RESUMO: A controvérsia teórica que opõe continuístas a descontinuístas ocupa um lugar privilegiado dentro dos debates relacionados à História da Historiografia da Ciência. Mais do que uma polêmica contemporânea, essa disputa tem idade considerável; diferentes pensadores em distintas épocas dedicaram reflexões ao assunto, mobilizando categorias analíticas, tais como “ciência moderna”, a partir de seus respectivos contextos. Este artigo tem por objetivo analisar a historicidade dessa contenda, examinando a dimensão histórica de alguns dos elementos argumentativos que compõem ambas as tradições. Para tanto, selecionamos alguns pensadores que se debruçam sobre o tema e alinhamos nossa análise à abordagem histórico-conceitual. Concluímos que, embora os contornos dessa problemática teórica tenham se tornado mais visíveis no século XX, a tensão continuidade/descontinuidade pode ser vista como um desdobramento de concepções históricas muito mais antigas.
PALAVRAS-CHAVE: DescontinuidadeDescontinuidade,Teoria e História da HistoriografiaTeoria e História da Historiografia,História da CiênciaHistória da Ciência.
ABSTRACT: The theoretical controversy opposing the continuist to the discontinuist perspective occupies a privileged place in debates related to the History of the Historiography of Science. Although considered a contemporary controversy, this is a long-standing dispute. Across history, different thinkers reflected on this subject, mobilizing analytical categories proper to their respective contexts, such as “modern science”. This article aims to analyze the historicity of this dispute, seeking to measure the historical dimension of some argumentative elements that integrate both traditions. To this end, the text dwells on the historical-conceptual approach, addressing some thinkers involved in the debate. The analysis shows that, despite having become more evident in the 20th century, such a dispute between the continuist and discontinuist traditions may be understood as an unfolding of a much older historical debate.
KEYWORDS: Discontinuity, Theory and History of Historiography, History of Science.
Artigo Original
Continuidade e descontinuidade em História da Ciência: reflexões sobre a dimensão histórica do debate
Continuity and discontinuity in the History of Science: reflections on the historical dimension of the debate
Recepção: 23 Novembro 2020
Revised document received: 10 Junho 2021
Aprovação: 30 Junho 2021
A ciência moderna foi inventada entre 1572, quando Tycho Brahe viu uma nova, ou nova estrela, e 1704, quando Newton publicou sua Óptica (WOOTTON, 2015, p. 1, tradução nossa).
[…] a Idade Média lançou as bases para a maior conquista da civilização ocidental: a ciência moderna. É simplesmente falso dizer que não havia ciência antes do ‘Renascimento’ (HANNAM, 2011, p. xviii, tradução nossa).
As reflexões que nos servem de epígrafe não poderiam ser mais contraditórias. A primeira é inequívoca: mais do que data de nascimento, a ciência1 moderna tem “inventores” claros e conhecidos. Por outro lado, a segunda, tão assertiva quanto, diz exatamente o contrário: negar a ciência em períodos anteriores ao Renascimento seria um equívoco. Vale dizer que ambos os posicionamentos pertencem a historiadores da ciência contemporâneos, David Wootton e James Hannam, que, inclusive, estão ligados à mesma matriz acadêmica; ambos percorreram um caminho historiográfico associado ao cenário inglês, particularmente à formação que receberam na Universidade de Cambridge.
Como historiadores com trajetórias semelhantes, que atuam em um universo acadêmico tão próximo, poderiam apresentar posicionamentos tão díspares? Isso ocorre porque tanto Wootton quanto Hannam estão inseridos em um debate muito mais amplo e antigo, relacionado à História da Historiografia da Ciência: a controvérsia sobre o nascimento da ciência moderna e a Revolução Científica. Esse é um debate que opõe continuístas a descontinuístas. O primeiro grupo, grosso modo, sustenta que a ciência moderna deve ser vista como um desdobramento do pensamento científico desenvolvido no período medieval. Seriam “[…] os estudiosos que negam a existência do fenômeno revolucionário único na história do pensamento científico [ou que minimizam as rupturas advindas da Revolução Científica], postulando em seu lugar uma evolução […] na qual o conhecimento está gradualmente sendo incorporado” (PÉREZ TAMAYO, 2012, p. 36, tradução nossa).
Já os descontinuístas2 defendem que a emergência do pensamento científico moderno significou uma ruptura em relação ao legado escolástico, e identificam a Revolução Científica como um marcador temporal dessa transformação. Esses pensadores “[…] compartilham a visão de um processo evolutivo interrompido a partir de uma profunda mudança nas disciplinas científicas [a Revolução Científica], que as modificou de forma tão extensiva que muitos consideram o resultado como o início da ciência moderna” (PÉREZ TAMAYO, 2012, p. 36, tradução nossa).
Ainda que a controvérsia historiográfica3 ora em evidência esteja entre os principais debates contemporâneos da área (MAGALHÃES, 2015), essa discussão apresenta uma idade bastante considerável.4 Mesmo que, formalmente, o debate entre continuístas e descontinuístas tenha se institucionalizado no século XX - quando estudiosos descontinuístas, tais como Alexandre Koyré (1986), Thomas Kuhn (2017), Rupert Hall (1954) e outros, opuseram-se às diretrizes continuístas que caracterizaram o debate na primeira metade do século XX, tais como as apresentadas por Pierre Duhem (1913), George Sarton (1988), Marshall Clagett (1959) etc. -, alguns dos elementos argumentativos que compõem ambos os posicionamentos remontam a épocas bastante longínquas.
Buscaremos, neste artigo, refletir sobre a historicidade dessa controvérsia, lançando luz sobre a influência que determinados processos históricos tiveram na formação das duas correntes. Tendo em vista que já existem, na academia nacional, excelentes trabalhos que abordam, mesmo que indiretamente, esse debate em meados do século XX (OLIVEIRA, 2012; ALFONSO-GOLDFARB; BELTRAN, 2004; MAIA, 2013; MARICONDA, 1992; CONDÉ, 2017; MAGALHÃES, 2015), elegemos o período entre o Renascimento Italiano e o início do século XX como recorte de nossa digressão. Assim, diante de um escopo temporal amplo, privilegiaremos uma análise históricoconceitual - a exemplo de Debus (2004), Beltrán (1995), Grant (2004), Kragh (2001), Lindberg (1990), Cohen (1994), Condé (2017), Mariconda (1992), Oliveira (2012), Shapin (1996), entre outros historiadores -, buscando identificar elementos que compõem as duas abordagens a partir da eleição de alguns pensadores da época,5 alinhando, assim, nossas diretrizes teóricas aos horizontes investigativos da História da Historiografia da Ciência.
O debate relacionado à controvérsia continuidade versus descontinuidade em História da Ciência está diretamente ligado às reflexões acerca do surgimento da ciência moderna. Então, antes de prosseguirmos, precisamos elucidar um primeiro questionamento: se é um debate essencialmente relacionado à temporalidade, qual seria o período em questão?
Segundo Beltrán (1995), esse é um assunto ligado ao que hoje concebemos por Revolução Científica. Essa periodização histórica desempenha um papel essencial nesse debate, já que materializa os anseios dos estudiosos preocupados em sinalizar a ruptura:
[A expressão Revolução Científica] não expressa [o] sentido de continuidade e permanência; em vez disso, refere-se a uma quebra de continuidade, o estabelecimento de uma nova ordem que rompe seus vínculos com o passado, um claro divisor de águas entre o antigo e conhecido e o novo e diferente (COHEN, 2002, p. 23, tradução nossa).
A gênese da querela entre continuístas e descontinuístas está diretamente associada aos debates relacionados a essa Revolução. Segundo Lindberg, o conceito “Revolução Científica”, em seu sentido mais puro - ou seja, de que “os séculos XVI e XVII viram uma transformação radical das ideias científicas, tão decisiva e influente que constituiu um ponto de virada na história da civilização” (1990, p. 1, tradução nossa) -, deve ser visto como o desdobramento de reflexões muito antigas, vindas do humanismo italiano dos séculos XV e XVI, e está ligado à autopercepção dos europeus em relação ao seu próprio passado.6 A ideia de Revolução Científica carregaria, assim, elementos que remontariam às formas de os humanistas conceberem sua própria história.
Os pensadores do Renascimento Italiano buscavam uma renovatio artium et litterarum, uma renovação nas artes e letras, que teria como principal alicerce a recuperação da fortuna legada pelas tradições clássicas grega e romana. Como forma de estabelecer uma identidade própria, passaram a atacar o cenário intelectual na forma como se encontrava na época. Isso fica evidente em Francesco Petrarca (1304-1374):
Associo avidamente os nossos ancestrais da única maneira que posso, e esqueço de bom grado aqueles entre os quais uma estrela do mal decreta que devo viver. E eu mobilizo todos os poderes da minha mente para fugir dos modernos e buscar os antigos, porque a visão de meus contemporâneos me ofende profundamente, enquanto a lembrança das ações nobres e nomes gloriosos do passado me enche de […] incrível deleite (PETRARCA apudLINDBERG, 1990, p. 2, tradução nossa).
É nesse contexto que historiadores humanistas, tais como o florentino Leonardo Bruni (1369-1444) e Flavio Biondo (1392-1463), idealizam a divisão da História em três grandes eras. Tal periodização concebe dois momentos isolados de opulência intelectual: o primeiro, formado pela Antiguidade Clássica grega e romana, e o segundo, protagonizado pelos próprios humanistas. “Entre os dois pontos altos, segundo os humanistas, está um período ‘mediano’ de sombra e estagnação, que é assim chamado de ‘Idade Média’” (PRINCIPE, 2011, p. 9, tradução nossa).
Surgia, portanto, o mito da “Idade das Trevas”, pelo qual o período depois da queda do Império Romano - a conquista da Gália por Clóvis - é sucedido por um milênio de estagnação cultural.7 “Admirador dos clássicos, o italiano Francesco Petrarca (1304-1374) já se referira ao período anterior como de tenebrae: nascia o mito historiográfico da Idade das Trevas” (FRANCO JR., 2006, p. 11). Segundo Principe (2011), a Idade Média seria a “maior invenção do Renascimento”, tendo em vista que, até hoje, utilizamos uma nomenclatura pejorativa criada no humanismo italiano do século XV para nos referir ao período compreendido entre os anos 500 e 1300 d. C.
É interessante notar que a terminologia inventada por Petrarca e outros humanistas italianos no século XIV - medium tempus ou media tempora - surtiria efeito na forma como os eruditos alemães e franceses do século XVII conceberam a marcação temporal da civilização ocidental (AMALVI, 2017). Christoph Cellarius (1638-1707) - nome latinizado de Christoph Keller -, professor na Universidade de Halle, publicaria, no último quarto do século XVII, três manuais escolares para cada um dos tempos históricos idealizados séculos antes pelos humanistas: um referente aos tempos “antigos”, outro aos “modernos” e, entre eles, o dedicado à História Medieval, intitulado Historia Medii Aevi a temporibus Constantini Magni ad Constantinopolim a Turcis captam deducta.8 As publicações de Cellarius não apenas consolidariam a ideia de que o período medieval foi marcado pela esterilidade intelectual como também ampliariam a disseminação do conceito (NASCIMENTO, 2004).9
Mas em que essa representação da Idade das Trevas influenciaria no debate sobre continuidade e ruptura? No final do século XV, o processo de retorno às fontes antigas possibilitou o acesso dos eruditos às tradições filosóficas ligadas ao platonismo. A redescoberta do legado platônico acabou por influenciar boa parte dos pensadores dos séculos XV e XVI, que passaram a criticar o aristotelismo medieval. Os humanistas renascentistas começam, então, a afirmar o neoplatonismo por meio de ataques à Lógica e à Teologia Escolásticas - entre eles, Paracelso (1493-1541), com sua “nova” medicina; Francesco Patrizi (1529-1597), que fez apologia à filosofia platônica em A Nova Filosofia do Universo (1591); e Peter Ramus (1515-1572), severo crítico da lógica aristotélica (LINDBERG, 1990). Um exemplo dessa hostilidade dos humanistas em relação aos herdeiros da Escolástica pode ser visto em Lorenzo Valla (1407-1457):
É embaraçoso relatar os ritos de iniciação de seus discípulos. Eles juram nunca contradizer Aristóteles - um grupo supersticioso e tolo, que faz um desserviço a si próprio. Eles se privam de uma oportunidade de investigar a verdade. […] Esses peripatéticos modernos são intoleráveis. Eles negam a uma pessoa que não adere a nenhuma escola o direito de discordar de Aristóteles (VALLA apud RUMMEL, 1998, p. 160, tradução nossa).
Assim, há, nesse início do humanismo italiano, os primeiros sinais do nascimento de uma tradição antimedievalista que será retomada por parte dos descontinuístas nos séculos seguintes, principalmente por meio de ataques ao pensamento peripatético. O pensamento lógico aristotélico, base da Filosofia Natural medieval, torna-se um dos principais alvos de críticas. No curso do século XVI, muitos eruditos passaram a criticar a dimensão excessivamente analítica que a lógica silogística assumiu nos debates teológicos. Erasmo de Roterdã (1466-1536), em seu Elogio da Loucura (1511), critica a forma como os teólogos gastavam demasiado tempo em questões puramente lógicas e deixavam a própria exegese bíblica em segundo plano. Juan Luis Vives (1493-1540), constatando a falta de inteligibilidade da lógica praticada pelos teólogos, acusou seus contemporâneos de “pseudodialéticos”. Até mesmo Martinho Lutero, em parte de suas 97 teses que compõem o Debate sobre a Teologia Escolástica (1517), deixa clara sua oposição aos modelos lógicos então vigentes e seu sentimento antiescolástico. Isso pode ser visto nas teses 47 - “Nenhuma forma silogística subsiste em questões divinas” - e 50 - “Em suma, todo o Aristóteles está para a teologia como as trevas estão para a luz. Contra os escolásticos” (LUTERO, 2004, p. 18).
Mas a divisão da História Ocidental em formato tripartite desenvolvida pelos humanistas teria alguma influência no debate continuísmo versus descontinuísmo? No curso do século XVII, o desenvolvimento do pensamento científico começa a ser avaliado a partir das três divisões históricas idealizadas pelos humanistas. Os novos filósofos naturais passam a considerar as conquistas científicas como um desdobramento do Renascimento ocidental, menosprezando tanto a contribuição do período medieval europeu quanto o florescimento científico de outras civilizações. Isso pode ser observado em Francis Bacon (1561-1626), que seria considerado, séculos depois, como um dos protagonistas da Revolução Científica: “Quase todas as ciências que temos vieram dos gregos. Adições de escritores romanos, árabes ou outros mais recentes são poucas e sem grande significância” (BACON, 2000, p. 58, tradução nossa).
Assim, o mito relacionado à “Idade das Trevas” acaba por influenciar a própria forma de se conceber o desenvolvimento científico. De acordo com Grant (2004), Galileu Galilei (1564-1642) teria sido um dos principais responsáveis por moldar a forma de julgamento crítico ao pensamento escolástico pelos séculos que se seguiram. O principal descontentamento de Galileu se refere ao fato de os aristotélicos de seu tempo não aceitarem como evidências científicas válidas as observações do seu recém-descoberto telescópio. Em seu Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, lançado em 1632, Galileu, assumindo a forma do personagem escolástico Simplício, demonstra a suposta incredulidade dos peripatéticos em relação às novas formas científicas:
Para dizer a verdade, não tive a curiosidade de ler esses livros, nem prestei até aqui muita fé aos óculos recentemente introduzidos [dispositivos ópticos, tais como o telescópio], mas antes, seguindo as pegadas dos outros filósofos peripatéticos, meus companheiros, acreditei serem falácias e enganos dos cristais [desses dispositivos] aquilo que outros admiraram como criações estupendas (GALILEI, 2004, p. 421).
Supostamente presos à ortodoxia da cosmologia aristotélica, os peripatéticos contemporâneos a Galileu teriam se mostrado céticos em relação aos novos métodos científicos. Entretanto, as críticas de Galileu que se referiam aos escolásticos de seu tempo foram estendidas por pensadores posteriores a toda tradição da Escolástica, inclusive à da Baixa Idade Média, o que contribuiu significativamente para o mito de esterilidade científico-intelectual do Medievo (GRANT, 2004). Mais do que herdeiros dos conhecimentos científicos clássicos, parte dos filósofos naturais do século XVII acreditava que estavam criando formas inéditas de investigação da natureza. Segundo Cohen (2002), muitos desses cientistas - tais como Gilbert, Kepler, Galileu, Descartes, Harvey e Newton - expressavam o sentimento de novidade no título de suas obras. Temos, por exemplo, o uso da palavra “novo” em Nova Astronomia (1609), de Johannes Kepler (1571-1630), em Novum Organum (1620), de Bacon, e no Duas Novas Ciências (1638), de Galileu.
Entre as muitas críticas que Bacon direcionou ao suposto estado desolador da ciência entre a queda de Roma e o Renascimento - a dedicação dos eruditos à Teologia, a perda do contato entre as ciências específicas e suas raízes teóricas, a superstição, o excesso de zelo religioso, vaidade, arrogância etc. -, uma se destacava: a falta de um método científico investigativo. Pela sugestão de seu método experimental, Bacon defende que a sociedade ocidental estaria entrando em uma nova fase de fertilidade intelectual. Tanto o método quanto o otimismo baconiano teriam exercido grande influência na Royal Society of London (LINDBERG, 1990).
Assim, muitos pensadores do século XVII mostraram-se predispostos a sinalizar uma separação entre o mundo medieval e esse novo mundo “moderno”. É interessante observar, neste momento, que os elementos que compõem a argumentação descontinuísta não apenas possuem raízes bastante antigas como também se fizeram hegemônicos desde então: “As teses rupturistas, obviamente com certas diferenças, têm sido dominantes desde o século XVII, pelo menos. Como se sabe, o Renascimento batizou-se para destacar a descontinuidade, sua ruptura com a Idade Média” (BELTRÁN, 1995, p. 28, tradução nossa).
Durante o século XVIII, os modelos teológicos de explicação de mundo, associados a antigas tradições intelectuais medievais, perderem cada vez mais espaço entre os eruditos. Em contrapartida, a ascensão dos ideais iluministas acompanhou o surgimento e a expansão da ideia de progresso da humanidade. É nesse cenário que pensadores da magnitude de François Voltaire (1694-1778) realizam reflexões acerca do desenvolvimento do espírito humano e de como o Iluminismo estava possibilitando uma compreensão do mundo nunca antes vista. Na construção narrativa da autodeclarada “Idade das Luzes”, a Idade Média foi, novamente, representada de maneira pejorativa. Há um esforço entre os iluministas em manter a divisão tripartite da História, garantindo, inclusive, a perpetuação do desprezo pelo período medieval:
O século XVIII assume e aperfeiçoa - com as principais línguas europeias substituindo o latim - essa divisão ternária da história (Antiguidade, Idade Média, tempos modernos) para melhor celebrar, como faz Voltaire nos Ensaios sobre os costumes (1756), a vitória das Luzes sobre o obscurantismo clerical e o triunfo de uma civilização refinada sobre a grosseria e a barbárie desses longínquos séculos de ferro (AMALVI, 2017, p. 600).
Dentro da narrativa de progresso infinito de Voltaire, as invasões bárbaras teriam sido responsáveis pela degeneração do espírito humano. A destruição causada pela queda de Roma teria dado início a um período de obscurantismo: “Naquela época, a mente humana era possuída por uma mistura caprichosa de astúcia e simplicidade, brutalidade e artifício, que era uma forte característica da deterioração e degeneração generalizadas” (VOLTAIRE, 1778, p. 82, tradução nossa). A mudança viria apenas na Itália do começo do século XIV e na ruptura com o escolasticismo - este, segundo o iluminista francês, tão prejudicial quanto os bárbaros. Voltaire sustenta que, com os desdobramentos advindos do Renascimento, mentes científicas brilhantes, tais como as de Copérnico e Galileu, puderam desabrochar, reinventando os “sistemas do universo” até então vigentes e inaugurando um novo estado da Filosofia a partir do século XVI e XVII, argumento bastante similar ao que descontinuístas do século XX - como Alexandre Koyré e Thomas Kuhn - utilizariam para desenvolver a narrativa da Revolução Científica.
A ideia de progressão do espírito humano também contagia a produção do Marquês de Condorcet (1743-1794). Este sustentava que o avanço do espírito humano estava na passagem do barbarismo e superstição para o estado da razão e do Iluminismo. Condorcet admirava os atomistas e pitagóricos, mas acreditava que Aristóteles teria desfigurado a Física com os seus princípios hipotéticos. Além disso, em sua postura notoriamente anticlerical, chegou a defender que o triunfo da Cristandade marcou a decadência da Filosofia e da Ciência. Segundo sua perspectiva, o crescimento do poder sacerdotal deu início a muitos absurdos:
[…] monges ora inventando antigos milagres, ora fabricando novos, e alimentando com fábulas e prodígios a ignorante estupidez do povo, que eles enganavam para despojá-lo; doutores empregando a sutileza de sua imaginação para enriquecer a crença do povo com algum absurdo novo, e superar, de alguma maneira, aqueles que lhes tinham sido transmitidos (CONDORCET, 1993, p. 95).
A própria Escolástica é vista, por Condorcet, como um empecilho para o desenvolvimento científico: “Esse mesmo método [escolástico] só podia retardar, nas escolas, o progresso das ciências naturais” (CONDORCET, 1993, p. 106). É nesse contexto que o filósofo francês destaca uma mudança de postura intelectual a partir da atuação de três cientistas: Francis Bacon, com o desenvolvimento do método científico e pela influência que exerceu na sociedade científica inglesa; Galileu, que mostrou como a natureza pode ser explorada sem a influência de superstições; e Descartes, que desenvolveu formas “efetivas” de se reconhecer a “verdade”.10
Na narrativa de Condorcet, o progresso científico teria um papel central na evolução do espírito humano. Segundo Lindberg:
[Condorcet] estava certo de que o progresso científico alcançado até agora era uma posse permanente da raça humana, devido ao estabelecimento de um método científico adequado, à aplicação bem-sucedida de teorias científicas a necessidades práticas, ao crescimento de uma comunidade científica, o desenvolvimento de conexões adequadas entre as ciências e, sobretudo, à existência de livros impressos (LINDBERG, 1990, p. 8, tradução nossa).
Podemos observar, até aqui, similaridades entre a forma com a qual os humanistas do Renascimento italiano do século XV e iluministas do século XVIII analisaram o curso do desenvolvimento científico-intelectual do Ocidente. Entre essas semelhanças, temos: a divisão tripartite da História pelos períodos antigo, medieval e moderno; a ideia de que o período medieval obscureceu as conquistas da Antiguidade; a concepção de que o Renascimento italiano rompeu com o obscurantismo medieval; e a defesa de que filósofos naturais dos séculos XVI e XVII, tais como Copérnico, Bacon, Galileu e Descartes, reavivaram o pensamento científico ocidental. Em praticamente quatro séculos esse pensamento renascentista prosperou de maneira hegemônica.
É importante ressaltar que, durante o século XVIII, o sentimento anticlerical foi crescendo entre os intelectuais. Como a imagem da Idade Média estava firmemente associada à Escolástica e à Teologia, os filósofos naturais medievais permaneceram desempenhando um papel secundário nos debates filosóficos da época. Essa construção simbólica, que enfatiza os cientistas modernos do século XVI e XVII, constituiria, séculos mais tarde, parte dos argumentos descontinuístas que dão sustentação à Revolução Científica. Mas como essas representações se desdobrariam no século XIX?
O início do século XIX foi marcado pela manutenção de duas ideias dos séculos anteriores: a divisão tripartite da História e a concepção de que o século XVII testemunhou uma mudança permanente por meio dos novos métodos científicos desenvolvidos por Bacon e Galileu. No desenrolar do século XIX, a produção intelectual procurou legitimar a ciência como um instrumento social e intelectual na busca pelo permanente progresso. Isso pode ser verificado em autores da época, tais como John Herschel (1792-1871), David Brewster (1781-1868), Richard Jones (1790-1855) e William Whewell (1794-1866), que produziram trabalhos voltados ao enaltecimento dos cientistas dos séculos XVI e XVII, evidenciando uma notória inclinação para a história triunfalista.
Podemos verificar esse tipo de representação observando, por exemplo, a forma apologética com a qual o físico David Brewster produziu as biografias de Tycho Brahe, Kepler, Galileu e Isaac Newton, heróis que teriam tirado o “véu da natureza” (CLARK, 2016).
Auguste Comte, maior expoente do entusiasmo positivista do século XIX em relação ao método científico, foi fundamental para a disciplina História da Ciência.11 Por meio do Cours de philosophie (1830 a 1842), Comte defendeu que o conhecimento da evolução das ciências seria fundamental para se entender o desenvolvimento da humanidade (CLARK, 2016). Com sua Filosofia etapista e teleológica, Comte sustentava que o desenvolvimento e aperfeiçoamento do método científico conduziria a civilização a um grau cada vez mais elevado. Defendia que a evolução da ciência seria decisiva na redução do sofrimento humano. Para o francês, a ciência passaria por três estágios: o teológico, ou “fictício”, no qual a ação divina e os seres sobrenaturais responderiam aos anseios humanos na busca das essências e das causas últimas; o estágio metafísico, em que “os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas” (COMTE, 1978, p. 4); e, por último, o estágio da ciência positiva, no qual o espírito humano,
[…] reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de similitude (COMTE, 1978, p. 4).
Dentro dessa projeção etapista, Comte defendia que as ciências se desenvolviam em ritmos distintos: a Astronomia, essencialmente geométrica, teria atingido o estágio positivo já na Antiguidade; por outro lado, a Física, envolvida com fenômenos mais complexos, só atingiria essa fase no século XVII, já que, segundo o filósofo, a disciplina estaria demasiadamente “contaminada” pela metafísica. Assim, as mudanças trazidas por Bacon, Galileu, Descartes e os demais teriam um papel essencial na fundamentação teleológica da Filosofia comtiana, que dava bastante projeção para a historicidade da ciência: “Estamos por certo convencidos de que o conhecimento da história das ciências é da mais alta importância. Penso, ainda, que não conhecemos completamente uma ciência se não conhecemos sua história” (COMTE, 1978, p. 29).
Diferentemente de Comte, William Whewell, seu contemporâneo, tinha outra visão filosófica: acreditava que a metafísica cumpria um papel fundamental na produção e legitimação do conhecimento científico. Professor de ciência moderna em Cambridge, Trinity College, “Whewell apresentou uma concepção da ciência […] segundo a qual as ideias fornecidas pela mente interagem com dados factuais fornecidos pelos sentidos em um processo dialético que leva ao conhecimento científico” (LINDBERG, 1990, p. 11, tradução nossa). Assim, diferentemente de Comte, Whewell acreditava que algumas explicações científicas seriam mais aceitas que outras, não pela ausência da metafísica, mas por terem uma justificação filosófica mais sólida: “Para Whewell, a história está subordinada à Filosofia, ou, dito de outro modo, o objetivo do historiador seria elucidar o método científico” (DEBUS, 2004, p. 24).
Em seus diversos estudos sobre as ciências indutivas,12 Whewell desenvolveu uma perspectiva de desenvolvimento científico que negava a mudança brusca:
Os princípios que constituíram o triunfo dos estágios anteriores da ciência parecem ter sido subvertidos e ejetados pelas descobertas [científicas] mais recentes, mas na verdade são […] incorporados e incluídos nas doutrinas subsequentes. Eles continuam sendo uma parte essencial da ciência. As verdades anteriores não são expulsas, mas absorvidas, não contraditas, mas ampliadas; e a história de cada ciência, que pode, assim, parecer uma sucessão de revoluções, é, na realidade, uma série de desenvolvimentos (WHEWELL, 1967, p. 8, tradução nossa).
Poderíamos, então, entender Whewell como o primeiro historiador da ciência continuísta? Ainda que o autor, em suas investigações sobre a evolução das diversas disciplinas científicas, tenha reconhecido certa continuidade histórica - evidenciando, inclusive, alguma predileção por uma concepção de história de natureza cumulativa -, manteve os alicerces da divisão tripartite e projetou-a para a História da Ciência (LINDBERG, 1990). Nesse sentido, Whewell incorporou a visão de desenvolvimento científico gestada no século XVIII, “[…] é fácil reconhecer sua dependência do ponto de vista iluminista” (DEBUS, 2004, p. 24-25). Para Whewell, uma época de avanço por meio do método indutivo13 é precedida por outra, na qual as ideias científicas adquirem progressivamente mais inteligibilidade e conexão. Essas épocas são intercaladas por períodos de “estagnação”, nos quais o progresso científico é interrompido por “períodos estacionários”. Assim, em sua análise do desenvolvimento científico do Ocidente, a opulência dos gregos e romanos clássicos foi intercalada pelo longo estágio estacionário da Idade Média.
Em seguida, a clareza de ideias provenientes da retomada dos clássicos gregos pelos renascentistas ofereceu subsídios para um novo florescimento do método indutivo, o que se desdobraria nos avanços proporcionados pela astronomia matemática de Copérnico. Para Whewell, a Idade Média seria marcada pela estagnação: “Os dois grandes períodos da Filosofia Acadêmica [anteriores ao período moderno] […] foram dos gregos e da Idade Média; o período do primeiro despertar da ciência e o de seu cochilo do meio do dia [respectivamente]” (WHEWELL, 1967, p. 14, tradução nossa). “Mesmo os melhores intelectos” medievais, argumenta Whewell, estariam à espera de “ajustes” para que o Ocidente pudesse desfrutar do progresso científico, já que, durante o período medieval, a “ciência ficou por muito tempo absolutamente estacionária” (WHEWELL, 1967, p. 200, tradução nossa). Vale destacar que as metáforas de “cochilo” medieval e de “despertar” da ciência na modernidade, desenvolvidas por Whewell, serão retomadas posteriormente por muitos outros descontinuístas.14
Além disso, o século XIX também testemunhou um aumento do interesse dos eruditos em relação ao período do Renascimento. Walter Pater (1839-1894), Robert Browning (1812-1889), John Addington Symonds (1840-1893) e Jules Michelet (1798-1874) seriam alguns dos nomes dessa nova onda de intelectuais que se voltaram aos estudos renascentistas. A já bem conhecida contribuição de Jacob Burckhardt, principalmente por meio do livro A Cultura do Renascimento na Itália: um ensaio (1860), foi fundamental para construir, com ainda mais solidez, a noção de Renascimento da Antiguidade Clássica e de rompimento intelectual abrupto em relação à Escolástica. “O grande mérito de Burckhardt consiste em criar o Renascimento como um período histórico” (BELTRÁN, 1995, p. 31, tradução nossa). Segundo Florenzano:
Com suas respectivas obras-primas A Cultura do Renascimento na Itália e O Antigo Regime e a Revolução, publicadas quase ao mesmo tempo (a primeira em 1860 e a segunda em 1856), Burckhardt e Tocqueville [respectivamente], deram aos termos ‘Renascimento’ e ‘Antigo Regime’ a condição e a altura de conceitos, de categorias históricas, possuidoras a um só tempo de unidade e abrangência, de conteúdo e forma, de espaço e tempo (FLORENZANO, 1996, p. 19-20).
Assim, o Renascimento passa a ser entendido pelos pensadores do século XIX como uma efetiva “ruptura com a Idade Média” (FLORENZANO, 1996, p. 22). Para Burckhardt, os medievais teriam negligenciado importantes dimensões do pensamento, como a indução e a livre investigação, mas os renascentistas, a partir do retorno à Antiguidade, efetuariam um “novo e grande corte, marcando para cada ciência o início da era moderna” (BURCKHARDT, 2009, p. 235). Assim, os estudiosos do século XIX que se dedicaram ao período do Renascimento contribuíram, ainda que indiretamente, com a ideia de que o período medieval teria sido marcado pela “irracionalidade”. Isso pode ser observado em John Symonds:
A essência do humanismo consistia em uma percepção nova e vital da dignidade do homem como um ser racional à parte das determinações teológicas, e na percepção adicional de que somente a literatura clássica mostrava a natureza humana na plenitude da liberdade intelectual e moral (SYMONDS, 1900, p. 52, tradução nossa).
Assim, a partir da intensa valorização das produções artísticas e literárias renascentistas promovida pelos eruditos do século XIX, o Renascimento consolidou-se como uma categoria espaço-temporal caracterizada pelo retorno do pensamento racional e pela recuperação do prestígio dos pensadores clássicos.
É interessante notar que, nas décadas finais desse século, essa vertente de pensamento se aproximou de outra, de natureza anticatólica, e acabou formando um grupo de escritores que sustentavam a perspectiva descontinuísta a partir de uma argumentação notoriamente anticlerical. O fato de a Revolução Científica ter supostamente acontecido concomitantemente à Reforma contribuiu para que muitos pensadores avaliassem o papel do Cristianismo, ou da Igreja, na formação da suposta “esterilidade intelectual” do Medievo. A oposição entre ciência e religião seria um desdobramento da progressiva institucionalização da ciência no século XIX.
De acordo com Numbers (2009), dois autores se destacam na promoção da ideia de que o Cristianismo medieval se manteve em oposição ao pensamento científico: John William Draper (1811-1882) e Andrew Dickson White (1832-1918). Ambos teriam desenvolvido estudos que endossam o mito relacionado a uma Igreja Católica opositora da ciência, atualizado as versões descontinuístas e exercido grande influência entre os eruditos da segunda metade do século XIX e do XX. Esses dois pensadores teriam impulsionado uma série de mitos relacionados ao período medieval, tais como a ideia de que cristãos medievais eram adeptos do modelo da Terra plana, que Galileu foi preso e torturado por advogar a teoria de Copérnico, entre outros (NUMBERS, 2012).
Entretanto, as décadas finais do século XIX testemunharam o surgimento de estudos relacionados à valorização da ciência médica na Idade Média, principalmente a partir de perspectivas que visavam reavaliar o papel desempenhado pela Igreja no que se refere aos investimentos em ensino e desenvolvimento do conhecimento. Médicos e historiadores da Medicina - tais como Max Neuberger (1868-1955), Julius Pagel (1851-1912), Karl Sudhoff (1853-1938) etc. - voltaram suas atenções às contribuições do Medievo para as áreas de saúde (DEBUS, 2004). Um exemplo pode ser visto em James Joseph Walsh (1865-1942) que buscou contra-argumentar a ideia de esterilidade intelectual medieval:
[…] a maioria das pessoas ainda não estará aberta à convicção de que o interesse pela natureza era bastante animado na Idade Média, como em qualquer período subsequente, até o nosso. […] Esses pensamentos fazem parte dessa infeliz tradição educacional que carimba a Idade Média como negligente no estudo da natureza, como o chamaríamos agora, e como desinteressada em fenômenos naturais. Nada poderia ser menos verdadeiro […] [e] absurdo [nessa] crença popular […] infundada (WALSH, 1908, p. 340, tradução nossa).
Indo de encontro às alegações de Draper e White, Walsh sustentou que o papado teria sido fundamental na manutenção da ciência e da educação formal durante o Medievo. Sua defesa da importância da Igreja Católica fez, inclusive, com que Walsh analisasse o papel desempenhado pela Reforma Protestante com certo desdém. Segundo seu pensamento, a Reforma teria impulsionado o Ocidente a um processo de declínio científico:
[…] a chamada Reforma havia chegado e levou consigo quase todas as coisas preciosas que os homens haviam ganho nos quatro séculos imediatamente anteriores. Arte, educação, ciência, liberdade, democracia - tudo de valoroso foi ferido; a maioria deles ficaria arruinada até o [presente] momento. Mesmo o século XIX não conseguiu nos levar de volta ao nível dos séculos anteriores em todas as realizações intelectuais e estéticas (WALSH, 1908, p. 29, tradução nossa).
Mas os argumentos de Walsh estavam ligados ao debate sobre a “guerra entre ciência e religião” e tinham por objetivo contra-argumentar o anticatolicismo de Draper e White. O grande impulso para a construção das teses continuístas viria, efetivamente, nos primeiros anos do século XX, com as publicações do físico, historiador e filósofo da ciência Pierre Duhem.
Pierre Duhem, como veremos, desempenha um papel fundamental na revalorização da ciência medieval por meio de seus estudos históricos sobre a teoria do movimento, desenvolvidos nas primeiras décadas do século XX. Seria, inclusive, o responsável pelo “primeiro questionamento geral da concepção da Revolução Científica do século XVII” (MARICONDA, 1992, p. 123). Antes de nos debruçarmos sobre as ideias desse autor, uma pergunta pode surgir: como Duhem encontrou espaço para desenvolver sua perspectiva continuísta se, como vimos, o século XIX foi caracterizado por uma produção acadêmica notoriamente antimedieval?
Nesse sentido, Duhem deve ser entendido em um contexto historiográfico mais amplo. Segundo Beltrán (1995), o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX testemunharam uma revalorização do período medieval pelo que ficou conhecido como a “Revolta dos Medievalistas”. Esse movimento deve ser entendido como uma reação quanto à imagem do Renascimento construída por Burckhardt e outros estudiosos de meados do século XIX. A forma como esse pensador idealizou o período renascentista acabou por reforçar uma visão pejorativa sobre o Medievo. A “Revolta dos Medievalistas”, então, seria o nome dado ao movimento feito por estudiosos da Idade Média que contestaram essa representação.
Esse movimento - composto por uma série de pensadores, como Ch. H. Haskins (1870-1937), Friedrich von Bezold (1848-1928), Fedor Schneider (1879-1932), Etienne Gilson (1883-1978), entre outros - apresentava pelo menos três grandes premissas: que as principais características que Burckhardt apontou como originárias do Renascimento já se faziam presentes na Idade Média; que a cultura medieval teria preservado a tradição clássica; e que a cosmovisão moderna (weltanschauung), caracterizada como uma suposta inovação trazida pelo Renascimento, teria como bases fundamentais diretrizes teóricas predominantemente medievais (BELTRÁN, 1995).
Alguns desses pensadores associaram, inclusive, o Renascimento à derrocada das conquistas obtidas no Medievo, como o famoso “Outono” da Idade Média reconhecido por Johan Huizinga (1872-1945). Para E. Gilson, por exemplo, o Renascimento não apenas não teria criado nada de novo, como também é visto como um período de decadência:
A diferença entre o Renascimento e a Idade Média não é uma diferença por soma, mas por subtração. O Renascimento, como nos é descrito, não era a Idade Média mais o homem, mas a Idade Média menos Deus: e a tragédia é que, perdendo Deus, o Renascimento também perdeu o homem (GILSON apudBELTRÁN 1995, p. 31, tradução nossa).
É nesse contexto que se insere Pierre-Maurice-Marie Duhem (1861-1916), que, segundo Mariconda, “foi responsável por uma verdadeira revolução historiográfica na história da ciência” (1992, p. 123) ao desenvolver sua tese continuísta.15 Físico de formação, Duhem se consolidou como polímata ao publicar em várias áreas distintas, que abrangem tanto as ciências exatas - Termodinâmica, Eletromagnetismo, Hidrodinâmica - quanto as Humanas - Filosofia e História da Ciência. Uma de suas maiores realizações, que marcou profundamente o debate sobre a Revolução Científica, foi o desenvolvimento da visão continuísta. Em seu Les Origenes de la statique, publicado entre 1903 e 1904, Duhem praticamente inaugura o campo de estudos sobre ciência medieval. Nessa obra, o autor busca analisar a historicidade da Estática - ramo da Física que estuda o equilíbrio entre as forças e sistemas - e, para tanto, focou seus esforços, inicialmente, em desenvolver uma ponte entre Arquimedes e Leonardo da Vinci. Nada de novo, Duhem, fruto de seu tempo, partilhava do sentimento de seus contemporâneos e acreditava que não conseguiria qualquer referência significativa sobre a Estática durante todo o período medieval. Entretanto, o autor altera totalmente sua percepção quando, em abril de 1904, descobre estudos de Jordanus de Nemore, desenvolvidos no século XIII, que versavam sobre a Estática - ou melhor, sobre o que contemporaneamente entendemos como Estática. É interessante notar que a descoberta dos textos levou Duhem a inverter totalmente sua abordagem, como observa Mariconda:
[…] com a descoberta do texto de Jordanus Nemorarius, essa posição [inicial] é radicalmente modificada […] A partir da descoberta dos Elementa Jordani de Ponderibus, Duhem direcionou sua investigação histórica no sentido de uma reconstrução sistemática da mecânica medieval (MARICONDA, 1992, p. 125).
Vale destacar que, antes de Duhem, outros pesquisadores já haviam se debruçado sobre os estudos de história da Mecânica, caso de Charles Thurot (1823-1882) e Giovanni Vailati (1863-1909). Porém, esses trabalhos, realizados ainda no século XIX, compactuavam com os estigmas da época e caracterizavam a Idade Média como um período em que não houve nenhum avanço em relação às ciências mecânicas gregas.
A partir da descoberta da obra de Jordanus de Nemore, Duhem passou a oferecer um contraponto aos modelos historiográficos que até então reproduziam o mito da esterilidade intelectual medieval: “As ideias apresentadas no Elementa Jordani de Ponderibus provocaram um intenso movimento intelectual na Idade Média; filósofos, geômetras e mecânicos disputavam entre si para discutir, comentar e desenvolver essas ideias” (DUHEM, 1991, p. 92, tradução nossa).
Essa pesquisa teria levado o autor a publicar o Études sur Léonard de Vinci, entre 1906 e 1913. É nessa obra que Duhem chama a atenção para os avanços que os medievais realizaram em relação à física aristotélica. As Escolas de Oxford (Merton College) e Paris teriam, no século XIV, desenvolvido importantes estudos sobre o assunto. Pela primeira vez, filósofos naturais medievais, tais como Jean Buridan e Nicole Oresme, receberiam algum reconhecimento (MARICONDA, 1992). Duhem, entusiasmado, vai além: mais do que mostrar que a Baixa Idade Média testemunhou um aumento da atividade científica, afirmou que boa parte dos estudos do movimento realizados por Leonardo da Vinci e Galileu teriam como base fundamental obras produzidas na Idade Média. Isso fica evidente em trecho de seu Études sur Léonard de Vinci, quando reflete sobre as influências que Galileu recebeu dos estudos de Dinâmica desenvolvidos pelos mestres parisienses:
É dessa tradição parisiense que Galileu e seus seguidores eram herdeiros. Quando vemos a ciência de um triunfo de Galileu sobre o teimoso peripatetismo de Cremonini, acreditamos, mal informados da história do pensamento humano, que estamos testemunhando a vitória da jovem ciência moderna sobre a filosofia medieval, teimosa em seu psitacismo; Na verdade, contemplamos o triunfo, há muito preparado, da ciência que nasceu em Paris no século XIV, sobre as doutrinas de Aristóteles e Averróis, reabilitadas em honra pelo Renascimento italiano (DUHEM, 1913, p. VI, tradução nossa).
A partir da publicação dos 10 volumes da monumental obra Le Système du Monde (1913-1959), as novas diretrizes continuístas de Duhem consolidaram sua influência na historiografia da ciência: “pela primeira vez, a história da ciência era dotada de um genuíno sentido de continuidade” (GRANT, 2002, p. VI). O autor muda completamente a forma como se reconhecia o nascimento da ciência moderna e coloca em xeque grande parte das certezas que até então eram tidas como inquestionáveis - um exemplo é que Duhem inicia “um [longo] debate sobre a originalidade de Galileu” que, segundo Debus (2004, p. 30), ainda não foi resolvido. Mais do que descobrir fontes científicas medievais inéditas, mais do que reavaliar a importância fundamental dos estudos desenvolvidos na Baixa Idade Média para o avanço da ciência ocidental e muito além de romper com a “concepção estabelecida até o século XIX, segundo a qual a Idade Média era um período dominado pelo preconceito e pela Ignorância” (MARICONDA, 1992, p. 159), Duhem inaugura uma nova forma de escrutinar o avanço científico a partir da continuidade:
Assim, o estudo das origens da estática nos levou a uma conclusão que se tornou cada vez mais evidente a partir dos caminhos que se abriram quando olhamos para o passado. Por isso, somente agora ousamos formular essa conclusão em sua plena generalidade: a mecânica e a ciência física de que os dias de hoje são tão orgulhosos chegam até nós através de uma sequência ininterrupta de refinamentos quase imperceptíveis das doutrinas professadas nas Escolas da Idade Média. As chamadas revoluções intelectuais consistiram, na maioria dos casos, de nada além de uma evolução que se desenvolveu por longos períodos de tempo. Os chamados Renascimentos não eram, frequentemente, nada além de uma reação injusta e estéril. Afinal, o respeito à tradição é uma condição essencial para todo progresso científico (DUHEM, 1991, p. 9, tradução nossa).
Os trabalhos de Duhem,16 e a requalificação da Idade Média como um período importante dentro do desenvolvimento científico ocidental, influenciaram o surgimento de uma nova geração de historiadores da ciência continuístas que minimizam as transformações advindas da Revolução Científica.17 Charles Homer Haskins18 (1870-1937), Lynn Thorndike19 (1882-1965) e George Sarton (1884-1956) são exemplos de pesquisadores que atuaram na primeira metade do século XX e foram influenciados diretamente pelas diretrizes continuístas de Duhem.20
Se constituirá um movimento historiográfico chamado ‘continuísta’ que não apenas reivindica o valor das contribuições científicas da Idade Média e reconsidera a questão das origens da ciência moderna, mas, ao fazê-lo, dilui [o sentido da] Revolução Científica como tal (BELTRÁN, 1995, p. 23, tradução nossa).
George Sarton, doutor em Matemática e historiador da ciência belga, é um exemplo dessa nova geração continuísta. Considerado uma das figuras mais importantes para a consolidação do campo de estudos da História da Ciência21, Sarton, que possuía uma orientação notoriamente positivista22, defendeu um modelo de progresso em que os avanços científicos aconteciam de maneira contínua:
Nossa primeira impressão do progresso científico é como a de escadas gigantescas, cada passo enorme representando uma daquelas descobertas essenciais que elevaram a humanidade quase subitamente a um nível mais alto, mas essa impressão é imperceptivelmente obliterada à medida que prosseguimos nossa análise. Os grandes degraus são divididos em pequenos, e estes em outros ainda menores, até que finalmente os degraus parecem desaparecer por completo - mas nunca desaparecem (SARTON, 1988, p. 21-22, tradução nossa).
Na perspectiva de Sarton, um “salto” científico só faria sentido se o estudioso observasse o processo de evolução do conhecimento a partir de um certo distanciamento. Quanto mais esse estudioso analisasse os pormenores dessas mudanças, mais se daria conta de que esse “salto”, ou “degrau”, é formado por outros degraus menores, que representam avanços científicos proporcionados por outros cientistas. Assim, uma “Revolução Científica” só faria sentido para Sarton se o processo de transformação fosse analisado de maneira bastante sintética. Uma inspeção mais pormenorizada revelaria que essa mudança científica seria composta por uma série de outras contribuições que possuem diferentes historicidades. “Em poucas palavras, os degraus maiores eram geralmente sintéticos, os menores, analíticos” (SARTON, 1988, p. 23, tradução nossa). Isso pode ser ilustrado pelo esquema (Imagem 1):
Nesse sentido, Sarton acompanhou Duhem na ideia de que a ciência moderna teria surgido na Baixa Idade Média. Vale pontuar que a História da Ciência ocuparia um espaço fundamental na concepção comtiana de desenvolvimento de Sarton. Como o autor buscava conciliar o progresso científico com o humano, sustentava que a ciência seria o caminho que conduziria a humanidade à estabilidade e à paz, produzindo o que chamou de “novo humanismo”. Essa diretriz teria contribuído para que esse pensador desenvolvesse uma perspectiva cumulativa do progresso científico: “De fato, a atividade científica é a única que é óbvia e sem dúvida cumulativa e progressiva” (SARTON, 1988, p. 10, tradução nossa).
O fato é que, após algumas décadas de intensa produção continuísta na área da História da Ciência - tais como as de Duhem, Sarton, Paul Tannery, Charles Homer Haskins (1870-1973), Lynn Thorndike (1882-1965), Anneliese Maier (1905-1971), Marshall Clagett (1916-2005) etc. -, ficou praticamente impossível “negar as grandes contribuições medievais para o desenvolvimento da ciência” (LINDBERG, 1990, p. 15, tradução nossa) e a corrente historiográfica continuísta se tornou uma das principais referências da área.
Mesmo que apresente uma miríade de vertentes, é possível reconhecer na tese descontinuísta alguns elementos argumentativos comuns, tais como a ideia de ruptura intelectual com a Idade Média; a percepção de que o aristotelismo escolástico promoveu a estagnação dos estudos da natureza; a ideia de uma ciência moderna surgindo a partir do protagonismo de alguns filósofos naturais, como Bacon e Galileu; e a divisão tripartite da História. Em contraposição a essa concepção rupturista, a tese continuísta sugere exatamente o contrário: a ciência também pode ser entendida a partir das permanências; os filósofos naturais modernos utilizaram-se largamente de estudos medievais para desenvolver suas teorias; outras culturas, como a árabe, também devem ser incorporadas na longa narrativa da História da Ciência.
Ainda que a perspectiva continuísta tenha se consolidado como uma das correntes mais influentes nos debates em História da Ciência da primeira metade do século XX, epistemólogos - a exemplo de Gaston Bachelard (1884-1962), Edwin A. Burtt (1892-1989) e Georges Canguilhem (1904-1995) - passaram a contestá-la em sua característica cumulativa e a reavaliar os limites epistêmicos do positivismo (BELTRÁN, 1995). Surge, então, um novo afluxo de historiadores da ciência descontinuístas - Boris Hessen (1893-1936), Edgar Zilsel (1891-1944) e Robert K. Merton (1910-2003) - que passam a afirmar a ruptura a partir de diferentes prismas (análises tanto externalistas quanto internalistas). Esse processo irá culminar nos trabalhos de Alexandre Koyré, Do mundo fechado ao Universo Infinito (1986), e de Thomas Kuhn, A Revolução Copernicana: a astronomia planetária no desenvolvimento do pensamento ocidental (2017), ambos publicados originalmente em 1957.
A erudição e a capilaridade dos trabalhos de Koyré e o prestígio epistêmico de Kuhn tornaram a perspectiva descontinuísta hegemônica em meados do século XX. Falar sobre a Revolução Científica e exaltar seus personagens tornou-se uma condição sine qua non para os historiadores da época (CLARK, 2016). Entretanto, o continuísmo seguiu inspirando importantes historiadores, a exemplo de Alistair Crombie, Marshall Clagett, Edward Grant, David Lindberg e outros.
Com a ascensão do Programa Forte em Sociologia do Conhecimento a partir das décadas de 1980 e 1990, as versões mais herméticas de descontinuísmo passam a ser vistas com suspeição,23 dando espaço a uma nova ascensão de trabalhos de natureza continuísta. Nos dias de hoje, a controvérsia permanece em aberto, semeando a História da Historiografia da Ciência com alento. E tanto descontinuístas - como Mauro Condé, Jean-Louis Fischer, David Wootton e Floris Cohen - quanto continuístas - tais como Lawrence Principe, Ronald L. Numbers, James Hannam e Michael H. Shank - reconhecem os limites e alcances de ambas as tradições e parecem caminhar para uma tentativa de consenso; um descontinuísmo que reconhece a força das permanências e um continuísmo que não minimiza a virtude das mudanças.
Não se aplica.
Nenhum conflito de interesse declarado.
Flávia Varella - Editora-chefe
Breno Mendes - Editor Executivo