Artigo Original

Eliminando manchas brancas: um desmonte da cartografia indigenista de Curt Nimuendajú

Eliminating white spots: a dismantling of Curt Nimuendajú’s indigenist cartography

Lana Moraes
Universidade de Brasília, Brasil
Carlos Carvalho
Universidade de Brasília, Brasil
Manoel Rendeiro
University of California, Estados Unidos da América
Tiago Gil
Universidade de Brasília, Brasil

Eliminando manchas brancas: um desmonte da cartografia indigenista de Curt Nimuendajú

História da Historiografia, vol. 14, núm. 37, pp. 17-61, 2021

Brazilian Society for History and Theory of Historiography (SBTHH)

Recepção: 04 Agosto 2020

Revised document received: 25 Novembro Janeiro 2020

Aprovação: 19 Janeiro 2021

RESUMO: O objetivo deste artigo é refletir sobre a construção do “Mapa Etno-histórico” de Curt Nimuendajú, obra que buscou cartografar de modo exaustivo os grupos nativos da América do Sul. Esse estudo foi uma das representações mais utilizadas por pesquisadores desde sua criação, em 1944. Partiremos da ideia de que os mapas são constructos retóricos que devem ser lidos como textos, discutindo limites e possibilidades de um vocabulário visual adequado para entender as opções teóricas e metodológicas explícitas e implícitas na elaboração cartográfica. Vamos nos valer da reconstrução cartográfica digital do “Mapa Etno-histórico” para fazer emergir as diferenças entre o projeto enunciado pelo autor e o que foi dito em termos cartográficos. Iniciaremos com uma descrição da obra e de suas opções mais evidentes, demonstrando uma relativa seletividade nas escolhas realizadas por Nimuendajú. Na parte final, abandonaremos os procedimentos técnicos para interpretar os resultados em um diálogo com a nova cartografia crítica e com a etnogeografia.

PALAVRAS-CHAVE: Cartografia, Etnografia, Retórica.

ABSTRACT: This article reflects on the construction of Curt Nimuendajú’s “Ethno-historical map”, an exhaustive work that sought to map the native groups of South America. This map was one of the most widely-used representations by researchers since its creation in 1944. The theoretical framework adopted in this paper stresses maps as rhetorical constructs that should be read as texts. The article also discusses the limits and possibilities of a visual vocabulary to understand explicit and implicit theoretical and methodological decisions in cartography. Digital cartography will be employed to bring out the differences between what the author of the project intended and what was presented in the “Ethno-historical map”. The text starts with a description of the work and its most evident options, showing a relative selectivity in Nimuendajú’s choices. In the last part, technical procedures will be abandoned to interpret the results considering the new critical cartography and ethnogeography positions.

KEYWORDS: Cartography, Ethnography, Rhetoric.

O objetivo deste artigo é discutir a representação cartográfica de grupos indígenas, e, para tanto, vamos explorar as opções feitas por Curt Nimuendajú, autor do “Mapa Etno-histórico”, que buscou exaustivamente localizar os principais grupos nativos da América do Sul. Certamente foi uma das representações mais utilizadas por pesquisadores no Brasil desde que foi realizado, em 1944, sendo que, desde então, vem sendo (re)publicado e (re)utilizado em diferentes formas gráficas, mídias (digital ou impressa) e plataformas, mas sempre com o mesmo conteúdo.1

Tomaremos como inspiração os trabalhos de Brian Harley (1989), que partem da noção de que os mapas são constructos retóricos os quais devem ser lidos como textos. Trabalhando em um contexto de ampla discussão sobre teorias sociais, Harley estava preocupado com a forma naturalizada como costumeiramente os mapas eram consumidos. Essa naturalização aparecia tanto no caráter técnico da cartografia, que, segundo o autor, sofria de uma “esquizofrenia ontológica”, como também na maneira de interpretá-los epistemologicamente, pois, de acordo com Harley, os mapas eram usualmente interpretados de maneira branda, com poucas críticas à composição da sua natureza epistêmica, formando assim um consenso consolidado do que era um mapa.

Tinha-se também o contexto do surgimento e da difusão dos “Sistemas de Informação Geográfica” (SIG), que reforçavam o caráter técnico da cartografia e diminuíam cada vez mais sua face artística. A proposta de Harley era interrogar as agendas ocultas dos mapas, partindo de insights provocados por suas leituras de Foucault e Derrida (os quais ele mesmo reconhecia serem pouco compatíveis, ainda que inspiradores). Segundo ele, “Os mapas são um texto cultural. Ao aceitar sua textualidade, somos capazes de abraçar uma série de possibilidades interpretativas diferentes” (HARLEY, 1989, p. 7-8).

Seu objetivo consistia em oferecer uma alternativa de leitura, uma nova interpretação possível que contrastava com as já existentes e ia de encontro a uma crítica à noção de realidade e representação pautada pelo pensamento normativo cartográfico, o qual, sobretudo, era guiado por um cientificização positivista, mais preocupada com as normas e técnicas da cartografia. Sua contribuição, portanto, vem com a sugestão de ir além das regras que regem o universo dos mapas, a partir de teorias sociais, e de tentar entendê-los como produtos oriundos de um contexto que se sobressai à normatização da cartografia e que é influenciada por elementos sociais. Desta maneira, Harley (1989) estava mais preocupado com a produção cultural dos mapas do que com o atendimento fiel aos pressupostos.

As ideias apresentadas por Harley (1989) entram como um contraponto à noção que se criou de como se dá a constituição de um mapa, de como seria a maneira correta de elaborá-lo e de interpretá-lo, da naturalização que se consolidou quanto a sua forma e ao seu conteúdo. Entretanto, o autor não queria e não chegou a criar um método ou técnica de “desconstrução”, salientando que essa abordagem deveria ser caracterizada por uma estratégia ampla de ações. Ao fazer isso, mencionava trabalhos que analisavam brasões e arte decorativa ao redor da carta, enquanto outras iniciativas questionavam as iconografias usadas para criar a noção de “lugares de interesse” no espaço.

Em trabalho posterior, publicado post-mortem, Harley (1992; 2002) destacava como os povos indígenas produziam mapas, tanto no sentido estrito do desenho, como ao fornecer informações que iriam constar em cartas europeias. Esses mapas nativos - originais ou em conjunto com os europeus - seriam usados depois para o processo de conquista, enquanto outros mapas nativos e mesmo apropriações nativas das técnicas de cartografia europeias seriam usadas para questionar os avanços do velho mundo, na busca por reestabelecer hierarquias anteriores.

Pretendemos discutir as escolhas e o vocabulário cartográfico adotados por Nimuendajú para expressar a história de grupos nativos e sua espacialidade, explorando os limites da linguagem cartográfica. Nossa abordagem, contudo, não ficará presa às propostas de Harley, utilizando também ferramentas dos chamados Sistemas de Informação Geográfica (muito criticados pelo autor, inclusive), que nos parecem válidos para esse exercício. Neste sentido, nosso artigo propõe apresentar o mapa e seu autor, fazendo um détour pela assim chamada cartografia crítica, em busca de elementos para refletir os aspectos culturais que caracterizam a produção de mapas.

A cartografia foi certamente um dos conhecimentos que mais contribuíram para o avanço do imperialismo ao longo da história, e é, sem dúvida, um conhecimento profundamente eurocêntrico. Isso não invalida, contudo, seu emprego para fins diversos, inclusive no sentido contrário, quando possibilita leituras críticas sobre as persistências colonialistas na produção do conhecimento histórico. Se é certo que nosso ponto de vista será determinado por nosso local de fala não-indígena, nada nos impede de desestruturar nossa própria representação gráfica do espaço utilizando outras ideias. O desafio de cartografar os grupos nativos das Américas, tarefa pretendida por Nimuendajú, é gigantesco e pode ser resumido em dois grandes problemas: 1) os povos nativos eram diversos e tinham diferentes formas de se relacionar com os espaços; 2) as formas de que dispomos para representar o processo histórico, por meio da cartografia, acabam caindo em uma postura tendente ao eurocentrismo, e seria relevante talvez considerar outras maneiras de apreender o espaço, de preferência orientadas pelos pensamentos indígenas. Pensando nisso, o que propomos é um exercício de análise, desconstrução, reconstrução e utilização do “Mapa Etno-histórico” de Curt Nimuendajú, dada sua posição enquanto um paradigma da cartografia sobre povos nativos da América do Sul, indagando sobre as ênfases e os silêncios desse mapa.

Nossa perspectiva é imprescindivelmente interdisciplinar, pois vamos dialogar com a história, a cartografia e a antropologia de modo completamente imbricado. Desde meados dos anos 1980, a linguagem cartográfica vem sendo alvo de muitas interrogações, e a virada linguística colocou muitas dúvidas sobre o processo de produção de mapas, cada vez mais entendidos como objetos narrativos povoados de “não-ditos” e com amplas pretensões objetivistas. A nova cartografia crítica destaca o mapa como um produto plural, fruto de uma grande quantidade de decisões e contribuições (desde a coleta de campo até sua apresentação final), com notórios objetivos políticos e fundado em diferentes epistemologias.

Neste artigo, percorreremos o seguinte caminho: a apresentação de Nimuendajú e seu mapa, partindo para a descrição detalhada de sua narrativa cartográfica. Na sequência, vamos nos valer de ferramentas da cartografia digital para desmontar o mapa de Nimuendajú e tentar obter informações sobre suas escolhas, algo que nunca foi apresentado pelo autor. Por fim, vamos discutir os resultados obtidos na etapa anterior em busca de explicações mais densas sobre as opções teóricas presentes no “Mapa Etno-histórico”.

O Mapa de Curt Nimuendajú

Curt Unkel, mais conhecido como Curt Nimuendajú, nasceu na cidade de Jena, Alemanha, no ano de 1883. Veio para o Brasil em 1903 e aqui permaneceu até a sua morte, em 1945, quando se encontrava em uma aldeia Ticuna do Alto Solimões. Durante esse período, Nimuendajú produziu extenso material sobre grupos indígenas, realizou várias missões de exploração pelo território brasileiro e fez inúmeras vendas de objetos arqueológicos e etnográficos para instituições brasileiras, norte-americanas e europeias. A trajetória de vida de Nimuendajú está entrelaçada com a história e o desenvolvimento inicial do campo etnográfico brasileiro. Roque Laraia chegou a afirmar que Nimuendajú é “uma das poucas entidades mitológicas da etnologia brasileira” (LARAIA, 1988, p. 2; WELPER, 2016, p. 575).

Nimuendajú trabalhou para órgãos públicos como a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, em que iniciou suas atividades de exploração etnográficas no sertão paulista, e o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), participando de missões de pacificação e do aldeamento de diversos grupos. Welper (2002, p. 105) aponta que essa relação entre o etnólogo e o SPILTN foi marcada por ambiguidades, já que Nimuendajú defendia a necessidade da preservação dos grupos indígenas, discordando da pauta assimilacionista, o que não se alinhava com o Serviço de Proteção aos Índios.

No mesmo período, ele produziu uma série de artigos nos quais criticou e combateu as ideias e ações propagadas por Hermann von Ihering, então diretor do Museu Paulista, de assimilação étnica de povos indígenas do interior de São Paulo, o que, segundo Nimuendajú, era um processo de violência intrínseca que levaria ao extermínio desses grupos. Curt também atacava as iniciativas pacificadores feitas na época, afirmando que promoviam apenas o extermínio dos povos nativos a longo e médio prazo (WELPER, 2002, p. 54).

Dois fatores constantes na vida de Nimuendajú eram sua preocupação com a destruição das culturas nativas e sua busca, muitas vezes utópica, por preservá-las em sua forma “pura”. Esse essencialismo foi visível também em outros momentos, como em sua polêmica com Jorge Hurley (FIGUEIREDO, 2010). Curt visava proteger os grupos nativos diante das investidas “civilizadoras” de Hurley. O contexto do combate indigenista parece um elemento fundamental para entender o processo de construção do mapa, mas certamente não era o único: o ambiente de criação dos mapas teve o concurso de diversos fatores. A criação dos mapas para terceiros (Curt já os produzia para suas investigações) se deu por conta de suas necessidades econômicas.

Após sua transferência para Belém e sua demissão do SPILTN, Curt encontrou um cenário favorável à produção de pesquisas etnográficas, principalmente por meio de suas relações com a comunidade científica internacional da Europa e dos Estados Unidos, baseadas principalmente na venda de coleções etnográficas, arqueológicas e mapas. Isso possibilitou a Nimuendajú o financiamento necessário para a realização de suas expedições, já que não tinha vínculos muito claros com instituições, nas quais buscava artefatos para compor essas coleções e levantava dados para suas pesquisas. Seu trabalho de campo era feito por meio da construção de relacionamentos e de identificações entre ele e os indígenas, sendo que o etnólogo participava ativamente de rituais religiosos e contava com seus principais informantes como “amigos”, “irmãos”, “leais companheiros” (WELPER, 2002).

Curt paulatinamente criou relações com o Museu Nacional, e foi mediante a iniciativa da gestão de Heloisa Alberto Torres, no Museu, que essa interlocução se tornou mais contínua. Ela financiou diversas expedições e o terceiro e derradeiro mapa. Não se tratava de uma amizade ou relação profissional mais intensa, mas permitia ao Museu Nacional disputar com financiadores externos (WELPER, 2002). Curt Nimuendajú, apesar de ser reconhecido como um etnólogo importante na época da institucionalização do campo antropológico brasileiro, declinava as propostas de se envolver mais diretamente em atividades acadêmicas. O caráter autodidata de sua trajetória e sua predileção pelo trabalho de campo desempenhavam importante papel nessa recusa. Porém, nos anos finais de sua vida, enfrentando problemas financeiros, Nimuendajú começou a ministrar aulas no Museu Goeldi e no Museu Nacional. Aceitou também, no mesmo período, as encomendas para a produção das três versões de seu “Mapa Etno-histórico”. As atividades de pesquisa se tornaram sua principal fonte de recursos diante da dificuldade encontrada por ele na coleta de venda de novos materiais etnográficos para museus no exterior.

É recorrente nas biografias a caracterização de Curt Nimuendajú como pesquisador e artesão e a ressalva de que essas suas facetas se encontraram harmoniosamente na produção de seu “Mapa Etno-histórico”. Nimuendajú não fez apenas um trabalho de pesquisa minucioso na busca por informações sobre os grupos indígenas, como também realizou todo o trabalho manual do desenho do mapa, desde os croquis iniciais até a versão finalizada da obra.

A primeira versão foi produzida em 1942 para o Smithsonian Institution, com o objetivo de ser publicado no Handbook of South American Indians, sendo usada no capítulo “Eastern Brazil: an introduction”, de Robert Lowie (LOWIE, 1946). A segunda, feita em 1943, era destinada ao Museu Paraense Emílio Goeldi. A última versão, de 1944, teve como destino o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Nenhuma dessas três versões é igual à outra, sendo a do Museu Nacional a mais completa.

O “Mapa Etno-histórico” foi um dos trabalhos mais extensos realizados por Curt Nimuendajú. Tal representação cartográfica é resultado da síntese de uma grande variedade de dados etnográficos, localizações, processos migratórios e troncos linguísticos de grupos indígenas no Brasil. Esse mapa, segundo o autor, distingue-se de outras produções etnogeográficas por buscar aliar as questões geográficas a uma perspectiva histórica, evitando os anacronismos relacionados às representações dos grupos nativos. Curt Nimuendajú utilizou, para a criação de seu mapa, múltiplas fontes bibliográficas, correspondências e anotações pessoais de diversos pesquisadores e indigenistas junto a suas próprias anotações, estudos e observações de campo.

A produção de uma representação cartográfica nos moldes feitos por Nimuendajú não foi tarefa fácil, especialmente considerando as restrições materiais e tecnológicas da época. O próprio autor se queixava de suas limitações técnicas, quando afirmava que desejava ter uma cor diferente para cada uma das famílias linguísticas representadas no mapa, o que não fora possível realizar. Mesmo reconhecendo que era um inconveniente, não achou uma solução viável para o problema (NIMUENDAJÚ, 1981, p. 41). Também há o claro desafio de como representar de maneira sucinta e clara o grande volume de informações acumulado durante a pesquisa, além do próprio tamanho original da obra que tinha a dimensão aproximada de 1,80m por 2,00m.

Essas características particulares do “Mapa Etno-histórico” não foram desafios enfrentados apenas por Nimuendajú durante a produção do mapa, mas também para as pessoas e instituições que tinham interesse na reprodução dessa obra. Rodolfo Barbosa (1981, p. 25) afirma que é provável que Nimuendajú não tivesse planos para publicação, já que o autor não teve cuidado com os problemas de ordem técnica para a reprodução do original, como, por exemplo, a qualidade do papel e a grande dimensão do mapa, as letras pequenas e a diversidade de cores usadas, fatores que dificultavam a reprodução do mapa.

Há uma longa história de tentativas de reproduzir o “Mapa Etno-histórico”, praticamente desde o momento em que foi produzido até os dias atuais. A primeira aconteceu com a versão encomendada pelo já citado Smithsonian Institution, considerado pelo editor da época, Julian H. Steward, muito detalhado, grande e cheio de cores para ser publicado na íntegra. Dessa forma, como pode ser observado na Imagem 1, a solução encontrada foi reproduzir a obra em preto e branco, dividi-la em três partes e suprimir as suas indicações linguísticas (EMMERICH; LEITE, 1981, p. 30).

Primeira versão do Mapa Etno-histórico de Nimuendajú
Imagem 1
Primeira versão do Mapa Etno-histórico de Nimuendajú
Fonte: LOWIE, 1946, p. 382-383.

No Brasil, após a produção das versões encomendadas pelo Museu Goeldi e pelo Museu Nacional, houve consistentes tentativas de reproduzir o “Mapa Etnohistórico” para um maior número de pessoas, mas todas se depararam com os mesmos problemas enfrentados pelo Handbook of South American Indians (EMMERICH; LEITE 1981, p. 31). Apenas em meados de 1970, por meio da proposta do George Zarur ao Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), houve acesso a recursos que possibilitaram a publicação do mapa, culminando em 1981, por meio do trabalho conjunto do Museu Nacional e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no lançamento pela Fundação Nacional Pró-Memória da primeira edição dessa obra. Usando como base de análise para publicação os mapas do Museu Goeldi e Museu Nacional, essa edição foi reimpressa em 1987 e em 2002, tendo todas as tiragens esgotadas.

Em 2017 foi feita uma nova edição, por meio de parceria entre o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o IBGE e a Universidade Federal do Pará (UFPA). Novamente, a base do trabalho foram as versões do Museu Goeldi e do Museu Nacional, mas agora com o emprego de novas tecnologias e com proposta gráfica e editorial diferente da publicação de 1981. Note-se, por meio dessa cronologia da publicação do “Mapa Etno-histórico”, a relevância dada a esse trabalho de Nimuendajú no país, onde várias instituições públicas e estudiosos da área fizeram parceria para tornar possível a publicação dessa obra desde a produção de suas versões na década de 1940 até os dias atuais.

Nimuendajú acreditava que seu mapa deveria estar em constante estado de aperfeiçoamento. Seu trabalho não precisava ser visto como um produto final cristalizado, e, sim, como um instrumento dinâmico em constante processo de aprimoramento. Nas diferentes versões, houve a preocupação em não fazer apenas reproduções da mesma obra para diferentes instituições, mas em realizar mudanças e aprimoramentos a cada nova versão produzida, como, por exemplo, mudar uma para outra a classificação linguística de um grupo étnico diante de novas informações adquiridas, ou alterar as localizações de grupos de uma versão para outra (BARBOSA, 1981, p. 23). O índice também é um sinal do aperfeiçoamento entre as versões. O índice básico do trabalho de Nimuendajú continha aproximadamente 1.100 grupos indígenas e 818 referências bibliográficas, já no do Museu Nacional havia cerca de 1.400 grupos indígenas e 972 referências bibliográficas (EMMERICH; LEITE, 1981, p. 31). Houve uma expansão considerável das referências utilizadas e da identificação de povos nativos.

Em conjunto com essa visão de mapa como algo em constante transformação, há o trabalho de pesquisa realizado por Curt. Segundo estudiosos dessa obra, Nimuendajú produzia e buscava fontes para a sua representação cartográfica dos grupos indígenas brasileiros da seguinte forma:

Baseava este seu trabalho no imenso acervo de dados coletados pessoalmente, em referências bibliográficas fidedignas e nas informações que incansavelmente solicitava a todos que realizavam estudos em tribos com as quais ele não tivera contato direto. Obtinha estes dados geralmente solicitando ou enviando aos colaboradores croquis para que aí assinalassem as localizações referidas (EMMERICH; LEITE, 1981, p. 30).

Essa busca por aperfeiçoamento e por um grande volume de informações resultou em um estudo com uma vasta diversidade de informações relacionadas aos grupos indígenas até aquele momento. O trabalho de Curt Nimuendajú não era apenas uma carta geográfica de localização. Tratava-se de um complexo de dados articulados espacialmente, o que hoje chamamos de um Sistema de Informação Geográfica (SIG). O mapa propriamente dito incluía uma diversidade de dados por meio de cores, formas e estilos. Também possuía informações cronológicas, com datas atribuídas aos grupos nativos, variando entre anos específicos e séculos, o que seria razoável, já que trabalhava com fontes históricas bastante imprecisas.

Um aspecto central que Curt Nimuendajú queria representar era a relação entre a questão geográfica e uma perspectiva histórica e linguística. Ao visualizar o “Mapa Etno-histórico”, algo que chama atenção é a grande variedade de cores utilizadas. Essa profusão de tonalidades tinha por objetivo sinalizar graficamente a classificação linguística dos grupos identificados na representação cartográfica. Nimuendajú categorizou as linguagens nativas em três tipos: línguas isoladas, línguas desconhecidas e famílias linguísticas. Na Imagem 2, fica claro esse sistema, no qual os traços laranja representam as línguas classificadas como isoladas, os nomes de grupos que não estão pintados são as línguas ditas desconhecidas, e as outras cores que aparecem são alguns dos tons usados para representar as famílias linguísticas:

Exemplo de um fragmento do “Mapa Etno-histórico”
Imagem 2
Exemplo de um fragmento do “Mapa Etno-histórico”
Fonte: NIMUENDAJÚ, 1981, encarte.

Além de apresentar essas informações relacionadas aos troncos linguísticos, Nimuendajú procurou também representar o dinamismo das ocupações territoriais indígenas temporalmente. Ele colocou em um mesmo mapa grupos nativos que existiam no território brasileiro em épocas diferentes e tentou demonstrar isso graficamente, assinalando diferentes temporalidades de ocupação indígena no espaço. Como pode ser observado na Imagem 3, uma das formas que buscou transmitir essa perspectiva histórica foi o uso de tipografias diferentes para indicar as “localizações atuais das tribos”, localização de sedes abandonadas e “tribos extintas”.

Exemplificação dos diferentes tipos de letras utilizados no mapa
Imagem 3
Exemplificação dos diferentes tipos de letras utilizados no mapa
Fonte: NIMUENDAJÚ, 1981, encarte.

Outra ferramenta aplicada para demarcar essas diferenças temporais foi o uso de traços nos nomes dos grupos. Um traço mais grosso indicava os grupos existentes com “sedes atuais”, um traço mais fino para “sedes abandonadas”, e uma linha tracejada marcava grupos não mais existentes, além de também colocar abaixo do nome de alguns povos a data da informação que o fez marcar tal grupo em determinado local.

Anexo ao mapa estavam dois grandes índices: um de “tribos” e outro “bibliográfico”. O de “tribos” era o mais complexo de todos, pois mencionava os quadrantes onde estavam os grupos e quais obras bibliográficas haviam sido utilizadas para identificá-los. Conforme Imagem 4, os Abaeté, que ficavam no quadrante F6, foram marcados com a ajuda da obra “27”, que correspondia ao trabalho de Alfredo Moreira Pinto, “Apontamentos para o Diccionario Geographico do Brazil”, constante no índice bibliográfico.

Fragmento do “Índice de Tribus” do Mapa Etno-histórico de Nimuendajú
Imagem 4
Fragmento do “Índice de Tribus” do Mapa Etno-histórico de Nimuendajú
Fonte: NIMUENDAJÚ, 1981, p. 45.

É possível reparar que, ao lado de cada grupo, havia a referência ao quadrante e a referência numérica às fontes. Ao todo, eram mais de 1.400 “tribos” (nas palavras de Nimuendajú), identificadas com 973 obras de referência (bibliografia e fontes primárias), totalizando centenas de autores. Na imagem 5, é possível ver uma amostra do formato de organização dos índices.

Fragmento do “Índice bibliográfico” do “Mapa Etno-histórico” de Nimuendajú
Imagem 5
Fragmento do “Índice bibliográfico” do “Mapa Etno-histórico” de Nimuendajú
Fonte: NIMUENDAJÚ, 1981, p. 69.

Essas tabelas, correspondentes entre si, bastavam para que pudéssemos saber onde cada grupo estava e quais as fontes utilizadas na pesquisa, ainda que certos grupos fossem identificados com diversas fontes, tornando difícil a tarefa de saber exatamente em quais obras Nimuendajú buscou informação para localizá-los no tempo e no espaço. Observa-se o mapa completo resultante deste trabalho na Imagem 6:

Mapa Etno-histórico (imagem completa)
Imagem 6
Mapa Etno-histórico (imagem completa)
Fonte: NIMUENDAJÚ, 1981, encarte.

Vejamos um detalhe do mapa para entender sua confecção. É possível ver que os grupos são apresentados no mesmo plano, ainda que historicamente separados. No canto esquerdo (Imagem 7), temos uma referência aos Tamoyo 1597, que estariam ali naquela data segundo alguma das fontes usadas pelo autor. Bem ao centro, é possível visualizar uma seta, elemento visual usado por Curt para indicar migrações. Alguns grupos são apresentados em letras maiores e, muitas vezes, na forma de uma “faixa” transversal (com uma leve curvatura) para indicar uma ampla área de atuação dos nativos e sugerir alguma imprecisão.

Destaque para as faixas utilizadas pelo autor para representar informação
Imagem 7
Destaque para as faixas utilizadas pelo autor para representar informação
Fonte: NIMUENDAJÚ, 1981, encarte.

Essas foram as formas usadas pelo autor para sugerir a noção de incompletude das fontes ou a falta de exatidão geográfica e, ainda, muito provavelmente, a forma como o grupo se movia dentro de uma área maior. Nimuendajú percebia que os grupos os quais estudava se comportavam de modo diferente do que os mapas tradicionais estavam preparados para representar e tentou, ao seu modo, subverter a cartografia etnocêntrica usando esses recursos espaciais como forma de indicar essas diferenças. Ao mesmo tempo, é um mapa indigenista, no sentido de povoar o espaço com os grupos originários e contra a corrente do Estado e da conquista europeia. A ênfase é no povoamento original e corrente, sem indicar que pertenciam ao passado. Os povos nativos e o próprio mapa de Nimuendajú transcendem as fronteiras nacionais e estaduais. A base para a localização dos grupos indígenas era a hidrografia. Ressalte-se que Curt desejava (e havia marcado) os limites em uma segunda camada menos visível (BARBOSA, 1981), o que reforçava o argumento de que ele queria dar materialidade indígena ao desenho atual, e não projetar o atual ao passado indígena. Cidades (como o Rio de Janeiro do fragmento acima) e limites atuais apareciam no mapa, mas ocupando um evidente segundo plano.

É difícil estimar quais foram as influências cartográficas que orientaram a criação de Nimuendajú. A cartografia da época não aportava muitas ideias sobre o mapeamento de grupos nativos, e mesmo o Handbook of South American Indians não trazia grandes inovações, sendo o mapa de Curt um dos mais interessantes da obra. As técnicas usadas por ele, indicando faixas de texto para apontar a localização “ampla” de grupos nativos, já era usada por Martius e Spix nos trabalhos apresentados em Viagem pelo Brasil, do início do século XIX. Sendo essa uma importante obra de referência etnográfica na obra de Curt, seria bastante provável que fosse uma inspiração também em termos cartográficos. De fato, Nimuendajú usa um sistema muito parecido ao de Martius e Spix, com grandes rótulos indicando os grupos nativos colocados de modo transversal no espaço, faltando apenas as cores.

É possível apontar outras produções contemporâneas que provavelmente serviram de inspiração ou que ao menos apontam os tipos de representações que estavam disponíveis na época. Um desses mapas é o de Fritz Krause (Imagem 8), presente na obra In den Wildnissen Brasiliens, de 1911, o qual descreve a viagem que Krause fez pelo Brasil com as indicações dos povos indígenas por ele visitados e consta como uma das referências utilizadas no “Mapa Etno-histórico”. Portanto, é provável que tenha servido como alguma forma de inspiração, apesar de não ter muita semelhança com o trabalho do Nimuendajú para além da maneira de situar os povos nativos nominalmente, aqui também na forma de faixas de texto sem delimitações.

Mapa panorâmico publicado em Krause, 1911, “In den Wildnissen Brasiliens”
Imagem 8
Mapa panorâmico publicado em Krause, 1911, “In den Wildnissen Brasiliens”
Fonte: KRAUSE, 1911, encarte.

Outro trabalho que pode ser observado é o Mapa etnolingüístico de Von Martius (Imagem 9), representação que acompanha o primeiro volume do Beiträge zur Ethnographie und Sprachenkunde Amerikas zumal Brasiliens (MARTIUS, 1867), uma das obras mais usadas por Nimuendajú. As semelhanças começam pelo uso de cores e se estendem à ideia de representar famílias linguísticas e à tentativa de apontar os deslocamentos dos Tupis pelo território brasileiro, sendo sua principal diferença a forma que os grupos indígenas são representados: circunscritos em “bolsões”.

Mapa etnolingüístico de Von Martius
Imagem 9
Mapa etnolingüístico de Von Martius
Fonte: MARTIUS, 1867, anexo.

Essa forma de representação difere da maneira escolhida por Nimuendajú de retratar os nativos em seu “Mapa Etno-histórico”, no qual são localizados com faixas de texto “abertas”, sem apontar uma delimitação territorial clara (que seria uma evidente postura eurocêntrica). Esses “bolsões”, porém, aparecem em um trabalho supostamente de autoria de Nimuendajú presente no artigo “A questão dos índios no Brazil”, de von Ihering (1911). Nimuendajú reivindica a autoria desse mapa em uma carta de 1944 (NIMUENDAJÚ, 1948, p. 216). Se for esse o caso, demonstra-se uma clara mudança nas escolhas de representação cartográfica feitas pelo etnógrafo de um mapa para o outro. Conforme observa-se na Imagem 10, ele teria passado de um estilo presente na obra madura de Von Martius (Beiträge…) para o estilo do jovem Martius em companhia de Spix (Viagem pelo Brasil).

Mappa Ethnographico do Brazil meridional
Imagem 10
Mappa Ethnographico do Brazil meridional
Fonte: VON IHERING, 1911, p. 141.

O desmonte e a análise do mapa de Curt Nimuendajú

‘‘Desmontamos” o conjunto do “Mapa Etno-histórico” com o uso de procedimentos digitais. Não se trata de uma aplicação estrita das ideias de Harley, pelo contrário. O processo de desmonte conta com a ajuda fundamental de um SIG, abordagem da qual o autor era um profundo crítico. Mesmo assim, acreditamos que a prática permitida pela cartografia digital permitiu alguns avanços consideráveis na direção de “desconstruir” o mapa, tal como queria Harley.

Adotamos, até certo ponto, os procedimentos empíricos (e empiricistas) empregados por Nimuendajú. Foi criado um banco de dados para cada um dos índices, e o “Mapa Etno-histórico” foi georreferenciado. Usamos um nível de granulação de dados que tornou possível saber quais os autores mais usados no conjunto, por grupo, por período ou por todos esses critérios ao mesmo tempo, de tal modo que poderíamos avaliar o quanto Nimuendajú escolheu de cada um deles ou para que regiões. A preocupação com essas métricas tem como finalidade revelar aquilo que o mapa e sua apresentação escondem e que diz respeito às preferências do autor e à forma como ignorou certas informações, sem que isso tenha sido apresentado ou discutido. Todos os dados foram cartografados. Nossa representação cartográfica pretende fazer emergir as diferenças entre o enunciado pelo autor e o que “disse” cartograficamente (Imagem 11).

Mapa Etno-histórico georreferenciado com a sobreposição do mapa atual. Destaque para os pontos em vermelho, representando informações do século XVI filtradas do mapa original
Imagem 11
Mapa Etno-histórico georreferenciado com a sobreposição do mapa atual. Destaque para os pontos em vermelho, representando informações do século XVI filtradas do mapa original
Fonte: Autoria própria.

Como os grupos estavam relacionados a autores e bibliografias, foi possível conhecer, como pode se observar na Imagem 12, o alcance espacial de cada autor, ou seja, criar um panorama das fontes usadas por Nimuendajú, o que permitia ter conhecimento sobre algumas das limitações do mapa. Eram componentes visuais que seriam muito difíceis de se ver diretamente no original.

“Mapa Etno-histórico” de Nimuendajú no software de geoprocessamento, com destaque para a tabela de dados criada e organizada com os dados dos “Índices” presentes na obra original
Imagem 12
“Mapa Etno-histórico” de Nimuendajú no software de geoprocessamento, com destaque para a tabela de dados criada e organizada com os dados dos “Índices” presentes na obra original
Fonte: Autoria própria.

A forma como Nimuendajú organizou seus dados fez muita coisa se diluir. Não podemos saber, por exemplo, que fonte o autor usou para um grupo específico em dado período, ou, ainda, para que regiões. Conhecemos apenas as informações usadas para o conjunto em todo o período ou espaço. Não podemos, assim, saber como foram detectadas migrações e deslocamentos, algo destacado com setas no mapa. Ainda assim, é possível perceber diversas opções feitas por Nimuendajú em sua cartografia. Comecemos com o recorte cronológico: como anteriormente dito, informações de datação aparecem tanto com anos específicos quanto com séculos inteiros. Essa parece ter sido mais do que uma opção, uma adequação do autor ao que estava disponível em seu conjunto documental. O trabalho de Nimuendajú acaba “achatando” toda a cronologia. Temos, lado a lado, períodos de tempo muito diferentes, como pode-se observar na Imagem 13:

Destaque para o sistema de datas utilizado por Nimuendajú, indicadas abaixo de cada etnônimo
Imagem 13
Destaque para o sistema de datas utilizado por Nimuendajú, indicadas abaixo de cada etnônimo
Fonte: NIMUENDAJÚ, 1981, encarte.

Por conseguinte, temos muitos grupos indígenas próximos geograficamente, mas que ocuparam aquelas áreas em temporalidades (anos, décadas, séculos) distintas. Desse modo, Nimuendajú ocupava homogeneamente os espaços em branco com períodos muito discrepantes. As setas usadas para apontar as migrações davam conta apenas dos grupos em relação a eles mesmos. Tratamos de “desmontar” o mapa em camadas a partir da cronologia, em amostras de cem anos. Optamos por esse recorte pois, enquanto alguns grupos aparecem datados pelo ano específico, outros o são por século, tal como podemos ver na imagem acima, ou seja, por uma característica de nossa fonte. A divisão por século também ajudou na percepção de tendências de longo prazo que antes eram de difícil leitura dada a acumulação dos tempos no espaço.

Tomando o conjunto dos dados de Nimuendajú georreferenciado por nossa equipe, chegamos ao resultado da Imagem 14, com todos os grupos representados sincronicamente. Trata-se de uma imagem que apresenta um trabalho denso e impressionante, fruto do obstinado esforço empirista de Nimuendajú em busca de novas ferramentas. Ao separarmos por século, contudo, a imagem é surpreendente. A figura cronologicamente “achatada” produzida por Curt revela outras particularidades, adquiridas pela própria forma de trabalho do autor, como pode-se observar nas Imagem 15, Imagem 16, Imagem 17, Imagem 18 e Imagem 19.

Conjunto dos pontos georreferenciados com base no “Mapa Etno-histórico”
Imagem 14
Conjunto dos pontos georreferenciados com base no “Mapa Etno-histórico”
Fonte: Autoria própria.

Os pontos georreferenciados divididos por século - XVI
Imagem 15
Os pontos georreferenciados divididos por século - XVI
Fonte: Autoria própria.

Os pontos georreferenciados divididos por século - XVII
Imagem 16
Os pontos georreferenciados divididos por século - XVII
Fonte: Autoria própria.

Os pontos georreferenciados divididos por século - XVIII
Imagem 17
Os pontos georreferenciados divididos por século - XVIII
Fonte: Autoria própria.

Os pontos georreferenciados divididos por século - XIX
Imagem 18
Os pontos georreferenciados divididos por século - XIX
Fonte: Autoria própria.

Os pontos georreferenciados divididos por século - XX
Imagem 19
Os pontos georreferenciados divididos por século - XX
Fonte: Autoria própria.

O resultado não é um mapa da localização dos indígenas na história do Brasil, mas dos avistamentos de grupos indígenas por europeus. O trabalho de Nimuendajú fala muito mais dos observadores europeus do que dos nativos, como muito frequentemente ocorre nos estudos de alteridade (POMPA, 2003). É interessante observar o movimento gerado pela separação em camadas de cem anos. A primeira imagem (século XVI) nos mostra os grupos costeiros e faz aparecer um gigantesco vazio no interior, fruto do desconhecimento europeu daquelas áreas. O mapa do século XVII ressalta viagens feitas na Amazônia pelos europeus, enquanto o do XVIII apresenta suas primeiras tentativas de interiorização. Ainda neste, temos uma abordagem costeira, não mais oceânica, mas agora dos grandes rios do interior, como o São Francisco e o Paraná. O mapeamento do século XIX apresenta uma intensificação do contexto surgido no XVIII. O século XX é particularmente interessante, já que o mapa gerado forma uma espécie de “coroa”, indicando as cabeceiras dos afluentes do Rio Amazonas: era o momento em que os indigenistas começaram a buscar os grupos mais afastados. Desse modo, a reconstrução digital do Mapa de Curt Nimuendajú nos ajudou a buscar elementos para entender a dinâmica de sua construção, de tal modo que a técnica contribuiu na crítica. O esforço hercúleo do autor pode ser revisitado e reconsiderado a partir da constatação de seus inevitáveis limites.

Os autores usados na obra foram mais de 900, mas não são utilizados de modo homogêneo. Era notório que Curt procurava usar diversos estudos para cartografar cada grupo, ainda que em muitos casos isso não fosse possível. Portanto, um mesmo pesquisador foi usado para localizar vários grupos, assim como cada conjunto foi cartografado com a ajuda de vários nomes. O autor mais usado é Carl F. Von Martius, com suas Beiträge zur Ethnographie und Sprachenkunde Amerikas zumal Brasiliens. Ele deu informações para a localização de 138 grupos, especialmente Tupinambás e Potiguaras. Na sequência, a História do Brasil, de Robert Southey apontou dados para 73 grupos, dos quais também se destacavam os Tupinambás e Potiguaras. Aqui convém fazer uma observação: não pretendemos apresentar a quantificação de autores e grupos nativos para criar uma hierarquia das referências usadas por Nimuendajú (a qual tampouco seria desprovida de validade), mas para destacar um elemento invisível ao leitor do mapa - sua seletividade - que pode nos ajudar a compreender sua construção.

As escolhas de Nimuendajú

Vejamos a relação grupos nativos/autores. Os conjuntos com maior número de referências foram os Kayapó, com 70, e os Mura, com 43, seguidos dos Tukuna, 38, e dos Bororó, 31. Só então aparecem os Tupinambás, com 29 autores, formados por Martius, Southey e outros 27. Esse tipo de informação - sobre quais grupos têm mais fontes e quais são as mais usadas - não estava disponível na leitura do “Mapa Etno-histórico”, muito menos na análise qualitativa dos índices. Ela só foi permitida pelo desmonte do conjunto em um sistema digital que permite, entre outras coisas, saber que regiões foram descritas por quais pesquisas e, ao mesmo tempo, selecionadas ou não por Curt. No caso de Martius, por exemplo, sua narrativa cobre os grupos que, no esquema de Nimuendajú, habitavam as áreas indicadas na Imagem 20.

Localização de pontos do conjunto de grupos indicados por Martius dentro do “Mapa Etno-Histórico”
Imagem 20
Localização de pontos do conjunto de grupos indicados por Martius dentro do “Mapa Etno-Histórico”
Fonte: Autoria própria.

Este mapa não se trata, contudo, das áreas consideradas por Martius, mas dos lugares ocupados pelos grupos mencionados por este. A forma como Nimuendajú construiu seu sistema não permitiria tamanha distinção geográfica. Essa debilidade não torna menos interessante a cartografia dos autores citados por ele. Se comparados entre si, podemos entender um pouco mais sobre o uso que Nimuendajú fez deles. Vejamos outros casos, Robert Southey (Imagem 21) e Samuel Fritz (Imagem 22), dois dentre os mais utilizados no “Mapa Etno-histórico”.

Localização de pontos do conjunto de grupos indicados por Southey dentro do “Mapa Etno-Histórico”
Imagem 21
Localização de pontos do conjunto de grupos indicados por Southey dentro do “Mapa Etno-Histórico”
Fonte: Autoria própria.

Localização de pontos do conjunto de grupos indicados por Samuel Fritz dentro do “Mapa Etno-Histórico”
Imagem 22
Localização de pontos do conjunto de grupos indicados por Samuel Fritz dentro do “Mapa Etno-Histórico”
Fonte: Autoria própria.

Enquanto Southey tem um padrão semelhante ao de Martius, tratando de grupos que ocupavam diversas regiões da América, Fritz (Imagem 23 e Imagem 24) menciona conjuntos existentes nas margens do rio Amazonas. Isso é relativamente fácil de explicar: Southey e Martius, para além de suas próprias observações, fizeram compilações de dados. Fritz fez uma descrição de sua viagem ao final do século XVII, além de um mapa dos povos por ele descritos (BN. ARC.030,02,017 - Cartografia).

Mapa de Samuel Fritz e detalhe dele
Imagem 23
Mapa de Samuel Fritz e detalhe dele
Fonte: FRITZ, 1691.

Mapa de Samuel Fritz e detalhe dele
Imagem 24
Mapa de Samuel Fritz e detalhe dele
Fonte: FRITZ, 1691.

Este trabalho, base de material usado por Nimuendajú, foi igualmente georreferenciado, tal como se vê na Imagem 25.

Mapa de Samuel Fritz no processo de georreferenciamento
Imagem 25
Mapa de Samuel Fritz no processo de georreferenciamento
Fonte: Autoria própria.

O geoprocessamento do mapa de Fritz foi feito para comparar os dados apresentados por ele com aquilo feito por Curt, buscando entender a forma como este último se apropriou das referências do anterior para mapear os grupos. O resultado apontou para uma grande quantidade de grupos presentes no mapa de Fritz que foram ignorados por Nimuendajú. Vejamos na Imagem 26.

Mapa de Samuel Fritz na comparação com os dados aproveitados do mesmo autor por Curt Nimuendajú em seu “Mapa Etno-histórico”
Imagem 26
Mapa de Samuel Fritz na comparação com os dados aproveitados do mesmo autor por Curt Nimuendajú em seu “Mapa Etno-histórico”
Fonte: Autoria própria.

É possível ver que Nimuendajú marcou uma grande quantidade de povos que estavam apontados no mapa de Fritz, mas acabou ignorando outros tantos, dando preferência aos mais próximos ao leito do rio, ainda que haja exceções. Com isso não queremos apontar faltas e incompletudes na obra de Curt, mas indicar sua imponderável seletividade. É difícil e mesmo improvável descobrir a causa dessa seleção, mas parece evidente que Curt deixou muitos dados de lado, e isso não somente com relação ao Padre Fritz. Tomemos outro exemplo: o relato de Padre Noronha, de 1768. Ele é a referência número 317 de Curt Nimuendajú, sendo utilizado para localizar 7 grupos no “Mapa Etno-histórico”, especialmente Mura e Tukuna, conforme se vê na Imagem 27.

Localização de pontos do conjunto de grupos indicados por Noronha dentro do “Mapa Etno-Histórico”
Imagem 27
Localização de pontos do conjunto de grupos indicados por Noronha dentro do “Mapa Etno-Histórico”
Fonte: Autoria própria.

Pesquisas recentes que usaram Padre Noronha como referência chegaram a resultados um tanto quanto diferentes, como é o caso do trabalho de Ramalho e Rendeiro Neto (2016), que salientam a riqueza da narrativa de Noronha sobre povoações, lugares, vilas e nações indígenas. A presença de citações de, no mínimo, 362 grupos nativos em seu relato ratifica a relevância do levantamento de informações sobre a diversidade ameríndia e sua identificação geográfica aos olhos coloniais. Dessa forma, temos diante de nós uma grande discrepância a respeito do tratamento e da utilização dos dados referentes ao Padre Noronha na confecção do trabalho de Nimuendajú, como pode ser observado na Imagem 28.

Contraste entre localização de pontos do conjunto de grupos indicados por Noronha dentro do “Mapa Etno-Histórico” (em vermelho) e dos pontos identificados pela pesquisa recente de Rendeiro e Ramalho (2016) (em verde)
Imagem 28
Contraste entre localização de pontos do conjunto de grupos indicados por Noronha dentro do “Mapa Etno-Histórico” (em vermelho) e dos pontos identificados pela pesquisa recente de Rendeiro e Ramalho (2016) (em verde)
Fonte: Autoria própria.

Comparação dos pontos referentes ao relato de Gabriel Soares de Souza do “Mapa Etno-Histórico” (em vermelho) com a leitura da mesma obra (marcada por círculos)
Imagem 29
Comparação dos pontos referentes ao relato de Gabriel Soares de Souza do “Mapa Etno-Histórico” (em vermelho) com a leitura da mesma obra (marcada por círculos)
Fonte: Autoria própria.

Os pontos em vermelho são aqueles identificados por Nimuendajú, enquanto os círculos pretos são o resultado de nosso georreferenciamento. Há uma quantidade expressiva de dados apontados por Curt e que não aparecem na nossa leitura da obra de Soares de Souza, especialmente no Nordeste do Brasil. Esses pontos foram revisados, e a explicação se dá, muito provavelmente, por conta do efeito de “duplicação indesejada”, já que o sistema de Nimuendajú acumulava dados de vários autores para o mesmo grupo, ou seja, não temos apenas as informações de Soares de Souza, mas também de outros autores que mencionaram os mesmos povos que ele.

Mesmo no caso de sub-representação por parte dos dados obtidos por nossa equipe, há diversos conjuntos que são ignorados pelo etnógrafo, evidenciando uma expressiva seleção daquele para várias áreas, especialmente no Sul, bem como em Ilhéus e Belém.

Usando técnicas cartográficas, foi possível identificar um amplo repertório de escolhas e seletividade na leitura que Curt fez de relatos coloniais. Assim como os casos acima discutidos, o trabalho de Krause (1911) só foi usado para identificar Kayapós, ainda que mencionasse a posição de outros tantos grupos. Não foi possível encontrar uma regularidade, pois isso exigiria reler e refazer os trabalhos de todas as fontes usadas pelo autor, mas acreditamos que é relevante salientar essas diferenças nos casos apresentados, pois isso é muito saliente na leitura do “Mapa Etno-histórico”. A esperada exaustividade celebrada pelos comentaristas de Curt não era tão grande, e ele criou ausências notáveis.

A linguagem cartográfica e seus vieses

Podemos compreender a cartografia enquanto uma linguagem associada ao ato de mapear o mundo e sua complexidade. Há décadas essa técnica vem sendo analisada em diversas perspectivas, cada vez mais críticas e baseadas em questionamentos antropológicos e epistemológicos. Com base nesse espírito, vamos fazer uma análise da retórica de Curt e, por consequência, do nosso próprio trabalho de desmonte, entendendo “desmonte” e “desconstrução” como etapas diferentes de nosso détour. Até aqui compartilhamos o empirismo de Nimuendajú para mostrar suas opções. Agora nos resta avaliar outros aspectos.

A cartografia pode ter efeitos destrutivos para outros saberes e culturas ao buscar conceituar, produzir e disseminar mapas privilegiando sua origem majoritariamente eurocêntrica, enraizada em concepções espaciais ocidentais que silenciam outras maneiras de se conhecer e apreender o espaço. Isso não significa que essa linguagem seja privilégio dos povos europeus, mas foi por esses “domesticada” e imposta enquanto universal ao longo dos últimos séculos, dentro de um processo de cientifização, tecnicização e demanda de precisão. A prática cartográfica e seu exercício no período colonial nas Américas - e poderíamos estender até os dias de hoje - foi perpetuada através de desqualificação e inferiorização de todas as diversas possibilidades e formas de se mapear das sociedades indígenas das Américas, assim como de outros continentes e povos marcados pelo colonialismo (HARLEY, 1989, 1992; RUNDSTROM, 1995).

Ao se discutir a complicada tarefa de confeccionar mapas que respeitem concepções nativas sobre o espaço, temos a oportunidade de debater até que ponto a utilização de recursos cartográficos promove avanços e possibilidades nos estudos sobre povos indígenas em diversas áreas do conhecimento. Dois elementos são fundamentais: a possível incompatibilidade do sistema de coleta e o uso de informação geográfica entre sociedades ocidentais e os povos indígenas da América; a utilização de técnicas e tecnologias de compreensão do espaço, em contextos interculturais, serve enquanto uma nova ferramenta de assimilação e de colonização epistemológica das culturas indígenas pelas concepções cartográfica e espacial do ocidente (RUNDSTROM, 1995).

Seria possível perceber essas formas de dominação cartográfica quando falamos do mapa de Curt Nimuendajú? Para refletir sobre isso, será preciso dialogar com a antropologia da cartografia. Desde os anos 1980, há um forte debate sobre a utilização de cartografia por grupos nativos. Discussões teóricas e metodológicas apresentadas por alguns autores vêm tratando sobre os perigos na utilização dos SIG, enquanto outras perspectivas apontam para sua “reabilitação” enquanto ferramenta útil e viável, sendo que diversas iniciativas de grupos indígenas já vêm utilizando os SIG de modo intenso e muitas vezes com finalidade política, manifesto no mapeamento visando à defesa de terras ancestrais. Esse debate faz referência aos usos que grupos nativos faziam desde os anos 1950 no Canadá e desde então também nos Estados Unidos, dentro do processo de reivindicação de terras (HERLIHY; KNAPP, 2003).

Durante os anos 1990, tais experiências passaram lentamente a usar também os sistemas informatizados. Rundstrom é um dos maiores críticos do uso dessas ferramentas por grupos nativos. A crítica se baseia no fato de que o uso destas tecnologias ocidentais poderia destruir completamente a epistemologia nativa e suas formas originais de compreender o espaço. O tecnicismo que marca esses procedimentos (e que nos parece evidente) agiria como um elemento destrutivo e de dominação. Segundo ele, tais práticas se provam “[tóxicas] para os povos indígenas e seus sistemas de conhecimento” (RUNDSTROM, 1995, p. 55). Apesar da crítica, que tem forte tom essencialista, a análise do autor acaba fazendo tábula rasa das diferenças entre os povos nativos, ao apontar a existência de uma epistemologia nativa geral, indicando suas características ao longo do artigo, ou seja, desconsiderando a diversidade e as diferentes espacialidades de cada grupo.

Apesar desses pontos ecoarem como uma barreira intransponível para o desenvolvimento de novas pesquisas que entrelaçam as concepções de espaço, povos indígenas e a utilização de ferramentas cartográficas tradicionais aos ocidentais, encontramos alternativas interessantes de lidar com esse problema.

Há grande diversidade de métodos e iniciativas de mapeamento que focalizam na participação direta de grupos nativos na construção de visualizações cartográficas (MACKENZIE; SIABATO; REITSMA; CLARAMUNT, 2017), além da existência de laboratórios de SIG administrados por grupos indígenas em seus territórios (CHAPIN; LAMB; THRELKELD, 2005; HERLIHY; KNAPP, 2003).

Constatar que a operação cartográfica é vinculada à sua tradição ocidental-europeia - carregada de princípios e ferramentas significantes apenas a uma concepção espacial etnocêntrica - não impossibilita o desenvolvimento de trabalhos envolvendo o ofício cartográfico e a análise geográfica de grupos indígenas. A maioria dessas iniciatvas de cartografia nativa se concentram na resolução de demandas atuais e necessárias para a sua defesa e reivindicação territorial, assim como incorporar os conhecimentos tradicionais desses povos no ato de mapear. As populações que participam dessas iniciativas deixam de ser “apenas informantes” e se destacam enquanto sujeitos negociantes e ativos sobre o processo de construção cartográfica (CARDOSO, 2014, p. 24).

Mesmo em termos de mapas “analógicos”, em papel, grupos nativos tiveram ao longo da história diversas formas de cartografia, tanto originais quanto influenciadas pelo colonizador, e isso pôde existir em paralelo com a manutenção dos valores étnicos mais fundamentais. Um caso exemplar é o estudo de Chauca Tapia (2016) sobre a cartografia chinesa e ameríndia e suas vinculações com os jesuítas, no qual ressalta, dentre outras coisas, que a produção do Mapa de Samuel Fritz (do qual falamos anteriormente) foi possível pela atuação colaborativa de diversos povos ao longo da viagem do padre, em fins do século XVII. Temos também os estudos conduzidos por Barcelos (2010) sobre a ação de guaranis na produção de mapas “jesuíticos”, sob influência dos padres na sua fase final, mas com características nativas em todas as fases de elaboração. Segundo ele, “muitos indígenas participaram ativamente destes processos. Em alguns casos, podem ter sido inclusive incentivados a uma iniciação ao fazer cartográfico” (BARCELOS, 2010, p. 2). O autor ainda ressalta o uso estratégico da cartografia por indígenas, diante de cenários de incerteza e luta pelas terras. Como disse Perkins: “Em alguns contextos, as práticas de mapeamento podem ser usadas para subverter [...], enquanto em outros, é o potencial polifônico do mapa que é invocado, com a mesma imagem representando muitas visualizações diferentes e usada para muitos propósitos diferentes” (PERKINS, 2003, p. 345).

Em suas últimas publicações e trabalhos, Harley já começava a destacar a necessidade da história da cartografia em assumir dois compromissos na inclusão de grupos nativos das Américas enquanto agentes produtores dessa forma de conhecimento: aceitar a existência de cartografias indígenas que continuaram a ser praticadas antes e após a chegada de colonizadores europeus; o exercício de pesquisa histórica focada em reconstruir as contribuições indígenas na feitura de mapas “europeus” (HARLEY, 2002, p. 171). Tal compromisso vem mostrando a significativa presença nativa na escrita de novas pesquisas sobre cartografia das Américas, em que colonizadores europeus estão deixando de serem vistos como os únicos cartógrafos deste não-tão-Novo Mundo, já mapeado por grupos indígenas.

Os diálogos entre história indígena e história da cartografia têm revelado a importância da análise cartográfica no aprofundamento das relações coloniais, nas quais mapas eram operados dentro do espectro de ferramenta imperial à resiliência nativa. Desde a constituição de práticas cartográficas mistas no México central, passando pelas incertas e parciais informações geográficas sobre o Oeste norte-americano compiladas por impérios europeus, até a emergência de expedições científicas iluministas na América do Sul que prometiam verdadeiro e preciso mapeamento do Novo Mundo, recentes trabalhos enfatizam a centralidade nativa na construção das possibilidades do ato de mapear, anteriormente classificado apenas enquanto europeu (GRUZINSKI, 1991; MUNDY, 1996; SAFIER, 2008; MAPP, 2011). Mesmo com tais avanços, a historiografia dos mapas e da cartografia ainda enfrenta desafios como a inclusão crítica de perspectivas nativas nos séculos tardios de domínio colonial nas Américas, sem mencionar a ausência de percepções Africanas ou afro-americanas sobre o mapeamento do espaço.

A busca e inclusão indígena na cartografia também instiga questionamentos sobre o seu histórico de impactos sociais e políticos na desapropriação de terras nativas desde o início da colonização. Harley salienta como “mapas fornecem um roteiro para estudar processos territoriais aonde indígenas foram progressivamente empurrados para fora de suas terras” (HARLEY, 2002, p. 170). Mapas baseados em preceitos de alta precisão podem reforçar com sua retórica visual e simbólica o apagamento ou marginalização de grupos étnicos, raciais, e sociais. Dessa forma, Harley critica ideais de precisão técnica e avanços tecnológicos no campo cartográfico que não estejam dispostos a refletir seu comprometimento ético. Assim, precisão e tecnicidade devem vir em segundo plano, pois primeiro devemos considerar eticamente o impacto da cartografia na resolução ou agravação de questões de justiça social (HARLEY, 2002, p. 206-207). Levando isso em conta, acreditamos que a construção de cartografias digitais e que fazem uso de SIG pode e deve estar em diálogo com problemas de justiça social frutos do impacto de processos históricos em nossa sociedade. Tal análise também pode ser feita sobre o mapa de Nimuendajú, ao nos perguntarmos sobre sua intencionalidade, seu comprometimento ético e seu impacto na construção de uma presença territorial indígena não limitada ou baseada no território brasileiro ou de qualquer estado-nação, mas onde a hidrografia sul-americana tem grande peso em sua composição ao explicar a disponibilidade das nações ameríndias do continente.

As reflexões desses autores nos ajudam a pensar algumas questões que são fundamentais para compreender o trabalho de Nimuendajú. O primeiro problema é que um mapa nunca é produto do cartógrafo que o desenha, mas de um longo processo de coleta de dados (em campo), de notas de informantes, de logística para os trabalhos, de preparação de croquis, de desenho e de decoração. Em alguns casos, quando o mapa é impresso, há outras preocupações que dizem respeito ao processo de reprodução gráfica e a seus limites, os quais também têm sua história.

Comecemos pelo “campo” e as notas de informantes. É aqui que nos conectamos com a parte anterior. Vimos que o mapa de Nimuendajú foi produzido por centenas de “informantes” (além de suas próprias observações de campo), autores de obras de natureza muito diversa, produzidas em circunstâncias muito diferentes, ainda que Curt tenha tratado todos como se fossem etnógrafos. O informante mais importante, como já vimos, foi Karl Friedrich Philip von Martius, com a obra Beiträge zur Ethnographie und Sprachenkunde Amerikas zumal Brasiliens. Von Martius foi um importante cientista alemão, reconhecido principalmente por suas contribuições ao campo da botânica, mas realizou também uma vasta investigação acerca das línguas e dos povos indígenas do Brasil.

Von Martius recebeu o convite para integrar a expedição científica austríaco-bávara que acompanhou a chegada de Maria Leopoldina ao Brasil, e, entre os anos de 1817 e 1820, em companhia do zoólogo Johann Baptist von Spix, percorreu grande parte do território brasileiro. O resultado direto dessa expedição, além da catalogação e extração de espécimes, foi a publicação da obra Viagem pelo Brasil, 1817-1820, sendo também a base de trabalhos posteriores como Beiträge zur Ethnographie und Sprachenkunde Amerikas zumal Brasiliens. Neste, Von Martius utiliza as observações diretas feitas por ele e por Spix durante sua expedição em conjunto com informações de outros viajantes para fazer uma análise etnográfica e linguística dos grupos indígenas do lugar (DIENER, 2014).

Nos seus escritos, encontramos, em meio a fortes juízos de valor sobre os nativos não-assimilados, referências à presença indígena na travessia e no processo de coleta de informações, algo que fica mitigado quando vemos o trabalho geral. O mapa “descritivo” de Martius, feito por sua narrativa e “cartografado” por Curt, continha, na verdade, uma grande carga de trabalho de campo “nativo”. Muitas vezes, Martius e Spix estavam “não informados nem a respeito do caminho a tomar, nem acerca das águas navegáveis e outras circunstâncias importantes, numa viagem tão prolongada e arriscada, entregues inteiramente ao alvitre de um índio, nosso piloto” (SPIX; MARTIUS, 1981, p. 63). Esse trecho de Viagem pelo Brasil antecede a entrada dos viajantes no rio Amazonas e mostra claramente a participação ativa de indígenas nos caminhos escolhidos para a realização da expedição e consequentemente no próprio processo de coleta de informações. É nítida a importância do conhecimento indígena para a realização da viagem de Spix e Martius na região amazônica e para os produtos posteriores resultantes dessa expedição. Ainda que possamos apontar problemas de interpretação etno-geográfica, o produto de Curt é também um mapa das centenas de grupos que participaram da coleta de campo, tal como aconteceu com o de Fritz, igualmente utilizado. Porém, o elemento mais interessante, quando pensamos na “coleta” de informações de Curt, é que o resultado da organização de todos os dados foi um registro cartográfico com milhares de inscrições no mapa da América do Sul ao longo dos anos. A questão do tempo é importante não apenas porque Nimuendajú situou historicamente suas localizações, mas porque, ao separarmos cronologicamente por século, como fizemos anteriormente, temos o “negativo” daquelas milhares de inscrições no mapa: grandes ausências, representadas por espaços em branco, que foram ocultadas por diferentes camadas temporais com as quais o mapa foi elaborado. É como se os dados das épocas posteriores fossem encobrindo os “vazios” das passadas, fazendo opaca uma informação fundamental: não era um mapa etno-histórico, mas dos avistamentos feitos por europeus, como apontamos anteriormente. Trata-se de uma retórica baseada em ausências, pois tampouco isso foi discutido nas partes textuais que antecedem o mapa.

Essa retórica das ausências deve ter relação com as posições teóricas de Curt, e muito provavelmente isso era muito consciente. Defensor da preservação dos indígenas em suas comunidades, Nimuendajú esperava conservar uma essência nativa. Essa posição era muito justificável em um contexto no qual a alternativa era sua “civilização” e invisibilidade, tal como propostas por Hurley nos anos 1910 e 1920, mas acabava impedindo o reconhecimento da identidade indígena em povos que haviam tido forte contato e miscigenação. Suas posições sempre acentuadamente indigenistas fizeram com que seu desenho fosse politicamente indigenista e que os espaços ocupados do continente fossem todos associados aos grupos nativos. Era preciso povoar o continente com informações indígenas, as quais têm amplo predomínio no desenho. No mapa de Curt, visto de longe, é fácil ignorar o Estado nacional que se estabeleceria nas terras dos povos originários. As fronteiras atuais aparecem, e muitas cidades de grande porte são indicadas, mas de um modo muito discreto, ocupando um evidente segundo plano, quase que para indicar sua inconveniência em um continente indígena. Há um elemento adicional que nos permite pensar nas preocupações de Curt com o preenchimento dos espaços vazios. Em carta de 1935, para Carlos Estevão, Diretor do Museu Nacional, Nimuendajú escrevia que “Snethlage me deixou também os dados necessários para o nosso mapa etnográfico do qual ficou eliminada uma das manchas brancas mais sensíveis”. Não era apenas uma preocupação empirista. Era preciso atribuir espaço aos nativos (WELPER, 2002, p. 94, rodapé 108). Outros elementos merecem ser discutidos, os quais dizem respeito à forma de visualização escolhida por Curt. Por um lado, todos os grupos foram representados com a mesma legenda cartográfica: faixas longitudinais para áreas maiores e pontos, representados por um apartado com o nome do grupo e uma data, para avistamentos específicos. Não temos qualquer espaço para diferentes formas de se relacionar com o espaço, de acordo com os saberes nativos. Pode ser uma crítica forte, considerando o contexto em que a obra foi produzida, mas, na verdade, o que Nimuendajú fez foi homogeneizar as experiências nativas com um código de cartografia moderna, dispondo grupos no espaço como se fossem estáticos, mesmo diante de conjuntos para os quais o movimento sazonal fosse fundamental.

A questão da dinâmica do movimento é certamente um elemento central. É correto que Curt inseriu setas no meio dos grupos para indicar seu movimento. Contudo, elas acabam indicando mormente os deslocamentos fruto da fuga para o interior (provocada pela chegada dos europeus) do que pelas dinâmicas nativas. Estas foram cristalizadas nas manchas e faixas usadas para representá-las, determinando territórios de cada tribo de modo tendencialmente estático. Como afirma Ingold, quando nos referimos ao trabalho cartográfico, privilegiamos a criação de uma representação estática de uma determinada realidade. Consequentemente, informações relativas à mobilidade e à dinamicidade da ocupação do espaço acabam sendo negligenciadas em prol de uma ilusão fixa (INGOLD, 2007). Esse aspecto, quase que geral na cartografia, torna-se um problema ao lidarmos com a questão do movimento, da migração e da ocupação espacial, que seguem uma lógica diversa das balizas tradicionais impostas.

Conclusão

Ao longo deste texto, procuramos apresentar o “Mapa Etno-histórico” de Curt Nimuendajú e a forma como esse produto cartográfico foi “desmontado” por meio do uso de um SIG que nos fez perceber diversas marcas da produção do famoso mapa. Há um grande debate sobre o tecnicismo presentes nessas ferramentas, e mesmo o mapa de Nimuendajú poderia ser acusado nessa direção, já que fazia, analogicamente, o mesmo que se faz nos dias atuais: cruzar dados de diversas fontes em diferentes camadas de informação em um contexto espacial definido (no caso, o continente da América do Sul). Ao analisar seu trabalho, acabamos fazendo algo similar e podemos, sem qualquer dúvida, receber a mesma crítica de tecnicismo alheio às especificidades da experiência indígena. Ocorre, contudo, que elas são múltiplas, e resta como desafio pensá-las em termos cartográficos. O etnógrafo sabia disso.

Ao utilizar os sistemas de informação geográficas para reconstruir digitalmente o “Mapa Etno-histórico”, acabamos tendo a possibilidade de perceber algumas das escolhas do autor, dentre as quais destacamos uma notória seletividade na representação de certos grupos por “informantes”. Esse elemento não foi explicado e talvez seja muito difícil encontrar uma justificativa para ele. O ponto mais importante, contudo, não é esse: é o que chamamos de “retórica das ausências”, quando revelamos grandes espaços vazios encobertos por camadas de dados de épocas posteriores. Essa retórica seria fruto de um processo de transformação das descrições europeias sobre os indígenas em informação positivista sobre a correta posição dos grupos nativos no tempo, como procuramos demonstrar ao longo destas páginas.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Rodolpho Pinto. A cartografia do mapa Etno-histórico de Curt Nimuendajú. In: IBGE/Fundação Pró-memória. Mapa Etno-histórico de Curt Nimuendajú. Rio de Janeiro: IBGE, 1981. p. 23-27.

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Notas

1 Este artigo foi elaborado dentro do marco do “Atlas Digital da América Lusa” e faz parte de um esforço maior de uso dos dados organizados dentro do projeto, a partir do qual estão previstos também outros dois artigos.

Notas

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