Resumo: O presente dossiê Mercados transnacionais e suas ferramentas reúne trabalhos que discutem a materialidade da vida econômica e a produção de mercados através de seus objetos, instrumentos, tecnologias e infraestruturas. A aposta deste dossiê é explorar as diversas formas como as tecnologias, dispositivos, artefatos gráficos e técnicas se tornam modos específicos de política, sublinhando seu papel na tessitura de mercados transnacionais. Os textos que o compõem não tratam da globalização como tema central, mas a tomam como uma circunstância incontornável do mundo contemporâneo, explorando o que poderíamos chamar de circuitos globalizados e mobilidades associadas, com destaque para os agenciamentos de mercado e suas dimensões tecnopolíticas. Oferecem, assim, um prisma analítico para compreender como essas mobilidades e agenciamentos podem vir a se articular em múltiplas escalas, no global e no local.
Palavras-chave: Mercados transnacionais, tecnopolítica, agenciamentos de mercado, mobilidades.
Abstract: This dossier, Transnational markets and their tools, brings together works that discuss the materiality of economic life and the production of markets through their objects, instruments, technologies and infrastructures. Its objective is to explore the various ways technologies, devices, graphic artifacts and techniques become specific modes of politics, highlighting their role in the fabric of transnational markets. The texts that comprise it do not treat globalization as a central theme, but rather take it as an unavoidable circumstance of the contemporary world, exploring what we could call globalized circuits and associated mobilities, with an emphasis on market agencements and their technopolitical dimensions. They thus offer an analytical prism for understanding how these mobilities and agencements can come to be connected on multiple scales, both globally and locally.
Keywords: Transnational markets, technopolitics, market assemblages, mobilities.
Resumen: El dossier Mercados transnacionales y sus herramientas reúne trabajos que discuten la materialidad de la vida económica y la producción de los mercados a través de sus objetos, instrumentos, tecnologías e infraestructuras. Su objetivo es explorar las diferentes formas en que las tecnologías, dispositivos, artefactos gráficos y técnicas se convierten en modos específicos de política, destacando su papel en el tejido de los mercados transnacionales. Los textos que lo componen no abordan la globalización como tema central, sino que la toman como una circunstancia ineludible del mundo contemporáneo, explorando lo que podríamos llamar circuitos globalizados y movilidades asociadas, con énfasis en los agenciamientos de mercado y sus dimensiones tecnopolíticas. Por lo tanto, ofrecen un prisma analítico para comprender cómo estas movilidades y agenciamientos pueden llegar a articularse en múltiples escalas, global y localmente.
Palabras clave: Mercados transnacionales, tecnopolítica, ensamblajes de mercados, movilidades.
APRESENTAÇÃO
Dossiê: Mercados transnacionais e suas ferramentas
Dossier: Transnational markets and their tools
Dossier: Mercados transnacionales y sus herramientas
O presente dossiê Mercados transnacionais e suas ferramentas reúne trabalhos que discutem a materialidade da vida econômica e a produção de mercados através de seus objetos, instrumentos, tecnologias e infraestruturas. Esta proposta teve origem nos esforços do projeto de pesquisa coletiva em andamento Global cars: a transnational urban research on vehicle informal economies (Europe, Africa and South America)1, coordenado por Bianca Freire-Medeiros, Gabriel Feltran e Sébastien Jacquot. Advindo de um dos workshops realizado em São Paulo, em dezembro de 2023, alguns elementos presentes em discussões coletivas nos deram os insights para pensar sobre essa edição. Anteriormente, o carro como objeto de investigação sociológica animou os esforços de pesquisa que culminaram no livro Stolen Cars: a Journey through São Paulo’s urban conflict (Feltran, 2021). Já na chamada deste dossiê, propusemos acolher artigos dedicados ao estudo de mercados transnacionais; suas diversidades, complexidades e sensibilidades a contextos históricos e geografias; suas paixões, afetos, promessas e capacidades de agência; assim como suas racionalidades, cálculos e valorações e seu papel na construção da economia, a partir de uma perspectiva mais concreta. Particularmente, estimulamos investigações que procurem desvendar essas múltiplas facetas através das intrincadas relações entre dispositivos tecnopolíticos (Hecht, 2011; Lascoumes & Le Galès, 2007; Mitchell, 2002; Müller & Richmond, 2023), materialidades, regulações e “agenciamentos de mercado” (Callon, 2021), frente às incontornáveis circunstâncias de um mundo globalizado, com suas mobilidades e ancoradouros (Urry, 2003; Freire-Medeiros & Vianna, 2024).
Propomos aqui um acréscimo à pergunta de Callon. Millo e Muniesa (2007), pode um mercado transnacional e de mobilidades globalizadas existir sem os seus dispositivos sociotécnicos? Parafraseando Hull (2012) em seu estudo sobre a papelada do Estado na governança urbana, sugerimos olhar para os mercados transnacionais não “através” dos dispositivos, mas “para eles”. O tema dos dispositivos de mercado inclui uma ampla gama de objetos: de categorias, teorias e técnicas de análise a formas de precificação; de ferramentas de merchandising a plataformas digitais; de tecnologias de segurança a sistemas eletrônicos e grandes infraestruturas logísticas; de protocolos de negociação e regulações de competição a indicadores, visualizações (Söderström, 1996), quantificações e documentos. Inspirados em Callon, Millo e Muniesa (2007), por dispositivo não pretendemos aqui avançar uma noção de bifurcação da agência: a pessoa de um lado, e o objeto de outro; as disposições estruturantes de Bourdieu de um lado e os dispositivos de poder de Foucault de outro. Do nosso ponto de vista, essa dicotomia precisa ser evitada ou, pelo menos, tratada com precaução. Em vez de considerar a agência distribuída como o encontro de pessoas (já ‘agenciadas’) e dispositivos, é sempre possível considerá-la como o próprio resultado desses agenciamentos.
A noção de tecnopolítica, conforme articulada por Hecht (2011) e Mitchell (2002), destaca a intersecção entre tecnologia e poder, enfatizando como artefatos e sistemas tecnológicos não apenas servem a objetivos políticos, mas também geram efeitos de poder imprevistos que reconfiguram a agência dos diversos atores envolvidos. Neste quadro teórico e analítico, os dispositivos tecnológicos são pensados não apenas como meios ou intermediários da política, mas como capazes de produzir novos modos de se fazer e de se pensar a política. Tais trabalhos chamaram atenção para a constituição de “formas híbridas de poder que se assentam simultaneamente em dimensões culturais, institucionais e tecnológicas (interligadas)” (Müller & Richmond, 2023, p. 4; Fromm, 2023).
Por sua vez, pesquisadores ligados aos estudos de ciência e tecnologia (STS), como Callon (1998; 2021) e Latour (1996; 2007), têm rastreado as operações materiais de tecnologias e analisado suas consequências nos processos políticos, revelando como infraestruturas e sistemas, enquanto coisas e relações entre coisas, são também relações que emergem de racionalidades políticas subjacentes (Larkin, 2013; Graham & Marvin, 2011; Anand, 2011) e que dão origem a um “aparato de governamentalidade” (Foucault, 2010).
A prática estratégica de projetar ou utilizar tecnologias para realizar objetivos políticos, conforme Hecht (2011), não se limita a ser uma mera extensão da política; ao contrário, essas práticas moldam a forma como os sistemas operam no mundo. A atração das estratégias tecnopolíticas está no deslocamento do poder para as coisas técnicas, um deslocamento que projetistas e políticos, por vezes, desejam tornar permanente. Timothy Mitchell (2002), por sua vez, complementa essa ideia ao abordar os efeitos de poder não intencionais que surgem de arranjos sociotécnicos, ilustrando como a redistribuição de agência pode provocar consequências inesperadas. Nesse contexto, as intenções dos projetistas são relevantes, mas não determinantes; as qualidades materiais dos sistemas tecnopolíticos moldam a textura e os efeitos de seu poder. Muitas vezes, as tecnologias superam ou escapam às intenções daqueles que as projetaram, revelando que os artefatos materiais podem ser mais flexíveis e imprevisíveis do que seus criadores imaginam. As propriedades materiais dos arranjos tecnopolíticos – como a capacidade de remodelar paisagens ou de conceder ou tirar a vida – frequentemente oferecem a outros atores um poder inesperado, fornecendo-lhes meios imprevistos para agir, ou mesmo, produzir efeitos adversos.
Não há como pensar nos mercados transnacionais sem trazer à baila suas interfaces com o Estado e suas regulações tecnopolíticas. A regulamentação de mercados urbanos, por exemplo, passa largamente pela “instrumentação da ação pública”, em que dispositivos técnicos, que incluem as tecnologias e os instrumentos utilizados pelos governos para construir visões sinópticas e implementar suas políticas (Scott, 1998), como categorias, cadastros e bases de dados, equações, protocolos, entre outros, são carregados de significados sociopolíticos. De acordo com Lascoumes e Le Galès (2007), instrumentos moldam ativamente as relações de poder entre o Estado e a sociedade civil, influenciando a dinâmica de governança, estruturando políticas de acordo com suas próprias lógicas, que muitas vezes divergem dos objetivos originalmente pretendidos (Campos, 2016, 2021). Ademais, a atenção para como as pessoas manipulam e mobilizam os mais diversos instrumentos na vida cotidiana é uma maneira produtiva de investigar seu papel na produção de relações, espacialidades, temporalidades e desigualdades nas formas de habitar o urbano (Von Schnitzler, 2016; Campos, no prelo.a). Por meio desses mesmos instrumentos, como bem mostrou Anand (2015, 2022), burocracias e técnicos podem ser “ignorantes” ou bem-informados de modos diferentes, mobilizando a “ambiguidade burocrática” (Best, 2012), de modo a adiar a atuação burocrática em esferas particulares, enquanto a permite em outros. A ignorância, por sua vez, não é formada apenas pela agência humana em não saber, como uma tecnologia política, mas também surge pelos efeitos políticos das tecnologias que constituem as infraestruturas e, em nosso caso, os mercados transnacionais. Essas ignorâncias às vezes se articulam com a ação humana intencional, mas a excedem. Elas revelam os limites do poder humano para governar, regular e controlar as infraestruturas materiais e os mercados que estruturam a cidade, e nos quais nenhum ator é capaz de controlar ou ter conhecimento ubíquo sobre tudo e todos (Star, 2020).
A governança é também uma prática material (Pilo, Jaffe, 2020) mediada por “artefatos gráficos” (Hull, 2012), entre eles os mais diversos documentos. Com materialidades, propriedades semióticas e formas particulares, artefatos gráficos produzidos em organizações burocráticas são coisas que transformam, traduzem, modificam o significado ou elementos que supostamente carregam e organizam entrelaçamentos, fronteiras e relações entre pessoas, coisas, ideias e lugares. Como afirma Hull, a criação de objetos burocráticos é mediada por práticas de documentação. Estes objetos burocráticos criam representações estatais que são observáveis através de artefatos que permitem a dimensão operacional das políticas e cuja visibilidade pode ser mobilizada. A tradução de objetos burocráticos em categorias estatais tem um impacto independente na produção de políticas. Em vez de imaginar o Estado como um observador neutro, é preciso refletir sobre como a unidade das representações estatais é alcançada (ou não) por meio da coordenação política. Em outras palavras, é importante examinar a vasta mediação material e prática necessária para a criação de vínculos entre representações estatais e objetos burocráticos. As dimensões discursivas (como as leis) e as dimensões materiais das tecnologias administrativas podem vir a ter implicações distintas, devendo ser equacionadas para uma melhor compreensão das várias formas potenciais de atender a interesses nas arenas burocráticas. Os agentes podem alcançar seus interesses, apesar do fracasso das mudanças legais nas políticas, por meio de estratégias associadas a tecnologias que dão corpo operacional à ação do Estado.
Inspirado em algumas dessas formulações, a aposta deste dossiê é explorar as diversas formas como as tecnologias, dispositivos, artefatos gráficos e técnicas se tornam modos específicos de política, sublinhando seu papel na tessitura de mercados transnacionais. A noção de “agenciamento de mercado” é produtiva para pensar essa interseção. Michel Callon (2021) desenvolveu a noção como uma forma de entender a construção dos mercados através da interação de atores humanos e não humanos. Para Callon, os mercados não são fenômenos naturais ou espontâneos, mas realidades socioeconômicas que precisam ser constantemente organizadas, configuradas e mantidas através de uma série de ações e intervenções. Para o autor, os mercados são constituídos de maneira performativa (ver também MacKenzie, 2008). Isso significa que os modelos econômicos e as teorias que os economistas desenvolvem não são apenas descrições neutras de como os mercados funcionam, mas têm o poder de moldar e configurar os mercados que descrevem. Quando uma teoria econômica é adotada pelos participantes do mercado, ela pode modificar o próprio comportamento do mercado, transformando-se, assim, em uma realidade material e social. A ideia de agenciamento abrange não apenas as pessoas, empresas ou instituições envolvidas, mas também os dispositivos técnicos, as ferramentas, as tecnologias, com suas materialidades, as regulações, as normas e as práticas que, juntos, tornam o mercado possível e operativo. Esta noção reflete a importância de arranjos heterogêneos que combinam elementos materiais e textuais para moldar e orientar as ações de agentes no mercado. Os agenciamentos de mercado desprendem coisas de outras coisas e as conectam a outras. O mesmo ocorre com pessoas (físicas ou jurídicas), seus deveres recíprocos e suas relações com as coisas. Embora enredamento e desenredamento (Callon, 1998) sejam fenômenos que podem ser identificados em muitos domínios, observamos que, nos agenciamentos de mercado, esses movimentos são particularmente efervescentes e intencionais.
Segundo Callon, os mercados consistem em arranjos que desempenham um papel duplo. Eles contribuem para impor estruturas orientadoras sobre as ações individuais e fornecem motivos a essas ações, ao mesmo tempo que canalizam a ação coletiva em direção à conclusão de transações comerciais. Feiras, supermercados, algoritmos de encontro ou correspondência, tecnologias de produção, ferramentas de cálculo e gestão, campanhas publicitárias, fórmulas para estabelecer preços, marcas e os inúmeros meios de provocar ligações são todos dispositivos que formatam e orientam comportamentos e interações de uma maneira ainda mais forte do que os supostos interesses humanos ou a mera ascensão de regras, normas, leis, costumes ou sistemas de relações sociais. Os agenciamentos de mercado não excluem nenhuma dessas forças. Em vez disso, eles situam essas forças dentro de todo o conjunto de dispositivos materiais e textuais (incluindo a codificação legal) que estruturam e impulsionam as atividades comerciais. Esses dispositivos configuram as interações entre os participantes, e, de acordo com Callon, cada interação é orientada e estruturada pela tecnologia e pelas normas de mercado, de modo que os participantes não só são agentes econômicos racionais, mas agentes condicionados pelas ferramentas e saberes aos quais têm acesso.
Outro elemento central no agenciamento de mercados é o enquadramento (framing em inglês; ou cadrage em francês). Callon (1998) argumenta que, para que um mercado funcione, é necessário estabelecer limites e separar o que é relevante para a transação daquilo que é irrelevante. Esse enquadramento cria uma espécie de “bolha” onde a troca econômica pode ocorrer, diferentes actantes (humanos e não humanos) que condicionam as interações. No entanto, esses enquadramentos nunca são completos, deixando espaço para “fugas” ou transbordamentos (overflow), nos quais elementos externos ao mercado acabam interferindo. Questões ambientais, sociais ou culturais frequentemente transbordam para dentro dos mercados, exigindo que atores e dispositivos de mercado reajam e adaptem suas estratégias.
Essas lacunas no enquadramento criam condições para outras formas de ação, como a improvisação econômica (Farías, 2014) e a especulação (Bear, 2022). Esses conceitos permitem compreender como os mercados transnacionais são montados, mantidos e transformados, como lidam com incertezas e forjam promessas de futuros alternativos. Farías (2014), ao estudar o mercado habitacional no Chile, argumenta que a improvisação ocorre quando economistas e outros agentes de mercado enfrentam situações em que teorias e modelos econômicos existentes são inadequados ou obsoletos. Assim, esses momentos não envolvem apenas um imperativo prático de crítica e justificativa (Boltanski & Thévenot, 1999), mas também um imperativo de agir de forma diferente. Eles implicam uma interrupção em um curso de ação e a busca por modos e modelos de ação alternativos. Nessas situações, torna-se necessário criar ou ajustar arranjos econômicos em tempo real, recorrendo a conhecimento tácito, intuição e habilidades práticas. Assim, a improvisação não é um processo de tentativa e erro, mas um ato habilidoso que integra criação e execução simultaneamente, surgindo como resposta a momentos críticos de ruptura. Ao contrário do que possa parecer, a improvisação não é uma intervenção inexperiente ou sem habilidade; ela envolve habilidades práticas, conhecimento implícito e intuição.
Já a especulação, conforme definida por Bear (2022) em seu estudo sobre a produção de infraestruturas ferroviárias na Índia ao longo do século XX, é uma prática social voltada para o futuro, que mobiliza tecnologias da imaginação para lidar com incertezas e estabilizar o valor em projetos de acumulação de capital. Por meio de infraestruturas e mediações institucionais – como mercados financeiros, órgãos governamentais e espetáculos midiáticos –, a especulação combina trabalho afetivo, discursivo e físico para antecipar e controlar o futuro. Esse processo envolve um jogo dinâmico de visibilidade e invisibilidade, articulando eventos de verdade e criando um campo ético que conecta passado, presente e futuro à circulação do capital. A especulação, assim como a improvisação, responde ao caráter inacabado e dinâmico dos mercados, funcionando como uma forma de preencher as lacunas criadas pelos transbordamentos e fragilidades do enquadramento.
A noção de tacking proposta por Amit e Knowles (2017) complementa essas abordagens, destacando a improvisação cotidiana como uma prática central para lidar com incertezas e obstáculos. O conceito enfatiza habilidades como inventividade, timing e de lidar com o inesperado, especialmente em contextos em que as condições de operação mudam rapidamente. Esse aspecto é particularmente útil para estudar mercados ilegais, em que o segredo é fundamental e a repressão exige mudanças constantes de rotas, estratégias e até identidades. Como argumenta Feltran (2021), o improviso situacional e o redirecionamento contínuo são essenciais para manter a circulação de bens e pessoas nesse contexto, demonstrando como a improvisação e o tacking transcendem os mercados formais. As circunstâncias mudam ainda mais rápido nos mercados ilegais, e qualquer ação pode estar sob vigilância da polícia, de rivais ou de inimigos.
Esses quatro conceitos — transbordamento, improvisação, especulação e tacking — articulam-se como formas de responder às lacunas, incertezas e dinâmicas dos mercados contemporâneos. Enquanto o transbordamento expõe os limites do enquadramento, a improvisação, a especulação e o tacking revelam diferentes modos pelos quais os atores, dispositivos e instituições reagem a essas rupturas, moldando continuamente os mercados e suas possibilidades de futuro. Mas, a despeito dessas vulnerabilidades e instabilidades, pesquisas têm mostrado que os mercados transnacionais e as conexões entre “mercados marginais” e “mercados centrais” (ou estabelecidos) — tanto legais quanto ilegais, formais e informais — produzem, de forma sistemática e duradoura, resultados altamente desiguais em termos de violência, riqueza, vida, morte e diferenças categóricas (Feltran, 2021; Freire-Medeiros et al., 2023). A circulação de bens e serviços, especialmente no contexto de mercados ilícitos, não apenas conecta diferentes esferas da vida urbana, mas também reconfigura as relações sociais e econômicas, perpetuando desigualdades e reforçando estruturas de poder.
Os textos que compõem este dossiê não tratam da globalização2 como tema central, mas a tomam como uma circunstância incontornável do mundo contemporâneo. Embora não a debatam diretamente, exploram o que poderíamos chamar de circuitos globalizados e as mobilidades associadas, com destaque para os agenciamentos de mercado e suas dimensões tecnopolíticas. Dessa forma, oferecem um prisma analítico para compreender como essas mobilidades e agenciamentos podem vir a se articular em múltiplas escalas, no global e no local.
Os dois primeiros artigos refletem sobre inscrições urbanas, políticas e institucionais de mercados transnacionais e distintas configurações de circuitos globalizados. No artigo “Ancoradouros para pesquisas móveis: navegando o sistema de automobilidades a partir do Porto de Santos” de Bianca Freire-Medeiros e Isabela Vianna, o conceito de “ancoradouro” é introduzido como uma ferramenta teórico-metodológica que atua como uma plataforma de observação para estudar as mobilidades e as interações sociais em contextos específicos. Esse é definido como um espaço para onde convergem fluxos, fricções e infraestruturas, permitindo a análise das mobilidades em suas dimensões sistêmicas e nas redes que conectam o local ao global. O Porto de Santos, como um ancoradouro, revela a complexidade das cadeias globais de suprimento e como as interações entre agentes sociotécnicos moldam os fluxos de mercadorias. Ao considerar tanto as mobilidades físicas quanto as intangíveis, as autoras proporcionam uma compreensão mais rica das hierarquias de poder e das desigualdades que emergem nesses contextos, evidenciando como as práticas de mobilidade estão interligadas às transformações econômicas contemporâneas. Sua inspiração teórico-metodológica é o giro móvel e das mobilidades, que enfatiza a importância de compreender a dinâmica das mobilidades em um mundo interconectado. O Porto de Santos é destacado como um ancoradouro crucial, lidando com mais de 170 milhões de toneladas de carga anualmente, incluindo veículos e autopeças, e também servindo como um ponto central para apreensões de cocaína. Nesse contexto, as interações entre diversos agentes sociotécnicos são mediadas por tecnologias de monitoramento e controle, revelando a complexidade entre movimentos legalizados e criminalizados. As fricções que ocorrem no porto entre diferentes entidades em movimento configuram um espaço dinâmico, onde os fluxos de mercadorias são transformados ao passar por checkpoints e controles. O Porto de Santos, um importante nó logístico no Brasil, conecta diversas redes de transporte e é essencial para a compreensão dos sistemas de mobilidade automotiva, destacando a interdependência das operações de importação e exportação.
A contribuição metodológica do conceito de ancoradouro reside na sua capacidade de integrar diferentes escalas de análise – local, regional, nacional e global. Esta abordagem permite que os pesquisadores observem não apenas os fluxos físicos de mercadorias, mas também as relações sociais, as hierarquias de poder e as desigualdades que permeiam esses movimentos. O ancoradouro torna-se, assim, uma lente através da qual se podem identificar e descrever as dinâmicas de presença e ausência, proximidade e distância, essenciais para entender a política de mobilidades. Por fim, a análise das conexões e hierarquias que emergem nesse ancoradouro ilustra a complexidade das cadeias globais de suprimento, revelando como a dinâmica entre ancoradouros e mobilidades contribui para um entendimento mais profundo das interações sociais e econômicas em diferentes escalas. O porto não é apenas um local de passagem, mas um ponto de confluência que, através de suas diversas interações, torna visíveis as contradições e vulnerabilidades do sistema automotivo global.
O segundo texto deste dossiê, “Conexões globais desiguais: a gestão de veículos em fim de vida útil e os mercados de veículos e peças usadas”, de André de Pieri e Gabriel Feltran, examina como dispositivos estatais moldam o valor econômico dos veículos em fim de vida útil e suas trajetórias de circulação, a partir dos casos da França, Gana e Brasil. Veículos em fim de vida útil são aqueles que, por razões técnicas ou legais, não podem mais ser reparados ou regularizados para circulação como veículos funcionais, tornando-se, assim, recursos globais valiosos disputados por diferentes circuitos econômicos – como as indústrias de reciclagem e reutilização de peças, além da exportação para regiões com regulamentações menos restritivas. O estudo busca revelar as tensões que configuram essas economias transnacionais e mostra como dispositivos normativos e tecnopolíticos atuam em variados contextos culturais e econômicos. Economias (in)formais e (i)legais não são apenas formas alternativas, mas representam aspectos essenciais da economia global contemporânea e criam formas de globalização nas periferias do capitalismo. As redes que fazem circular esses bens revelam trajetórias de consumo construídas socialmente, envolvendo interações entre o legal e o ilegal, entre o formal e o informal. Essas fronteiras, fruto de disputas políticas e estratégias estatais de gestão, são mediadas por dispositivos normativos que refletem jogos complexos com a lei. A pesquisa destaca a atuação dos Centros de Veículos em Fim de Vida Útil (Centres VHU) na França, que formalizam a destinação desses veículos, alinhando-se a pautas ambientais. Contudo, a inserção de grandes montadoras gera tensões com os operadores locais, que buscam maior autonomia frente a um mercado dominado por corporações transnacionais. Esta situação também provoca a emergência de ferros-velhos ilegais, criando uma complexa fronteira entre legalidade e ilegalidade. No contexto de Gana, a análise ressalta como o país se conecta à França por meio da exportação de veículos em fim de vida útil, beneficiando-se de regulamentações menos restritivas. Essa circulação evidencia a desigualdade regulatória entre os países. No Brasil, o caso é distinto: a regulamentação de veículos em fim de vida útil está fortemente atrelada a questões de segurança pública, com foco no combate ao roubo de veículos. Ao contrário da França, onde as políticas ambientais são a força motriz, no Brasil veículos classificados como inutilizados não podem ser restaurados para uso como veículos inteiros; eles servem exclusivamente para a retirada e venda de peças, abastecendo o mercado interno de peças usadas. Esse sistema, voltado mais para a segurança do que para a preservação ambiental, delineia uma estrutura regulatória específica e gera outro tipo de mercado, em que a gestão estatal é pautada pela prevenção de crimes associados a veículos.
Os dois textos seguintes deste dossiê abordam situações distintas de formação de mercados. De um lado, temos um amplo dispositivo voltado para criar “oportunidades de mercado”; de outro, uma prática já existente – intercâmbios que combinam turismo, migração e busca por novas experiências – é reconfigurada sob a lógica das plataformas digitais. Esse processo fabrica mercados promissores e valorações, em que, no segundo caso, a distinção entre “intercâmbio cultural” e “mercado dos cuidados” se torna nebulosa. O primeiro desses artigos, “Futuros imaginados: aceleradoras de startups e seus dispositivos de atração de capital de risco”, de Marcel Maia, explora como as aceleradoras e dispositivos como o Canvas atuam na intermediação entre empreendedores e investidores de capital de risco, contribuindo para a construção do valor econômico das startups. Nesse processo, as startups emergentes enfrentam um “duplo contingenciamento”, em que tanto empreendedores quanto investidores carecem de informações sobre as probabilidades de sucesso. As aceleradoras, ao qualificarem as startups e promoverem expectativas alinhadas, tornam-se fundamentais. Eventos de apresentação, como os demodays, funcionam como “torneios de valor”, onde startups são expostas a investidores. Essas empresas, caracterizadas como “ficcionais”, dependem de dispositivos que as transformam em ativos financeiros desejáveis. O programa PIPE da FAPESP exemplifica como o Canvas molda projetos de deep tech, conectando tecnologias inovadoras a consumidores e preparando-as para o capital privado. Maia mostra que startups de destaque no Brasil não se baseiam em inovações radicais, mas na digitalização de serviços tradicionais, facilitando sua inserção no mercado global. As aceleradoras atuam como “fábricas de startups”, moldando ideias iniciais para valorização por investidores, enfatizando a diferenciação no processo de valorização. Além disso, eventos como os demodays não apenas legitimam as startups, mas também formam padrões sociais e distribuem signos de valor, atraindo novos empreendedores.
No texto “O Programa Au Pair e o mercado transnacional de trabalho doméstico e de cuidados: regulações e dispositivos digitais”, Michele Redondo, Carmen Macedo e Felícia Picanço examinam como as dinâmicas de mobilidade transnacional e trabalho de cuidados se articulam no contexto do capitalismo contemporâneo. Considerado uma forma de mobilidade temporária, o Au Pair é regulamentado por normas específicas e mediado por agências e plataformas digitais que conectam jovens, majoritariamente mulheres, a famílias anfitriãs em troca de serviços de cuidado. O estudo enfatiza como as plataformas digitais, como Au Pair World e Cultural Care, têm reformulado essa experiência e, mesmo, produzido agenciamentos de mercados outros, como aquele produzido pela emergência de influencers nas redes sociais e que oferecem e venda de “mentorias” para possíveis interessados na atividade, promovendo uma mobilidade aparentemente mais acessível e flexível, mas também marcada por incertezas e desigualdades. A transformação das agências em plataformas digitais não apenas molda a percepção dessa prática como uma oportunidade cultural enriquecedora, mas também contribui para diluir as fronteiras entre intercâmbio e trabalho doméstico, muitas vezes desconsiderando as condições precárias enfrentadas pelas participantes. As autoras criticam as regulações europeias por sua incapacidade de diferenciar o Au Pair de outras formas de trabalho doméstico não regulamentado, revelando as tensões entre regulação e exploração que permeiam esse mercado. A articulação entre mobilidade, desigualdade e informalidade ilustra as tensões presentes no cenário contemporâneo, no qual a formalidade e a informalidade coexistem e interagem para moldar realidades econômicas globais, evidenciando as contradições do capitalismo atual.
Esses dois textos atravessam uma temática inescapável na investigação dos mercados contemporâneos, o empreendedorismo, como uma expressão local da formação de mercados e que também mobiliza, assim como os mercados Au Pair e os futuros imaginados, uma economia moral. Nesse caso, destacam-se desejos de autonomia e realização pessoal, paralelos aos desejos de novas experiências e exploração do mundo observados no mercado Au Pair. Essa dinâmica sugere que os mercados não apenas organizam transações econômicas, mas também se ancoram e constroem subjetividades, mobilizando desejos e afetos como parte integrante de suas estruturas. Em outras palavras, os mercados operam como dispositivos que produzem modos específicos de subjetivação, moldando identidades, expectativas para se “ganhar a vida” e horizontes temporais (Narotzky & Besnier, 2014; Campos, no prelo.b), a partir das experiências que oferecem.
Encerrando o nosso dossiê, o artigo “Da vida sem salário ao empreendedorismo popular: aspirações de modernidade e modos de vida em disputa na periferia de São Paulo”, de Henrique Costa, endereça essa problemática. O texto examina a dinâmica do trabalho não remunerado e do empreendedorismo na periferia de São Paulo, ilustrando como esses elementos interagem na formação dos estilos de vida populares. Baseia-se em pesquisa etnográfica, argumenta que a vida sem um salário formal não é apenas caracterizada pela ausência de contratos, mas também pela instabilidade econômica e situações de trabalho fluidas entrelaçadas com as relações familiares. Indivíduos frequentemente atuam sozinhos, concentrando-se em projetos de pequena escala e orientados para a família, que refletem uma economia moral impulsionada por cálculos não monetários e aspirações modestas. O artigo identifica o fenômeno da “vida sem salário” como uma expressão de desejo por autonomia, em que valores tradicionais persistem ao lado de novas identidades empreendedoras. O empreendedorismo é retratado tanto como uma força modernizadora quanto como um potencial disruptor dos laços comunitários estabelecidos. Negócios de impacto social visam racionalizar as relações de trabalho e modernizar os estilos de vida, oferecendo aos jovens caminhos para mobilidade social e proporcionando às gerações mais velhas novas esperanças de melhores condições de vida. No entanto, essa “empreendedorização” carrega o risco de transformar lutas individualistas contra a pobreza em uma forma mercantilizada de autoemprego, que pode enfraquecer práticas e valores comunitários tradicionais. O estudo conclui que, embora as tentativas de racionalização por meio do empreendedorismo possam levar à ressignificação de saberes tradicionais, também criam desafios para a preservação da cultura popular e dos laços comunitários diante da modernidade.
Em conjunto, os cinco artigos aqui reunidos iluminam questões multidimensionais que compõem um rico quadro empírico, metodológico e teórico-analítico para a compreensão das transformações do capitalismo contemporâneo agenciadas por suas ferramentas, instrumentos tecnopolíticos e ancoradouros. Desejamos uma boa leitura.
m.lopescampos@gmail.comdeborahrfromm@gmail.comvs.telles@gmail.com