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Antropofagia em dois tempos: inverter a história, tensionar o presente

Anthropophagy in two times: reversering history, tensioning the present

Mauro Franco Neto
UEMG, Brasil
Henrique Pinheiro Costa Gaio
Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil

Antropofagia em dois tempos: inverter a história, tensionar o presente

História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, vol. 13, núm. 32, pp. 185-220, 2020

Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia

Recepção: 10 Julho 2019

Aprovação: 04 Novembro 2019

Resumo: Neste artigo buscamos desdobrar um exercício de aproximação entre as obras de Oswald de Andrade e Haroldo de Campos por meio da incorporação e compartilhamento de certo gesto antropofágico frente à história. Interessa-nos, particularmente, analisar como os dois autores mobilizavam extratos de historicidade para cumprir o objetivo de um tensionamento da história e da temporalidade. Para tanto, recorremos a ensaios e textos críticos dos dois escritores, analisando como no interior de seus projetos “historiográficos” – seja na errática oswaldiana ou no paideuma haroldiano - a história é investida de uma potência reflexiva e disruptiva para o presente. Desse modo, o horizonte de uma historiografia antropofágica parece possibilitar a emergência de passados silenciados e uma espécie de rearranjo sincrônico, tanto retrospectivo quanto utópico.

Palavras-chave: Antropofagia, Oswald de Andrade, Haroldo de Campos.

Abstract: In this article we claim an exercise of approaching the works of Oswald de Andrade and Haroldo de Campos, through the incorporation and sharing of a certain anthropophagic gesture related to history. We are particularly interested in analyzing how the two authors mobilized extracts of historicity to accomplish the tension in history and in temporality. To do so, we use essays and critical texts of the two writers, analyzing how within their “historiographic” projects - either in the erratic oswaldiana or paideuma haroldiano - history is invested with a reflexive and disruptive potential for the present. In this way, the horizon of anthropophagic historiography seems to allow the emergence of silenced pasts and a kind of synchronous rearrangement, both retrospective and utopian.

Keywords: Anthropophagy, Oswald de Andrade, Haroldo de Campos.

Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as ideias e as outras paralisias. (Oswald de Andrade)

Quando Haroldo de Campos afirmou que “a ‘Antropofagia’ oswaldiana (...) [envolvia] uma visão crítica da história como função negativa (no sentido de Nietzsche), capaz tanto de apropriação como de expropriação, desierarquização, desconstrução” (CAMPOS 2010b [1980], p. 234-235), já era possível visualizar sua filiação ao projeto antropofágico desenvolvido por Oswald de Andrade na primeira metade do século passado. Mais ainda: era possível considerar uma continuidade fundamental entre o gesto oswaldiano de reler o passado de um modo disruptivo e, sobretudo, com os olhos fincados no presente, e o esforço crítico-ensaístico haroldiano de propor novos passados-presentes. Interessava a Haroldo de Campos uma reavaliação crítica da tradição literária brasileira, em particular a possibilidade de sua “transvaloração”, isto é, expô-la criticamente e tensioná-la a partir de novos elementos e obras capazes de desierarquizar e desconstruir.

Mas qual seria, de fato, o vínculo entre o projeto antropofágico, que tinha na Errática, ciência dos vestígios erráticos, seu eixo central e o paideuma haroldiano? Como esses dois projetos, aproximados na obra de Haroldo, mobilizavam extratos de historicidade para cumprir seu objetivo de um tensionamento da tradição e da temporalidade? Em última instância, como mobilizavam a história como potência reflexiva? São questões que nos levam a dedicar um olhar particular a cada obra, a fim de pensar os limites da aproximação, mas, sobretudo, seus possíveis desdobramentos para uma reflexão teórica vinculada ao “agora”.

É possível adiantar que a aproximação entre esses dois projetos, particularmente idealizada por Haroldo de Campos, previa, fundamentalmente, uma potencialização do passado pela sua capacidade sediciosa de reinventar o presente. O que na obra de Oswald aparecia, por exemplo, como a “reabilitação do primitivo”, isto é, como a criação de uma imagem irruptiva do passado, ao contrário da perspectiva submissa e reconciliadora do “bom selvagem” (idealizado sob o modelo das virtudes europeias no Romantismo brasileiro de tipo nativista, como o ‘índio de lata de bolacha’), ancorava-se no ponto de vista desabusado do “mau selvagem”, obtendo ressonância na obra de Haroldo de Campos com a crítica a uma historiografia que desejava elaborar um “classicismo nacional” (CAMPOS 2010b [1980], p. 236). Aproximam-se radicalmente, portanto, quando Oswald de Andrade é mobilizado para propor “uma nova ideia de tradição (antitradição), a operar como contravolução, como contracorrente oposta ao cânon prestigiado e glorioso”, o que parece estar em jogo é justamente a confluência de horizontes possíveis para histórias outras (CAMPOS 2010b [1980], p. 237).

Primeiro tempo: por uma história errática

Responsável por uma obra com várias entradas possíveis, o interesse na antropofagia oswaldiana possui aqui um alvo bem preciso: em que medida o seu desdobramento como caminho crítico pode interpelar a historiografia? Ou ainda, será que sua potência reflexiva não traria à cena um conjunto de questões ainda não suficientemente desdobradas por historiadores, tais como a tênue fronteira entre passado, presente e futuro, a existência de outras formas de historicidade possíveis e uma forma particular de tematizar o passado, que envolve o anacronismo como condição existencial?

Nas diversas “formas” adotadas por Oswald ao longo de sua obra, sejam manifestos, ensaios acadêmicos ou textos para jornais, o projeto antropofágico tem como modus operandi a apresentação, por vezes alegórica, de certas definições históricas, talvez demasiadamente rígidas, como, por exemplo, de um Brasil do ócio, do lúdico, do selvagem, que parecem inviabilizar um tratamento mais sofisticado, sério e que permita levar até às últimas consequências tais proposições. Talvez daí derivem as diversas leituras críticas à obra de Oswald que parecem apontar para certo esgotamento do objeto dentro das próprias contradições do modernismo e da cultura intelectual do período. Ou seja, que a antropofagia não passaria de apenas mais um signo, entre tantos outros do período, que tentou, precariamente, representar, simbolizar ou mesmo definir o que eram o Brasil e os brasileiros.

O objeto e o problema podem ganhar maior clareza, porém, se o registro antropofágico é situado no interior de um dos interesses fundamentais da obra tardia de Oswald de Andrade, a saber, da utopia. Por ora, basta assinalar que o seu tratamento do tema torna possível abrir um novo horizonte interpretativo: propor a imagem de um Brasil do ócio, do selvagem, do lúdico, especialmente em contraposição à civilização industrial, do trabalho e da disciplina – o que não parece significar que Oswald apostasse em tais determinações de forma absoluta. Pelo contrário, é através do próprio horizonte da utopia, entendida como “crítica do presente”, que Oswald busca oferecer não uma síntese, mas uma imagem desafiadora de certas identidades do mundo moderno. Em palavras mais objetivas: insistir em certa imagem de Brasil não significa que Oswald aponte para sua existência no passado ou no presente, mas sim que essa imagem conteria uma potência crítica de desestabilização e tensionamento de certas determinações existentes no presente e ocidentais no caso, o mundo da civilização industrial, do trabalho e por que não, dos fascismos.

Essa aproximação à sua obra com os olhos fincados no presente exige, todavia, que se reconheça o seu trânsito entre o alegórico e simbólico (cf. HELENA 1985). Sob tal prisma, importaria menos a precisão científica de suas proposições do que propriamente suas figurações capazes de comunicar ficcionalmente o real (LIMA 2006, p. 279-285) e correlacionar arte e sociedade, atuação social e reflexão, tempo histórico e linguagem. Numa imagem definidora, é como se a forma oswaldiana de aproximação do passado nos permitisse conceber que a realidade histórica não nos aparece na forma de passageiro pagante, mas sim como clandestino (cf. RUNIA 2006). Tal forma se ocuparia mais propriamente daquilo que a realidade histórica contém a despeito das intenções representativas do historiador. A presença do passado não residiria aqui, primariamente, na história narrada ou no conteúdo manifesto do texto, ou seja, pode valer muito mais a pena apostar nas dimensões do real, que não nos apresentam tal qual a intenção representacional do historiador, mas sim nas margens e apesar dos seus desejos de representação de sentido. Ou melhor, será que Oswald e o seu “largo conceito” mobilizado para alegorizar o passado, sua forma particular de apropriação da história – imprecisa, célere, não teriam algo importante a nos dizer sobre a potência da presença do passado para além das intenções da representação fidedigna?

Qual seria, portanto, o verdadeiro desafio que o gesto antropofágico de Oswald ofereceria hoje aos historiadores? De quais recursos Oswald se vale para pensar a relação com a história? Sob que vestes a temporalidade se apresenta na sua obra e quais as implicações disso para a articulação e reorganização das distâncias e proximidades que compõem a tríade passado-presente-futuro? A princípio é possível sugerir, seguindo proposição de um importante intérprete de sua obra (CASTRO ROCHA 2011, p. 654), que uma releitura realmente potente da antropofagia primaria por um movimento de desnacionalizá-la e “desoswaldianizá-la”, a fim de liberá-la de certas camisas de força identitárias para reconhecer sua potência reflexiva, inclusive para uma dada forma de enfrentamento da história.

Antropofagia e desidentificação

É preciso, pois, reconhecer que não estamos diante de um conceito filosófico de absoluta precisão. A palavra antropofagia, dotada de um engenho verbal ofensivo no texto oswaldiano, é formada por, no mínimo, três dimensões que um dos mais reconhecidos intérpretes da obra de Oswald já apontara: metáfora – cerimônia guerreira da imolação pelos tupis dos inimigos; diagnóstico – de uma sociedade traumatizada pela repressão colonizadora; e terapêutica – afinal seria pela reação violenta e sistemática contra mecanismos sociais e políticos, contra os hábitos intelectuais e contra o trauma repressivo, que se poderia tornar manifesto o conjunto das instâncias censoras da experiência histórica brasileira (NUNES 1978, p. XXV). É nessa acepção multiforme que nos interessa aqui refazer o trajeto da mobilização da antropofagia por Oswald de Andrade, com particular ênfase na chamada “estética do choque” que tal palavra irá proporcionar ao seu projeto cultural, estético e, por que não, historiográfico.

Identificar, assim, a historicidade da antropofagia na trajetória de Oswald nos levaria a textos ainda anteriores ao Manifesto Antropófago (1928), em especial no trato jocoso oferecido por Oswald na relação com a Europa. É o que se nota em pequeno texto de 1912, publicado em O Pirralho, ou em “Carta oceano”, de 1925, enquanto viajava em um navio para a Europa com Tarsila do Amaral: “Até agora brasileiro escritor vindo Europa limitava-se fazer papel Hans Staden artilheiro Bertioga caiu preso Tupinambás século 16 apavorado antropophagia aconselhava não comerem gente.” (apud AZEVEDO 2015, p. 36). O interesse certamente também era devido a um horizonte de compartilhamento na literatura da época, especialmente europeia, na qual a temática do canibalismo era registrada “positivamente” através de metáforas e imagens violentas que povoavam a retórica do choque das vanguardas. Entre o Manifesto Antropófago e a retomada da antropofagia observada na Crise da filosofia messiânica, observamos um hiato na década de 1930 e a primeira parte dos anos 1940, quando Oswald se aproxima fortemente do universo político da esquerda brasileira.

Oswald fazia sempre questão de ressaltar que a antropofagia se tratava de um rito capaz de exprimir um modo de pensar, uma Weltanschauung, que caracterizou certa fase primitiva de toda humanidade. Assim, os povos que a praticaram compreendiam que o rito antropofágico sinalizava para a “transformação do tabu em totem, do valor oposto, ao valor favorável. A vida é devoração pura.” (ANDRADE 1978a [1950], p. 77). Pela antropofagia, alegoricamente, se colocaria, assim, a tarefa de transformar tabu em totem, pressupondo um exercício de destronamento do tabu, ou seja, de tocar o intocável, exceder o limite. A apropriação de Oswald da obra de Freud, ainda que o autor modernista não mencione a obra lida, acontece quase que de modo pragmático para ressaltar os efeitos do patriarcado na repressão das vontades e na afirmação da “negatividade”, isto é, a negação do “homem natural” para a afirmação do “homem civilizado”, o “homem vestido”.

Já bem adiante, no fim da vida, em comunicação escrita para o “Encontro dos Intelectuais”, em Campinas, no ano de 1954, Oswald insistia no tema da antropofagia como uma posição filosófica e que daria um novo estatuto ao conceito de primitivo no âmbito da modernidade. Se fora deprimente o uso para fins colonizadores feito pelos europeus, as ciências sociais já se ocupavam de reabilitar o conceito e destituí-lo do seu potencial hierarquizante.1 Tratava-se agora de assumir, de uma maneira definitiva, que “isso que os cristãos descobridores apontaram como o máximo horror e a máxima depravação, quero falar da antropofagia, não passava, entretanto, de um alto rito que trazia em si uma Weltanschauung, ou seja, uma concepção da vida e do mundo.” (ANDRADE 1992 [1954], p. 231).

Oswald reconhece em Montaigne, no capítulo Les Cannibales dos seus Essais, a matriz da ideia sobre a vida primitiva. Costumes como a liberdade matrimonial, a propriedade comum da terra, o gosto pelo ócio e o prazer da dança formam o retrato traçado por Montaigne de uma sociedade que aparecia como espelho crítico e superior ao mundo dos civilizados, os quais, se não praticavam a antropofagia, não detinham, por outro lado, o mesmo pudor em relação à tortura ao corpo humano vivo (NUNES 1978, p. XXX). É desse quadro de Montaigne que Oswald alegoriza sua interpretação da sociedade primitiva, “da mítica Idade de Ouro, matriarcal e sem repressão, cuja violência seria descarregada no ritual antropofágico” (Id. Ibid.), e encaminha a proposição da antropofagia enquanto entendimento da vida como pura “devoração opondo-se a todas as ilusões salvacionistas” (ANDRADE 1992 [1954], p. 231).

É preciso, contudo, que tenhamos uma dimensão de como se opera a entrada decisiva da antropofagia no pensamento oswaldiano e, para tanto, pode ser revelador um paralelo entre os dois conhecidos manifestos, separados por apenas quatro anos. No Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) sobressai certa “estética do equilíbrio”, que pretende unificar elementos de uma originalidade nativa, “outrora marginalizados pelo idealismo doutoresco da intelligentsia nacional do século XIX, com o melhor de nossa tradição lírica, forçosamente romântica” (NUNES 1979, p. 33), ou seja, a Poesia Pau-Brasil operaria a justa inserção dos fatos significativos da vida social e cultural brasileira, recobertos e recalcados pelas camadas idealizadoras e ideológicas, no seio da civilização técnico-industrial do mundo moderno, ou, como resumiu Oswald no próprio manifesto de 1924: “a floresta e a escola”.

O argumento crítico ganha uma direção decisivamente mais agressiva no Manifesto Antropofágico (1928), no qual a tensão entre o primitivo e o moderno não possui o mesmo tom amalgamante e certas referências, antes positivadas, são agora niveladas junto a outras já antes criticadas: a influência dos jesuítas se soma à problemática influência da mentalidade doutoresca de Coimbra, ambos símbolos paternalistas “cuja superestrutura abriga a moral sexual da cegonha, a autoridade do senhor de escravos, o regime da grande propriedade (por oposição à propriedade coletiva indígena).” (NUNES 1979, p. 34). Como instrumento agressivo, o primitivismo da antropofagia não prometia síntese ou mesmo identidade ao processo histórico brasileiro. Menos que visando conciliar, a antropofagia invertia e era a “terapêutica social do mundo moderno” (ANDRADE apud FONSECA 1990, p. 265).

Como aparecerá mais adiante, a antropofagia não aponta para uma imobilização da história ritualizada e simbolizada em atos inaugurais, mera repetição e comemoração. Pelo contrário, está em jogo “o estatuto da própria ideia de fundação e origem e, por consequência, de história” (AGUILAR 2010, p. 126), ou seja, por um lado, tem-se uma história ritualística e celebrativa de momentos fundadores e, por outro, a história de um presente prenhe de historicidade que, dada sua natureza de devoração, promove a constante reiniciação da história e com infinitos momentos fundacionais como fonte de vitalismo. Sobre o movimento pendular de apropriação da alteridade na antropofagia, vê-se o: “Ato que tem sua origem na hostilidade, na agressividade e na prevaricação sobre um inimigo real, a devoração torna-se, contudo, um modo – a um tempo simbólico-ritual e empírico, material – de abrir-se àquela mesma alteridade negada no ato da assimilação”. (FINAZZI-AGRÒ 2003, p. 618).

Não menos significativas são as decorrências para um dos conceitos mais decisivos do pensamento histórico, a saber, o de identidade. É preciso, antes, clarificar que o antropófago nunca é, mas que se comporta muito mais a partir de um vir a ser incessante, devir, potência. Então, quando Oswald afirma que “o que precisamos é nos identificar” (ANDRADE 1978b [1953], p. 153) não se trata de uma reificação da ideologia da brasilidade, chave a qual a antropofagia foi por vezes lida, perdendo assim seu ponto nevrálgico, a saber, o tema da alteridade, de um “outro” que, menos que reduzido à minha própria imagem, seja apropriado para transcriação do próprio “eu”. Essa desidentificação de si estaria assim representada nas palavras provocantes do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: “transformar-se, por meio dele, transformar-se em um eu Outro. (...) Não um ver-se no outro, mas ver o outro em si.” (CASTRO 2015, p. 16).

É importante que haja clareza sobre o interesse aqui de não recair na criação de uma fachada sólida de sentido, estabelecida a posteriori, a respeito da obra de Oswald de Andrade e, em especial, em relação aos ensaios tardios escritos pelo autor. Por certo, tal fachada sólida não interessava nem mesmo a Oswald, quase sempre atuando sobre o horizonte alegórico e intensificando formas precárias de sentido. Interessa, sim, aos olhos da historiografia contemporânea e daquele que busca problematizar os fenômenos da historicidade, observar como a antropofagia oswaldiana se movimenta e caminha em uma relação com a história, operando na sua chamada “reabilitação do primitivo” e, por consequência, criando imagens do passado que surgem e dialogam com o presente.

Observando as teses expostas por Oswald em A crise da filosofia messiânica (1950) – ainda que se apoiem em incríveis “saltos” históricos e pequem por falta de rigor ou precisão empírica, nota-se que essas trazem à cena uma interessante forma de apropriação da história. Falar a despeito de tais imprecisões não significa aqui ter o intuito de “salvar” a obra do autor sob uma perspectiva historiográfica, mas apontar para uma complexa cadeia de percepção da temporalidade que envolve permanências, tensões e a inserção do devir como elemento fundamental da temporalidade, à revelia de uma definição da temporalidade particularmente moderna que encaminhou uma demarcação rígida entre passado, presente e futuro (cf. RANGEL 2015). Tal demarcação se coloca como um dos pilares da concepção moderna de distância histórica, que cobrava do historiador uma definição concreta de onde fala e sobre quando fala, criando fronteiras quase intransponíveis entre passado e presente. Oswald, em caminho oposto, procura estabelecer alguma intimidade entre certos passados e o presente. A tematização desses passados criaria um espaço privilegiado para a produção de diferença em relação às determinações existentes no presente, além de explicitar e reter o caráter de possibilidade que é ou teria sido o da história, liberando, assim, sentidos que podem ser fundamentais à crítica de um horizonte histórico sedimentado.

É imperativo, porém, reconhecer as formas escolhidas e esquadrinhadas pelo autor para dar vazão às suas reflexões. Caminhando nesse sentido, talvez seja possível endereçar de forma mais justa possível as questões, evitando que se busque um todo coerente na sua obra e reconhecendo que cada um de seus aforismos, teses e interpretações é também composto por uma dada forma que não pode ser isolada, estabelecendo uma relação de interdependência. Observemos, por exemplo, traços do seu comportamento alegórico nas “duas metáforas que explicitam o nascimento de um novo tempo artístico-social na modernidade brasileira de linhagem oswaldiana: o pau brasil e a antropofagia.” (HELENA 1985, p. 21). Por outro lado, em ensaios mais tardios como A crise da filosofia messiânica (1950) e A marcha das utopias (1953), o comportamento alegórico cede espaço ao simbólico, no qual, ao invés de metáforas, há uma intenção realista e representacionista da arte e da literatura de forma mais evidente. A obra de Oswald transita, no mínimo, entre essas duas formas que, naturalmente, não são camisas de força que limitam seu pensamento, ainda mais para uma mente tão pouco adestrada e aferrada à disciplina como a sua.

No ensaio apresentado como tese, no ano de 1950, para concurso na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Oswald de Andrade retoma boa parte de suas compreensões já desenvolvidas nos manifestos da década de 1920, mas agora associadas a uma longa tradição filosófica. O desafio que se apresentava a Oswald era, em algum nível, traduzir aquele conjunto de imagens desafiadoras, porém dispersas, que permeavam os manifestos modernistas com sua usual marca transgressora para uma linguagem que abarcasse a complexidade dos problemas filosóficos em jogo. É sob esse cenário que a tese intitulada A crise da filosofia messiânica revela o desejo de Oswald por situar suas compreensões sobre a poética antropofágica no interior de uma matriz histórico-filosófica.

A hipótese que é possível adiantar, porém, é que a antropofagia, além de certo entendimento filosófico da vida, traz implícita não só uma filosofia da história, mas uma filosofia da alteridade, de um tempo outro reprimido que, por sua vez, permanece em formas espectrais assombrando os consensos da modernidade. A antropofagia, ao contrário de uma leitura que poderíamos chamar de “essencialista” ou “identitária”, não procura responder a determinadas questões de ordem temporal e histórica com a afirmação de uma singularidade absoluta ou com uma apropriação nostálgica da história, apontando, assim, para o resgate de um dado momento bem definido do passado.

O que há é o reconhecimento de determinados vetores e narrativas que se solidificaram na e através da história, tal quais os efeitos diacrônicos da colonização para a formação histórica brasileira, e que uma montagem histórica, a contrapelo, poderia oferecer uma imagem desestabilizadora, não uma imagem que vá oferecer um sentido necessário, um resgaste de um passado a ser, em alguma medida, fático no presente. Está em jogo, sim, uma revitalização de uma dada experiência histórica como forma de tensionamento das condições presentes.

A operação fundamental presente em A crise da filosofia messiânica é a inversão de um conjunto de categorias das quais o “homem do Ocidente” teria se valido durante uma longa duração temporal. Então, se a historiografia nos fez conhecer os principais acontecimentos e legados da civilização ocidental, da Grécia ao século XX – tendo como vetor da narrativa o longo processo de institucionalização do mundo da vida, a narrativa agora se encaminharia para um olhar inverso, isto é, sobre aquilo que se perdeu ao longo dessa trajetória e se colocaria como o objeto por excelência da Errática, uma ciência criada objetivamente para reunir esses fragmentos dispersos na trajetória histórica. A inversão operada deslocaria de tal modo a atenção da historiografia para um determinado conjunto de fenômenos que poderiam ser chamados de latentes, isto é, em algum grau presentes nessa trajetória, mas que foram assim reprimidos e ocultados de modo a retirar da história seu conteúdo revoltoso, seu inacabamento constitutivo, para afirmar um certo caminho evolutivo a ser mantido e justificado.

Toda utopia é uma forma de protesto

Como dito, o projeto antropofágico oswaldiano só pode alcançar seu desdobramento máximo se entendido no horizonte da utopia. É a partir de uma inversão do que se sedimentou em torno do conceito de utopia que Oswald fará sua aproximação à história e sua força de transformação. Seria, portanto, correta a assertiva de que a utopia necessariamente procura escapar da história? Ou as utopias modernas, menos que escaparem do mundo real, da materialidade da história, tinham como pressuposto a crítica do que chamamos modernidade mesma? (WHITE 2007, p. 17). A partir dessa segunda questão, é possível questionar tal concepção de realismo histórico que deseja ele mesmo ser o critério do que é realista e do que não é, deixando necessariamente a utopia no terreno do fantasioso. Assim, o pensamento utópico moderno seria uma resistência ao critério histórico-realista de determinação, que fecha assim o horizonte histórico à sua própria reificação.

Existe uma compreensão difusa que associa a utopia à mera fantasia, à ilusão e à quimera. Nessa linha, a utopia seria uma projeção imaginária dissociada da realidade e incompatível com ela. Tal compreensão se distancia notoriamente daquela que marcou os primeiros passos do horizonte utópico, a saber, aquela vinculada ao filósofo inglês Thomas More, concentrando uma modalidade de discurso que tinha como valor fundamental a crítica à realidade social, pressupondo certa intimidade entre utopia e história (cf. STIELTJES 2005; RODRIGUES s/data).

Oswald de Andrade conhecia muito bem o mecanismo da utopia, entendida como um dispositivo textual, pensado desde More para comunicar um pensamento independente – e efetivar a relação entre filosofia e sociedade – sem conhecer o fim trágico de Sócrates. Era possível, assim, ao filósofo, o exercício de uma técnica particular de escrita que consiste em escrever “nas entrelinhas” ou se valendo de certa contradição intencional. Tudo que, de algum modo, ajude a evitar a degradação de um pensamento filosófico em proposição ideológica (ABENSOUR 1990, p. 82-83). O princípio dessa técnica – a obliquidade, tão utilizada por More ou Oswald, realçava o aspecto da utopia enquanto forma. Uma forma pela qual se oferecia um espelho, de modo que, pelo jogo complexo das ilusões e do logro, poderiam surgir metamorfoses e transformações. Como uma invenção retórica – renovando a arte da persuasão – preexistia no dispositivo utópico uma dimensão ética – “um novo espaço político que, [graças à obliquidade], saberia respeitar a existência do outro (a persuasão implica este reconhecimento)”, apontando para “os limites da efetuação no tempo e a paciência que exige um querer não resignado.” (ABENSOUR 1990, p. 109).

Em essência, qual o lugar da história na utopia antropofágica? Como veremos, Oswald parte da consideração fundamental sobre a abertura da história, na qual a utopia menos que horizonte fechado e já prefigurado é mais efetivamente elemento de tensionamento e reinvenção do presente: “A utopia inaugura uma outra relação com o tempo: aquele da instituição política. (...) Revelando que o presente não é o que ele deve ser, ela invoca a legitimidade de criar.” (RAULET apud RODRIGUES, p. 20). A utopia não estaria assim necessariamente a serviço da revolução ou de um futuro já prefigurado, mas seria propriamente o espaço onde se trama a insurreição do desejo, abrindo “a porta para o desconhecido e para um verdadeiro futuro, quer dizer, novo, irredutível ao presente ou às imagens idealizadas do passado.” (ABENSOUR 1990, p. 57).

É com a Errática, “ciência dos vestígios erráticos”, que Oswald encontra a possibilidade de abrir um flanco de indagação e provocação sobre o passado com vistas a interpelar o presente. Colocar a Errática em cena significaria articular um pensamento que pudesse resgatar, a partir de indícios e rastros, aquilo que fora reprimido ou vencido durante o processo histórico. Sua hipótese fundamental pressupunha que, frente a sistemas evolutivos, completos e hegemônicos, à Errática caberia resgatar o vestígio anacrônico e promover fissuras no sentido único e autoritário do poder patriarcal na história (AGUILAR 2010, p. 15). A relação umbilical entre a Errática e um fenômeno particular, o matriarcado, trazia implícita certa compreensão do passado – ou antes, do primitivo, e daquilo que havia sido soterrado pelos escombros do progresso, como algo que atua permanentemente nas diferentes constelações históricas do presente.

É certo que sua incorporação teria como consequência a própria subversão da temporalidade da história: a utopia, em particular aquela matriarcal, colocaria em diálogo passado, presente e futuro num mesmo instante, vitalizando uma experiência da história distinta daquela sequencial e evolutiva. O resgate do matriarcado atuava, assim, tensionando as bases de um edifício temporal construído a partir do apagamento de devires e que tinha na sua autoconsciência que seria ele mesmo seu próprio fim.2

Mas o que uniu, de fato, o pensamento matriarcal e a antropofagia? Em certo sentido a operacionalização do matriarcado próximo ao que havia feito com a antropofagia, a saber, a produção de uma máquina mitológica a se opor a transcendências como Deus, Estado, pai e nação (DE CARLI 2016, p. 53). O dispositivo utópico oswaldiano articulava, assim, determinados passados pouco tematizados e explorados (a antropofagia e o matriarcado), mas que permaneciam como assombro a um dado horizonte histórico sedimentado, no caso a história patriarcal e messiânica, para improvisadamente lançá-los como potência crítica e imagem de futuro.

Uma segunda referência incontornável na associação feita por Oswald entre o matriarcado e a antropofagia fora Freud. Tanto Freud quanto Oswald “desecandeiam a série que desde o Pai ao superego, com a internalização da autoridade daquele, e que dele sobe rumo a Deus e ao Estado, como dogma ou tabu que, nos dizeres antropófagos, faz-se impossível de devorar e instaura a sujeição do homem.” (DE CARLI 2016, p. 275). Nas últimas linhas do Manifesto Antropófago de 1928 já líamos sobre a postulação do matriarcado contra a realidade social vestida e opressora, sem os complexos cadastrados por Freud, no caso a liberação sexual das repressões da castração patriarcal. A utopia matriarcal aparecia ainda na apropriação freudiana de Oswald como um desafio fundamental a determinados complexos que atravessaram a civilização ocidental e foram motores de conflitos no regime patriarcal.

O desafio matriarcal representa, assim, pela sua inserção no registro utópico, um desafio produtivo à estabilidade das figuras masculinas, nascidas de fatores perenes do patriarcado como um legalismo transcendente, de sublimações antagônicas e pelo recalque produtor dos complexos da civilização. O feminino e a feminilidade, mais que categorias estanques e perfeitamente historiáveis, seriam desafios produtivos e ameaças ativas contra os atavismos do “país mais atrasado do mundo” (ANDRADE 1990, p. 51). A união operada por Oswald entre a antropofagia e o matriarcado se completava, portanto, na face monstruosa que o selvagem e o feminino representavam para o mundo patriarcal. Novamente, como no Manifesto de 1928, era a conversão do tabu em totem.

A verossimilhança histórica, porém, não permite uma associação essencializada do matriarcado, ou mesmo da antropofagia, aos povos ameríndios ou algum outro, pejorativamente classificado como “primitivo”. Assim dizia Oswald, em 1929, sobre a ida, não o regresso, ao selvagem: “O homem natural que nós queremos pode tranquilamente ser branco, andar de casual e de avião. Como também pode ser preto e até índio. Por isso o chamamos de antropófago e não ‘tupy’.” (ANDRADE 1929, s/p).

Estabelecido que a busca pelo homem natural, pelo matriarcado e pela antropofagia, por intermédio da Errática, não aconteceria somente pela via do “primitivo”, e sim num horizonte mais alargado, até mesmo alegórico, era possível chegar ao ponto em que a utopia estaria potencialmente em todos os povos, mas que para a sua elucidação e colocação em primeiro plano, seria necessária, sobretudo, a tarefa errática de um novo conceito de tempo e de história; ou antes, contorcer e tensionar o tempo da história ocidental com outras experiências então obscurecidas.

Novamente, a utopia (e a utopia matriarcal), mais que mera fantasia futurística ou apelo desvinculado de considerações concretas e históricas, partia de um diálogo estrito e efetivo com o passado e suas camadas de historicidade, prefigurando não apenas outro tempo a ser colecionado no interior de uma cadeia histórica evolutiva e ensimesmada – apenas mais uma previsão futurística do modernismo – mas um tempo outro esboçado por uma imbricada relação entre passado, presente e futuro. O “largo conceito” que se expõe a partir da antropofagia ou do matriarcado aparecem mais como potências, como imagens liberadoras de devires ou alegorias provocantes que enfrentam o passado e a temporalidade, para reinscrevê-los em uma nova ordem que não permita o fechamento da história em si mesma.

Segundo tempo: uma tradição antropófaga?

O interesse crítico de Haroldo de Campos (1929-2003) representa incisivamente a fatura de suas afinidades eletivas. Sua reflexão ensaística, nesse sentido, funciona como uma espécie de afirmação de procedimentos poéticos considerados segundo o critério de suas qualidades desestabilizadoras da redundância, do já sedimentado, daquilo que se tornou moeda poética corrente. O diapasão da inovação será mobilizado para reavaliar uma produção nacional ignorada pela inadequação aos padrões estéticos que vigoravam no momento de sua criação. Sem restringir-se à iconoclastia da vanguarda heroica, sua crítica acaba por estender-se em direção a uma reconsideração ou ida ao passado, pode-se dizer: a uma espécie de tradução da tradição (CAMPOS 2013 [1983]).

Fazendo uso do lema poundiano de leitura do passado segundo as perspectivas do presente, o repertório concretista expande-se em uma dupla direção: um olhar retrospectivo, através do qual se avalia a formação literária nacional em seus silêncios, procurando precursores nas margens da tradição; e um olhar prospectivo, no qual se propõe uma nova constelação de criadores relevantes à contemporaneidade que comungariam das mesmas preocupações formais e esteticamente desestabilizadoras. Tendo em vista esse duplo direcionamento, delineiam-se escolhas radicais e interessadas que demonstram que a crítica, a poética e os ensaios elaborados a partir de fragmentos de historiografia literária são tecidos a contrapelo do estabelecido pela tradição. Tal postura empenhada em erguer uma nova tradição, interessada na hipertrofia do paideuma, por vezes acusada de demasiadamente sectária, configura corolário central da reflexão haroldiana.

A atitude interessada e seletiva da crítica de Haroldo de Campos reflete-se na ampliação de seu arco de interesse. O trânsito estético livre, sancionado pela poética sincrônica, tem como principal consequência a formação do paideuma: repertório vanguardista que será exaustivamente mobilizado para sancionar a produção poética concretista e sua atividade crítica. Repertório formado por um “elenco de autores culturmorfologicamente atuantes no momento histórico”, ou seja, referência para a “evolução qualitativa da expressão poética e suas táticas” (CAMPOS 2006 [1956], p. 74). Trata-se de uma espécie de atalho ou de mapa da inventividade, ou ainda, seguindo a proposta de Pound, pode-se falar na organização do conhecimento para que as gerações vindouras possam encontrar, de maneira rápida, a parte mais viva e esteticamente relevante da produção pretérita, evitando, com isso, perder tempo com autores com pouco ou nada a dizer no âmbito da inventividade. Desse modo, cada autor ou fragmento de obra que for incorporado ao repertório concretista funciona como uma espécie de confirmação das teses ou técnicas de vanguarda, tanto em relação ao passado quanto ao presente e ao futuro. Todos contribuiriam para adensar o refrão sedicioso, cada autor anunciado serviria como espelho do outro, reconhecendo no outro o compartilhamento de técnicas e de procedimentos, numa associação que permitisse sincronicamente validar métodos criativos e identificar precursores (TONETO 2008, p. 94).

Colocada a força desse repertório e de sua mobilização pelo concretismo, cumpre mencionar que no plano-piloto para poesia concreta (1958), manifesto redigido a seis mãos e no qual se afirma a proposta de um realismo solucionado em termos de linguagem sensível ou como arte geral da palavra, Oswald de Andrade ocupa posição importante como precursor.3

No plano-piloto para poesia concreta, Oswald de Andrade adquire um papel catalizador na formação do paideuma nacional. Movimentando-se dialogicamente numa leitura retrospectiva do passado, Haroldo de Campos tangencia a desgastada tópica nacionalista que mobilizava a crítica em busca de genealogias. Nesse cenário, o resgate crítico-poético do pensamento de Oswald de Andrade serviu tanto para evitar um populismo retórico como para não resvalar na armadilha do solipsismo poético. No entanto, o que marca a especificidade da reflexão oswaldiana para as propostas dos concretistas seria, justamente, a atualização da antropofagia. Mais especificamente, como a antropofagia permitiu outro olhar sobre a tradição literária e artística nacional e, ainda, por conseguinte, propiciou uma atualização do procedimento barroco, tornando-o válido para o experimentalismo concretista.

Por meio de uma razão antropofágica, desenhou-se um giro interpretativo, uma nova lente através da qual se observa a tradição nacional, permitiu-se enxergar o que havia ficado às margens dessa tradição. Reação à crítica historicista dominante, a razão antropofágica, segundo Raúl Antelo, instalava um fator corrosivo ao modernismo já aceito e sedimentado pela crítica nacional (ANTELO 2005, p. 150). O que significa dizer que, através da reconsideração histórico-literário de manifestações marginais ao esteticamente aceito, fosse alcançada certa autonomia cultural, uma feição particular tanto à produção artística colonial como à poética contemporânea, inclusive retomando o impulso criativo aventado pelo primitivismo.

A leitura antropofágica da formação literária nacional, além de provocativa e irônica, tensionava uma inversão. A crítica literária estruturalista, que num primeiro momento permitiu uma autoconsciência em relação aos procedimentos de vanguarda, posteriormente seria mobilizada para construção de um paideuma nacional que fosse capaz de minar a rigidez historicista no registro da produção literária canônica. Trata-se, portanto, de um delineamento histórico que, por meio da intertextualidade, esboça novas veredas para acessar o passado. O arcabouço crítico concretista, todo o repertório cosmopolita que visava saltos qualitativos diante de uma tradição enrijecida, é mobilizado para reconsiderar a produção nacional priorizando as inovações formais. Haroldo de Campos, em seu ensaio Da Razão Antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira (1980), expõe o ganho adquirido pelo resgate das teses de Oswald de Andrade:

Creio que, no Brasil, com a “Antropofagia” de Oswald de Andrade, nos anos 20 (retomada depois, em termos de cosmovisão filosófico-existencial nos anos 50, na tese A Crise da Filosofia Messiânica), tivemos um sentido agudo dessa necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialógico e dialético com o universal. A “Antropofagia” oswaldiana – já formulei em outro lugar – é o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliadora do “bom selvagem” (idealizado sob o modelo das virtudes europeias no Romantismo brasileiro de tipo nativista, em Gonçalves Dias e José de Alencar, por exemplo), mas segundo o ponto de vista desabusado do “mau selvagem”, devorador de brancos, antropófago. Ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma transculturação; melhor ainda, uma “transvaloração”: uma visão crítica da história como função negativa (no sentido de Nietzsche), capaz tanto de apropriação como de expropriação, desierarquização, desconstrução. Todo passado que nos é “outro” merece ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado. Com esta especificação elucidativa: o canibal era um “polemista” (do grego pólemos = luta, combate), mas também um “antologista”: só devorava os inimigos que considerava bravos, para deles tirar proteína e tutano para o robustecimento e a renovação de suas próprias forças naturais (CAMPOS 2010b [1980], p. 234-235).

A citação mostra-se rica em desdobramentos, sobretudo por conta de sua dimensão histórico-literária. Trata-se, neste momento, de se destacar a necessidade de questionar um nacionalismo que prima pela tessitura de uma narrativa genealógica e nativista: certa tendência em desvelar traços de uma identidade pregressa em meio a uma situação colonial ou, no extremo oposto, pressupor uma arte que invariavelmente emulava uma sensibilidade europeia. A crítica, enveredando por tal caminho, direciona-se para uma submissão da historiografia literária em relação à política, ou ainda, da literatura à história, impedindo uma descrição desinteressada da produção colonial, uma apreciação estética destituída de elementos que a desabonasse de saída. Nas palavras de Afrânio Coutinho, “a história literária era mais história do que literária”, encarando a literatura ora como documento, ora como monumento (COUTINHO 1975, p.15-16). Em ambos os casos, a literatura seria mutilada em sua autonomia estética, seria sempre subsumida à história.

Haroldo de Campos, com intuito de evitar o que considerava um equívoco, propõe uma transculturação derivada da razão antropofágica: uma dinâmica de apropriação ou expropriação criativa do elemento exógeno, provocando verdadeira torção no paralelismo advindo da noção de que a literatura necessariamente deve acompanhar uma narrativa política, portanto, tornando-se uma espécie de apêndice cultural. Todavia, a questão não se apazigua em um maniqueísmo ocioso que oponha o elemento nacional ao estrangeiro, mas sim ao problema histórico-cultural advindo da própria experiência colonial, tornando a cultura de matriz europeia um estorvo quase que intransponível, tema incontornável para a crítica que se desenvolve em regiões periféricas. Um fardo que se constitui historicamente e que, não por acaso, faz menção à intempestividade nietzschiana diante da história, mas que, através de uma atitude de sedição antropófaga, talvez possa ser redimensionado. Valendo-se do olhar antropofágico e estendendo-o ao passado, Haroldo de Campos engendra a percepção do barroco como uma espécie de constante histórica. Aproximando-se, portanto, das teses de Eugenio D’Ors, percebe laivos barrocos em manifestações culturais díspares, reminiscências que revelariam a hibridez e as fissuras de um passado poroso à dissonância. Vejamos as palavras de Haroldo de Campos sobre a relação entre barroco e razão antropofágica:

Já no Barroco se nutre uma possível “razão antropofágica”, desconstrutora do logocentrismo que herdamos do Ocidente. Diferencial no universal, começou por aí a torção e a contorção de um discurso que nos pudesse desensimesmar do mesmo. É uma antitradição que passa pelos vãos da historiografia tradicional, que filtra por suas brechas, que enviesa por suas fissuras. Não se trata de uma antitradição por derivação direta, que isto seria substituir uma linearidade por outra, mas do reconhecimento de certos desenhos ou percursos marginais, ao longo do roteiro preferencial dentro da historiografia normativa (CAMPOS 2010b [1980], p. 243).

Mirar o passado não implica ratificar a tradição que se manifesta em linha contínua. A razão antropofágica que nutre a própria composição barroca funciona como uma constante meta-histórica, sugerindo, portanto, um tipo de assimilação corruptora dos modelos europeus e que pressupõe saltos qualitativos. Diante dessa peculiar ida ao passado por meio de uma atualização da antropofagia, Haroldo de Campos identifica certo estranhamento ou ruído de feição vanguardista no passado literário nacional, questionando os cânones e reconhecendo precursores, distanciando-se, com isso, do que considerava uma condenável percepção formativa da crítica. Concedia pouco relevo à rotinização, porém, sem excluir a dialética entre permanência e ruptura, sublinhava a alteridade como fator constitutivo da tradição:

Daí a necessidade de se pensar a diferença, o nacionalismo como movimento dialógico da diferença (e não como unção platônica da origem e rasoura acomodatícia do mesmo): o des-caráter, ao invés do caráter; a ruptura, em lugar do traçado linear; a historiografia como gráfico sísmico da fragmentação eversiva, antes do que como homologação tautológica do homogêneo. Uma recusa da metáfora substancialista da evolução natural, gradualista, harmoniosa. Uma nova ideia de tradição (antitradição), a operar como contravolução, como contracorrente oposta ao cânon prestigiado e glorioso (CAMPOS 2010b [1980], p. 237).

O que está em jogo, nesse momento, é a diferença como possibilidade de se acessar um código universal. O nacionalismo, tal como havia sido articulado por grande parte dos autores modernistas, espraia-se na cultura ocidental e contribui com suas particularidades para o concerto universal. Debruçar-se sobre a evolução literária nacional não envolve um esforço historiográfico qualquer, uma dança de autores ou o fomento a necrológios alternativos, mas sim um olhar dialético que define a diferença como fundadora de uma nova síntese, ou seja, “mais do que o legado de poetas, aqui se tratava de assumir, criticar e remastigar uma poética” (CAMPOS 2010b, p. 246). Com tal objetivo, Oswald de Andrade, em seu ensaio A Arcádia e a Inconfidência (1945), realiza interessante esforço de reconsideração do passado. Busca compreender o exato momento em que as preceptivas clássicas do arcadismo cedem espaço para a emergência de um nativismo que reveste a poesia de um tom subversivo, momento de superação da apática submissão às convenções.

Oswald identifica que “a poesia gongórica pode ser acusada de “divertimento”, de jogo culto, conceptualista ou erudito. Mas ela não pactua, em geral, com o mandato das tiranias. O poeta se evade, através dos jogos e dos brincos e não é sentinela inútil do cesarismo.” (ANDRADE 1978c [1945], p. 43). O alheamento poético, num primeiro momento, distancia o gongorismo das vanguardas, porém, imediatamente depois, por meio de uma leitura sincrônica, deixa entrever certa autonomia, pois a imigração interior proporciona um horizonte criativo mais alargado – como se as convenções fossem insistentemente testadas e esgarçadas pela profundidade das metáforas e pelo jogo intertextual que impregna a poética barroca. À complacência arcádica opõe-se certa liberdade poética causada pela fuga barroca. Porém, mesmo atentando para a sincronia expressa no raciocínio oswaldiano, vale dizer que tal interpretação reproduz a tese de que a brasilidade emerge da adequação da normatividade clássica às terras americanas, surge da tensão entre a forma neoclássica e o sentimento local. No entanto, se a normatividade prevalece na expressão poética árcade, a sedição manifesta-se através do espírito cívico que move os inconfidentes mineiros, desse modo, “os poetas da Escola Mineira não rompem com os cânones da Arcádia, ocupados que estão em libertar o Brasil. A roda da velha estética continua a girar. O seu sentido de revolução tem um primado, o político.” (ANDRADE 1978c [1945], p. 51).

A leitura mais detida das reflexões oswaldianas por parte de Haroldo de Campos, assim como dos concretistas, ocupa lugar privilegiado para se compreender o papel desempenhado pelo barroco, sobretudo, no que diz respeito à recomposição de uma historiografia literária. Pois, segundo a leitura antropofágica, o barroco resguardaria certa identidade americana, uma dimensão trágica condizente com a experiência disforme que marca a expressão artística colonial. Vejamos as palavras de Oswald de Andrade sobre o lugar do barroco na marcha das utopias:

Resta uma palavra sobre o Barroco. O estilo utópico. Nasceu com a América. Com a Descoberta. Com a Utopia. Ninguém me convencerá de que no Barroco há uma descendência direta do Renascimento. Nego a Bernini o direito de se colocar com seus lençóis na herança duma plástica vinda do mundo colonial que se abria entre flores, lianas e frutos disformes. O Greco sim. É Barroco. É a alma disforme e trágica do Barroco. Da janela maravilhosa de Tomar ao César de Roma, o Barroco é o mundo novo. (ANDRADE 1978b [1953], p. 227).

O barroco como estilo utópico confunde-se com o primitivismo. Funciona não somente como futuro do passado, mas configura um espaço de experiência vanguardista e um horizonte de expectativa capaz de resguardar certo tom sedicioso ao presente. A ausência de forma e a dimensão trágica caracterizam a expressão barroca, numa espécie de alegoria do novo mundo. Portanto, pode-se dizer que a razão antropofágica, como elemento chave desse resgate oswaldiano, indica não somente a extensão do repertório concretista ao âmbito nacional, mas, sobretudo, uma possibilidade de apropriação criativa do exógeno. Ou, ainda, implica dizer que “o lugar do antropófago imaginário não é a tribo, mas sim a biblioteca universal e ‘caótica’, plena ‘de labirínticos fichários’ e de um trabalho de organização em que o sujeito central é o leitor” (AGUILAR 2005, p. 349). Mostra-se de grande valia, dessa maneira, exemplificar retrospectivamente os elementos de ruptura estética, os movimentos conscientes de autonomia criativa, fragmentos que se opusessem ao afã de revelar o nacional. Trata-se de uma expansão interessada do paideuma, incorporando autores nacionais numa constelação de cunho cosmopolita baseada não na dicção nacional, mas na inventividade, no estranhamento que questiona os modelos cristalizados pelas convenções. Tendo tal objetivo em mira, segundo Haroldo de Campos:

O primeiro passo para a revisão em profundidade de nosso passado poético, a partir de uma perspectiva sincrônica, seria, a meu ver, uma Antologia da Poesia Brasileira de Invenção, onde os autores selecionados, da fase colonial ao Modernismo, o fossem por uma contribuição definida para a renovação de formas em nossa poesia, para a ampliação e a diversificação de nosso repertório de informação estética. Não importa que alguns poetas viessem a ser representados por fragmentos ou mesmo simples pedras-de-toque, que outros, dos mais assíduos frequentadores de crestomatias, fossem sem maiores cerimônias postos à margem, e que, finalmente, a tábua habitual de poetas “maiores” e “menores” recebesse o tratamento que se dá às inutilidades (CAMPOS 2010a [1969], p. 208-209).

Propõe-se uma espécie de tábula rasa ou o descarte dos juízos estéticos de traços neoclássicos que hierarquizavam os autores sob a etiqueta de “maiores” ou “menores”. Busca-se lançar luz sobre autores que antes estavam à margem de uma tradição nacional por conta de certa inadequação formal; através de uma razão antropofágica, obtém-se uma fuga estratégica da linearidade evolutiva marcada pela normatividade dos juízos de gosto. Dessa forma, arma-se uma constelação que permite realçar a liberdade criativa ou o aprimoramento de procedimentos estéticos, tendo a poética sincrônica-diacrônica como grande catalisadora dessa tradição reinventada. A marca da continuidade é substituída pelo fragmento estético capaz de pôr em xeque a convenção, busca-se agora a exceção, o silenciado, o não assimilado pelo paladar clássico – propõe-se uma antologia sem teleologia

Em ensaio de 1963, Da Tradução como Criação e como crítica, Haroldo de Campos inaugura sua preocupação teórica e sistemática sobre os problemas relativos à tradução. Amparado pelas teses de Pound e Max Bense, Haroldo de Campos assevera a dimensão crítica da tradução, pois a informação estética seria de impossível decodificação, tomando como referência a noção de fidelidade ao texto original. Tal estorvo somente seria superado pela atividade crítico-tradutória que se opõe à pretensão de uma tradução literal, antes se visava a uma didática através da qual a tradução se configuraria em leitura atenta que nutrisse o impulso criador. Em ato contínuo, a leitura-tradução engendraria o movimento criador. Assim, para o concretismo, “tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma, porém recíproca. Quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mas sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação” (CAMPOS 2010b [1963], p. 35). Não há qualquer passividade na leitura, os textos tornam-se laboratórios criativos onde se encontram tradutores e criadores.

Não por acaso, o esboço de uma teoria da tradução é concomitante ao período em que resgata a antropofagia oswaldiana. Tal paralelismo parece revelador de certa aproximação entre a transcriação e a antropofagia, pois “a tradução não consiste na assimilação do outro a si mesmo, mas uma aproximação da distância, uma transposição de uma cultura estrangeira através dos expedientes da escrita que transforma”. Dessa maneira, o ato tradutório funda-se no reconhecimento da alteridade, tornando-a, inclusive, um elemento central, já que “a tradução não é cópia, mas modificação do original” (MATOS 2005, p. 139).

Ao evocar a diferença como pressuposto e consequência do ato de transcriação, a teoria da tradução preconizada por Haroldo de Campos afasta-se de uma visão instrumentalista da linguagem ou de qualquer ideal de pureza adâmica. Suas traduções expressam as dificuldades de transladar a dimensão poética para além do conteúdo meramente informativo, para além da simples intermediação de marcas externas ou de conteúdos semânticos. Nesse sentido, a tradução seria uma espécie de reimaginação que, em consonância com a antropofagia, prioriza o aspecto dialógico, podendo-se identificar no procedimento um método de recriação que extrapola a própria dimensão linguística, podendo, inclusive, explicar o valor do barroco como expressão híbrida. Utilizando-se do exemplo de Gregório de Matos, Haroldo de Campos faz referência à “miscigenação idiomática de caldeamento tropical” que marcaria a poética do baiano, sendo, por sua vez, da mesma lavra do “hibridismo que se encontra em nosso barroco plástico”. Enfatiza uma nova perspectiva do ato tradutório que pode estender-se para o passado literário nacional, pois acredita “que o enfoque de GM [Gregório de Matos] ganharia nova luz se se levasse em conta a questão da dignidade estética da tradução, como categoria da criação” (CAMPOS 2010a [1969], p.209).

O que parece estar em jogo é a proposta de uma poética tradutória de viés antropofágico. Não somente a transposição textual de um idioma a outro, mas o ato criativo mobilizado em tal movimento – o fluxo da tradução-criação parece sedimentar-se no interior do repertório concretista de forma tão coesa que se torna difícil diferenciá-los. Não se trata de subsumir a atividade do tradutor ao do crítico, mas sim de realçar que a antropofagia compõe não só uma estratégia de ler a contrapelo a tradição – certa hermenêutica histórico-literária, mas também supõe que a criação se alimente de uma inesgotável intertextualidade. Assim, a produção da diferença permite a confluência entre o crítico e o tradutor, costurando-se por meio da deglutição do outro, que significa, em última instância, “uma atitude não reverencial perante a tradição: implica expropriação, reversão, desierarquização” (CAMPOS 1998, p. 26). Dessa maneira, a proposta haroldiana sugere uma operação radical de transcriação, uma reescrita luciferina ou “pulsão dionisíaca, pois dissolve a diamantização apolínea do texto original (...)” (CAMPOS 1981, p. 181). Além disso, a transcriação do texto evoca a recriação do extratexto, implicando uma inevitável interação de horizontes de expectativa, ou seja, “a apropriação da historicidade do texto-fonte pensada como construção de uma tradição viva é um ato até certo ponto usurpatório, que se rege pelas necessidades do presente de criação” (CAMPOS 2013 [1983] p.39).

A referência à pulsão dionisíaca, que dissolve a diamantização corrompendo o acabamento original, referenda não só no âmbito vocabular as pretensões antropófagas do resgate dos procedimentos barrocos, mas também a reflexão crítica presente na técnica tradutória. A ampliação da operação tradutória configuraria uma espécie de palimpsesto que, ao ser reescrito, não apaga por completo as marcas da escrita anterior, mas que, todavia, sugere a corrupção dos originais. Susana Kampff Lages aponta para uma imagem síntese do tradutor-usurpador haroldiano-benjaminiano: “a imagem do anjo como entidade simultaneamente benéfica e maléfica, prenunciadora de uma redenção futura e testemunha das ruínas do passado” (LAGES 2007, p. 191).

O tradutor-usurpador-antropófago lida com a tensão provocada pelo desejo de reconciliação das diferenças que se manifestam geográfica e temporalmente. O não apaziguamento de tal desejo serve como estímulo para a manutenção do ato tradutório, estendendo-o inclusive ao passado. Haroldo de Campos, em seus empreendimentos tradutórios, demonstra, num primeiro momento, a preocupação em tornar o paideuma vanguardista mais acessível, traduzindo trechos de James Joyce, Pound, Mallarmé e cummings, utilizando-os como epígrafes que comprovassem certas opções estéticas; na maturidade, o tradutor aponta uma dimensão mais profunda e subversiva, pois se dedica a autores canônicos como Dante, Goethe, Homero e a bíblia hebraica, propondo leituras desestabilizadoras de certa tradição já sedimentada (CAMPOS, 1997; RODRIGUES, 2017; TÁPIA, 2013).

Em suma, o que cumpre destacar, nesse momento, é que, insistindo na transcriação como produtora da diferença, Haroldo de Campos pôde não somente divulgar a constelação concretista, mas também explorar o potencial desestabilizador da antropofagia. A reconsideração do lastro literário nacional em lentes antropófagas enseja uma constelação inventiva que contraria a linearidade formativa, tensionando uma inversão cuja criação coaduna-se com a usurpação, o descarte da originalidade, tal como propugnada pelos românticos, e aponta para a existência de uma espécie de engenhosidade tropical capaz de torcer ou inverter o cânone.

Mastigações finais

É importante precisar que, face ao risco de uma leitura essencialista ou “identitária” do passado, dando a entender que se visava à recuperação de um momento específico para ser replicado no presente, tanto Oswald de Andrade quanto Haroldo de Campos dedicaram particular atenção em reconhecer o que de fato guiava suas “idas”, e não “retornos”, a questões históricas específicas. Havia, sim, o interesse em reconhecer determinados vetores e narrativas que se solidificaram na (e através da) história, tais quais os efeitos diacrônicos da colonização para a formação histórica brasileira, para, assim, operar uma montagem histórica a contrapelo e desestabilizadora do livre desenrolar de certa tradição.

Não se tratava de trazer à cena uma imagem que pudesse oferecer um sentido necessário, um resgaste de um passado a ser, em alguma medida, fático no presente. Estava em jogo, sim, uma revitalização de uma dada experiência histórica como forma de tensionamento das condições presentes. Para tanto, há que se reconhecer o papel chave desempenhado por uma interpretação bastante singular da “utopia” em suas obras: menos que horizonte a ser alcançado num tempo sempre impróprio como aquele do futuro, a utopia servia enquanto “crítica do presente” e fonte produtora de espelhos reflexivos e críticos.

O esforço de aproximação crítica de Oswald de Andrade e Haroldo de Campos, por meio da antropofagia, nos permite voltar a atenção para o significado da “operação historiográfica” efetuada por ambos. Sugere-nos uma historiografia crítica à apresentação da história a partir de pressupostos evolutivos ou cumulativos e, além disso, nos permite uma defesa não só da apropriação do componente vitalizado e disruptivo do passado, mas também de uma expropriação de uma tradição que apostava num desenrolar límpido e continuado da história, deixando pouco espaço para a convivência e superposição de épocas, autores e formas. Para expropriar essa tradição, seria fundamental adotar um novo gesto em relação ao passado: como dito, menos cumulativo e linear e mais arriscado no sentido de lançar mão de “saltos históricos”, colocando em diálogo tradições até então isoladas por uma narrativa canonizante e hierarquizada.

A perspectiva de organização alternativa de fragmentos do passado abre um caminho interessante para pensar uma “historiografia antropófaga”. Trata-se de abandonar uma pretensão de totalidade cumulativa em relação ao passado e investir nas diferenças derivadas de outros mosaicos possíveis da tradição. A Errática oswaldiana e o paideuma haroldiano sugerem uma nova perspectiva epistemológica e um novo arranjo historiográfico marcado, sobretudo, por novas possibilidades combinatórias. O desafio, digamos, “historiográfico” que fora colocado por ambos os autores, que durante sua trajetória transitaram entre a poesia, a crítica e o ensaio, versava sobre a possibilidade de novos presentes e futuros a partir da assunção de passados marginalizados por uma narrativa corrente. A apresentação da diferença emerge, assim, como uma das vias para tensionar um presente marcado por forças de hegemonização da tradição. Da mesma forma, o procedimento da inversão de determinados valores, compreensões e imagens sedimentadas historicamente, a figura do “primitivo” e do “selvagem” na antropofagia oswaldiana ou “a poética barroca” na obra haroldiana, possibilitam uma determinada estética do choque capaz de desestabilizar os signos e significados correntes. Para tanto, era imprescindível manter a alteridade no seu aspecto mais ameaçador e menos domesticado, afinal, a antropofagia não pressupunha uma “assimilação” do outro (de um passado outro), mas propriamente a transcriação desse mesmo passado a partir dessa alteridade que não pode ser simplesmente anulada ou domesticada.

Ao fim e ao cabo, uma questão que poderia emergir é se Oswald e Haroldo não comporiam dois momentos de um mesmo movimento. Num primeiro momento, o gesto antropofágico e devorador, investindo na expropriação e destruição da tradição, denegando convenções e reivindicando o esquecimento. Posteriormente, costurando uma outra tradição composta pela convivência de distintas matrizes e linhagens históricas, fragmentos de uma nova antologia. Os dois momentos, em perspectiva, sugerem uma tradição decididamente mais complexa e formada por elementos superpostos. Para uma reflexão teórica sobre a história, fica a provocação acerca de um “historiador antropófago” particularmente atento às camadas de historicidade que se superpõem e às forças marginalizadas de um passado que, uma vez vitalizado, é capaz de trazer à tona uma discussão sobre as fronteiras entre passado, presente e futuro.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 Lucia Helena afirma já haver, no momento em que Oswald redige seus ensaios, importantes trabalhos etnológicos acerca do problema da ação canibalística dos tupinambás, a exemplo o de Florestan Fernandes. (HELENA 1985, p. 180)
2 A retomada do matriarcado operada por Oswald, porém, advém quase que inteiramente das teses do jurista e antropólogo suíço Johann J. Bachofen (1815-1887) que Oswald conhece especialmente a partir da leitura de Du règne de la mère au patriarcat (1938). Para uma compreensão do diálogo entre Antropofagia e matriarcado na obra de Oswald de Andrade cf DE CARLI, Felipe Augusto Vicari. O matriarcado no programa antropofágico: Oswald de Andrade, leitor de Bachofen. Dissertação (Mestrado em Letras) – Curso de Pós-Graduação em Literatura – Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2016.
3 Além do autor do manifesto antropófago, foi destacada a poesia de João Cabral de Melo Neto. Em O Geômetra Engajado (1963), Haroldo de Campos afasta a poesia de João Cabral da Geração de 1945 e, por conseguinte, da depuração neoclássica que se segue ao experimentalismo modernista. (CAMPOS 2010b).
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