Artigo original

Tópicas nos trópicos: o sublime em O Guarani (1857), de José de Alencar

Topics in the tropics: the sublime in O Guarani (1857), by José de Alencar

Cleber Vinicius do Amaral Felipe
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil

Tópicas nos trópicos: o sublime em O Guarani (1857), de José de Alencar

História da Historiografia, vol. 14, núm. 35, pp. 21-51, 2021

Brazilian Society for History and Theory of Historiography (SBTHH)

Recepção: 21 Abril 2020

Revised document received: 11 Setembro Janeiro 2020

Aprovação: 10 Fevereiro 2021

RESUMO: Este texto volta-se para um conjunto de lugares-comuns presentes no romance O Guarani (1857), de José de Alencar. Para tanto, buscamos historicizar o paradigma artístico que subsidiou sua escrita, analisar a construção do éthos indígena e mapear algumas figuras mobilizadas para descrever as florestas brasileiras e o cataclismo que encerra a narrativa. Nossa proposta atém-se a uma abordagem estética que não negligencia o caráter datado dos códigos linguísticos, ou seja, tópicas como originalidade e genialidade foram tomadas como convenções ou constructos que o romance alencariano buscou dissimular para atender aos protocolos literários de sua época. Embora seja recorrente a negação dos artifícios retórico-poéticos, o romancista recorreu a novos recursos como, por exemplo, à concepção de sublime. Não há, portanto, ausência de protocolos e prescrições, mas a eleição de outros expedientes letrados articulados às propostas políticas de D. Pedro II, ao projeto indianista e às novas demandas estéticas.

PALAVRAS-CHAVE: Romantismo, Literatura brasileira, Retórica.

ABSTRACT: This article focuses on a set of common places found in the novel O Guarani (1857), by José de Alencar, to historicize the artistic paradigm that supported his writing, analyze the construction of indigenous peoples and map some characteristics mobilized to describe the Brazilian forests and the cataclysm that closes the narrative. Our proposal adheres to an aesthetic approach that does not neglect the dated character of linguistic codes, that is, topics such as originality and genius were taken as conventions or constructs that Alencar’s novel sought to hide in order to meet the literary protocols of the time. Although the denial of rhetorical-poetic devices is recurrent, the novelist resorted to new resources such as the concept of the sublime. Thus, of the novel is not lacking in protocols and prescriptions, but the choice of other literate devices articulated to the political proposals of D. Pedro II, to the Indianist project and to the new aesthetic demands.

KEYWORDS: Romanticism, Brazilian literature, Rhetoric.

“Viva orquestra parece a Natureza, Que a grandeza de Deus sublime exalta!” (MAGALHÃES 1864, p. 5).

“Tudo era água e céu” (ALENCAR 1996, p. 251).

“Nesse tempo o demônio da vaidade não tentara ainda J. de Alencar” (TÁVORA 1872, p. 140).

O Guarani

Publicadas entre setembro de 1871 e fevereiro de 1872, no jornal Questões do dia, as Cartas a Cincinato, de Franklin Távora, debateram dois romances de José de Alencar: Iracema (1865) e O gaúcho (1870). Sob o pseudônimo de Semprônio, o autor das epístolas afirmou que o escritor cearense, confinado em seu gabinete, abusava da imaginação, ao descrever as regiões brasileiras e os costumes dos nativos americanos. Contrário à liberdade irrestrita do gênio criativo, Távora insistiu que a imaginação de um romancista não deveria prescindir da imitação proveniente da empiria. Para ele, Alencar não teria cometido esses deslizes quando escreveu O Guarani, pois recorreu a descrições condizentes com o cenário brasileiro e retratou os índios conforme os costumes locais.

José de Alencar publicou o romance-folhetim O Guarani ao longo do ano de 1857, no Diário do Rio de Janeiro. De acordo com Eduardo Vieira Martins (2003, p. 52),

[...] a gênese da nova civilização surge como fruto do encontro de portugueses e indígenas em meio à floresta quase intocada. Nesse cenário privilegiado, na aurora de um novo tempo, Alencar introduziu, como ancestrais míticos do brasileiro, o que de mais elevado conseguiu vislumbrar no nosso passado. No tronco português, escolheu uma família de nobres de solar e brasão, engrandecida pelos títulos e feitos de seus fidalgos. Ceci, oriunda dessa família, tem suas qualidades aguçadas pelo fato de ter nascido e crescido em contato com a natureza americana. No tronco indígena, o romancista imaginou um chefe goitacá que reúne em si não apenas as qualidades físicas aptas a fazerem dele um herói invencível na guerra, como também a inteligência e os bons sentimentos que o transformam num verdadeiro rei das florestas americanas, um homólogo selvagem do nobre português.

Depois de abandonar sua tribo e se submeter, por vontade própria, ao fidalgo português D. Antônio de Mariz, Peri protagonizou grandes façanhas para proteger e atender às vontades de Cecília. O epíteto “filho das florestas” foi muito empregado para referir sua nobreza natural e selvagem, desprovida de títulos e brasões. O herói enfrentou e capturou uma onça, invadiu uma gruta repleta de serpentes e aranhas venenosas, enfrentou, sozinho, uma tribo com dezenas de aimorés e arrancou uma palmeira do solo para utilizá-la como barca e salvar sua senhora de uma enchente provocada pelo rio Paraíba.

O romance, com um total de 54 capítulos distribuídos em quatro partes, investe em descrições pormenorizadas da natureza brasileira e retrata situações dramáticas, ocorridas no início do século XVII, e ambientadas na Serra dos Órgãos, às margens do rio Paquequer. A trama costura temas variados como conflitos bélicos, assuntos religiosos, motins, façanhas heroicas, tribos canibais e ações movidas pela vingança. Além disso, Alencar projetou no amor entre Cecília (uma nobre representante do tronco português) e Peri (índio goitacá convertido) a suposta origem de uma nação que, no entanto, tornar-se-ia independente no século XIX, algumas décadas antes da publicação de O Guarani. Como lembrou Alfredo Bosi (1992, p. 176), a promoção de mitos ajuda “a compreender antes o tempo que os forjou do que o universo remoto para o qual foram inventados”.

No que diz respeito às personagens, a constância e a virtude portuguesas encontram paralelo nas atitudes de Peri; os aventureiros, inconstantes e ambiciosos por ocuparem posição análoga à dos mercenários, atuam de acordo com seus interesses imediatos; os índios aimorés, por outro lado, são figurados como seres bestiais e malignos. As tensões estabelecidas entre esses três grupos fundamentam o enredo alencariano. Resta averiguar como José de Alencar concebeu a arte do romance e de que maneira a narrativa atendia às expectativas de seu presente.

A arte alencariana

Até o século XVIII, o conceito de arte (téchne entre os gregos, ars entre os latinos) designava uma prática regrada e convencional afinada a preceitos retórico-poéticos. Os letrados buscavam, no costume (consuetudo), argumentos eficazes, levando-se em consideração a ocasião, a matéria e o auditório. Elencavam lugares-comuns (topoi entre os gregos, loci entre os latinos) para convencer/persuadir o leitor/ouvinte, pautando-se na endoxa (argumentos prováveis, verossímeis) e no decoro (adequação do discurso ao público, às circunstâncias e ao assunto).

No tratado Da pintura (1435), Leon Battista Alberti repetiu uma das anedotas que Plínio, o Velho, empregou em sua Naturalis Historia, para afirmar que Zêuxis recorreu às cinco mais belas jovens de Crotona, para assimilar suas características notáveis e pintar um retrato de Helena, personagem homérica. Sua persona seria fruto da conjunção de traços particulares de figuras empíricas. A sentença adiante, presente no tratado de Alberti, explicita os critérios artísticos ensejados: “Qualquer que seja a arte que se pratique, deve-se, porém, ter sempre diante dos olhos algum exemplo elegante e singular para observar e retratar” (LICHTENSTEIN 2004, p. 146).

Da Antiguidade ao Iluminismo, a liberdade de poetas, narradores, pintores, dentre outros, era restrita, pois resultava de preceitos artísticos que limitavam seu arbítrio. Na segunda metade do século XVIII, todavia, a literatura romântica confrontou a longeva instituição retórica e desvalorizou o topos como recurso retórico e estilístico. Nas preleções sobre estética, em publicações póstumas de 1835, Hegel afirmou que o homem mostraria “mais habilidade nas produções provenientes do espírito do que nas imitadas da natureza”. Em seguida, o filósofo recomendou: “em vez de louvar obras de arte por conseguirem enganar pássaros e macacos, se deveria antes vituperar aqueles que julgam enaltecer o valor de uma obra artística indicando essas banais curiosidades” (LICHTENSTEIN 2004, p. 115). O vitupério tem por objeto mesmo as anedotas de Plínio e a evidente ideia de que a imitação acaba sendo uma condição do fazer artístico.

No século XIX, poetas brasileiros como Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias “proclamavam a inobservância das tópicas greco-latinas e a ênfase no índio, alçado artificialmente ao posto de ‘herói americano’” (CHAUVIN 2017, p. 18). Se, de um lado, os historiadores do IHGB se entregavam à tarefa de recompor o processo de gênese do Brasil, movidos pelo projeto nacionalista de D. Pedro II e pela vontade de dotar a jovem nação de autonomia cultural, advogados, médicos e jornalistas escreviam poemas e romances muitas vezes protagonizados pela figura do indígena, encarado como autêntico antepassado da nação brasileira.

Na poesia de Gonçalves Dias, há certa “rebeldia romântica” frente às convenções. Tal retórica fora tomada como expediente contrário à liberdade de expressão e, portanto, a tudo o que fosse original. O artista, por meio de sua imaginação, tornar-se-ia o centro irradiador de toda criação literária, como se o elemento artificial fosse um empecilho à produção artística. A verossimilhança poética adviria não tanto das técnicas longevas de descrição, mas da imitação da natureza a partir de seu potencial. Nesse contexto, ainda não havia uma proposta de arte emanada do gênio. Impressionar, mover e comover o leitor continuam a ser propósitos nucleares dessa poesia. Quando poetas do Oitocentos optam por banir a mitologia e adotar, no seu lugar, elementos da dogmática cristã, ou ainda quando resolvem incorporar preceitos de Byron, Schiller, Burke, o artifício não desaparece, contudo continua sendo empregado com o intuito de cumprir novo expediente (CUNHA 2001, p. 227-244).

Foi sob os auspícios do imperador D. Pedro II que Domingos José Gonçalves de Magalhães publicou A Confederação dos Tamoios, em maio de 1856. Distribuída em dez cantos e, portanto, seguindo a disposição d’Os Lusíadas, a fábula poética encena o conflito entre os índios Tamoios (Tupinambás, Aimorés, Carijós...) e os portugueses, ocorrido entre 1554 e 1567. Em síntese, a epopeia evidencia a cobiça e a exploração promovida pelos portugueses, louvando o império recém-independente e a figura altiva de D. Pedro II. O herói, Aimbire, conseguiu reunir os índios contra os lusitanos invasores, personificando o amor à pátria e à liberdade; isso porque os padrões clássicos foram mobilizados para propor o nacionalismo romântico, ou seja, o poema imitou a épica antiga, Camões e os chamados poetas “árcades”, recorrendo às convenções retóricas, para celebrar o ideal nacional que muitos preferiram representar por meio do romance.1

Em junho de 1856, José de Alencar publicou oito cartas no Diário do Rio de Janeiro, adotando o pseudônimo Ig. Por meio delas, o romancista assinalou as falhas da epopeia de Magalhães e elaborou uma preceptiva sobre sua concepção particular de arte. Na quarta carta, ele citou Lamartine, para dizer que a poesia consiste na “encarnação do que o homem tem de mais íntimo no coração e de mais divino no pensamento; do que a natureza tem de mais belo nas imagens e de mais harmonioso nos sons” (ALENCAR 1856, p. 37). O poeta de A Confederação dos Tamoios, no entanto, não teria cumprido os requisitos mínimos de uma bela poesia: não imitou as auctoritas antigas com prudência; a invocação não seguiu o modelo homérico ou virgiliano, constituindo uma “contravenção das regras da epopeia, que se tornaria desculpável se o poeta tivesse sido feliz na sua inspiração” (ALENCAR 1856, p. 67). Teria faltado ao poeta condições de descrever a sublime natureza e os costumes brasílicos à maneira, por exemplo, de um Chateaubriand (ALENCAR 1856, p. 77-78); além disso, ele teria negligenciado a complexa teogonia indígena (ALENCAR 1856, p. 82) e as personagens não teriam alcançado a grandiloquência do gênero épico (ALENCAR 1856, p. 53). Na descrição dos índios, Magalhães não teria superado sequer O Uraguai, “poemeto” escrito “no tempo das musas e dos sátiros” que conseguiu compreender melhor a “originalidade da vida selvagem” (ALENCAR 1856, p. 19).

Em O Guarani e nas cartas, percebem-se elementos como a negação da retórica e a promoção de uma arte supostamente desprovida de artifício, convenções características de um novo procedimento artístico, amparado em noções como pátria, psicologia, autoria, estética, gosto... Na oitava epístola, o autor declara:

Tornei-me estudante de retórica, meu amigo, e desci a noções rudimentares da poesia, porque a isto me obrigaram aqueles que, ou por cegueira da amizade ou por um mal entendido despeito, assentaram de cumprir à risca o preceito da Escritura; oculos habent et non vident (ALENCAR 1856, p. 95).

De fato, Alencar dominava os preceitos da poesia épica, todavia não deixou de reforçar que sua crítica à poesia de Magalhães baseava-se no seu “gosto literário” (ALENCAR 1856, p. 36). Aliás, o romancista deparou-se com esse mesmo “prodígio”, ao ler os poetas modelares que o precederam:

Parece-me que Virgílio, que descreveu a Itália, Byron a Grécia, Chateaubriand as Gálias, Camões os mares da Índia, teriam achado no sol do Brasil algum novo raio, alguma centelha divina para iluminar essa tela brilhante de uma natureza virgem e tão cheia de poesia. Pareceme que o gênio de um poeta em luta com a inspiração, devia arrancar do seio da alma algum canto celeste, alguma harmonia original, nunca sonhada pela velha literatura de um velho mundo. Digo-o por mim: se algum dia fosse poeta, ou quisesse cantar a minha terra e as suas belezas, se quisesse compor um poema nacional, pediria a Deus que me fizesse esquecer por um momento as minhas ideias de homem civilizado (ALENCAR 1856, p. 6).

A “harmonia original” e o “canto celeste” provêm da natureza e advêm da alma e, portanto, de Deus. As convenções antigas, características do “velho mundo”, não passariam de obstáculos que impediriam a pulsão de tal originalidade que individualiza a natureza brasílica em detrimento das demais. Dessa forma, Alencar aproxima-se das recomendações de Francisco Freire de Carvalho (1840, p. 20):

Para descobrir, portanto, a origem da Poesia, faz-se necessário entrar pelo meio dos desertos e das florestas, remontar ao tempo dos povos caçadores e pastores, isto é, à antiguidade mais distante, ou ao período da vida social, em que os homens conservavam ainda toda a simplicidade dos seus costumes primitivos.

O poeta não deve preocupar-se apenas com o ambiente, mas também com o linguajar primitivo, como afirmou Alencar em Iracema:

O conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a nacionalidade da literatura. Ele nos dá não só o verdadeiro estilo, como as imagens poéticas do selvagem, os modos de seu pensamento, as tendências de seu espírito, e até as menores particularidades de sua vida. É nessa fonte que deve beber o poeta brasileiro; é dela que há de sair o verdadeiro poema nacional, tal como eu o imagino (ALENCAR 2013, p. 179-180).

Apesar disso, o romancista não deixou de imitar descrições de florestas. No epílogo de O Guarani, utilizou a expressão “floresta secular que nascera com o mundo”. É possível que ele tenha emulado um fragmento de Chateaubriand traduzido em uma de suas epístolas:

Quem pôde exprimir o que se sente entrando nessas florestas tão velhas como o mundo, e que ainda podem dar uma ideia do que era a criação quando saiu das mãos de Deus? O dia, projetando-se através da folhagem, espalha na profundeza da mata uma meia luz vacilante e móbil que dá aos objetos uma grandeza fantástica. Dali a pouco a floresta torna-se mais sombria, a vista apenas distingue troncos que se sucedem uns aos outros, e que parecem unir-se, alongando-se. A ideia do infinito apresenta-se ao meu espírito (ALENCAR 1856, p. 77-78).

A associação entre floresta secular e o sublime foi realizada em um tratado escrito em língua portuguesa na primeira metade do século XIX:

Convém, igualmente, observar-se que todos os objetos graves e majestosos, ou que imprimem pavor, contribuem, poderosamente, para fazerem nascer o Sublime, tais são as trevas, a solidão, e o silêncio. Quais são as cenas, que levam a alma ao mais subido grau de elevação, e que produzem o Sublime? Decerto não são as risonhas paisagens, os campos cobertos de flores, as cidades opulentas; antes, sim, as montanhas cobertas de neve, um lago solitário, uma antiga floresta, uma torrente que se despenha por entre rochedos (CARVALHO 1840, p. 36-37).

Embora a imitação não se oriente por imperativos genéricos ou preceituais, ela indica o caráter convencional da escrita alencariana, que repele os elementos do “velho mundo”, no entanto não deixa de eleger sua própria auctoritas, ainda que o critério nuclear sejam temas associados ao “gênio”, à matéria “original”, à “brasilidade”. Em um texto autobiográfico póstumo, em 1893, Alencar reconheceu que seu modelo teria sido Chateaubriand, muito embora sua grande inspiração provenha de outra fonte:

o mestre que eu tive, foi esta esplêndida natureza que me envolve, e, particularmente, a magnificência dos desertos que eu perlustrei ao entrar na adolescência, e foram o pórtico majestoso por onde minha alma penetrou no passado de sua pátria (ALENCAR 1893, p. 46).

Foi desse mestre, desse “livro secular e imenso”, que ele teria tirado inspiração para compor as páginas de O Guarani, de Iracema, e não de autores que não passavam de uma “cópia do original sublime” que ele havia “lido com o coração” (ALENCAR 1893, p. 46). Não obstante, em suas Cartas a Cincinato, Franklin Távola (1872) acusou Alencar de ter plagiado Atala, romance de Chateaubriand escrito em 1801 que fora traduzido para o português, em 1819.

A despeito da existência de plágio, o caráter convencional da narrativa permanece. Em artigo voltado para as descrições da natureza em O Guarani, Eduardo Martins (2013, p. 457) constata que, no plano programático,

os quadros da natureza seriam a expressão incondicionada do impacto recebido pelo poeta diante da magnificência da floresta tropical. Na prática, entretanto, podem-se perceber nessas páginas descritivas marcas tanto do diálogo com modelos literários, quanto do debate teórico travado no período. Assim, se o romantismo rompeu com a convenção descritiva do século XVIII, recusando a tópica do locus amoenus, que lhe parecia falsear a realidade da natureza americana, não foi para pintar uma natureza livre de mediações culturais, como propunham os manifestos, mas para criar uma nova convenção literária, tão formalizada e passível de codificação quanto a anterior.

A ideia de “ler com o coração”, recurso psicológico e expressivo, também consta no prólogo do romance:

Minha prima. — Gostou da minha história, e pede-me um romance; acha que posso fazer alguma coisa neste ramo de literatura. Engana-se; quando se conta aquilo que nos impressionou, profundamente, o coração é que fala; quando se exprime aquilo que outros sentiram ou podem sentir, fala a memória ou a imaginação. Esta pode errar, pode exagerar-se; o coração é sempre verdadeiro, não diz senão o que sentiu; e o sentimento, qualquer que ele seja, tem a sua beleza. Assim, não me julgo habilitado a escrever um romance, apesar de já ter feito um com a minha vida. Entretanto, para satisfazê-la, quero aproveitar as minhas horas de trabalho em copiar e remoçar um velho manuscrito que encontrei em um armário desta casa, quando a comprei. Estava abandonado e quase todo estragado pela umidade e pelo cupim, esse roedor eterno, que antes do dilúvio já se havia agarrado à arca de Noé, e pôde assim escapar ao cataclismo. Previno-lhe que encontrará cenas que não são comuns, atualmente, não as condene à primeira leitura, antes de ver as outras que as explicam. Envio-lhe a primeira parte do meu manuscrito, que eu e Carlota temos decifrado nos longos serões das nossas noites de inverno, em que escurece aqui às cinco horas (ALENCAR 1996, p. 1).

Como observou Jean Pierre Chauvin (2019, p. 289), o fato de Alencar mencionar uma “prima” indica um “elemento pessoal” que empresta “estranha credibilidade ao texto, numa aura de pretensa familiaridade que o aproximaria de uma espécie de colóquio, tratado sob a forma de missiva direcionada a uma pessoa em particular, como se se tratasse de carta intimista e pudica, mas escancarada, como efeito de verdade, para o pequeno grande leitorado”. Trata-se de um lugar-comum antigo denominado “modéstia afetada”, em que o autor dissimula seu engenho e alega ausência de competência para o exercício de uma determinada tarefa que, neste caso, diz respeito à escrita de um romance. Na sequência, Alencar brinda-nos com outro expediente, muito recorrente nas letras do século XVIII, afirmando que seu texto é a transcrição de um antigo manuscrito carcomido pelos cupins e supliciado pela umidade, encontrado na casa onde morava. Entretanto, no início do prefácio, deixa uma pista valiosa: a narrativa resultante de uma experiência impressionante, ditada pelo coração, que “é sempre verdadeiro” e não diz “senão o que sentiu”. Há uma clara reprodução do argumento antigo, recorrente no gênero historiográfico, segundo o qual a presença do observador constitui-se critério validador da narrativa, pois acaba por atestar sua precisão.

Para Alencar, a história não teria credibilidade, caso prescindisse da imaginação. De acordo com Francisco Ramos (2015, p. 173), com o uso de notas de rodapé nos romances, Alencar buscava conferir legitimidade ao enredo. Em O Guarani, por exemplo, ao longo de cinquenta e nove notas, o autor menciona autoridades como Varnhagen, Gabriel Soares, Aires do Casal e Silva Lisboa, não para funcionar como suplemento à narrativa, mas para integrá-la, injetando na “imagem literária o sumo histórico que lhe dá força para ser uma ficção de fato” (RAMOS 2015, p. 173).

A mesma posição foi assumida pelo literato português Manuel Pinheiro Chagas, autor dos Ensaios Críticos (1866). Na ocasião, ele escreveu que a missão do romancista histórico era “mais grandiosa, mais sublime do que a do próprio historiador”. Ambos consultam as histórias e delas “arrancam os espectros das gerações extintas do seu túmulo secular”, mas o historiador “estende o cadáver na mesa anatômica” e se contenta em “explicar friamente” os mistérios do organismo e investigar “o modo como o fluido vital fazia jogar essas molas, que a morte despedaçou, e cujos segredos o tempo obliterara”. O romancista, por outro lado, “galvaniza o cadáver, restitui-lhe o movimento” de modo que o leitor “vê passar por diante de si não o esqueleto hirto e gélido, mas o corpo animado com o calor da vida, com o fogo das paixões, que o animara, que o abrasara outrora” (CHAGAS, 1866, p. 58). Chagas (1965) não apenas estava a par do projeto brasileiro de constituição de um passado nacional, como também chegou a censurar os romances indianistas de José de Alencar, dizendo que a antiga colônia portuguesa ainda não dispunha de uma literatura nacional.

As notas de rodapé dos romances indianistas alencarianos também foram investigadas por Mirhiane Mendes de Abreu (2002), que detectou a existência de dois narradores: o primeiro é contemplativo, onisciente, responsável pela formulação do enredo; o outro, histórico, além de ditar os termos da leitura, emite juízos de valor e concede credibilidade à trama. A bipartição do narrador, nesse caso, reforça a unidade do romance, pois cada um busca proporcionar, à sua maneira, um mesmo efeito: cativar o leitor (especializado ou não). Além de destacar o papel didático desempenhado pelas notas, Abreu chama nossa atenção também para a esfera estética desse expediente, que permite

elevar seus romances e, consequentemente, a literatura brasileira, uma vez que Alencar havia se encarregado da tarefa de construí-la de modo programático. As citações no rodapé associam os livros a um parentesco com obras famosas e conceituadas, como as de Cervantes, Fielding, Rabelais, muito acostumados com essa prática. Em outras palavras, isso implicava em dizer que as letras nacionais acompanhavam as diretrizes culturais e intelectuais da história da civilização, o que incluía os romances numa tradição. Simetricamente, ao estabelecer para o texto referências antigas, o autor poderia se inscrever nessa linhagem, construindo ao mesmo tempo uma espécie de legado aos futuros escritores (ABREU, 2002, p. 11).

Atento à tradição, Alencar utilizou outras convenções no decorrer do romance. Uma delas pode ser constatada na conversa entre D. Antônio de Mariz e seu filho, D. Diogo:

Eu te reconheço; tu és meu filho; é o meu sangue juvenil que gira em tuas veias, e o meu coração de moço que fala pelos teus lábios. Deixa, porém que os cinquenta anos de experiência que desde então passaram sobre minha cabeça encanecida te ensinem o que vai da mocidade à velhice, o que vai do ardente cavalheiro ao pai de uma família (ALENCAR 1996, p. 136).

Trata-se de uma apropriação da tópica das idades, que Aristóteles (1980, p. 156) desenvolveu em sua Retórica. Para o filósofo, aqueles que atingem a fase adulta “não mostrarão nem confiança excessiva oriunda da temeridade, nem temores exagerados, mas manter-se-ão num justo meio, relativamente a esses dois exemplos”. Em outro momento, ele se ocupa do éthos da velhice: “como viveram muitos anos, e sofreram muitos desenganos, e cometeram muitas faltas, e porque, via de regra, os negócios humanos são malsucedidos, em tudo avançam com cautela e revelam menos força do que deveriam” (ARISTÓTELES 1980, p. 155). O acúmulo de experiência priva-os do ímpeto da juventude, contudo alimenta seu juízo e temperança, de forma a tornálos bons conselheiros. Ao “ardente cavalheiro”, para usar o epíteto de Alencar, falta a experiência do “pai de família”.

A própria ideia de “original” muitas vezes não oculta seu caráter convencional, como num diálogo estabelecido entre Peri e Cecília:

— Então não posso gracejar? Basta que eu deseje uma coisa para que tu corras atrás dela como um louco?

— Quando Ceci acha bonita uma flor, Peri não vai buscar? perguntou o índio.

— Vai, sim.

— Quando Ceci ouve cantar o sofrer, Peri não o vai procurar?

— Que tem isso?

— Pois Ceci desejou ver uma onça, Peri a foi buscar.

Cecília não pôde reprimir um sorriso ouvindo esse silogismo rude, a que a linguagem singela e concisa do índio dava uma certa poesia e originalidade (ALENCAR 1996, p. 39).

Cecília julga encontrar, na argumentação do índio, uma linguagem singela e concisa, uma poesia original que, no entanto, não deixa de desdobrar-se em um silogismo, em que a inovação ocorre nos limites de um raciocínio dedutivo preceituado por Aristóteles.

Ao estudar as matrizes da literatura gótica, Lainister de Oliveira Esteves (2017 p. 258-278) demonstrou que o terror se tornou fonte de deleite estético atrelado ao refinamento do gosto e à invenção de uma “tecnologia de consumo literário baseada na investigação da sensibilidade”. O autor deixou claro que a literatura não surgiu desprovida de convenções, de regras muitas vezes constituídas ou legitimadas pela crítica literária, que enumera os méritos e as faltas dos romances ficcionais. Em tais circunstâncias, não há, na verdade, um abandono das convenções, e sim a formulação de preceitos que deveriam garantir o entretenimento. O romancista teria condições de interferir na trama direcionando a leitura e atribuindo-lhe sentido. À época, o conceito de autoria estava em fase de construção e se baseava não só na auctoritas antiga ou nos critérios imitativos das “belas-letras”, mas também nos direitos naturais e no emergente paradigma estético.

Nos juízos de Alencar também há elementos que possibilitaram a composição de seu romance e a elaboração da figura do índio que, segundo ele, não era como o indígena de Cooper, descrito de forma realista e vulgar. Em O Guarani, o selvagem é um tipo ideal despido da “crosta grosseira de que o envolveram os cronistas” e arrancado do “ridículo que sobre ele projetam os restos embrutecidos da quase extinta raça” (ALENCAR 1893, p. 47). José de Alencar assegurou que não buscou inspiração em obras estrangeiras, ao representar o índio brasileiro. Dessa forma, ele acaba direcionando o olhar do leitor, ao preceituar seu romance e explicitar suas diretrizes. Resta-nos, assim, investigar a composição do éthos indígena, começando pela análise de poemas que o romancista conhecia.

Figurações do índio na tradição épica

Os Feitos de Mem de Sá (De Gestis Mendi de Saa), poema épico de 1563 atribuído ao padre José de Anchieta, tem por matéria as ações prudentes do terceiro governador-geral do Brasil, Mem de Sá, e enfatiza o caráter providencialista de suas façanhas, sobretudo daquelas ligadas às batalhas travadas contra o “gentio” e contra o “herege francês” nas terras brasílicas e arredores. Escrito em latim, esse poema legitima as posições políticas assumidas pela Companhia de Jesus em relação à expansão ultramarina portuguesa. A lisonja, portanto, não é dirigida apenas ao homenageado, que, em sua humildade, se apresenta como “braço” político a serviço da Providência: exalta-se, em especial, a vontade de Deus, da qual Mem de Sá tornava-se Causa Segunda ou instrumento. Entoar um canto em louvor à glória divina, como afirmou Guilherme Luz (2013, p. 69), em seu estudo sobre o poema de Anchieta, é um artifício retórico que reveste a obra de uma importância salvífica e fidedigna, reforça a modéstia do herói e do poeta, ressalta o bom juízo e discernimento do poeta e dispõe de recursos para persuadir e angariar leitores que se identificavam com o teor ético do canto épico. Dessa forma, infere-se que Mem de Sá, ao agir com distinção, esmero e cumprir todas as funções que lhes são confiadas, submete-se Àquele que é, com efeito, merecedor de todo o reconhecimento e devoção. O poeta, nesse sentido, trabalha com um lugar-comum antigo, que concebia a colônia como morada do demônio, agente maligno que manipula os nativos por ignorarem a fé cristã. Ciente disso, Anchieta construiu o heroísmo da família Sá, atuando em duas frentes: banindo o Diabo das “terras do sul” e trazendo características humanas ao “gentio inumano” por meio da catequese.

Os índios Tamoios e os portugueses estavam em guerra, quando o poema de Anchieta foi escrito. O conflito, como já referimos, foi objeto do poema A Confederação dos Tamoios, resultado de um projeto romântico para a formulação de uma epopeia nacional. O escritor carioca aplicou as convenções e lugares-comuns recomendados pelo ideário romântico, de temática indianista e linguagem grandiloquente, em que a écfrase era privilegiada. Como muitos de seus contemporâneos, adotou o gênero épico para representar a história e figurar uma nova concepção de tempo, progressiva e linear, tratando-se de uma teleologia submetida à ordem providencial. Destacam-se o papel central conferido ao indígena e a projeção de um horizonte antiescravista. Gonçalves de Magalhães encarou a escravidão como um “mal herdado” e como algo que confrontava a lei divina, sendo “fruto não tanto da colonização em si, cujos esforços cristianizadores não deixam de ser elogiados, mas antes de uma disposição moral do colono” (FERRETTI 2015, p. 182). Sendo assim, os colonos representariam o “extremo negativo da moral egoísta”, moral que, no poema, foi personificada pelo senhor de escravos Brás Cubas.

Os jesuítas representavam “o princípio redentor da história brasileira, pois encarnavam a moral religiosa a serviço da liberdade” (FERRETTI 2015, p. 183). Os padres tentavam, por um lado, combater a escravidão indígena e, por outro, atenuar os suplícios do cativeiro. Os índios, por sua vez, foram representados como agentes dotados de índole livre, hábitos sociais brandos e religiosidade natural. Assim, os indígenas e, em especial o herói da epopeia, Aimbire, se aproximaram dos jesuítas e da moral cristã, justamente por encarnarem esse éthos heroico.

Se, na posição de poeta, Anchieta celebrou os feitos da Companhia da qual fazia parte; no poema de Magalhães ele é uma personagem que buscava, na companhia de Nóbrega, negociar a paz entre os Tamoios e as coroas ibéricas. Emissário da fé, intérprete da lei santa, homem zeloso, missionário caridoso, agente da virtude: esses e vários outros epítetos foram utilizados para caracterizar o jesuíta. O índio Aimbire, escalado como herói do poema, ao ouvir Anchieta pregar sobre a alma, a vida eterna, a glória celeste, a danação eterna etc., questionou se os portugueses não conheciam a doutrina em questão, uma vez que moviam guerra assídua contra eles, sem temer a ira de Deus e, muitas vezes, desobedecendo às suas leis. Se, no épico de Anchieta, o demônio agia aproveitando-se da frágil condição do gentio; no poema de Magalhães, são os colonos portugueses as vítimas de sua malícia. Satanás buscava colocar os índios contra os jesuítas por meio de um discurso que imita, de perto, as imprecações que, em poemas pretéritos, foram proferidas por divindades pagãs:

[...] Como, oh lusos!

Não ouvis os conselhos de Anchieta?

Sofrei o ardente sol deste ígneo clima;

Trabalhai, e regai co’o suor vosso

A conquistada terra, enquanto os índios, A quem deveis respeito e amor fraterno, Livres pelos desertos se recreiam.

Eles senhores são, e vós escravos!

Se eles vos atacarem, pacientes

Suportai suas frechas matadoras;

Que das vossas cabanas se apoderem;

E vós, orai a Deus, morrei humildes (MAGALHÃES 1864, p. 230).

A ironia de Lúcifer é engenhosa: ele utilizou a benevolência, a misericórdia como indicativo de fraqueza e caminho para a escravidão. Na sequência, ele afirmou que virtudes e vícios são vãs palavras, que o instinto e o interesse são tudo o que importa. Alegou, ainda, que, entre gregos e romanos, era atitude corriqueira escravizar e/ou assassinar os inimigos vencidos. Note-se, portanto, que os antigos foram referidos como modelos dignos não de elogios, mas de censura, afinal, a defesa de seus costumes foi efetuada pela falta de juízo do Diabo, principal agente do mal em se tratando do universo cristão.

No entanto, nem todo poema épico legitimou a ação missionária dos jesuítas. Em O Uraguai, Basílio da Gama não dissimulou o caráter antijesuíta de seus versos. Ivan Teixeira apreendeu a obra como uma intervenção artística na controvérsia europeia sobre o conceito e a prática do absolutismo monárquico. Logo, ela opera uma defesa à centralização do poder e tematiza o ministério de Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal. Trata-se de uma lisonja ao Conde de Oeiras e de uma sátira aos jesuítas.

Os conceitos pombalinos foram transformados em matéria-prima da fábula e da elocução do poema. Há, na crítica aos padres, a referência ao regicídio, sob uma acusação grave contra a Companhia, personificada por meio da figura do padre Balda. Essa personagem foi responsabilizada por usurpar a inocência dos índios e por se opor às luzes, mostrando-se ardiloso, perverso e tirânico. Gama, por meio da guerra guaranítica (1752-1756), elogiou não apenas as luzes pombalinas, como também o exército português e o índio americano, detentor de virtudes, porém conduzido pelas mãos dos jesuítas. Ao mesmo tempo em que ajuizou sobre as partes envolvidas, o poeta desenvolveu a proposta de uma ação que deveria culminar na extinção da ordem. Sendo assim, nos termos de Ivan Teixeira (2008, p. 159), colocou a ficção a serviço da história.

Os índios foram figurados como braços não da Providência, e sim dos “bons padres” jesuítas, verdadeiros opositores à racionalidade iluminista do Conde de Oeiras. Os “braços” indígenas foram mobilizados por uma causa vil, sendo a Ordem detentora de vícios negativos, tais como ignorância, inveja, discórdia, furor, hipocrisia. “Nesse embate entre os dois poderes, o da Companhia de Jesus, cujo braço armado seriam os índios inocentes, e o do general Gomes Freire de Andrade, representante dos governos de Portugal e de Espanha, o índio - ‘o rude Americano’ - é, duplamente, derrotado: pelas armas, como de fato o foi no plano histórico, e pela prevalência da razão do colonizador, como pensa o poeta-narrador” (TEIXEIRA 2008, p. 259).

Embora os três exemplares evocados nesse tópico apresentem características comuns ao gênero épico e abordem, em suas respectivas matérias poéticas, temas com algum grau de parentesco, cada qual cumpriu papel singular: o poema de Anchieta destinavase a um auditório discreto, douto, que dominava o latim. Além disso, configurou o índio a partir do ponto de vista da própria Companhia de Jesus, poucas décadas após sua criação, o que explica o retrato do “mouro” como potencial cristão afastado de Deus pelos maus costumes.

Gonçalves escreveu sua epopeia na segunda metade do século XIX, momento em que a retórica havia desmoronado e os efeitos do Romantismo se faziam sentir por toda parte. Quando escreveu seu poema, estava preocupado em reforçar a ideia de nação e destacar o seu sentido providencial, atribuindo um papel nuclear à Companhia, bem como ao índio nativo das terras brasileiras.

Gama encenou, poeticamente, preceitos pombalinos associados ao despotismo esclarecido, projetando a extinção da Ordem dos Jesuítas e a promoção de uma educação associada aos interesses do Estado.

Embora detivesse muitas virtudes, algumas delas manifestadas pela moldura racional de sua fala, o índio teria sido enganado pela intervenção dos padres da Companhia e precisou ser combatido pelos verdadeiros “braços” das coroas ibéricas, liderados pelo governador Gomes Freire de Andrade. Escritos nos séculos XVI, XVIII e XIX, tais poemas retomaram discussões de seu presente, mobilizaram as ferramentas de um gênero milenar, recorrente no tempo de Anchieta, “ilustrado” à época do Marquês de Pombal e “nacionalizado” no contexto do romantismo e do indianismo brasileiros.

O índio Peri

Em O Guarani, distinguem-se dois grandes perfis heroicos: o primeiro é português, encabeçado por D. Antônio de Mariz; o outro é guarani e representado pelo índio goitacá Peri, que passou a servir à família do fidalgo. O nobre português acompanhou Mem de Sá ao Rio de Janeiro e, depois da vitória contra as tribos locais, auxiliou o governador na edificação da cidade. Além de ter lutado contra os índios, também enfrentou os franceses. Como recompensa pelos serviços prestados à coroa, recebeu uma sesmaria situada às margens do rio Paquequer, que ele viria a ocupar após a União Ibérica. Peri, depois de salvar Cecília, ganhou a simpatia de D. Antônio de Mariz e passou a conviver com a família, apesar da desconfiança nutrida pela esposa do fidalgo, Dona Lauriana. Embora fosse destituído dos títulos de nobreza, o índio não deixava de demonstrar outra espécie de nobreza:

O filho das matas, voltando ao seio de sua mãe, recobrava a liberdade; era o rei do deserto, o senhor das florestas, dominando pelo direito da força e da coragem. As altas montanhas, as nuvens, as catadupas, os grandes rios, as árvores seculares, serviam de trono, de dossel, de manto e cetro a esse monarca das selvas cercado de toda a majestade e de todo o esplendor da natureza (ALENCAR 1996, p. 240).

O éthos de Peri fica ainda mais evidente quando o autor ressaltou as diferenças entre ele e Álvaro de Sá, pretendente de Cecília:

Os dois homens olharam-se, um momento, em silêncio; ambos tinham a mesma grandeza de alma e a mesma nobreza de sentimentos; entretanto as circunstâncias da vida haviam criado neles um contraste. Em Álvaro, a honra e um espírito de lealdade cavalheiresca dominavam todas as suas ações; não havia afeição ou interesse que pudesse quebrar a linha invariável, que ele havia traçado, e era a linha do dever. Em Peri a dedicação sobrepujava tudo; viver para sua senhora, criar em torno dela uma espécie de providência humana, era a sua vida; sacrificaria o mundo se possível fosse, contanto que pudesse, como o Noé dos índios, salvar uma palmeira onde abrigar Cecília (ALENCAR 1996, p. 133).

Haveria uma relação, uma correspondência entre a exuberante natureza brasileira e o heroísmo do índio goitacá:

Álvaro fitou, no índio, um olhar admirado. Onde é que esse selvagem sem cultura aprendera a poesia simples, mas graciosa; onde bebera a delicadeza de sensibilidade que, dificilmente, se encontra num coração gasto pelo atrito da sociedade? A cena que se desenrolava a seus olhos respondeu-lhe; a natureza brasileira, tão rica e brilhante, era a imagem que produzia aquele espírito virgem, como o espelho das águas reflete o azul do céu (ALENCAR 1996, p. 93).

Alencar (1856, p. 43) encontrou em Peri o poeta que não conseguiu vislumbrar em Magalhães e que, ao longo de sua carreira como romancista, buscou tornar-se:

O homem que nasceu, embalou-se e cresceu nesse berço perfumado; no meio de cenas tão diversas, entre o eterno contraste do sorriso e da lágrima, da flor e do espinho, do mel e do veneno, não é um poeta? Poeta primitivo, canta a natureza na mesma linguagem da natureza; ignorante do que se passa nele, vai procurar nas imagens que tem diante dos olhos, a expressão do sentimento vago e confuso que lhe agita a alma. Sua palavra é a que Deus escreveu com as letras que formam o livro da criação; é a flor, o céu, a luz, a cor, o ar, o sol; sublimes coisas que a natureza fez sorrindo (ALENCAR 1996, p. 94).

A poesia do índio tem por matéria seu próprio meio, o que torna dispensável o uso de qualquer artifício. O mesmo não ocorre com os Aimorés, que não extraem a sublimidade das florestas que os circundam:

Os lábios decompostos, arregaçados por uma contração dos músculos faciais, tinham perdido a expressão suave e doce que imprimem o sorriso e a palavra; de lábios de homem se haviam transformado em mandíbulas de fera afeitas ao grito e ao bramido. Os dentes agudos como a presa do jaguar, já não tinham o esmalte que a natureza lhes dera; armas ao mesmo tempo que instrumento da alimentação, o sangue os tingira da cor amarelenta que têm os dentes dos animais carniceiros. As grandes unhas negras e retorcidas que cresciam nos dedos, a pele áspera e calosa, faziam de suas mãos, antes garras temíveis, do que a parte destinada a servir ao homem e dar ao aspecto a nobreza do gesto. Grandes peles de animais cobriam o corpo agigantado desses filhos das brenhas, que a não ser o porte ereto se julgaria alguma raça de quadrúmanos indígenas do novo mundo (ALENCAR 1996, p. 189).

O heroísmo selvagem de Peri contrapõe-se ao porte animalesco dessa tribo canibal. Apesar de sua “pele de cobre”, o protagonista carregava consigo uma alma portuguesa, como D. Antônio de Mariz reforçou, ao contemplar as grandes façanhas do índio. Suas características físicas também não reproduziam a desproporção monstruosa dos aimorés:

Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor de cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos e cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza inculta da graça, da força e da inteligência (...). Era de alta estatura; tinha as mãos delicadas; a perna ágil e nervosa, ornada com uma axorca de frutos amarelos, apoiava-se sobre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida (ALENCAR 1996, p. 14).

As diferenças entre os nobres portugueses e o índio protagonista são, basicamente, três: a cultura, a fé e a origem. No que diz respeito às virtudes, à moral, eles se equivaliam.

Símbolo de liberdade, o índio se tornou, nas palavras de Abreu (2002, p. 167), “o registro da fortuna do país e veículo de fundamentação da literatura brasileira”. A ficção de Alencar, portanto, seguindo as pegadas de autores como Chateaubriand, Dumas, Victor Hugo, investiu em elementos da natureza, descrevendo rios, florestas, o que gera “no leitor o impacto da idealização do aborígene e da sua vida em estado de pureza”. Abreu (2002, p. 168) reafirma a importância das notas de rodapé, ao perceber, nos romances, que os índios são “elementos de idealização cujos atributos físicos e morais, bem como o espaço por onde circulavam, encontrarem-se afastados do homem seu contemporâneo”. Trata-se, portanto, de uma forma outra de recontar a história do Brasil, tomando como base o projeto nacionalista que se baseia e, simultaneamente, é fundado pela literatura então emergente. Como insiste a autora, o

recuo a épocas pretéritas e a espaços ermos corresponde a uma ordem causal como fórmula capaz de recair sobre o presente e sobre a imagem do Brasil e de brasileiros da era oitocentista. Alinhando as ideias de enaltecimento, controlando e regulando as fontes de que se serviu, José de Alencar elaborou condições objetivas para fazer do índio elemento de exclusiva adoração e, tentando repelir contrariedades a propósito, redigiu, em paralelo aos romances, uma prosa de citação, atitude, aliás, perfeitamente concorde com os ditames estéticos, culturais e ideológicos daquele momento (ABREU 2002, p. 168).

Resta avaliar como, ao longo do romance, os cenários descritos - os rios, as florestas - serviram de palco para a manifestação do éthos heroico. É preciso compreender de que maneira José de Alencar mobilizou um conjunto de convenções para (re)produzir a nação brasileira e os valores artísticos e políticos de seu presente.

Locus amoenus / locus horrendus

Quando Cecília resolveu ficar com Peri, deixando de lado a vida civilizada, o autor retratou um locus amoenus, um lugar ameno por meio do qual a personagem foi figurada como verdadeira ninfa a imperar em seus domínios naturais:

Cecília devia pois ficar tranquila como se estivesse em um palácio; e de fato era um palácio de rainha do deserto esse sombrio cheio de frescura a que a relva servia de alcatifa, as folhas de dossel, as grinaldas em flores de cortinas, os sabiás de orquestra, as águas de espelho, e os raios do sol de arabescos dourados (...). Ela pertencia, pois, mais ao deserto do que à cidade; era mais uma virgem brasileira do que uma menina cortesã; seus hábitos e seus gostos prendiam-se mais as pompas singelas da natureza, do que às festas e às galas da arte e da civilização (ALENCAR 1996, p. 243).

O mesmo ambiente, na sequência, tornou-se um locus horrendus, prenúncio de um cataclismo:

Sobre a linha azulada da cordilheira dos Órgãos, que se destacava num fundo de púrpura e rosicler, amontoavam-se grossas nuvens escuras e pesadas, que, feridas pelos raios do ocaso, lançavam reflexos acobreados. O horizonte, sempre negro e fechado, se iluminava às vezes com um lampejo fosforescente; um tremor surdo parecia correr pelas entranhas da terra e fazia ondular a superfície das águas, como o seio de uma vela enfunada pelo vento.

De repente um rumor surdo e abafado, como de um tremor subterrâneo, propagando-se por aquela solidão, quebrou o silêncio profundo do ermo (ALENCAR 1996, p. 249).

De acordo com Eduardo Martins, a aproximação da tempestade foi indicada “por uma espécie de crescendo, que solicita um novo sentido a cada descrição: a primeira é puramente visual; a segunda é visual e tátil (“tremor”, “ondular”); a terceira é visual, tátil e auditiva (“rumor”)”. A atração do Romantismo pelos elementos ameaçadores da natureza, como lembra o autor, pode ser relacionada ao livro de Edmund Burke Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Suas ideias foram divulgadas no Brasil pelas Lectures on rhetoric and belles letres (1783), de Hugh Blair e por seus seguidores oitocentistas, como o português Francisco Freire de Carvalho, autor de Lições elementares de poética nacional (1840). Conhecedor desses manuais, Alencar teria colocado em cena elementos “aptos a criar a ambiência adequada à grandiosidade do desfecho do romance: explosão, incêndio, tempestade, estrondos, inundação (fontes do sublime na natureza), resignação perante a morte, coragem e força sobre-humanas para afrontar as fúrias dos homens e da natureza (fontes do sublime moral)” (MARTINS 2013, p. 463-464). Sendo assim,

como um selvagem que, sem palavras para expressar o sentimento de exaltação diante das belezas que o circundam, lança mão de tropos provocados pela necessidade, a vertiginosa sequência de imagens projetada sobre o Paquequer ou sobre o Paraíba deveria sugerir, não apenas a grandeza e a força dos rios, mas o sentimento de sublime arrebatamento que a sua contemplação provoca no observador. O quadro da natureza transcende a dimensão descritiva para se converter numa espécie de panegírico por meio do qual o narrador manifesta sua admiração diante do cenário e procura suscitar a mesma paixão no leitor (MARTINS 2013, p. 467).

Elementos sinestésicos foram reunidos para pintar os efeitos produzidos pela enchente do rio Paraíba, equiparada a um dilúvio:

Peri estremeceu: ergueu a cabeça e estendeu os olhos pela larga esteira do rio, que, enroscando-se como uma serpente monstruosa de escamas prateadas, ia perder-se no fundo negro da floresta. [...]

Então no fundo da floresta troou um estampido horrível, que veio reboando pelo espaço; dir-se-ia o trovão correndo nas quebradas da serrania.[...]

Com efeito, uma montanha branca, fosforescente, assomou entre as arcarias gigantescas formadas pela floresta, e atirouse sobre o leito do rio, mugindo como o oceano quando açoita os rochedos com as suas vagas. [...]

A torrente passou, rápida, veloz, vencendo na carreira o tapir das selvas ou a ema do deserto; seu dorso enorme se estorcia e enrolava pelos troncos diluvianos das grandes árvores, que estremeciam com o embate hercúleo.

[...]

Depois, outra montanha, e outra, e outra, se elevaram no fundo da floresta; arremessando-se no turbilhão, lutaram corpo a corpo, esmagando com o peso tudo que se opunha à sua passagem. [...]

Dir-se-ia que algum monstro enorme, dessas jiboias tremendas que vivem nas profundezas da água, mordendo a raiz de uma rocha, fazia girar a cauda imensa, apertando nas suas mil voltas a mata que se estendia pelas margens. [...]

Ou que o Paraíba, levantando-se qual novo Briareu no meio do deserto, estendia os cem braços titânicos, e apertava ao peito, estrangulando-a em uma convulsão horrível, toda essa floresta secular que nascera com o mundo. [...]

As árvores estalavam; arrancadas do seio da terra ou partidas pelo tronco, prostravam-se vencidas sobre o gigante, que, carregando-as ao ombro, precipitava para o oceano. [...]

O estrondo dessas montanhas de água que se quebravam, o estampido da torrente, o troar do embate desses rochedos movediços, que se pulverizavam enchendo o espaço de neblina espessa, formavam um concerto horrível, digno do drama majestoso que se representava no grande cenário.[...]

As trevas envolviam o quadro e apenas deixavam ver os reflexos prateados da espuma e a muralha negra que cingia esse vasto recinto, onde um dos elementos reinava como soberano. [...]

A inundação tinha coberto as margens do rio até onde a vista podia alcançar; as grandes massas de água, que o temporal durante uma noite inteira vertera sobre as cabeceiras dos confluentes do P araíba, desceram das serranias, e, de torrente em torrente, haviam formado essa tromba gigantesca que se abatera sobre a várzea (ALENCAR 1996, p. 251-252).

Todo esse investimento descritivo buscou suprir uma grave falta constatada na epopeia de Gonçalves de Magalhães, que não soube se valer “dessas descrições a que os poetas chamam quadros ou painéis, e nas quais a verdadeira, a sublime poesia revela toda a sua beleza estética, e rouba para assim dizer, à pintura as suas cores e os seus traços, à música as suas harmonias e os seus tons” (ALENCAR 1856, p. 17).

Há nexos entre as descrições de Alencar e a tópica horaciana do ut pictura poesis (ALENCAR 1893, p. 40), quando se leva em consideração as inúmeras figuras utilizadas para figurar o cataclismo e seus efeitos. Muitas delas, inclusive, reforçariam o sublime que o romancista teria vislumbrado, ao transitar pelas florestas brasileiras (ALENCAR 1893, p. 8). À descrição exuberante, somam-se a ampliação dos incidentes (trombas gigantescas, serpente monstruosa de escamas prateadas); a obscuridade que ofusca a vista (trevas, neblina espessa, muralha negra, fundo negro da floresta); os efeitos sonoros horrendos (estampido horrível, estrondo das ondas, árvores que estalavam); sem falar nas hipérboles (mil voltas), nas metáforas topográficas (associação entre ondas e montanhas) e nas comparações com monstros (jiboias gigantescas) e figuras mitológicas (Briareu). Os elementos sublimes produzem a evidentia, projetando a imagem para que os leitores consigam visualizar os objetos descritos. Trata-se de um efeito ecfrásico, ou seja, da mobilização de recursos linguísticos propícios a levar às últimas consequências a associação entre os ofícios do poeta e do pintor.

Descrição é a pedra de toque da imaginação do Poeta, e a que faz diferençar facilmente o engenho original do talento meramente copista. Na verdade quando um escritor medíocre empreende descrever a Natureza, figurasselhe, que todos quantos o precederam, tem esgotado a matéria; nada descobre novo e particular no objeto, que intenta pintar; a imagem que dele forma é vaga e mal circunscrita: consequentemente as suas expressões são fracas e gerais. Pelo contrário o verdadeiro Poeta põe diante dos olhos de seus leitores o objeto que descreve, sem lhe escapar nenhuma de suas feições mais notáveis; pinta-o com as suas cores naturais; dá-lhe uma existência, uma vida real; coloca enfim esse objeto debaixo de um ponto de vista tão adaptado e frisante, que o pintor pode em um quadro facilmente copia-lo (CARVALHO 1840, p. 82).

O “verdadeiro Poeta” detém-se nas “feições mais notáveis” do objeto. Sua tarefa não se resume a criar uma réplica ou reproduzir a empiria na “tela”. Faz-se necessário ver, para, em seguida, fazer ver. A matéria sublime, segundo Franklin Távora, deveria ser buscada “dentro das soturnas cavernas, do seio dos vales intermináveis, de cima dos rios oceânicos, dos recessos da mansão opaca das selvas”. O artista ficaria incumbido de acordar “os ecos de dramas tremendos que aí jazem adormecidos, na necrópole de séculos” (TÁVORA 1872, p. 218). A natureza, com sua infinita variedade de encantos, concede ao artífice o material que “a imaginação sadia recolhe para dar-lhe mil feições graciosas, ainda não conhecidas. O fluido propriamente original e imaginoso é apenas aplicado a dar o tom, o equilíbrio, o reflexo estético às criações reais” (TÁVORA 1872, p. 16). Ao ato testemunhal, por meio do qual o artista retém na memória os frutos de sua observação, deveria se juntar o juízo estético, que permite capturar e retratar o belo que a natureza comporta. Assim, os dados recolhidos pela experiência deveriam ser depurados para fornecer uma imagem ideal apta a proporcionar prazer.2 Távora criticou os romances de Alencar, ao identificar as falhas de sua refinaria estética, circunscrita aos limites de seu gabinete. Se “Homero, Cervantes, Ariosto, Byron, tivessem vivido encerrados num ergástulo, o que teriam podido imaginar? Que criação teriam dado ao mundo?” (TÁVORA 1872, p. 147). Tal forma de encarar a importância da observação e a transcendência da natureza brasileira estão presentes nos versos de Gonçalves de Magalhães (1864, p. 10):

As sonhadas ficções da mente humana;

Malignos Faunos, pudibundas Ninfas Nestas virgens florestas não vagueiam:

Grande como saiu das mãos do Eterno, A Natureza é tudo, e excede ao homem.

Que há de bem cedo emparelhar com ela!

Oh plácido remanso! Aqui a mente

Repousa, e se deleita em contemplá-lo;

E no íntimo da alma, que se espraia, Ressoa de seu Deus a voz cadente, Como ressoa em bosques de palmeiras Vago sopro das auras matutinas.

Com esse fragmento, o poeta aponta para o desajuste entre as mitologias europeias (sonhadas ficções) e as terras brasílicas e assinala a conexão entre a contemplação deleitosa da natureza e a audição da “voz candente” de Deus “no íntimo da alma”. O juízo estético proveniente dessa “audição transcendental” garantiria a tão perseguida originalidade e dispensaria o artifício:

Nunca humano pincel pôde a Natura

Ao vivo retratar; ela numa hora, Por mágico poder tais quadros forma, E o homem de pintá-lo desespera; Vinde saudar a virgem natureza, Oh artista da Europa encanecida!

Vinde inspirar-vos neste Paraíso, Que de humano artifício não carece

Para mostrar-se grandioso e belo (MAGALHÃES 1864, p. 108-109).

A natureza não carece de “humano artifício”, mas o artífice, para representar suas características sublimes, deveria visitá-la sem a pretensão de esgotar seus atributos. Ao depurá-la, seus aspectos grandiosos e belos estariam à disposição do público. Entretanto, para sustentar que Gonçalves de Magalhães não teria atingido os efeitos esperados, José de Alencar convidou o leitor a passear pelas florestas brasileiras, ao meio-dia, para contemplar sua majestade primitiva. A Confederação dos Tamoios não conseguiu traçar esse quadro grandioso porque se limitou a detalhes como as evoluções dos pirilampos e deixou de lado o conjunto da obra (ALENCAR 1856, p. 14). Isso contraria o que Alencar afirmou na terceira carta: “A poesia é como a pintura, cujos quadros devem ser olhados a uma certa distância para produzirem efeito” (ALENCAR 1856, p. 32). Negligenciar a distância adequada prejudica o resultado por subtrair, do quadro, o que ele tem de sublime e, da natureza, o que ela tem de majestoso.3

No século XIX, as diferenças entre imitação/emulação e plágio tornaram-se tênues, devido, sobretudo, ao novo paradigma artístico, que buscava sobrepujar uma arte amparada na mimese aristotélica. Assim, frente à acusação de que O Guarani é “um romance ao gosto de Cooper”, Alencar afirmou que é preciso examinar se suas descrições “têm algum parentesco ou afinidade com as descrições de Cooper”. Porém, “isso não fazem os críticos, porque dá trabalho e exige que se pense”. Bastaria “o confronto para conhecer que não se parecem nem no assunto, nem no gênero e estilo” (ALENCAR 1893, p. 48). Na ocasião, o romancista defendia-se da acusação de plágio, um vício capital frente às exigências de uma matéria autêntica. Para pintar com suas “cores naturais”, ilustrar a “cor local”, considerava-se inadmissível imitar outros índios e outras exuberâncias naturais, pois o sublime não correspondia a uma conjunção de figuras de eloquência, condizia com a transposição da exuberância natural filtrada pelo espírito e inspirada pela Providência. Como advertiu Eduardo Wright Cardoso (2018), é preciso considerar a multiplicidade semântica relacionada à concepção de “cor local”. Na crítica que José de Alencar dirigiu à epopeia de Gonçalves de Magalhães, por exemplo, a expressão acomoda sentidos particulares: uma oportuna descrição da paisagem; a adequação dos personagens ao meio; uma representação precisa do real; e o emprego de um vocabulário pictórico adequado. O plágio, no caso, suplantaria, além dos direitos autorais, os talentos de uma jovem nação independente que buscava, nos primórdios da colonização, autonomia cultural e sua marca identitária.

Considerações finais

Não é novidade que Alencar tenha empregado em suas obras elementos provenientes de antigos gêneros retórico-poéticos. Em sua tese de doutorado, Eduardo Martins (2003) estudou diversos elementos retóricos presentes nas letras alencarianas, como as noções de decoro e verossimilhança. Além disso, o autor analisou figuras de linguagem como hipérboles e amplificações, recorrentes nos romances indianistas do literato. Ao longo do trabalho, Martins evidencia que as esferas da retórica e do romantismo não são incomunicáveis, isto é, as convenções utilizadas, provenientes de autores mais ou menos antigos, amparam um projeto de literatura voltado para a emancipação de uma nação que, por intermédio de romancistas e historiadores, buscava no passado os traços de sua originalidade, encontrada especialmente na figura do índio. As notas históricas, analisadas com pormenores por Mirhiane Mendes de Abreu (2002), estabelecem um nexo entre as autoridades evocadas e os argumentos fictícios enredados, conferindo legitimidade à trama e orientando a leitura do romance. Assim como as epístolas, que Alencar utilizou para exercer a posição de crítico, as notas podem ser concebidas como expediente capaz de situar os escritos do autor frente ao projeto nacional e às polêmicas envolvendo a produção historiográfica.

A crítica brasileira, conforme observa Lainister Esteves, “vinculou o projeto de construção da nacionalidade e o processo de consolidação da independência política do Brasil com a autonomização da produção literária”. Assim, obras fictícias não afeitas ao respectivo ideal foram consideradas menores “seja pela falta de refinamento estético - traduzida como incapacidade de apreensão do real -, seja pela vocação para o simples entretenimento nas horas de ócio” (ESTEVES 2017, p. 35). Tomando como base trabalhos de Antonio Candido, o autor demonstrou desconforto frente à ideia de que a “brasilidade” tratava-se de um “critério de valor e traço de originalidade” definidor dessa arte então emergente. O “sistema” literário teria adquirido autonomia em relação às Letras portuguesas, por amparar-se na expressão local e na construção do nacional. Não é sem propósito que a invenção da nação e a “formação” da literatura ocorreram simultaneamente. Era com temáticas voltadas para a “cor local” que os escritores, em seus respectivos estilos, ganhariam autonomia, livrando-se em definitivo das “amarras” lusitanas e dos artifícios retóricos.

Ao longo do trabalho, além de desconstruir os anacronismos da crítica quanto à formação de uma literatura nacional, Esteves demonstrou que temas como inovação e arte espontânea foram adotados para dissimular o caráter convencional da literatura. Se é possível falar de inovação, ela desdobra-se, em O Guarani, de uma conjunção de artifícios voltados para a produção de um passado que se ancora em três elementos fundamentais: a natureza, o indígena e a língua “primitiva”. Quando, no final do romance, Peri arranca uma palmeira do solo para transformá-la em uma jangada, Alencar afirma que “Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das águas” (ALENCAR 1996, p. 253). Após a fusão entre o aborígene e seu habitat, Ceci afirma que Deus, sentado em seu trono celeste, os aguardava. No final, a palmeira foi arrastada pela “torrente impetuosa” e desapareceu no horizonte. Talvez o leitor imagine que a trama não tenha alcançado um desfecho: de fato, aquele não foi o fim do casal, mas o início de uma nação.

O nacionalismo “legítimo”, segundo críticos como Silvio Romero (1888, p. 15) e José Veríssimo (1916, p. 90), deveria nascer de forma espontânea, e não por intermédio da imitação de artifícios recolhidos em obras estrangeiras que não carregavam consigo traços da “cor local”. Tal expressão, como se pode ver, foi empregada não somente para fundamentar as escolhas estilísticas e estéticas promovidas pelos literatos, mas também para qualificar a literatura com base nos juízos da crítica especializada. A espontaneidade passou a ser desdobramento de um espírito evoluído capaz de acompanhar a marcha histórica do progresso e de se rebelar contra a opressão portuguesa para “fundar” a tão afamada autonomia cultural. Não por acaso, o caráter datado dos códigos linguísticos foi sacrificado em prol de uma “transcendência” literária (ESTEVES 2017, p. 22). Como o elemento transcendente é a-histórico, isto é, não se submete à cronologia, não é de se estranhar que a crítica tenha inventado uma teleologia eivada de obras canônicas distribuídas em etapas da formação brasileira. A eleição do cânone, baseada em critérios estéticos assentados no gosto e em políticas nacionais, acabou inventando um Olimpo literário; justo esse elenco de críticos tão pouco afeito à imaginação mitológica e à importação de plantas exóticas colhidas em território estrangeiro...

REFERÊNCIAS

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Notas

1 Sobre o assunto cf. CAMPATO JR 2008.
2 Sobre o assunto cf. MARTINS 2011.
3 José Veríssimo foi severo, ao caracterizar a poesia de Magalhães. Cf. VERÍSSIMO 1916, p. 90.

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