Artigo Original

Um retrato político do padre Antônio Vieira: antijesuitismo em João Francisco Lisboa

A political representation of father Vieira: anti-jesuitism in João Francisco Lisboa

Gil Eduardo de Albuquerque Macedo
Universidade Federal do Ceará, Brasil

Um retrato político do padre Antônio Vieira: antijesuitismo em João Francisco Lisboa

História da Historiografia, vol. 14, núm. 37, pp. 105-134, 2021

Brazilian Society for History and Theory of Historiography (SBTHH)

Recepção: 15 Outubro 2020

Revised document received: 17 Fevereiro Março 2021

Aprovação: 18 Maio 2021

RESUMO: O historiador e jornalista João Francisco Lisboa escreveu, entre 1858 e 1663, a biografia Vida do Padre Antônio Vieira. A escrita sobre o padre esteve imersa em uma série de aproximações com as teorias do complô jesuítico, uma narrativa enredada em uma clara proposta de denúncia histórica. Como resultado de nossa pesquisa, entendemos que Lisboa criou a imagem de Vieira enquanto um personagem político, abordagem que pretendia questionar a legitimidade histórica do padre e de sua ordem. Para tratar de tal questão, procuramos: refletir sobre o modelo de escrita biográfica; investigar as conexões com a historiografia do século XIX; e analisar conceitualmente o antijesuitismo e seus desdobramentos no discurso de Lisboa. São esses os procedimentos da abordagem historiográfica de nosso estudo, com a qual colocamos em perspectiva uma escrita sobre Vieira na cultura histórica oitocentista.

PALAVRAS-CHAVE: Biografia, Historiografia do século XIX, Nação.

ABSTRACT: Between 1858 and 1663, the historian and journalist João Francisco Lisboa wrote the biography Vida do Padre Antônio Vieira, a clear proposal of historical denunciation through a narrative wrapped in a series of approximations with theories of Jesuit plot. Understanding that Lisboa depicted Vieira as a political character in an attempt to question the priest historical legitimacy and his order, this study aims to reflect on the model of biographical writing, to investigate connections with 19th century historiography, and to analyze anti-Jesuitism and its consequences in the discourse of the author. From a historiographical approach, such a discussion put into perspective a writing about Vieira in the 19th-century historical culture.

KEYWORDS: Biography, 19th century historiography, Nation.

De maneira que o Judas do Brasil, autor do Papel Forte, que preconizava a entrega de Pernambuco aos Estados Gerais da Holanda, sabia muito bem que a entrega seria, como o afirmava, a retroaberto; porque, ao mesmo tempo que elaborava o escrito famoso, tentava a aliança naval com a França e a Suécia para a ruína do comércio holandês, congeminava a utopia do Quinto Império, que à própria Holanda e Espanha poria sob o centro de Portugal - e punha em marcha a organização da Companhia do Comércio, pela qual se conseguiria, não só a recuperação de Pernambuco, senão também da resistência da Metrópole (CIDADE, s/d, p. 83-84).

A citação que inaugura nosso texto é do historiador português novecentista Hernâni Cidade (1887-1975). Em sua biografia sobre Antônio Vieira, o jesuíta é personificado enquanto “Judas do Brasil”. A forte imagem lançada sobre o padre seiscentista não é uma operação isolada. O Papel Forte aguçou e gerou polêmica sobre a imagem de Vieira. Para João Francisco Lisboa (1812-1863), as concessões do padre para a entrega de parte da colônia “eram em verdade enormes” (LISBOA, 1964, p. 67). Tratava-se de uma clara traição e covardia:

Estas longas negociações diplomáticas, tratadas até então com sumo segredo, mas enfim aventadas, produziram no público a mais viva indignação. Não havia classe ou cidadão que não clamasse contra a cobardia ou traição com que se entregavam à Holanda tão magníficos domínios (LISBOA, 1964, p. 67).

O teor de denúncia foi tingido com palavras fortes. Afinal, além de entregar o território, o padre pretendia pagar a “usurpação com grossas quantias; com que, sobretudo eram abandonados tantos vassalos fiéis, que pelo rei e pela religião haviam tomado as armas, sacrificando vidas, liberdade e fazenda” (LISBOA, 1964, p. 67-68). Com relação à figura do jesuíta seiscentista, o objetivo foi gerar o antagonismo nacional com João Fernandes Vieira, aquele que remediaria os danos da traição ao liderar a batalha dos Guararapes. Para Alcir Pécora, com a biografia de Lisboa, a imagem de Vieira enquanto “Judas do Brasil” foi criada (PÉCORA, 2008, p. 42).

Segundo Temístocles Cezar, ao historiador é conferida a condição divina de criar sua própria providência. Com isso, o heroísmo pode ser considerado um recurso narrativo dentro de uma trama, afinal “resta saber se o grande homem é um herói acabado ou um candidato a herói” (CEZAR, 2004, p. 18). Em linhas gerais, a noção de herói que circulou em meio à historiografia brasileira do século XIX é uma reafirmação do dever cívico. Isto é, o herói é aquele que transborda a condição comum do homem ordinário, “afirma a sua própria vida como sacrifício no altar da pátria” (KHALED JR, 2010, p. 150). Partindo dessa compreensão, o padre Vieira não poderia ocupar o lugar de herói na escrita de Lisboa, de outro modo, serviria como instrumento de denúncia histórica.

Entendemos que o episódio do Papel Forte é sintomático de uma aversão à Companhia de Jesus. No entanto, a categorização de Lisboa como antijesuíta é insuficiente, se não for compreendida dentro das suas articulações com a cultura histórica oitocentista. Estabelecemos, portanto, quatro etapas de análise. Na primeira, entendemos como necessário um estudo preliminar sobre o tipo de escrita de que estamos tratando: a biografia histórica, reflexão que nos permitiu dimensionar a importância e as funções que esse modelo de narrativa ocupou nas produções oitocentistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Em seguida, procuramos abordar as especificidades da produção biográfica de Lisboa. Para tanto, foi necessário diferenciála das suas demais produções. Entendemos que a experiência de Lisboa em Portugal demarcou uma mudança de sua postura enquanto historiador, além de aproximá-lo da historiografia portuguesa. Com isso, nos encaminhamos para o terceiro momento de nossa investigação, quando investigamos as aproximações de Lisboa com o antijesuitismo português, isto é, com quais elementos das teorias do complô jesuítico o historiador dialogou. Por fim, dedicamos nosso último tópico para tratar das estratégias discursivas que compuseram a sua denúncia histórica, na qual Vieira foi configurado enquanto um personagem político, exemplo da contradição jesuítica entre a religiosidade e a política.

A escrita biográfica de João Francisco Lisboa

Indicado por Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa ingressou como sócio no IHGB em 1855, integrando uma comissão encarregada de pesquisar documentos sobre o Brasil em Portugal. Em terras lusitanas, Lisboa seguiu publicando o seu polêmico Jornal de Timon,1 assim como a biografia de Odorico Mendes. Antes de falecer, em 26 de abril de 1863, esteve centrado na escrita da Vida do Padre Antônio Vieira. Antônio Henriques Leal, seu biógrafo e amigo, organizou e publicou os seus textos, reunindo-os em uma obra completa (JANOTTI, 1977, p. 29-31). Nela, encontra-se a escrita sobre o padre Antônio Vieira.

Ao produzir uma biografia, João Francisco Lisboa optou por um modelo de escrita difundido amplamente no século XIX. Procurando dar unidade de sentido à vida do biografado, o gênero narrativo parte de uma lógica prospectiva e retrospectiva.

No entanto, a ideia de ilusão biográfica sugerida por Bourdieu (2007b) é, em certo sentido, insuficiente para o nosso estudo se não forem contextualizadas em suas conjugações históricas. Alexandre de Sá Avelar trata do problema das produções biográficas, apresentando suas diversas renovações, as quais sugerem que não podemos tratar a biografia como uma modalidade rígida de escrita (AVELAR, 2011). Certamente, as biografias, sintomáticas de uma epistemologia moderna, manifestam o desejo de racionalizar a complexidade da vida. A tentativa de produção de unicidade biográfica é, nesse aspecto, um problema correlato à modernidade, o que, por sua vez, também gera ambiguidades. Por isso, será necessário historicizar brevemente os modelos de biografia difundidos no século XIX.

Maria da Glória de Oliveira afirma que a biografia se tornou um gênero de produção historiográfico, legitimado e regulado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro a partir de 1839 - “Na vida dos grandes homens aprende-se a conhecer as aplicações da honra, a apreciar a glória e a afrontar os perigos”. (BARBOSA, 1839, p. 14) Lido na sessão inaugural do IHGB, em 1838, o discurso de Januário da Cunha Barbosa já manifestava as bases das formulações teóricas do instituto, que, como podemos ver, incorporava, da historia magistra vitae, a exempla,2 com a qual poderia “conferir imortalidade à vida das histórias instrutivas” (KOSELLECK, 2006, p. 43).

A ideia colocada de “grande homem”, em certa medida, é diferente da formulação clássica do herói plutarquiano. Construção iluminista, o “grande homem” estava sedimentado no tempo moderno, imbuído pela dinâmica da aceleração - “contiguidade entre passado, presente e futuro, remetendo à ideia de perfectibilidade do gênero humano” (OLIVEIRA, 2015, p. 277). Era, portanto, o indivíduo modelar de uma coletividade. A referência a Plutarco pode ser entendida como uma tentativa de legitimação cultural e de incorporação da biografia no escopo das diretrizes de pesquisa e de escrita nacional. Não se trata de tão somente um exercício de erudição. Segundo Temístocles Cezar, a biografia dos grandes homens é um projeto historiográfico, com o qual se pode compreender o movimento do tempo por meio das transformações geradas pelos homens notáveis (CEZAR, 2004, p. 25).

Até o ano de 1899, o IHGB lançou 154 textos com a denominação de biografia ou de apontamentos biográficos.3 Mais do que uma produção isolada do indivíduo, ou um gênero avulso, a biografia esteve incorporada ao projeto de escrita da história nacional (CEZAR, 2003, p. 74). A regularidade de publicação e o interesse na sua produção, manifestado pelos sócios da instituição, indicam a dimensão que o gênero possuía na historiografia oitocentista. A biografia surgia como modalidade de escrita que se submetia aos procedimentos da crítica metodológica, se converteria, portanto, no ofício do historiador (OLIVEIRA, 2007, p. 162). Muitos escritores manifestaram interesse pelo gênero, já que os textos carregavam suas assinaturas, tornando-se capital simbólico: “propiciavam certa visibilidade aos membros da instituição” (OLIVEIRA, 2007, p. 163).

Tristão de Alencar Araripe, sócio do IHGB, ao argumentar sobre a função do historiador, afirma que um dos seus deveres é “apresentar a veneração dos posteriores a memória dos varões beneméritos, que engrandeceram essa pátria com proezas generosas, invenções úteis, e obras excelentes” (ARARIPE, 1894, p. 273). Ao biografar os distintos homens, o que estava sendo feito era imortalizar as vidas de figuras notáveis, tornando-as resistentes ao tempo para que servissem de exemplo aos homens da nação. Para o presidente do IHGB, São Leopoldo, o instituto pretendia cooperar “desta arte para ressurgirem à nova vida escritores, que com direito a imortalidade jaziam, ou por modéstia ou maliciosidade, sepultados no esquecimento” (SÃO LEOPOLDO, 1839, p. 64-68).

A fórmula das biografias na seção da revista do instituto era a de eternizar a vida dos homens distintos, colocando-os como modelo de vida no presente, pressuposto em consonância com os valores da civilidade moderna. As biografias de José de Anchieta e de Manoel da Nóbrega, escritas por Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva, o mesmo autor que escreveu Memórias Históricas e Políticas da Província da Bahia, são exemplos de escritos biográficos produzidos sobre jesuítas notáveis. Diferentemente do que foi feito por Ignácio Accioly, o homem biografado por Lisboa também foi notável historicamente, mas não serviu de exemplo para o presente. Não é nossa pretensão estabelecer os limites de sua moralidade. Preferimos pensar que sua escrita se inseria em uma forma de reflexão moral, com a qual Lisboa poderia estabelecer pontes entre o passado e o presente (TURIN, 2018, p. 78). Para isso, entendemos ser necessário investigar os elementos que caracterizam a operação historiográfica de Lisboa.

Antes de se assumir enquanto historiador, o escritor maranhense possuía passagens em jornais locais e significativa atividade político-partidária. Foi eleito deputado provincial para a legislatura da Assembleia Provincial (1835-1837 e 1838-1841) e, em 1835, assumiu o cargo de Secretário do Governo Provincial na gestão do presidente Francisco Bibiano de Castro. Lisboa fundia sua atividade jornalística com a defesa de uma política liberal. A experiência como jornalista do Eco do Norte, entre 1834 e 1836, foi um período decisivo “para que alcançasse a proeminência no partido liberal maranhense” (JANOTTI, 1977, p. 24). Entre 1838-1840, tornou-se jornalista da Crônica Maranhense, utilizando-se desse jornal para escrever artigos inflamados contra o governo. O distanciamento da política ocorreu quando foi acusado de participar da Balaiada (SILVA, 2017, p. 33-37).

Embora considerável, a carreira política de João Francisco Lisboa foi marcada por desilusões, o que motivaria a escrita do Jornal de Timon, texto em que o jornalista assumiria a função de historiador (JANOTTI, 1977, p. 26). A partir de então, já não se trata do mesmo homem de partido e de ideologia que escrevia para a Crônica Maranhense (SOARES, 2009, p. 212). O estudo da história foi uma ferramenta que Lisboa optou para superar as “contradições entre os seus ideais liberais e a realidade nacional” (JANOTTI, 1977, p. 234). Segundo Jussara Silva, “Francisco Lisboa metamorfoseia-se primeiro em Timon para depois transformar-se em historiador” (SILVA, 2017, p. 33). Isto é, a função de historiador, assumida por Lisboa, se deu em transversalidade com a função de jornalista, movimento comum no século XIX.

O fluxo existente entre campos do saber deve ser entendido enquanto possibilidade e condição permitidas na historiografia oitocentista (CEZAR, 2003, p. 73). O ofício do historiador não se situa em uma posição rígida de reconhecimento, de outro modo, transita em um campo social flexível que classifica seus pares por meio de jogos e de negociações simbólicas (BOURDIEU, 2007a, p. 422-460). A própria figura de historiador oitocentista dialogou com outras imagens, como publicista, naturalista e poeta (TURIN, 2009, p. 14). O caso de Lisboa é exemplo das porosidades entre os campos de produção de saber que constituem a cultura da história do século XIX. Contemporâneos de Lisboa, como Joaquim Machado de Oliveira e Justiniano José da Rocha, são exemplos de letrados que assumiram a voz do historiado mas que não se identificavam prioritariamente como historiadores (TURIN, 2018, p. 69). Com isso, é importante assinalarmos que a pluralidade de gêneros históricos não garantia uma unidade discursiva estável para a figura do historiador.

Em nosso caso de estudo, parte do reconhecimento ocorreu quando Varnhagen elogiou a escrita do Jornal de Timon e convidou o então jornalista maranhense para compor o quadro de historiadores do IHGB. Para que se evite uma associação genérica entre historiador e instituição, devemos pensar sobre a relação de Lisboa com o IHGB. Ainda que possua preocupação com o nacional, a biografia compõe uma diversidade de cultura de história do século XIX. Para Valdei Lopes de Araujo, a construção do discurso histórico moderno “revela movimentos intencionais e não-intencionais de autonomização da prática historiadora e intelectual” (ARAUJO, 2015, p. 367). As distintas abordagens e as complexas relações que os historiadores do século XIX traçaram não nos permite a dedução de um projeto sistematicamente perseguido.

Dentro da pluralidade de cenários historiográficos oitocentistas, podemos identificar algumas das características que compõem o discurso combativo de Lisboa. Em Apontamentos para Servirem à História do Maranhão,4 textos que integram o Jornal de Timon, fica clara a proposta de evidenciar os modos e os costumes grosseiros da sociedade maranhense. Para isso, o historiador aplica sistematicamente a desqualificação enquanto topoi, depreciando ora o personagem, ora o seu argumento. Todavia, esse recurso discursivo não é usado como fim em si mesmo. Por meio do jornal, Lisboa pretendia promover uma transformação no curso da história. A insatisfação do historiador com o estado da realidade em que vivia revela a posição, por vezes antagônica, assumida contra o Estado e a política oitocentista. Afinal, Lisboa fazia parte de uma geração romântica preocupada com a formação da nação e que produziu diferentes projetos civilizacionais e críticas ao recém-instaurado Estado nacional (SILVA, 2017, p. 25). É nesse sentido que a relação entre escrita e nação se alinham.

As estratégias discursivas de Lisboa transitavam entre uma abordagem satírica e irônica. Segundo Alfredo Bosi, a sátira é uma prática política, estabelece pontes entre temporalidades, uma ferramenta de intervenção política sobre a realidade (BOSI, 1977, p. 172). Entretanto, é importante diferenciar a finalidade política empregada na biografia e no Jornal de Timon. No periódico, Lisboa procurava interceder diretamente no curso do tempo, realizando uma crítica direcionada aos seus contemporâneos maranhenses. Na biografia, trata-se de outro regime de autonomia, cuja ação política é indireta (ARAUJO, 2015, p. 393), tema que abordaremos adiante.

A ironia presente na escrita de Lisboa é sintomática de uma crise da consciência histórica. O recurso estilístico surge quando se avultam críticas sobre as estruturas fundamentais da sociedade moderna, como as instituições políticas, a religião e os costumes (WHITE, 1995, p. 25). Em Lisboa, a ironia pode ser explicada pela presença do ceticismo, modo de enxergar o ser social como um agente fraturado, constituído por duplicidades, permeado por interesses e dissimulações (SILVA, 2017, p. 72).

Para Flávio Soares, as desilusões de Lisboa com a política o fizeram compreender que os partidos eram movidos por razões práticas e não por princípios ideológicos (SOARES, 2008, p. 212). Tal postura o tornaria um “historiador pragmático” (SOARES, 2008, p. 213), isto é, um intelectual que procurava revelar os males e as inconsistências do mundo. Segundo Janotti, Lisboa possuía dúvida sobre o sentido da história, alguém menos convicto do que Varnhagen (JANOTTI, 1977, p. 233). A escrita biográfica sobre Vieira, por essa lógica, serve para descortinar interesses e revelar as dissimulações históricas. Portanto, é possível considerar certo valor pedagógico associado à biografia sobre o jesuíta. Nesse caso, tratava-se de uma alteridade a ser evitada: Antônio Vieira, exemplo avesso de nacionalidade.

Entre o Maranhão e a nação

Não existe, no conjunto dos textos de Lisboa, uma unidade de pensamento linear e coeso sobre Vieira. Por mais que tenhamos apontado os elementos que caracterizam uma escrita combativa, há de se notar as diferenças entre o personagem apresentado no Jornal de Timon e o jesuíta ilustrado na narrativa biográfica. A diferença pode ser explicada, em parte, pelo desenvolvimento de Lisboa enquanto historiador profissional.

Segundo Maria de Lourdes Janotti, a dificuldade em caracterizar a relação entre o IHGB e Lisboa deve-se, em grande medida, às críticas que o historiador dirigiu à instituição sobre o caso dos indígenas (JANOTTI, 1977, p. 150-153). Dentre as querelas, destacamos o imbróglio com Varnhagen. Varnhagen, a princípio, nutria grande admiração pelos trabalhos de Lisboa, a quem agradece pelos “subsídios” fornecidos à primeira edição da História Geral do Brasil (VARNHAGEN, 1857, p. 557). Um dos pontos de convergência foi a crítica comum de ambos ao que Varnhagen denunciava como “perigoso brasileirismo caboclo” (VARNHAGEN, 1961, p. 235). Em publicação de 1849, o historiador denunciava os que apontavam o indígena enquanto legítimo representante da nação (SANTOS, 2014, p. 87-88). Em consonância com Varnhagen, Lisboa destilou sua crítica com notável ironia àqueles que se debruçaram sobre o indígena nas investigações históricas do IHGB (LISBOA, 1865a, p. 201-202).

Retribuindo o apoio indireto, Varnhagen revela grande satisfação ao “ver corroboradas as nossas conjecturas acerca da escassez da antiga população indígena no nosso país por um benemérito escritor do Maranhão” (VARNHAGEN, 1854, p. 483). Os dois historiadores estreitaram laços quando João Francisco Lisboa viajou para Portugal, por meio do IHGB, para fazer pesquisa documental. Nessa empreitada, diversas correspondências foram trocadas. Nelas, Lisboa solicitava conselhos para lidar com a crítica às fontes e chegou a considerar o seu colega historiador como “mestre” (VARNHAGEN, 1961, p. 69).

Segundo Janotti, nas correspondências trocadas entre tais historiadores, Varnhagen passou a questionar o uso do método que Lisboa aplicava sobre as fontes, alertando-o sobre o pouco rigor na crítica documental (JANOTTI, 1977, p. 158). A relação, antes amistosa, passava a outro patamar. A querela foi aguçada quando Lisboa, ao mudar de postura, manifestou-se de forma contundente sobre o tema da escravidão: “que a escravidão africana, como foi entre nós organizada, é ímpia, cruel, atroz em si mesma, e imoral, corruptora, embrutecedora, anticivilizadora e summa nos seus resultados” (LISBOA, 1965b, p. 473).

Em 1858, os números 11 e 15 do Jornal de Timon foram publicados em Portugal. Ao chegarem no exterior, os textos receberam elogios e refutações. A partir delas, uma revisão historiográfica transformaria algumas das perspectivas assumidas pelo historiador. Assim, Lisboa promoveu uma série de modificações em ideias que antes defendia. Por isso, podemos perceber incongruências com os textos escritos pós-1858 (SILVA, 2017, p. 54). Entre tais mudanças, é possível identificar a aproximação com as ideias defendidas por Gonçalves Dias no tocante à legislação sobre a escravidão indígena e africana (SILVA, 2017).

Com isso, o historiador maranhense assumia claramente sua mudança de postura em relação à questão, concluindo que a História Geral do Brasil legitimou historicamente todo o emprego de violência (LISBOA, 1865b, p. 466). Também com acusações de plágio, o embate foi prolongado mesmo após a morte de Lisboa, contando com o envolvimento de outros intelectuais da época, tal como Antônio Henriques Leal. A respeito do imbróglio, Evandro dos Santos o analisa com maiores detalhes (SANTOS, 2014, p. 87-100).

O processo de transformação de Lisboa, enquanto historiador em missão de pesquisa, se desdobraria sobre temas correlatos, como o padre Vieira e sua ordem religiosa. Em Apontamentos para servirem à História do Maranhão, nas publicações entre os anos de 1852-1853, o historiador já manifestava traços do antijesuitismo ao afirmar que a ordem possuía “grande ambição coletiva” (LISBOA, 1865a, p. 404). No entanto, são as “virtudes individuais” (LISBOA, 1865a, p. 403) que sobressaem quando é narrada a participação dos inacianos no Maranhão, sobretudo da figura do padre Antônio Vieira. Em Apontamentos, quando comparado à biografia, percebemos nitidamente uma leitura positiva sobre Vieira. O ilustre jesuíta foi um grande representante da colônia, “cujo nome, associado ao seu, fez ressoar na Europa” (LISBOA, 1865a, p. 417). No texto, o padre é aquele que participa do processo civilizatório dos costumes indígenas, além de escancarar a degeneração moral dos colonos maranhenses.

É possível afirmar que, no primeiro momento, João Francisco Lisboa teve relativa proximidade com uma perspectiva preponderante nas publicações do IHGB entre os anos de 1839 e 1849, sob a coordenação do Cônego Januário da Cunha Barbosa. Como aborda Simone Tiago Domingos, as publicações defendiam que o atraso brasileiro se devia, em grande medida, à escravidão e à presença dos africanos, o que explicaria o atraso da agricultura, da civilização dos indígenas e da sociedade (DOMINGOS, 2014, p. 341). Por meio dessa interpretação, há uma distinção entre a atuação dos jesuítas, fundamentada nos princípios religiosos de catequização e de desenvolvimento da fé, e a do restante dos colonos, motivada pelo insaciável desejo de violência e de escravidão.

Sobre o tema da Companhia de Jesus na colonização, é importante mencionar a obra do historiador britânico Robert Southey, escrita entre 1810-1819, publicada no Brasil em 1861. Em History of Brazil, a Companhia de Jesus surge como possibilidade “concreta de retirada do nativo tanto do estágio selvagem, […] quanto do estágio caçador e coletor, através da introdução de um sistema religioso organizado” (VARELLA, 2015, p. 217). As discussões em torno da Companhia no processo colonial desdobraram-se em diversos embates, tema que retomaremos em nosso próximo tópico. O que nos importa considerar é a existência de uma cena discursiva que, desde o início do século XIX, esteve repensando o papel dos inacianos no processo de colonização.

Em Apontamentos, por mais reticências que Lisboa já manifestasse sobre Loyola e sua ordem (LISBOA, 1865a, p. 340-352), a instituição cumpriria um importante desígnio no Maranhão. Com isso, Vieira servia a duas funções: impedir a degeneração dos indígenas e criar antagonismo com os nefastos colonos do Maranhão. Com a ironia que lhe foi de costume, a citação de Lisboa sintetiza nosso argumento: “e o famoso padre Antônio Vieira, zombando a seu modo, e usando dos costumados trocadilhos disse que o Maranhão, não queria significar outra coisa, senão maranha-grande” (LISBOA, 1865b, p. 30).

Isto é, o historiador maranhense, ao expor a história do Maranhão, estaria apontando, historicamente, sua degeneração moral (SILVA, 2017, p. 72).

Segundo Borralho, tratava-se de uma sátira a Athenas Brasileira, construção identitária elaborada por uma elite de São Luís que explicaria o surgimento de grandes figuras e de notáveis intelectuais (BORRALHO, 2010, p. 30-35). Ao satirizar a herança reclamada por tal grupo social, Lisboa criticava moralmente o passado dos colonos no Maranhão (BORRALHO, 2010, p. 32), expondo seus hábitos nefastos. Nesse sentido, a condição selvagem dos indígenas possui relação com a impossibilidade dos colonos, decorrida de sua decadência, em promover a civilidade em sua região.

Similar ao que é feito em Apontamentos, o jesuíta biografado assume, no arco narrativo sobre as missões no Maranhão, a função de expor a condição do local. Tratava-se de um espaço despossuído de moralidade, sem qualquer senso de civilidade entre os colonos. Lisboa afirma que “a mesma imoralidade que S. Francisco Xavier encontrou na Índia, e os primeiros missionários do Brasil na Bahia, encontrou Vieira no Estado do Maranhão” (LISBOA, 1964, p. 289). O Maranhão padecia de uma presença religiosa, afinal, a própria “Belém esteve muitos anos sem matriz”, onde eram abundantes “as intrigas, os ódios, os falsos testemunhos, os roubos, e os adultérios mais escandalosos” (LISBOA, 1964, p. 289-290). Os próprios indígenas domesticados sofriam a ausência de doutrina, já que seus senhores estavam em condição desajustada (LISBOA, 1964, p. 290).

Na biografia sobre Vieira, Lisboa reafirma a crítica aos colonos maranhenses. No entanto, a figura do padre jesuíta não serve de antagonismo aos colonos, aspecto presente em Apontamentos, texto em que a imagem do jesuíta serve para criar um antagonismo com a ideia idílica do Maranhão. De um lado, a corrupção e a imoralidade dos colonos maranhenses e de outro, a figura do jesuíta que combateria toda a degeneração. Tal antagonismo não é usual na trama biográfica. Nela, a jornada missionária também foi alvo de críticas. Os propósitos do jesuíta na missão tinham por finalidade a obtenção de poder político e temporal, afinal, “mais que muito evidente, era o crescimento progressivo das pretensões ambiciosas da Companhia e de seu ilustre representante” (LISBOA, 1964, p. 305). Em outros termos, toda a defesa aos indígenas empreendida pelos jesuítas é, senão, uma estratégia para tomada de poder.

Devemos considerar a afirmação de Flávio Soares ao concluir que “foi na segunda etapa, escrita em Portugal, que o historiador pragmático alcançaria sua maturidade” (SOARES, 2008, p. 213). É nesse momento que Lisboa, um intelectual que já se distanciava do romantismo de sua época (JANOTTI, 1977, p. 197), assume uma postura ainda mais cética sobre a colonização brasileira.

Partindo das considerações feitas por Valdei Lopes de Araujo, a respeito dos confrontos entre regimes de autonomia com a criação do IHGB (ARAUJO, 2015, p. 393-396), é possível considerar que os textos escritos antes de 1858, entre os quais se encontra Apontamentos, estivessem mais próximo do “regime compilatório”, feitos para um público menos especializado e que compreende características como: “demandas locais/regionais de identidade e justificação política”; “maior presença de padrões/referências clássicas”; e “escrita como ação política direta”. No que se refere à biografia sobre Vieira e aos textos escritos em Portugal, há uma proximidade com o “regime disciplinar”, que engloba elementos como: “centralidade da História Geral Nacional”, “separação entre documento e relato” e “escrita como formação/informação (ação política indireta)” (ARAUJO, 2015, p. 395). Partindo dessa compreensão, é possível delinear o fluxo das produções de Lisboa entre os dois regimes de autonomia.

Por isso, há de se considerar as cenas de produção discursiva presentes na escrita dos dois textos. Os exemplares de Apontamentos para a História do Maranhão de que estamos tratando, publicados em 1852-1853, fazem parte de uma crítica dirigida à elite intelectual maranhense, que buscava legitimar-se historicamente. Já na escrita biográfica, as demandas caminharam para outras conexões. Lisboa esteve imerso na atividade acadêmica, em uma rotina de erudição moderna e de empiria documental. Cada vez mais distante das querelas políticas de antes, as interlocuções presentes no texto biográfico revelam disputas de outra ordem. Tratava-se de repensar a figura de um personagem histórico que excedia os limites do Maranhão, afinal, Lisboa entendia que Vieira era emblemático para a história luso-brasileira, uma figura central da nação.

As aproximações com o antijesuitismo luso-brasileiro

Apesar de esforços como o do senador Cândido Mendes (DOMINGOS, 2009, p. 259-261), que buscava esclarecer a polêmica em torno da morte de João Bolés5, a partir da década de 1850, abordagens antijesuíticas tornaram-se preponderantes nas publicações do IHGB (DOMINGOS, 2014, p. 342). Destacam-se dois artigos de J. C. Fernandes Pinheiro (PINHEIRO, 1855; PINHEIRO, 1856), cuja argumentação trata da formação da Companhia e do seu projeto pela tomada do poder absoluto. Segundo o sócio do IHGB, os soldados da Igreja eram formados tal como um machinismo, sistema centralizado na figura de um chefe que incorpora todos à hierarquia da instituição. Nesse caso, a história da Companhia de Jesus passou a ser explicada em dois estágios de desenvolvimento. O primeiro deles é o que ficou conhecido como a era dos santos, liderada por Inácio de Loyola e Francisco de Borgia. No segundo, chamado de fase de degeneração moral, as práticas eram incompatíveis com uma instituição de natureza religiosa.

Aldrin Figueiredo chama a atenção para as discussões em torno da ordem na historiografia sobre a Amazônia, produções encomendadas pelos Conselhos Gerais das Províncias, e depois pelas Assembleias Provinciais. Nesse cenário, destacamos duas abordagens. Se, por um lado, Ignacio Accyoli entendia que a ordem cumpriria importante função no processo de transformação moral, por outro, Antonio Ladislau Monteiro Baena, autor de Ensaio Corográfico sobre a Província do Pará (1839), ilustrava a figura do jesuíta como “um falso clérigo, que usa a batina para ganhar dinheiro, utilizando-se das benesses do Estado e suas prerrogativas” (FIGUEIREDO, 2000, p. 82).

Dentro das abordagens antijesuíticas na historiografia brasileira, uma aproximação entre Antônio Henriques Leal e Lisboa é, para nós, a mais evidente. Leal, amigo e biógrafo de Lisboa, defendia abertamente a expulsão dos inacianos como ação atrelada à transformação política brasileira por meio dos princípios formadores do estado liberal. Para o autor, a Companhia, que gozava de certo poder e de economia na Igreja Católica, não caberia em um Estado que procurava afirmar sua soberania. É nesse ponto que o autor afirma que a ordem se tornou um “Estado dentro do Estado” (LEAL, 1871, p. 52).

Em meio ao crescimento da jesuitofobia, existe um processo de desgaste do padroado no Brasil, que também pode nos explicar o fortalecimento de abordagens laicizantes na historiografia oitocentista. Com o Segundo Reinado, o comportamento da burocracia imperial e de suas elites iluministas em suas relações hierárquicas causava o abafamento e a frieza da Igreja (ROMANO, 1979, p. 83). Para Valeriano Altoé, o fortalecimento do Estado e da burguesia liberal ameaçava a Igreja, uma tentativa de marginalização. Na década de 1840, temáticas como a autonomia e a separação da Igreja do Estado, distinção entre poder espiritual e temporal e a satelização da Igreja brasileira à Roma tornaram-se pautas de discussão política (ALTOÉ, 1993, p. 66). Tratava-se de um movimento de independência da Igreja em relação ao Estado, a fim de torná-la mais “católica romana” e menos “nacional” (FRAGOSO, 1985, p. 143).

É evidente que as discussões em torno dos jesuítas no instituto e os debates acerca da Igreja no Estado foram elementos que atravessaram o antijesuitismo de Lisboa. No entanto, ainda é necessário matizar outro conjunto de discursos que interceptaria a sua escrita. Afirmamos, anteriormente, que o texto biográfico foi escrito em Portugal, onde Lisboa circulou pelos arquivos e estabeleceu contatos com intelectuais da época (JANOTTI, 1977, p. 29-31). Não é coincidência o fato de que as referências presentes na escrita de Lisboa são, em maioria, obras de letrados portugueses. Por isso, entendemos que o diálogo com o antijesuitismo português pode explicar melhor as interlocuções presentes em sua escrita biográfica.

O autor mais citado por João Francisco Lisboa em sua biografia sobre Vieira não é Varnhagen ou qualquer outro historiador brasileiro que tenha escrito sobre o padre, mas o jesuíta português André de Barros, autor de Vida do Apostólico Padre António Vieira da Companhia de Jesus(1746). Na maioria das passagens em que o escritor português é citado, uma relação de dicotomia é gerada. Lisboa faz questão de evidenciar o incômodo com a hagiografia de Barros.

A exemplo do que estamos afirmando, é importante notar que André de Barros é citado 34 vezes no texto biográfico. Em linhas gerais, é preponderante o recurso da refutação ao texto proselitista do escritor setecentista, crítica que se desdobra em dois segmentos: (1) suposta imprecisão das informações fornecidas por Barros; (2) comentários de teor irônico quanto ao apologismo denunciado por Lisboa. Pela extensa quantidade de citações sobre o “panegirista” jesuíta, optamos por selecionar o momento em que Lisboa sintetiza sua crítica:

É difícil atinar com a verdade neste ponto, como em alguns outros da vida do nosso jesuíta; as suas obras são mudas a tal respeito, e André de Barros jesuíta como ele, e antes panegirista que historiador, tendo de atender igualmente à glória do seu herói, e aos interesses da sua ordem, omite, falsifica, atenua, obscurece e enreda em palavras túrgidas e sibilinas todos os pontos espinhosos e delicados (LISBOA, 1964, p. 273).

Diferentemente da biografia, que trata da trajetória singular de uma existência, uma escrita hagiográfica narra uma série de atos exemplares. A finalidade desse tipo de escrita não é explicar o que um homem se tornou, traçando suas fases da vida, nem contar o que ele fez, mas apresentá-lo como modelo sob o ponto de vista da moralidade cristã, cujo efeito esperado é provocar no leitor uma transformação espiritual (BORBOLLA, 2002, p. 92). O estranhamento de Lisboa com o texto de Barros nos revela duas formas de escrita fundamentalmente distintas. Elas estão amparadas em estruturas culturais e em experiências com o tempo estranhas entre si. As comparações entre tais escritas estão envolvidas em outras complexidades que não serão abordadas em nosso texto. O que nos importa considerar é que, para além dessa evidente diferença, a crítica provocada por Lisboa está inserida em um plano de disputa pela representação histórica da Companhia.

É interessante notarmos que a hagiografia de Barros foi produzida 13 anos antes da expulsão dos jesuítas em Portugal. Nesse cenário, o texto já representa os últimos esforços para legitimar a presença dos jesuítas no cenário político português, uma vez que a influência da ordem já vinha sendo enfraquecida desde o começo do século XVIII (FRANCO; REIS, 1997, p. 25). A narrativa de Barros situava-se em uma relação de dicotomia com as produções patrocinadas por Pombal.

O texto, elaborado por José de Seabra da Silva a pedido do Marquês de Pombal, Dedução Cronológica e Analítica, escrito em 1767, formaliza uma escrita de denúncia contra a Companhia de Jesus, fazendo uso de uma já existente cultura de aversão aos inacianos, a qual Michel Leroy considerou como mito jesuíta, ideia que alimentava o medo de um inimigo despersonalizado (LEROY, 1992). O conceito cunhado por Leroy, que tem como recorte a Restauração de Bourbons, sobretudo atrelado à luta de políticos liberais franceses pela laicização do Estado (LEROY, 1992, p. 92), possui derivações que devem ser contextualizadas.

A respeito da atualização da jesuitofobia no universo letrado português, José Eduardo Franco entende que a ordem religiosa foi projetada como “bode expiatória de todo um passado político decadente que se queria corrigir” (FRANCO; REIS, 1997, p. 53). Pedro Calafate afirma que o discurso iluminista português do século XVIII, ao introduzir o tema da decadência, criou sobre a Companhia de Jesus o estigma da queda e, consequentemente, projetou a regeneração portuguesa no século XVIII, ou seja, “a recuperação das glórias do nosso século XVI, depois obscurecida pela malícia dos jesuítas” (CALAFATE apudFRANCO; REIS, 1997, p. 39).

Maquinações de António Vieira Jesuíta6 foi um texto complementar de Deduções, elencando Vieira como uma das figuras centrais na teoria do complô jesuítico. Com o claro propósito de pejorar a imagem do padre, no documento elaborado a pedido do Marquês de Pombal, destacam-se duas teses. A primeira delas foi a de que o jesuíta, por sua descendência e filiação hebraica, foi escritor de profecias falsas7. Tratava-se de uma estratégia com o propósito de circunscrever Vieira em uma posição herética, um recurso para deslegitimá-lo não só politicamente, mas religiosamente (FRANCO; REIS 1997, p. 46-47). A tese se desdobraria em Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra, 1772, texto em que Pombal associa Vieira à imagem de feiticeiro.

A segunda denúncia, cuja finalidade foi a de apontar a suposta tentativa dos inacianos em construir um Estado dentro do Estado,8 diz respeito às missões no Maranhão e no Grão-Pará. Essa última tese tangenciou com maior efetividade a historiografia brasileira e, de algum modo, reverberaria em Francisco Lisboa.

É certo que o despotismo esclarecido defendido por Pombal se arregimentava em pressupostos políticos estranhos aos praticados por inacianos. Com o ideal de Estado laico, pressupunham-se como incompatíveis as leis divinas com um Estado humano, invariavelmente decaído em sua natureza (SKINNER, 1996, p. 444). A segregação entre política e religião, amplamente apropriada pelos déspotas oitocentistas, tornou-se elementar na formação de um pensamento político moderno. Como parte de um discurso estratégico, foi fundamental elencar personagens, alvos centrais da denúncia histórica. O mesmo Vieira, que havia sido apropriado por André de Barros em uma escrita apologética, tornou-se exemplar para a denúncia iluminista em Portugal do século XVIII.

É interessante notarmos a seguinte ambiguidade: ao mesmo tempo que se evocam os aspectos heréticos do padre jesuíta, a ideia sebastianista que sustentava o mito da nacionalidade portuguesa, que tinha em Vieira um dos seus entusiastas, não foi suspensa. Para Besselaar, “os inimigos que Pombal visava eliminar efetivamente não eram os sebastianistas, mas os jesuítas. Entre eles se achava, paradoxalmente, o Padre Antônio Vieira” (BESSELAAR, 1987, p. 157).

Conforme José Eduardo Franco, o antijesuitismo não é uma forma acabada e cristalizada. O mito do jesuitismo atravessou o despotismo esclarecido e o laicismo, contando com diversas releituras (FRANCO; REIS, 1997, p. 23-37). Em meados do século XIX, a geração de autores portugueses como Alexandre Herculano, Almeida Garret e Rebelo da Silva apropriou-se do mito do jesuitismo em articulações bem distintas. Herculano é um caso emblemático e pode sintetizar nosso raciocínio. O historiador português, que já havia expressado seu antijesuitismo em História das Origens e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, apropriou-se do complô jesuítico para tratar da decadência portuguesa em A Supressão das Conferências do Casino, afirmando que o comando da Igreja era exercido pelo Geral da Companhia de Jesus (HERCULANO, 1983, p. 168).

Paradoxalmente, Herculano afirma que o padre jesuíta foi um dos que sofreram um intenso desgaste, reconhecendo como injusto o ataque panfletário de Pombal. Conforme José Eduardo Franco e Bruno Reis, essa aparente contradição pode ser explicada pela “identificação com um gênio das letras perseguido, levando-o a ignorar a sua qualidade de jesuíta e a valorizar, ao invés, a sua grandeza literária” (FRANCO; REIS, 1997, p. 68).

João Francisco Lisboa, por maior oposição que faça à hagiografia de André de Barros, não incorpora a jesuitofobia como Pombal idealizou para Antônio Vieira. O historiador maranhense conviveu com Alexandre Herculano, com quem conversava sobre o trabalho historiográfico e a quem admirava pelo seu “talento, muito conforme a meu modo de pensar” (PEREGRINO JÚNIOR, 1948, p. 22). Tal proximidade nos sugere que o antijesuitismo português foi adaptado por Lisboa com certas ressalvas.

Defendemos a hipótese de que Lisboa não adotou o antijesuitismo de modo integral, como pode parecer à primeira vista. O historiador brasileiro tece ressalvas ao Marquês de Pombal, por meio da leitura que faz de Deduções Cronológicas e Analíticas, considerando que “seu espírito de difamação sistemática contra os jesuítas levava este escritor a excessos e aberrações incríveis, que quase atingem a mania e ao furor” (LISBOA, 1964, p. 148-149).

A passagem em que Lisboa critica as Deduções Cronológicas se refere à missão diplomática de Vieira em Roma com a finalidade de propor o casamento de D. Teodósio com D. Maria Teresa de Áustria, filha do rei espanhol, resultando em diversos inconvenientes. Em Deduções, foi construída a teoria de que a querela foi uma manobra de Vieira para enfraquecer o rei de Portugal, favorecendo o fortalecimento da Companhia de Jesus. Nesse caso, Lisboa apresenta suas considerações em relação à teoria do complô jesuítico, afirmando, inclusive, que as difamações beiravam a aberração.

Lisboa não chega a ilustrar Vieira como um profeta herético, assim como não reiterava a ideia pombalina de que as tramas diplomáticas do padre tinham o objetivo de iniciar um golpe político orquestrado pela Companhia de Jesus. Mais do que estabelecer uma distância com o antijesuitismo de Pombal, Lisboa tinha uma opinião coesa durante o texto biográfico de que a fidelidade de Vieira era para com “o patriotismo português, paixão dominante, que sempre ocupou o seu coração” (LISBOA, 1964, p. 9). Nessa linha argumentativa, Vieira se colocou acima até de sua própria ordem, afinal, as ambições do padre eram de natureza política: “em todo o curso da vida de Vieira sempre o acharemos mais português, que jesuíta, mais amigo da pátria, da corte, e dos grandes, que da sua ordem […] e antes como objeto e fim principal de seus desvelos” (LISBOA, 1964, p. 273).

Em torno da contradição

Em 1854, Dom Romualdo Antônio de Seixas, arcebispo da Bahia, foi encarregado pelo IHGB de provar a nacionalidade de Antônio Vieira, tema envolto em muita paixão. O arcebispo concluiu, por meio de uma pesquisa documental, que Antônio Vieira teria nascido na cidade de Lisboa, em 6 de fevereiro de 1608. Para isso, Seixas recorreu a importantes referências, tais como Rocha Pitta e André de Barros, além de notas contidas nas mais importantes enciclopédias e manuais biográficos da época, como a Biographie Universelle Ancienne et Moderne (1827), Nouveau Dictionnaire Historique et Critique de Jacques George Cheauffapiê (1756) e o Dictionnaire Historique de Abbé de Feller (1842). Todos os escritos referenciados pelo arcebispo são unânimes em cravar o nascimento de Vieira em 6 de fevereiro de 1608 na cidade de Lisboa.

No entanto, Romualdo Seixas destaca o orgulho que tem do jesuíta, indivíduo que, com o Brasil, possui uma relação de segundo nascimento, citando a carta que o padre escreveu ao Marquês de Minas e da qual surgiu a emblemática frase “que pelo segundo nascimento devia ao Brasil as obrigações de pátria”,9 citação reproduzida por Varnhagen em História Geral do Brasil (VARNHAGEN, 1877, p. 726). Somado a isso, alguns anos antes, em 1847, Varnhagen havia publicado o Ensaio Histórico sobre as Letras no Brasil. Nele, o historiador, em uma breve passagem, projeta sobre Vieira a figura de um grande literato que fez ecoar a imagem da obscura colônia na Europa (VARNHAGEN, 1877, p. 726). O historiador brasileiro entende Vieira como propulsor de uma atividade literária, estimulando, inclusive, o aparecimento de escritores como Eusébio de Matos e Antônio de Sá. Alguns dos sermões do padre são exemplos dessa eloquência admirável, objetos de comparação com Félix Lope de Vega y Carpio (1562-1635), um dos mais saudados dramaturgos de seu tempo.

Em linhas gerais, até meados do século XIX, a imagem de Vieira na historiografia brasileira esteve imbuída por um sentimento de nacionalidade. Por mais que fosse atestada sua nacionalidade portuguesa, a figura do padre servia como reafirmação de uma herança lusitana, elemento constitutivo do projeto nacional promovido pelo IHGB (GUIMARÃES, 1988, p. 6).

Tanto a obra de Lisboa quanto a de seus contemporâneos estiveram em articulação com a experiência do tempo moderno, fenômeno que se iniciou entre as décadas de 1820 e de 1830, gerando uma crise conceitual, responsável por reações colaterais diversas e ambíguas (ARAUJO, 2011, p. 184). Desse modo, apesar de serem operações modernas, as escritas de Lisboa e Varnhagen sobre Vieira fazem uso de racionalidades distintas. Segundo o biógrafo maranhense, não era possível considerar o jesuíta um exemplo de nacionalidade. Para demonstrar isso, seria necessário evidenciar a contradição elementar do padre: a incongruente relação entre política e religiosidade.

É importante destacarmos uma das razões que explica tal abordagem. Defendemos a hipótese de que o historiador projetou sobre Vieira a ideia de “indivíduo do Iluminismo”, concepção abstrata de indivíduo centrado, unificado e dotado de capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior (HALL, 2005, p. 13-15). Com isso, ao operar com noções estranhas à cultura ibérica do século XVII, o personagem biografado por Lisboa escapou às suas projeções de indivíduo e de civilidade.

Em Portugal, o tema da contradição de Vieira esteve articulado ao conceito de barroco. Segundo Paulo Fernando de Oliveira, as escritas de Almeida Garrett e de Pinheiro Chagas são exemplos do estado de ambivalência das narrativas em torno do jesuíta (OLIVEIRA, 1999).

Para João Adolfo Hansen, o conceito de barroco foi inventado entre os séculos XVIII e XIX, momento em que as escritas e produções artísticas setecentistas recebiam duras críticas, em linhas gerais, associadas a ideia de imperfeição. Disso se desdobraram as seguintes generalidades: pictórico, fusionismo, contraste, desproporção, deformação, acúmulo, excesso, entre outras. Como salienta Hansen, nas escritas oitocentistas, a classificação de um dado tempo como barroco segue “o pressuposto teleológico de que as mudanças estéticas se alinham como superações que expressam o nacional, ‘barroco’ é etapa” (HANSEN, 2003, p. 14-15). Nesse sentido, a designação de Vieira como um autor barroco obedecia a uma lógica que fizesse sentido para a teleologia moderna, que pressupõe o barroco como um estágio de evolução. Ao operar com essa matriz de conceituação barroca, toda a complexidade histórica, que envolvia as relações do jesuíta seiscentista, é reduzida à ideia de contradição e de irracionalidade. Segundo Pécora, a historiografia e a literatura moderna operaram com conceitos de política e de religiosidade estranhos aos praticados no século XVII (PÉCORA, 2008, p. 33-60).

Curiosamente, as escritas de João Francisco Lisboa não se referiam ao jesuíta como um autor barroco, o que inviabiliza um estudo mais aprofundado sobre a questão. Mesmo que não haja o uso da terminologia, é comum ao historiador brasileiro o fato de enxergar Vieira como um indivíduo contraditório. Logo, a lógica da nossa argumentação se mantém ao apontar uma condição presente na cultura moderna: a dissociação histórica entre a política e a religiosidade. Daí surgia o núcleo de sua crítica: considerar Vieira essencialmente um indivíduo político; por esse raciocínio, uma prática incompatível com sua vida eclesiástica.

Lisboa, por meio de seu pragmatismo, compreendia que a política era movida por interesses e por razões práticas (SOARES, 2008, p. 212). Desse modo, Vieira deveria ser considerado um grande orador, característica de um político nato. Talvez essa seja a maior qualidade do padre que se evidencie no texto de Lisboa: a capacidade que o jesuíta possuía de articulação e de mobilização pela palavra. Para Lisboa, os discursos proferidos por Vieira eram parte de sua ambição por notoriedade e por poder:

[…] já naquele tempo, afectava derramava sua muita erudição, em frequentes citações, exemplos e digressões, que sem a ornar ou iluminar, serviam só de empecer e enfraquecer o ardor impetuoso desta magnífica oração. […] A sede de glória e de poder que o abrasava, já se não podia aplacar na pequena metrópole de uma colônia; e a imagem grandiosa de Lisboa, sua primeira pátria, e a dos louros que nela colhiam tantos rivais de eloquência, devia aparecer-lhe incessante, e perturbar-lhe o sono. (LISBOA, 1964, p. 18-19)

Como podemos observar, todos os sermões pregados na colônia, com os quais faziam crescer sua reputação, eram partes de um plano: projetar sua carreira na Europa. O instrumento discursivo da oratória é compreendido como recurso de manipulação, falseia interesses e ambições.

A ideia de que a retórica é um exercício de dissimulação da verdade é um fenômeno amplamente difundido com a modernidade. Trata-se, para Ricoeur, de uma dissociação formulada no século XIX entre filosofia e retórica, cuja premissa partia da ideia de que a retórica era instrumento de manipulação política, por isso, um campo de conhecimento fútil. A concepção transformada, que se difundiu no século XIX, responsável por afastar a retórica da filosofia, é nada mais que uma simplificação da retórica clássica, que pressupunha não só a teoria da eloquência, mas também a teoria da argumentação e a da composição do discurso (RICOEUR, 2000, p.17). Desse modo, o exercício retórico da oratória passou a ser considerado como uma prática de falseamento da realidade, recurso comum aos homens da política, entendimento bastante difundido na cultura intelectual oitocentista (RICOEUR, 2000, p. 53-60).

Para o historiador maranhense, Vieira, desde muito cedo, já demonstrava sua obstinação e suas qualidades oratórias, afinal, quando garoto mostrava-se “assíduo e fervoroso nos estudos, e lidava deveras por avantajar-se aos demais seus condiscípulos” (LISBOA, 1964, p. 5). Com isso, Lisboa parte de um ponto de vista prospectivo, articulando a aptidão retórica à obstinação do jovem Vieira.

Para compor o perfil do padre inaciano, a característica mais ressaltada é a da ambição: “O sr. António Vieira era em verdade um grande ambicioso, que para fazer o seu caminho, nem sempre olhava ao meio: mas com sê-lo, não era homem para postergar abertamente as leis da honra, e todos os deveres do seu estado” (LISBOA, 1964, p. 161). Nesse trecho, Lisboa atribui a contradição em Vieira, apontando que sua ambição política convivia ao lado do seu dever e decoro. Produto de uma falsa posição, a condição social do padre gerou as excitações de um homem fadado a uma trama ardilosa e às tergiversações que se impunham entre o aparente religioso e o político frustrado (LISBOA, 1964, p. 161).

O destaque e as conquistas do padre, em grande medida, se devem à sua capacidade de “amoldar-se ao gosto e a necessidade do tempo” (LISBOA, 1964, p. 22-23). O biógrafo segue afirmando que a receptividade alcançada com o rei D. João IV, na restauração política portuguesa da década de 1640, deve-se ao “desejo antecipado de agradar que já o padre trazia em si, e que o tornaria muito esmerado no emprego dos recursos que ostentava”, além da “sua conversação fácil, amena, insinuante e variável” (LISBOA, 1964, p. 22).

Com isso, o historiador maranhense perfila Vieira como um político dissimulado. Tratava-se, portanto, de um improvisado diplomata:

É verdade que arrebatado pelo ardor de seu caráter, e pelos hábitos irresistíveis da verdadeira profissão, o improvisado diplomata deixava entrever a roupeta mal dissimulada, e cedendo lugar ao jesuíta, e ao teólogo, travava nas mesmas largas e ardentes controversas com hereges e judeus (LISBOA, 1964, p. 123).

Para Lisboa, as atividades de natureza política eram “hábitos irresistíveis”. Para construir tal retrato, uma compreensão de política é projetada sobre Vieira - noção iluminista que entende como incongruente a práxis política e a atividade religiosa. Com isso, podemos inferir com tais formulações a tentativa de Lisboa em descortinar a face de um emblemático personagem histórico.

Mais do que um simples jesuíta, Vieira, no olhar de João Francisco Lisboa, era o maior expoente da ordem, o jesuíta que modelou as práticas históricas de sua instituição. Ao mesmo tempo que é feita tal asseveração, Lisboa afirma que o vínculo de Vieira com a Companhia se deve, em grande medida, à influência e ao poder que ela poderia eventualmente lhe oferecer (LISBOA, 1964, p. 160). Em outros termos, a devoção que, em tantos trechos, é ironizada por Lisboa, é senão uma prática vazia e dissimulada do jesuíta. Trata-se de um homem que, além de tudo, é apaixonado por si - “de todas as paixões do P. António Vieira a mais forte e preponderante, a que talvez absorvia todas as outras, era a de sua personalidade, ou amor e admiração exagerados de si mesmo” (LISBOA, 1964, p. 192-193).

A ambiguidade do padre reside em sua dissimulação, um jogo de personalidades que obscurece sua verdadeira face. Ao que parece, o propósito de Lisboa era esvaziar da Companhia de Jesus todo o sentido religioso, expondo um dos seus baluartes. Afinal, o padre era membro “de uma das ordens regulares mais ricas e poderosas, em um tempo em que o clero sustentava sem rebuço que a igreja devia ao estado as suas orações, não os seus bens” (LISBOA, 1964, p. 34).

Lisboa não projetou sobre o padre jesuíta um modelo exemplar de nacionalidade, quer fosse português (mesmo reconhecendo o patriotismo lusitano), quer brasileiro. Por outro lado, o Vieira biografado também está no âmbito da afirmação da identidade nacional, na medida em que as condições de existência de um “traidor da pátria” acontecem no próprio funcionamento do nacionalismo. Ao mesmo tempo, recusou alguns dos exageros pombalinos. Talvez um dos grandes propósitos do historiador fosse revelar a contradição elementar do padre: um político vestido de religioso. A biografia de João Francisco Lisboa é, nesses termos, uma denúncia histórica, a revelação de uma traição nacional.

Considerações finais

João Francisco Lisboa, ao fazer uso da linguagem biográfica, procurou dar unidade de sentido à vida de um personagem histórico, uma narrativa que pudesse ser compreendida prospectivamente. A ilusão biográfica, uma prática discursiva moderna, foi incorporada ao projeto identitário do IHGB. Tratava-se de uma escrita sobre a nação. Nesse cenário, há de se observar a pluralidade de abordagens possíveis. Assim, devemos compreender a escrita de Lisboa como um discurso que procura tensionar disputas, marcado por um tom combativo. A ironia e o ceticismo foram elementos constituintes de sua abordagem historiográfica.

Em nosso segundo tópico, procuramos diferenciar as representações sobre o padre no texto biográfico e em Apontamentos. A diferença entre elas demarca, inclusive, uma mudança na postura historiográfica de Lisboa. Por mais que o tom combativo permaneça, o Vieira que surge na biografia deve ser pensado em uma teia de relações e de interlocuções distintas. A biografia já não está inserida nos embates políticos maranhenses que Lisboa vivenciou com muito vigor. O jesuíta foi articulado a uma narrativa, cuja preocupação era repensar um emblemático personagem da história luso-brasileira.

Para isso, Lisboa tomou o antijesuitismo como importante ponte de diálogo, contrapondo-se a autores como André de Barros, um dos mais conhecidos escritores sobre Vieira. Resultado de iniciativas laicizantes e iluministas, a jesuitofobia circulou na historiografia brasileira e portuguesa, partindo de pressupostos modernos que defendiam a segmentação entre política e religiosidade. Apesar desse elemento comum, as abordagens antijesuíticas contam com diversas reatualizações. Nesse espectro de possibilidades, Lisboa fez certas aproximações e distanciamentos com a teoria do complô jesuítico, rejeitando a ideia pombalina de um Vieira herético, por exemplo.

Entendemos, portanto, que o antijesuitismo de Lisboa deve ser matizado junto às suas experiências com a cultura histórica e política oitocentista. A proposta da biografia não foi tão somente depreciar a imagem do jesuíta seiscentista. Para todos os efeitos, o personagem narrado na biografia é um indivíduo, cuja ambição é de natureza política. O ceticismo de Lisboa, advindo de suas desilusões com a política, resvalou sobre Vieira. O historiador entendia que a oratória sacra, assim como toda prática eclesiástica do padre, era via para uma carreira política. Operando de forma avessa, a exemplaridade de Vieira possuía valor de negação. No âmbito das indagações nacionais, o personagem biografado contrastava com o elaborado por Varnhagen, um brasileiro por devoção. Para Lisboa, o compromisso do padre jesuíta não era com o Brasil, nem mesmo com sua ordem religiosa, era consigo, um indivíduo apaixonado por si.

AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente ao professor Dr. Francisco Régis Lopes Ramos e à professora Drª Maria Emília Monteiro Porto por todas as orientações e sugestões, sem as quais não seria possível a pesquisa deste artigo. Os possíveis equívocos são de minha total responsabilidade.

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Notas

1 O Jornal de Timon foi um periódico escrito unicamente por Lisboa a partir de 1852. O então jornalista se valia do pseudônimo Timon como recurso de autoria. (BOURDIEU, 2007a, p. 18) Com isso, as tensões são resolvidas em desfechos narrativos, responsáveis por dar unicidade às contradições sob uma perspectiva fatídica. Se pensarmos que a biografia cria uma ilusão de unicidade, entenderemos que o Vieira biografado é um personagem cujo sentido pode ser extraído e apresentado de forma linear, absoluta e lógica - “assim ia crescendo de dia para dia, no meio destes esplêndidos triunfos oratórios, a reputação do P. Antônio Vieira, e com ela, e na mesma proporção, devia medrar a sua inata ambição” (LISBOA, 1964, p. 18). Com essas palavras, o historiador projeta a linha narrativa do seu biografado que, para todos os efeitos, é movida pela “inata ambição”.
2 François Hartog entende que o uso da exempla possui função argumentativa, é utilizada como instrumento de persuasão. Foi por meio do relato dos homens notáveis, célebres, que se constituíram os modelos de imitação (HARTOG, 2013).
3 Até 1849, a seção manteve-se fecunda com 72 notícias biográficas. A partir de 1850 até 1860, é possível notar 16 publicações. Entre 1861-70, o número sobe para 26. Na década de 1870, 27. A partir de 1883, o declínio tornou-se mais evidente.
4 Entre 1852 e 1853, foram publicados os primeiros dez números do jornal. Os dois últimos números foram publicados em 1858 e referem-se à segunda parte dos Apontamentos.
5 Mendes queria inocentar o padre Anchieta pela morte de João Bolés. Procurando redefinir a versão comum do fato, o senador recorre à obra Informação do Brasil e de suas capitanias, esclarecendo que o calvinista, após ser feito prisioneiro, foi levado à Portugal e à Índia.
6 Maquinações de antónio vieira jesuíta. Biblioteca nacional de lisboa, códices ms. N. 2673-2679.
7 Ideia defendida no primeiro tomo, que recebeu o título de Contém as intrigas praticadas por ele no Reinado do Senhor Rei Dom João IV para surpreender a sua real confiança.
8 Tese defendida no quinto tomo de Maquinações de Antônio Vieira, tomo que recebeu o título de Contém duas Cartas sobre as Missões, ou antes conquistas do Rio dos Paros, do Maranhão etc.
9 Ver BREVE..., 1856, especialmente p. 25.

Notas

FINANCIAMENTO

Não se aplica.

Autor notes

EDITORES RESPONSÁVEIS

Temístocles Cezar - Editor-chefe

Flávia Varella - Editora-chefe

Declaração de interesses

CONFLITO DE INTERESSES

Nenhum conflito de interesse declarado.

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