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Imagens na era digital: diálogos e confluências entre a sociologia digital e a sociologia das imagens
Images in the digital age: dialogues and confluences between digital sociology and the sociology of images
Imágenes en la era digital: diálogos y confluencias entre la sociología digital y la sociología de las imágenes
Imagens na era digital: diálogos e confluências entre a sociologia digital e a sociologia das imagens
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 12, e-rbs.1054, 2024
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepción: 09 Septiembre 2024
Aprobación: 14 Septiembre 2024
Resumo: O presente dossiê se dedica à análise das diversas formas de utilização de imagens, sejam elas fotografias, vídeos e outras produções visuais e audiovisuais nas mídias digitais. Propõe, assim, um diálogo entre os campos da sociologia da imagem e da sociologia digital, considerando a importância da análise sociológica das condições simbólicas e do papel das imagens, em suas diversas modalidades, na vida social. Em um esforço para compreender as mudanças culturais, políticas e econômicas trazidas pela popularização das tecnologias digitais em nossa sociedade, devota-se a um dos seus aspectos notórios: a criação de conteúdo imagético e, particularmente, audiovisual, considerando a centralidade das novas dinâmicas comunicativas das plataformas digitais e, mais recentemente, as inovações produzidas pela inteligência artificial generativa.
Palavras-chave: Imagens, mídias digitais, sociologia digital.
Abstract: This dossier is dedicated to analyzing the various ways images – whether photographs, videos or other visual and audiovisual productions – are used in digital media. It seeks to foster a dialogue between the fields of sociology of images and digital sociology, highlighting the importance of sociological analysis of symbolic conditions and the role of images, in their various forms, in social life. To better understand the cultural, political, and economic changes brought about by the widespread adoption of digital technologies in our society, it focuses on one of their most notable aspects: the creation of visual content, particularly audiovisual content, considering the centrality of new communicative dynamics on digital platforms and, more recently, the innovations introduced by generative artificial intelligence.
Keywords: Images, digital media, digital sociology.
Resumen: Este dossier está dedicado al análisis de las diferentes formas en que se utilizan las imágenes, ya sean fotografías, vídeos u otras producciones visuales y audiovisuales en medios digitales. Así, propone un diálogo entre los campos de la sociología de la imagen y la sociología digital, considerando la importancia del análisis sociológico de las condiciones simbólicas y el papel de las imágenes, en sus diversas modalidades, en la vida social. En un esfuerzo por comprender los cambios culturales, políticos y económicos que ha traído consigo la popularización de las tecnologías digitales en nuestra sociedad, se centra en uno de sus aspectos más destacados: la creación de contenido visual, en particular audiovisual, teniendo en cuenta la centralidad de las nuevas dinámicas comunicativas de las plataformas digitales y, más recientemente, las innovaciones producidas por la inteligencia artificial generativa.
Palabras clave: Imágenes, medios digitales, sociología digital.
O presente dossiê resulta de inquietações há algum tempo compartilhadas por seus organizadores, as quais se referem, prioritariamente, às variadas formas de utilização de imagens, sejam elas fotografias, vídeos e outras produções visuais e audiovisuais nas mídias digitais. Nesse sentido, este trabalho é fruto de anos de diálogo e reflexões em que se encontram os campos da sociologia digital e da sociologia das imagens. Um esforço condensado vem sendo exercido há gerações por pesquisadores/as da sociologia da imagem no sentido de conferir a devida atenção às “condições simbólicas de constituição do social” (Menezes, 2017, p. 26) e ao papel das imagens, em suas diversas modalidades, na vida em sociedade. Concomitantemente, diversos autores e autoras da sociologia digital, ao investigarem as mudanças culturais, políticas e econômicas trazidas pela popularização das tecnologias digitais em nossa sociedade, passaram a inquirir sobre como a criação de conteúdo imagético e, particularmente, audiovisual, reconfigura diversos fenômenos sociais de relevância à reflexão sociológica, considerando sua emergência nas novas dinâmicas comunicativas das plataformas digitais e, mais recentemente, as inovações produzidas pela inteligência artificial generativa.
Desde o século XIX, a [re]produção e a difusão de imagens através de aparatos mecânicos e eletrônicos participa de construções e transformações nas formas de ver, apresentar e reconhecer a “realidade”. Independentemente das finalidades – comerciais ou políticas – e de sua orientação moral, o uso de imagens cumpre importante papel na construção de narrativas da realidade e da história da humanidade: de filmes de propaganda nazista, passando por registros jornalísticos históricos, como a explosão do ônibus espacial Challenger; a queda do Muro de Berlim, ou o atentado às Torres Gêmeas de Nova York. Estas se tornam um importante referencial amplamente compartilhado sobre uma história “comum”, não sem conflitos ou disputas de narrativa concorrentes, às vezes reescritas ou reeditadas sob outros olhares.
Está no cerne da questão que motiva este dossiê a produção não apenas de modos de ver a realidade, mas de “organizá-la”, ao classificar, hierarquizar e sequenciar elementos dessa realidade. Formas que não são aleatórias, nem arbitrárias, mas envolvem e mobilizam diferentes forças sociais – cultura, política, economia – bem como interesses de diferentes grupos.
A questão se amplifica e intensifica com a chegada da “era digital”, em um contexto de conectividade permanente, com a ampliação do acesso à internet a partir da massificação dos dispositivos móveis e das redes móveis. Observou-se, nas últimas décadas, a expansão do uso de recursos de mídias digitais ao redor do globo e em nosso país. Uma de suas consequências é a intensificação da presença midiática na vida cotidiana (Miskolci & Balieiro, 2018) em uma internet que, cada vez mais, se caracteriza pela concentração dos serviços em algumas plataformas (Van Dijck et al., 2018), as quais se notabilizam pela construção de uma arquitetura de apelo imagético (Beleli, 2015) que incita seus usuários a produzirem narrativas, textuais e visuais, de si (Adelman et al., 2015).
Em um mundo crescentemente mediado por mídias digitais, pelas quais se nota a presença acentuada do consumo (audio)visual, mais do que simples ilustrações ou material para o estudo de outras problemáticas socioantropológicas, as imagens constituem em si uma problemática privilegiada, considerando sua elaboração, socialização e potencialidade de transformação de modos de ver a realidade, com implicações mais ou menos diretas na orientação de ações – em níveis macro e micro – perante esta realidade. Este aspecto nos remete à noção de enquadramentos, tal como proposta por Erving Goffman (2012) e retomada em estudos de sociologia das mídias e de comunicação política, a partir do conceito de enquadramentos midiáticos que ressalta a dimensão central dos media na construção social da realidade. Enquadramento é um conceito-chave da obra madura de Goffman (2012) que compreende a forma em que o ator social vê a realidade sempre a partir de matrizes interpretativas anteriormente formadas. Na definição de Snow e Benford (1992, p. 137, tradução nossa) “ele se refere a um esquema interpretativo que simplifica e condensa o ‘mundo lá fora’ selecionando, pontuando e codificando objetos, situações, eventos, experiências e sequências de ação em um envolvimento presente ou passado de alguém”. O campo da sociologia das mídias e da comunicação (Tuchman, 1978; Entman, 1993) se voltou à análise de como as mídias são capazes de difundir interpretações sobre fenômenos e processos sociais, sobre os quais destacamos a dimensão (audio)visual como parte crucial da construção dos enquadramentos midiáticos.
Dada a heterogeneidade das sociedades contemporâneas, um amplo espectro de problemas e visões de mundo são concorrentes, tendo as mídias convencionais (impressas ou televisivas), até recentemente, um papel central no estabelecimento de uma agenda das questões públicas relevantes e na construção de enquadramentos hegemônicos sobre elas. Mas muito mudou nas últimas décadas. Pesquisas como o Digital News Report, da Reuters Institute for the Study of Journalism, demonstram que a forma de acesso à informação se transformou rápida e substancialmente no decorrer da década passada, em termos globais. De forma resumida e simplificada, é possível apontar o declínio do consumo de jornalismo impresso ao aumento da busca pela informação por meio de plataformas de rede social e, por fim, o recente crescimento da importância dos aplicativos de mensagens e o aumento de busca por informação de caráter audiovisual.1
Pesquisas acadêmicas (Balieiro, 2022; Miskolci & Balieiro, 2023) demonstram que o enquadramento midiático se tornou um objeto de complexa disputa com a conformação de um novo ambiente midiático (Couldry & Hepp, 2020) que acompanha a formação de uma sociedade crescentemente mediada pelas tecnologias digitais (Lupton, 2014) e em um contexto de conectividade permanente. Nos termos de Judith Butler (2015), vivemos em um contexto em que o enquadramento se realiza a partir da “onipresença das câmeras dispersas”. Butler aborda a centralidade das imagens (audio)visuais na construção do nosso campo de percepção, considerando que é a partir da visualidade que se configura nossa capacidade de reagir com indignação, antagonismo e crítica. Consumimos hoje uma diversificada produção audiovisual, produto da difusão de dispositivos móveis com câmeras, além de uma infinidade de dispositivos, softwares de edição e plataformas de divulgação. Na era da autocomunicação de massas (Castells, 2015), pode-se produzir, editar e publicar imagens e vídeos, tornando o enquadramento de questões sociais, culturais e políticas algo passível de disputa entre atores com expertise nas mídias digitais, que passam a concorrer com as mídias convencionais em um competitivo mercado de atenção arbitrado por um pequeno número de corporações digitais (Van Dijck, 2016; Van Dijck et al., 2018).
Mais do que uma substituição das mídias analógicas pelas digitais, assistimos à digitalização de formatos midiáticos prévios e interrelações entre “novas” e “velhas” mídias, evidenciando não uma verdadeira ruptura em relação a mídias anteriores com as mudanças tecnológicas recentes, mas, antes, uma complexificação e intensificação da presença midiática na vida cotidiana, dada sua convergência. Para tanto, o conceito de midiatização, tal como apresentado por Couldry e Hepp (2020) é elucidativo, considerando o processo de digitalização a fase mais recente do processo crescente no qual as mídias têm influenciado decisivamente as condições de interdependência humana.
Nesse sentido, assim como outros autores (Hjarvard, 2014; Castells, 2015), entendendo a midiatização como um tema atual, mas não necessariamente recente ou restrito às mídias digitais, intentamos aprofundar, a partir deste dossiê, como, nessas circunstâncias específicas, as produções (audio)visuais participam da vida social contemporânea em aspectos macro e microssociológicos. De forma articulada e com atenção especial, é preciso refletir sobre as formas como se dá o uso cada vez mais frequente da comunicação visual, seja nas interações cotidianas a partir de aplicativos de mensagens e plataformas de redes sociais, seja na comunicação de empresas, governos, movimentos sociais e grupos políticos dos mais variados espectros ideológicos. Outro aspecto relevante à discussão sociológica é a forma como as imagens são compreendidas pelas audiências em seus diversos segmentos, considerando as diversas formas de construção imagética – hoje também produzidas por inteligência artificial generativa – na disputa da opinião pública.
Sobre esta questão, um exemplo paradigmático é o cenário político brasileiro recente: uma das marcas das eleições presidenciais de 2018 no Brasil foi o uso intensivo, pela extrema-direita em ascensão, de recursos de comunicação digital através de redes sociais – Facebook, Instagram, Twitter –, aplicativos de mensagens instantâneas – Whatsapp e Telegram – e sites de diferentes organizações na internet para a promoção de desinformação, com links para textos, imagens e vídeos, não raramente adulterados, com a finalidade de atacar a imagem de candidatos adversários.
Esse expediente persistiu nas eleições presidenciais de 2022, com o uso de imagens editadas ou descontextualizadas, ainda mais frequente e espraiado, como atesta a propagação de matérias que usam deep fake2 para deturpar os sentidos iniciais de falas de políticos ou mesmo de matérias do jornalismo televisivo. Para além das tentativas de manipulação por meio das imagens, a profusão, nas plataformas digitais, de perfis humorísticos e a popularização de memes imagéticos também revela processos de significação nem sempre evidentes e esperados das imagens, na medida em que a recepção dos códigos não se dá de forma homogênea e conteúdos cômicos ou irônicos – ainda que compreensíveis para certos segmentos – facilmente podem ser tomados como sérios ou literais.
Os exemplos não se encerram no campo político. As novas gerações têm preferido, cada vez mais, realizar consultas sobre temas variados na rede de vídeos curtos TikTok, no lugar do buscador Google, revelando uma proeminência da imagem e do vídeo em relação ao modelo anterior que apresentava seus resultados em formato escrito.3 A profusão de vídeos “tutoriais” sobre os mais diversos assuntos, videoaulas e a ascensão de influenciadores digitais cujos principais canais de divulgação são redes baseadas em imagens – Instagram, Tiktok, YouTube, Twitch – reforçam a centralidade das imagens nas mídias digitais atualmente. Tais considerações estão em sintonia com os estudos a respeito da busca afetiva e sexual nos aplicativos, a qual passou a ser regida, nos termos de Iara Beleli (2015), pelo “imperativo das imagens”.
As imagens podem dividir opiniões, suscitar diferentes reações e interpretações em diferentes públicos, o que reforça seu aspecto marcadamente cultural e contextual. Entretanto, quando se trata de imagens na época da reprodutibilidade técnica, amplamente reproduzidas e difundidas, continuam sendo as mesmas imagens, para um sem-número de espectadores e que, nesse sentido, ensejam alguma generalidade, ainda que nunca plenamente atingida. São, portanto, produzidas de forma cognoscível para diferentes públicos, podendo ser acionadas ou aludidas e serem reconhecidas em contextos variados que escapam à sua origem.
Mudanças tecnológicas têm permitido a um número crescente de usuários produzir e divulgar seus próprios conteúdos, ao mesmo tempo que consomem conteúdos de outros usuários e outras localidades, em um sistema comunicacional híbrido e segmentado, em que circulam produções televisivas, cinematográficas, dentre outras, de diferentes países, aos quais jamais teriam acesso por outros meios. Mas, além do acesso, a possibilidade de consumo em diferentes situações e espaços, através principalmente dos aparelhos celulares – sem desconsiderar tablets, smart TVs, muitas vezes sincronizados a uma conta de usuário comandada via celular – junto com os recursos de câmera possibilita novas e diversas formas de relação com as imagens e de interação visual com outros usuários, seja por meio de chamadas de vídeo ou envio de fotografias instantâneas para os mais diversos fins. Dito de outro modo: a relação com as imagens e como elas são utilizadas nas interações humanas também muda, constituindo tema atual e relevante para a Sociologia.
Buscamos, então, reunir textos de diferentes vertentes sociológicas que, de algum modo, abordem usos de imagens em mídias digitais, seja enquanto objeto principal de investigação, seja como recurso constituinte de outras problemáticas sociológicas acerca da realidade tal como a vivenciamos hoje.
Este dossiê é composto por quatro artigos. No primeiro deles, intitulado Na selva de pixels: formas de classificação e dinâmicas sociais em torno de imagens geradas por inteligência artificial, Débora Krischke Leitão e Daniella Landrys (professora e doutoranda do Département de Sociologie, UQAM, Canadá) apresentam, a partir de resultados empíricos de uma observação online, munidas de coleta manual de comentários e imagens, uma instigante análise das dinâmicas sociais no interior de um grupo que compartilha e comenta imagens criadas com inteligência artificial generativa. O artigo analisa as imagens e comentários compartilhados neste grupo para discutir as formas e critérios com que seus participantes definem se uma imagem é ou não produto de inteligência artificial e, em contraponto, “real”. Nisso, evidenciam-se os debates que essas imagens suscitam, colocando em questão a capacidade dos indivíduos de discernir se sua origem é “artificial” ou não, levando a um outro patamar reflexões sobre a percepção do que é “real” ou não a partir de imagens eletronicamente mediadas e, em adição, criadas por computador. O artigo traz reflexões muito atuais e relevantes às Ciências Sociais, como: a inteligência artificial generativa de imagens e suas condições de cognoscibilidade nas interações sociais, o estatuto da imagem em um contexto definido por um paradigma pós-fotográfico em que as imagens não se caracterizam pela reprodução de cenas ou objetos que as antecedem, mas são produzidas por operações abstratas de simulação por modelização via matriz numérica, e a discussão sobre o papel dessas imagens na compreensão da realidade na sociedade contemporânea.
Em seguida, no artigo Trap y funk brasileño: entre el emprendedorismo, el desencanto y políticas culturales de inclusión digital, a professora Ana Wortmann (Facultad de Ciencias Sociales, UBA – Argentina) analisa a emergência de uma nova cultura juvenil global em torno do gênero musical do trap, influente em bairros periféricos ao redor do mundo e derivado do rap. Para tanto, a autora compara a expressão desse gênero no contexto argentino com o funk brasileiro. Ambos os gêneros são tratados pela autora como um fenômeno social, visual e comunicacional. Aborda, assim, sua presença e difusão nas mídias digitais, explorando como se dá a plataformização do consumo de forma automatizada e individualizada, destacando a centralidade do YouTube e do Spotify. A autora compara a experiência social de uma cultura audiovisual manifesta nesses gêneros musicais com imaginários de culturas juvenis predecessoras, destacando sua relação com novas dinâmicas do trabalho e em face de crises econômicas e políticas do presente. A partir de diversas fontes, ela analisa, em vasto material empírico, seus sentidos, destacando tanto a aposta em uma subjetividade empreendedora atravessada por discursos que associam liberdade a um ideário individualista, um desencantamento e ceticismo expresso em representações entre o delitivo e o anômico, bem como a emergência de uma criatividade juvenil associada a políticas culturais de corte comunitário.
Em seu artigo intitulado Discursos de ódio: enfrentamento à suposta desordem social, Iara Beleli (Pagu, Unicamp) propõe refletir sobre três vídeos publicados na plataforma Youtube, entre 2016 e 2021, protagonizados pela hoje senadora pelo Distrito Federal, Damares Alves. No primeiro destes vídeos, a então pastora denuncia um conjunto de livros e filmes “impróprios” para crianças, adotando um discurso alarmista que se propõe de proteção à infância. Já o segundo e o terceiro vídeos, então como “Ministra da mulher, da família e dos direitos humanos” do governo de Jair Messias Bolsonaro, remetem a duas entrevistas concedidas à jornalista Leda Nagle e a Karina Gomes, da Comissão Permanente junto à ONU em Genebra. Este recorte temporal em específico é estratégico, uma vez que permite visualizar como determinados tipos de fala sobre família e direitos humanos ganharam a cena pública durante o governo Bolsonaro, acionando emoções atravessadas por “discursos de ódio” – expressão que se tornou banalizada nas mídias institucionalizadas e redes sociais. A autora propõe então situar sua discussão sobre esses discursos a partir do acionamento de sentimentos que perpassariam o “fazer do ódio” (Ahmed, 2004) em relação a determinados sujeitos sociais e suas demandas por reconhecimento. Nisso, partindo dos vídeos, de sua construção e das retóricas neles acionados, a autora observa como estes atuam no sentido de construir pânicos morais e colocar em dúvida as demandas de movimentos sociais, especialmente aquelas ligadas a gênero e sexualidades não heteronormativas.
No artigo Escultores de sonhos, coachs de corpos: “bem-estar”, saúde e estética neoliberal no Instagram, Guilherme N. Pio (UFF) e Leopoldo G. Pio (Unirio) discutem, a partir da observação de perfis de influenciadores na rede social Instagram, especializados no campo da transformação estética e saúde, os efeitos produzidos por uma racionalidade neoliberal em modos de pensar e agir de indivíduos, pautados no pensamento de mercado e num ideal empreendedorista de sujeito. Os autores apontam como na cultura contemporânea, as noções de otimização e performance (estética, física, mental) são tornadas marcadores sociais de saúde e bem-estar, no que as fronteiras entre saúde e estética parecem diluir-se cada vez mais. Nisso, destacam que formas de subjetivação contemporânea são direcionadas à projeção frequente da própria imagem em redes sociais digitais, especialmente o Instagram. Diante desse cenário, partindo do que Sérgio Silva (2020, apud Pio e Pio, neste dossiê) definiu como “mundo digital hipervisualizado”, os autores buscam compreender o papel de novas tecnologias associadas à visualidade produtoras de um “Eu-imagem” e suas implicações sociais e psicológicas.
Por caminhos diversos, mas igualmente instigantes e propositivos de problematizações relevantes, os artigos deste dossiê evidenciam inquietações despertadas por um contexto sociotécnico midiatizado em que se nota o recurso cada vez mais comum e naturalizado às imagens e ao audiovisual para a produção e difusão tanto de discursos ideológicos quanto de modos de ver a realidade, aprender sobre ela e posicionar-se diante dela. Nesse sentido, ao mesmo tempo que grupos marginalizados criam e reinventam formas de expressar suas demandas e insatisfações, como observa Ana Wortman em seu texto, grupos conservadores promovem o pânico moral em nome de suas pautas apresentadas como “religiosas”, como bem explorado pelo texto de Iara Beleli. Porém, notam-se nuances muito mais profundas que confirmam a crescente complexificação das relações entre mídias e a construção social da realidade na vida cotidiana (Couldry & Hepp, 2020).
Seja na discussão mais ou menos moralizada acerca de imagens produzidas por ferramentas de inteligência artificial, definindo critérios do que é “real” ou “irreal” como indicam Débora Leitão e Daniella Landrys, seja nas expressões de anseios e frustrações juvenis ou na própria [auto]percepção do corpo e da saúde, coloca-se em questão como, através do recurso às imagens acionadas nessas diferentes mídias, constituem-se individualidades e modos de produzir identidades e corpos que transcendem qualquer ideia simplificadora de imagem como mera representação. É nessa direção que nos aponta o artigo Escultores de sonhos, coaches de corpos:“bem-estar”, saúde e estética neoliberal no Instagram ao problematizar as próprias concepções de saúde e bem estar que se difundem nos discursos de coaches que têm, em redes sociais, tais como Instagram e TikTok, focadas no compartilhamento de imagens, contribuído para, literalmente, constituir novos modos de “ser”.
Acreditamos que este dossiê, sem esgotar a problemática das relações constituídas hoje entre imagens, mídias digitais e vida social, mostra caminhos de pesquisa possíveis, sistematizando ponderações cada vez mais necessárias sobre nosso contexto midiático atual e que facilmente podem, literalmente, se perder de vista, considerando o crescente volume de imagens que se sobrepõem rápida e incessantemente no dia a dia, enquanto passam nas telas de nossos aparelhos celulares. Com isso, mais do que reafirmar a atualidade e relevância do tema das imagens neste contexto, destacamos, por um lado, seu aspecto desafiador, tanto teórica quanto metodologicamente e, por outro, sua potencialidade para a compreensão de nosso momento histórico, revelando-se um manancial de questionamentos e estratégias de pesquisa inovadores, por vezes ousados, coerentes com o próprio ritmo acelerado de inovações que caracterizam este momento, tanto em seu aspecto tecnológico quanto social – se é que é possível separar um do outro.
Referências
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Notas
Notas de autor
tuliorossi@gmail.comfernandofbalieiro@gmail.com