agremiações políticas (Beleli, 2022).
No material aqui analisado, produção e recepção se articulam em embates por uma superioridade moral pautados por respostas simples a problemas extremamente complexos, cuja separação entre bem e mal constitui o cerne da simplificação, que remete ao enquadramento moral, como analisam Miskolci e Balieiro (2023). Essa simplificação aparece entranhada nas audiências, pautada por apoios e desconfianças.17 A princípio, a desconfiança me chamou a atenção por se tratar de um culto, o que corrobora a ideia de que mesmo produções direcionadas a um público específico atingem audiências distintas, cujas emoções são ativadas a partir de uma miríade de (des)informações que circulam pelas redes.
A ênfase da então pastora na “família tradicional” não foi alvo de contestação, mas me chamou atenção o comentário de um jovem rapaz branco que negava a existência da família tradicional – se tivesse uma família tradicional brasileira, estupros, feminicídios entre outras coisas não seriam comuns –, corroborando a ideia de caos construído por Damares. Sem associação ao “tradicionalismo”, a questão do Estado laico ganhou centralidade em críticas sobre a volta da Bíblia às escolas defendida pela então pastora, ainda que, aparentemente, caíram na armadilha de Damares ao confundir o ensino da Cultura Afro com a propagação das religiões de matriz africana – isso fere a educação religiosa de pessoas que não praticam a mesma religião que estão impondo lá (homem jovem, negro), seguido do comentário de um homem negro ao discordar que o livro Eleguá provocaria confusão espiritual impor uma religião na mente das crianças é o que provoca confusão - As crianças têm que aprender ciência e não religião. De outro lado, alguns comentários do vídeo no Youtube criticaram o fato de terem sido obrigados a ver filmes sobre Orixás em aulas na Universidade Federal de Pernambuco, associando essa produção à ideologia de gênero e reivindicando a laicidade do Estado – bati de frente com a professora e com a turma. Passei em ambas as cadeiras, mas a duras penas (homem jovem, branco).
Mesmo reconhecendo a importância de tratar o tema da diversidade de famílias, pessoas que se apresentam como educadoras do ensino médio e fundamental se posicionaram contra a discussão das relações entre pessoas do mesmo sexo na escola, porque não contribui em nada para os alunos, outras apontam que não sabiam da existência desses livros nas escolas – Muitas coisas acontecendo sem nosso conhecimento e consentimento (mulher, loira), em referência ao livro A princesa e a Costureira.
Em nome da universalização dos direitos, marca do governo Bolsonaro, segundo a ex-ministra, a defesa dos homossexuais entra na pauta, num primeiro momento, porque são todos filhos de Deus e a Igreja tem que acolher, posteriormente, Damares acusa a “ideologia de gênero” de manipular o movimento gay – se não se nasce mulher ou homem, então também não se nasce homossexual, apontando para a possibilidade de reconversão. A defesa das travestis – eu amo os (sic) travestis... enfatizada na entrevista à DW, é justificada pela falta de oportunidade de trabalho – eles não querem se prostituir, mas porque são travestis não têm outra chance... então o meu objetivo é fazer um convênio com empresas para que eles tenham um trabalho digno e saiam das ruas, incorporando, segundo ela, as demandas das próprias travestis. Novamente, as moralidades ganham centralidade, reduzindo os altos índices de mortalidade dessa população, recorrentemente denunciado pelos movimentos sociais e por parte da mídia, à de falta de oportunidade, reiterando a indignidade do trabalho das profissionais do sexo.
Os comentários à entrevista conferida a Leda Nagle e a Karina Gomes ganham outros contornos. A lógica do excesso parece induzir os muitos apoios à então ministra, especialmente ao citar o caso de abuso por ela sofrido, recorrente em suas narrativas midiáticas, mas também enaltecendo sua coragem em enfrentar as hordas malignas dos movimentos ideológicos (homem, branco) e aquele discurso manjado e idiotizante das feministas… tudo que o establishment odeia! (mulher, branca). A admiração se deixa ver nas palavras coragem, força, coração enorme, recorrentes nos comentários às entrevistas, mesmo aqueles que afirmam não ter votado em Bolsonaro,
O governo atual não teve meu voto… porém, essa entrevista fala de coisas que acontecem SIM… Independente de opinião política… aqui no RJ é deprimente passar pela Av Presidente Vargas à noite e ver essas crianças, filhos dos dependentes químicos. São inúmeras! É real! E não tem ninguém do poder público atuando ali, infelizmente
(Jovem mulher, negra).Outros resgatam a importância da “família tradicional” apontando para a desestruturação da família causada pela falta de atenção devida dos pais para seus filhos, associando às atuações dos movimentos feministas e LGBTQIA+,
a maioria dos personagens das novelas da Globo sempre transam c/ mais de 1 pessoa, o “ninguém é de ninguém” e pregando que a infidelidade é normal e que a Família Tradicional Cristã é coisa do passado?? Por que quase todos [os] Escritores de Novelas da Globo são Gays? Será que é p/ valorizar LGBTs e o Feminismo?
(Mulher, branca)Boa parte dos comentários críticos às entrevistas da ex-ministra afirmam que ela usa sua dor pessoal em prol de uma luta religiosa, associando dados de abusos pouco claros que produzem um processo quase que inquisitório sem contribuir para um programa de combate de fato. Além disso, destacam a regressão em conquista de direitos ou da pouquíssima atenção a eles (homem, branco). A dramaticidade da narrativa é apontada como terrorismo, ao questionar as afirmações de Damares sobre meninas se cortam intimamente com uma gilete por causa de dor na alma (homem, branco). Muitos perguntam como fazer um programa de esclarecimento dessas práticas – extremas e absurdas… apresentadas como se fosse algo comum baseado na dor da alma? (homem branco)
A lógica do excesso é uma forma efetiva de provocar emoções/comoções nas audiências, vide o grande número de apoios nos comentários às entrevistas, propondo o resgate da família tradicional, o rechaço aos movimentos ideológicos – feminista e LGBTQIA+ – e a contestação de produtos culturais. No que remete às críticas, a simplificação é complexificada e questionada: Sou professora há 40 anos e sei o que quero… além do discurso e denúncia quero voltar à educação, à informação. TERRORISMO não é EDUCAÇAO (mulher branca).
No material aqui analisado, a ideia de proteção da “família tradicional” é pautada pela criação de enquadramentos que levam a um contexto de caos, incitando o público a se indignar ante a destruição do mundo, como uma profecia. O mundo prestes a ser destruído requer o resgate dos bons cidadãos explicado pela lógica da simplificação, colocando em dúvida relações entre pessoas do mesmo sexo, religiões de matriz africana e a pluralização da família. O amor a uma noção de família explicita os ódios aos que, implícita ou explicitamente, são colocados na chave da “delinquência”, acionando moralidades fortemente presentes na produção da ideia de desordenamento social. Nesse sentido, o ódio é uma categoria política que também promove a indignação, intensificando a marginalização, ou mesmo a exclusão social, de pessoas e/ou grupos percebidos como diferentes.
As narrativas da então pastora e da ex-ministra apostam na dramaticidade, uma forma de provocar emoções que vão de expressões de nojo à incredulidade, tanto nos vídeos como nos comentários. Se os livros inapropriados se associam à inadequação dos “diferentes”, culminando na denúncia de uma nação doente, o caminho da cura é a Igreja. Longe de propor políticas ou ações cidadãs, a ex-ministra aposta no desenvolvimento econômico e, de forma simplista, associa a questão do abuso à precariedade, ou ainda que a questão da violência contra as travestis está relacionada ao exercício de profissões indignas. Essas “explicações” simplificadoras se reproduzem na Internet e nas redes sociais, amplificando pânicos morais operacionalizados pelo medo às diferenças como parte do “fazer” do ódio. É justamente essa capilarização – cuja simplificação aparece também entranhada nas audiências – permeada pelo ativamento das emoções que transtornam a ideia de um consumo personalizado.
Comecei este artigo com George Orwell – “Enxergar o que está diante do nosso próprio nariz requer um esforço constante” –, termino com o alerta de Sara Ahmed – “Temos que ter os ouvidos abertos para escutar os efeitos do ódio”. O esforço constante em prestar atenção às narrativas de produtores/receptores de conteúdo permite detectar o que está oculto nas respostas/propostas simplificadoras, de modo a criar argumentos que permitam contestar ideias que colocam o bem contra o mal. “A família” apresentada como o principal artifício de combate à “ideologia de gênero”, como era de se esperar, ganhou adeptos entre os autodenominados conservadores, mas também é abraçada por muitos que se dizem progressistas. Afinal, “família” não parece, ainda, ser um termo polissêmico no senso comum.
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