Artigo de revisão

Os estudos do futebol na Inglaterra: um balanço bibliográfico da produção acadêmica sobre hooliganismo

Football studies in England: a bibliographic review of the literature on hooliganism

Bernardo Borges Buarque de Hollanda
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Brasil

Os estudos do futebol na Inglaterra: um balanço bibliográfico da produção acadêmica sobre hooliganismo

História da Historiografia, vol. 14, núm. 35, pp. 289-318, 2021

Brazilian Society for History and Theory of Historiography (SBTHH)

Recepção: 09 Abril 2020

Aprovação: 30 Janeiro 2021

RESUMO: O artigo apresenta o debate bibliográfico sobre os estudos futebolísticos na Inglaterra, delineando as principais vertentes de análise e interpretação da violência no esporte, fenômeno comportamental associado ao profissionalismo esportivo na segunda metade do século XX. Visa-se expor as matrizes mais importantes de pensamento - autores, obras e instituições - que se debruçaram sobre o comportamento de grupos de torcedores, dentro e fora dos estádios daquele país, entre as décadas de 1960 e o início dos anos 2000. Sustenta-se que a chamada Escola de Leicester, reunida ao redor da figura de Norbert Elias, em especial seu discípulo Eric Dunning, foi capaz de desenvolver o mais extenso referencial teórico de explicação histórico-sociológica para as brigas intergrupais e a sua “busca da excitação”, decorrente das rixas e das emulações entre adeptos de diferentes clubes ingleses. De forma contemporânea aos acontecimentos que procura analisar, entende-se que o subcampo de estudos intitulado “hooliganismo” na Grã-Bretanha é tributário da hegemonia interpretativa eliasiana e balizou a leitura dos sentidos de um “processo civilizador” entre o público seguidor dos esportes modernos, com ênfase a seus períodos conjunturais de “descivilização”. É desse modo que se opera um “antes”, isto é, as correntes que trouxeram as primeiras análises para a explicação da violência hooligan no futebol até os anos 1970, e um “depois”, ou seja, os pesquisadores que a partir dos anos 1990 procuraram rever os paradigmas da Leicester School e, no limite, formularam uma crítica a seus pressupostos, a fim de superá-los.

PALAVRAS-CHAVE: História social dos esportes, Futebol na Inglaterra, Hooliganismo.

ABSTRACT: This article presents the bibliographic debate on football studies in England, outlining the main aspects of analysis and interpretation of football violence, a behavioral phenomenon associated with professional sports in the second half of the 20th century. The objective is to present the most important matrices of thought - authors, studies and institutions - that focused on the behavior of groups of fans, inside and outside the stadiums of that country, between the 1960s and the early 2000s. The so-called Leicester School, gathered around Norbert Elias, especially his disciple Eric Dunning, was able to develop the most extensive theoretical framework of historical-sociological explanation for intergroup fights and their “search for excitement”, resulting from the feuds and emulations between supporters of different English clubs. Contemporary to the events analyzed, this article shows that the subfield of studies entitled “hooliganism” in Great Britain originates from the Eliasian interpretive hegemony and marks the reading of the meanings of a “civilizing process” among modern sports audiences, with emphasis on its cyclical periods of “decivilization”. Two moments are then discussed, a “before” - that is, the currents that brought the first analyses to explain hooligan violence in football until the 1970s - and an “afterwards” - researchers who, from the 1990s, sought to revise the paradigms of the Leicester School and formulated a critique of their assumptions in order to overcome them.

KEYWORDS: Social history of sports, Football in England, Hooliganism.

Introdução

O presente artigo tem a finalidade de prover um balanço da bibliografia inglesa dedicada ao futebol, em particular a um subcampo de estudos intitulado nativamente de football hooliganism. As pesquisas acadêmicas tiveram início mais sistemático na década de 1960 e se estendem até o presente, acompanhando o impacto da repercussão pública do fenômeno no país, sob a denominação, em seus períodos mais críticos, de English disease. Com base no levantamento da bibliografia especializada, colhida na British Library e em bibliotecas universitárias daquele país durante período de pósdoutoramento, colocaremos em destaque as correntes e os intérpretes que procuraram examinar as práticas e os significados da violência interclubista e intergrupal de torcedores de futebol no país ao longo de cinco décadas.

Dada a impossibilidade de abranger todo o volume de títulos hoje existentes e acumulados nos acervos compulsados, entre artigos, capítulos e livros - Pearson e Scott falam em over-researched field (2007, p. 37) -, concentrar-me-ei em um conjunto determinado de instituições e pesquisas. Estas, de maneira mais coesa e coletiva, procuram na Inglaterra compreender a subcultura hooligan, com destaque à série de investigações desenvolvidas pela chamada Escola de Leicester. A corrente teve à frente o sociólogo Eric Dunning (1939-2019), um dos principais discípulos e parceiros de Norbert Elias durante a fase inglesa deste intelectual de origem alemã, radicado na cidade de Leicester nos anos 1950.

Sustento como hipótese que a hegemonia da sociologia figuracional eliasiana, entre os anos 1970 e 1990, permite de início a estruturação de um subcampo em torno de um “antes”, isto é, as primeiras abordagens sobre a temática, conduzidas por pesquisadores de Oxford e Birmingham nos anos 1960. À época, os dois grupos acentuaram um viés ora psicológico, ora marxista, ora midiológico no tratamento do tema. A crítica dessas primeiras interpretações e a introdução da grade conceitual sociológica de Elias, estabelecida por Eric Dunning, consolidaram em solo inglês a dominância da perspectiva histórico-social para o assunto, à luz da sociologia associada ao mestre alemão.

Entretanto, o avanço do debate teórico, a ampliação do número de pesquisas etnográficas e os desdobramentos político-sociais da problemática hooligan na pauta da sociedade inglesa finissecular nos anos 1990 e 2000 resultaram na emergência de um “depois”. Em outras palavras, face ao estabelecimento hegemônico da Escola de Leicester, pesquisadores britânicos da geração seguinte passaram a questionar as premissas de cariz sociológica dos eliasianos, preconizando uma análise com base em critérios diferenciados da abordagem de Elias acerca das cadeias de interdependência, do habitus e da esportificação dos jogos, entre outros, bem como da continuidade do trabalho sobre violência nos estádios por seus epígonos.

Destarte, tenciona-se nessa revisão da literatura uma contribuição à comunidade brasileira que se consagrou aos estudos científicos do futebol, mormente à subárea das torcidas organizadas, em face de uma atualização da história e do estado da arte do tópico na bibliografia especializada daquele país europeu, considerado o berço histórico dos esportes modernos desde o século XIX.

Esse balanço foi motivado também por ocasião do falecimento de um dos maiores especialistas no tema, Eric Geoffrey Dunning, a 10 de fevereiro de 2019. O autor, que já foi considerado o founding father “entre nós” da sociologia do esporte e dos estudos sobre hooliganismo em particular, visitou o Brasil nada menos que oito vezes entre 1996 e 2011 (WATSON; GASTALDO 2019, p. 343), uma prova da influência de sua obra e da força da sua interlocução com pesquisadores brasileiros dedicados ao tema.

A Copa e o kop: assunção de um problema nacional

Pode-se dizer que, após a realização da Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra, o fenômeno do hooliganismo passou a ser reconhecido como um problema social de alcance nacional e de certa gravidade entre as autoridades britânicas, com consequências e problemáticas de impacto no decorrer das décadas de 1970 e 1980. A visibilidade adquirida pelos cognominados hooligans no futebol naquela oportunidade - lembre-se de que já havia a existência desse personagem no imaginário britânico extraesportivo desde o final do século XIX, conforme mostraremos com o autor Geoffrey Pearson (1983) mais à frente - mostrar-se-ia um fator de inquietação pública, com crescentes brigas e desordens provocadas nas tribunas de futebol, nas imediações dos estádios, nas invasões de campo, nos pubs ou nos meios de transporte, especialmente nos trens que conectam o país.

Essa subcultura juvenil britânica formou-se no interior de um espaço futebolístico, o kop, denominação nativa para um lugar também conhecido como ends ou terraces. Tal setor popular situava-se atrás do gol, no quadrilátero dos estádios britânicos em que se encontravam os torcedores considerados mais engajados e fervorosos. A designação inicial remete aos anos 1960 e a Anfield Road, estádio do Liverpool FC, onde se notabilizaram os supporters ou fans, cuja nomenclatura depreciativa passaria a ser hooligans ou casuals nas décadas seguintes.

A propósito, a expressão kop remete a um evento histórico da Guerra dos Bôeres, na África do Sul, durante batalha entre ingleses e holandeses no início do século XX, a Spion Kop. É desconhecido o modo pelo qual o termo foi transladado e incorporado ao universo do futebol da segunda metade do século passado. De todo modo, sendo uma menção original à torcida do Liverpool, vários grupos de torcedores na Europa com o tempo adotaram o nome para se referir seja ao setor do estádio em que se agrupavam, seja à intitulação da própria torcida, a exemplo do Kop of Boulogne, do Paris Saint-Germain, no Parc des Princes, na capital francesa (BROMBERGER 2004).

Se de início as brigas protagonizadas pelos hooligans ficavam adstritas às competições nacionais, no decorrer nos anos 1970 e 1980 os incidentes também seriam registrados em competições entre clubes e nações na Europa continental. Segundo a apreciação de estudiosos, tratou-se de numa espiral de agravamento da situação, o que chamou a atenção da opinião pública e gerou repercussões do ponto de vista dos meios de comunicação, das políticas de repressão e mesmo da mobilização da Academia inglesa para a compreensão desses fenômenos, vistos como irracionais e patológicos, anômalos e disruptivos.

O primeiro relatório oficial acerca dos hooligans e das condições de segurança nos estádios britânicos veio à luz no ano de 1968. Intitulou-se report Harrington - alusão ao psiquiatra britânico John Harrington -, e foi publicado na cidade de Bristol, com a denominação de Soccer Hooliganism. Logo depois, em 1969, vem o Lang Report, atribuído a Sir John Lang, chairman do Conselho de Esportes ministerial, que contém 23 recomendações de segurança nos estádios.

Esses documentos oficiais seriam os primeiros de um conjunto de nove relatórios publicados no decorrer dos decênios seguintes. O nono e último, talvez o mais conhecido - intitulado Taylor Report -, seria produzido na esteira da tragédia ocorrida no estádio de Hillsborough, em abril de 1989, na cidade de Sheffield, quando morreram esmagados noventa e cinco torcedores em virtude da superlotação de uma partida semifinal da Copa da Inglaterra, entre Liverpool FC e Nottingham Forest.

Esse relatório, cujo inquérito foi desta vez redigido pelo lorde de Justiça, o senhor Peter Taylor, acerca das causas da tragédia e das prescrições para os estádios ingleses teria efeito não nas praças de desporto da Grã-Bretanha dos anos 1990, mas constituiu um ponto de inflexão na história contemporânea do futebol europeu e internacional. Como se sabe, os estádios iriam passar desde então por profundas reformas estruturais. O advento da Premier League corresponderia às expectativas pela constituição de um novo tipo de público e se conjugaria com o completo remodelamento arquitetônico das arenas.

Em paralelo, convém frisar, isso se daria não apenas em função da obra de arquitetos e engenheiros ou da proposição de parlamentares e juízes responsáveis por redigir tais inquéritos. Nesse bojo, o recrutamento de quadros universitários oriundos das Ciências Humanas e Sociais para a explicação da natureza do comportamento coletivo ao redor do futebol profissional de alto rendimento e para a proposição de políticas preventivas se disseminaria por todo o continente, com o apoio financeiro despendido pela União Europeia, pela UEFA e pela FIFA.

No Reino Unido, teve destaque a chamada Escola de Leicester, sob orientação sociológica do teórico alemão Norbert Elias (1897-1990), intelectual de origem judia que se estabeleceu na Inglaterra durante a Segunda Guerra, ocupando em princípio um posto de menor projeção docente e universitária, na condição de lecturer de Sociologia em Leicester, a partir de 1954. Antes disso, o autor tivera formação com Alfred Weber em Heildelberg, com Karl Mannheim em Frankfurt e breve passagem pela London School of Economics (LEITE LOPES 1995). Sabe-se ainda que sua obra-prima, O processo civilizador, dividida em dois volumes, foi escrita em alemão na biblioteca do British Museum, ao longo de três anos (GIULIANOTTI 2004, p. 146).

Nos anos 1970 e 1980, a Escola passou a receber apoio institucional e governamental para uma série de pesquisas sobre a história, a antropologia e a sociologia dos esportes, com especial atenção ao hooliganismo britânico. O suporte financeiro consolidou-se nos anos 1980, por meio de um centro de pesquisas no interior da universidade, batizado de Sir Norman Chester Centre for Football Research.

A equipe de pesquisadores incumbida de entender o assunto vai ter à frente o sociólogo Eric Dunning (1936-2019), primeiro orientando de Elias na Universidade de Leicester, que se tornaria, ao final da vida, professor emérito do Departamento de Sociologia. Dunning foi leitor pioneiro de Über den Prozess der Zivilisation na Inglaterra, em um raro exemplar no original alemão, visto que o livro somente seria vertido em língua inglesa no ano de 1978. Esse estudante propusera ao orientador, ainda nos anos 1950, a aplicação de um estudo histórico-social do esporte e do lazer na Grã-Bretanha à luz da teoria do processo civilizador.

Ele mesmo jogador universitário de rúgbi e estudioso das origens sociais do críquete, Dunning já era àquela altura o respeitado diretor do Centre for Football Research da Universidade de Leicester e começava a trilhar um percurso intelectual próprio com a organização e com a publicação de seus próprios livros na década de 1970: The sociology of sport: a selection of readings (1971) e Barbarians, gentlemen and players: a sociological study of the development of rugby football (1979), este último em parceria com Kenneth Sheard.

Como resposta ao desafio de decifrar o aparente fracasso da aplicação do controle das emoções às torcidas britânicas, Dunning assinava, em coautoria com John Williams e Patrick Murphy, outros dois discípulos de Elias, um artigo-síntese dos argumentos apresentados em maior extensão ao longo da década de 1980 na forma de um tríptico de livros, tão extensos quanto densos: Hooligans abroad ─ the behavior and control of English fans in continental Europe (1984); The roots of football hooliganism ─ an historical and sociological study (1988); e Football on trial: spectator violence and development in the football world (1989).

Em verdade, a trilogia de Dunning, Williams e Murphy, que teria sucessivas reedições na década de 1990, era fruto de uma longa pesquisa, incluindo trabalho de campo, desenvolvida entre 1979 e 1982, e guardava algumas especificidades importantes. Feita sob encomenda oficial, ela se constituía de relatórios entregues ao deputado Norman Cherster, encarregado pelo Parlamento britânico e pela Liga inglesa de encontrar e apontar soluções para os distúrbios envolvendo os hooligans em toda a Europa. Sob os auspícios do Social Science Research Council, pertencente ao Department of Environment, e do Football Trust, as informações tinham por finalidade fornecer as bases para a compreensão do fenômeno e, logo em seguida, para a edificação de um programa de ação por parte do poder público e das autoridades esportivas competentes.

Além da trilogia, Eric Dunning organizaria, em parceria com Norbert Elias, o livro Quest for excitement: sport and leisure in the civilizing process (1986), uma coletânea de artigos escritos desde os anos 1950 por seu mentor alemão e por ele próprio, com estudos sobre sociologia e história dos esportes no contexto britânico. Tal estudo, com repercussão internacional, foi vertido para o francês, o espanhol e o português nos anos 1990, e desdobrar-se-ia em mais dois: Sport and leisure in the civilizing process (1992) e Sport matters: sociological studies of sport, violence and civilization (1999).

Especificamente no tocante à temática hooligan, Dunning organizaria ainda um quarto livro no início do século XXI sobre o assunto, intitulado Fighting fans: football hooliganism as a world phenomenon (2002).

Nesta produção, com o argumento de que o hooliganismo não seria uma problemática exclusiva à Grã-Bretanha, é apresentada uma espécie de mapa contemporâneo das torcidas em diversas partes do mundo. A proposta consistiu em reunir especialistas de cada país dos cinco continentes que tematizaram o assunto em sua realidade local, indo dos barra-bravas da Argentina às hinchadas do Peru, dos kutten fans da Alemanha aos tifosi da Itália, dos ultras da Espanha aos siders da Bélgica, sem contar os grupos de torcedores do Leste Europeu, da Grécia e da Turquia, possuidores de “reputação” internacional entre seus pares, em função da atmosfera efervescente das arquibancadas, das rivalidades e dos confrontos intertorcidas.

Crítica às matrizes explicativas do hooliganismo

A realização de estudos por parte do grupo de pesquisadores de Leicester acerca da violência entre os torcedores não foi pioneira nem única na Inglaterra. Ao longo das décadas de 1960 e 1970, à medida que a questão ganhou importância na opinião pública, foram sendo realizadas investigações por outras escolas britânicas, nucleadas especialmente em centros de Birmingham e de Oxford.

Em razão desse motivo, antes da abordagem do que para eles eram as raízes profundas do hooliganismo ─ o sentimento de prazer vivenciado nas brigas, o modelo encorajador de tal tipo de comportamento encontrado no meio social de origem e o futebol como lugar privilegiado para manifestação dessas expressões de agressividade ─, os alunos de Elias iniciavam seu ensaio com a exposição das explicações a seu ver mais superficiais, ou “ortodoxas” (FROSDICK; MARSH 2005, p. 94), consagradas ao fenômeno, dentre as quais se encontravam o consumo de álcool e a violência emanada da dinâmica intrínseca do campo de jogo.

Em seguida, para afirmar seus argumentos, os autores passavam em revista as teorias preexistentes sobre os hooligans no meio universitário. Logo depois, demarcavam as diferenças perante elas e mostravam as deficiências e as inconsistências teóricas que subjaziam a cada uma.

A primeira corrente, fiduciária do marxismo, era personificada por três autores: Ian Taylor, John Clarke e Stuart Hall. O primeiro, autor dos artigos Soccer consciousness and soccer holiganism (1971b) e Football mad: a speculative sociology of football hooliganism (1971a), explicava a violência torcedora como uma espécie de revolta da classe trabalhadora contra o progressivo caráter burguês e internacional que o jogo assumia no final dos anos 1960. Tratava-se de um movimento de resistência às mudanças em curso no futebol e, mais especificamente, uma reação à descaracterização do sentido de comunidade dos clubes ingleses.

O segundo, responsável pelo texto Football and working-class fans: tradition and change (1978), também atribuía o hooliganismo às transformações operadas pelo profissionalismo e pelo seu processo de “espetacularização”, a que adicionava a desagregação dos laços comunitários locais verificados entre os trabalhadores ingleses. Após a eclosão da Segunda Guerra mundial, as diferentes gerações proletárias deixaram de frequentar os estádios juntas, como estavam acostumadas, o que propiciou o estabelecimento de um fosso cultural no seio das famílias operárias, separando jovens e adultos, pais e filhos.

O terceiro, autor do ensaio The treatment of ‘football hooliganism’ in the press (1978), expoente dos chamados Estudos Culturais na Universidade de Birmingham, bastante conhecido no universo acadêmico brasileiro, correlacionava o papel da mídia na criação de uma situação de “pânico moral” - termo cunhado pelo sociólogo Stanley Cohen no livro Folk devils and moral panic (2002) - nos estádios ao aumento da inquietude nacional decorrente da deterioração econômica vivenciada pela Grã-Bretanha. Se a imprensa não poderia ser responsabilizada, evidentemente, pela criação do fenômeno, o modo como a retratava tinha efeitos inesperados, muitas vezes com a deturpação de seu entendimento.

Já a segunda corrente, influenciada pela etologia e sobretudo por Desmond Morris, autor de The soccer tribe (1981), para quem tal esporte nada mais significava do que uma “caçada ritual”, era representada por Peter Marsh, E. Rosser e R. Harré, organizadores do livro The rules of disorder (1978). O grupo de Oxford tinha por mérito, ao contrário da primeira corrente explicativa que se atinha ao hooliganismo de uma maneira muito genérica e como uma contraposição apenas intercalasses, compreender o sentido dos conflitos em sua dimensão intergrupal. A impressão de anarquia e de desordem descrita pelos meios de comunicação acerca do comportamento dos fãs não era procedente, e com isto a mídia acabava por ser uma espécie de caixa de ressonância, responsável pela amplificação dos distúrbios nos estádios.

À parte a relação com os demais atores sociais envolvidos, tratava-se de saber por que os torcedores criavam o seu próprio conjunto de regras de enfrentamento, recorrendo, para tanto, a ritos nos quais a violência era um símbolo, uma metonímia. Dentre as insuficiências apontadas pelos estudiosos de Leicester no modelo dos autores de Oxford, incluía-se a crítica a esta última consideração, que tendia a subestimar a possibilidade concreta de confrontos físicos diretos em função dos procedimentos de ritualização. Menos que polos distantes, violência e ritual eram entendidos por Dunning, Murphy e Williams como manifestações separadas por um fio tênue.

Por uma abordagem sociológica eliasiana: a emergência da Escola de Leicester

A questão essencial para os seguidores de Elias era o entendimento das razões pelas quais jovens e adolescentes do sexo masculino pertencentes aos estratos socioeconômicos mais baixos da sociedade, notadamente os saídos da classe operária e frequentadores dos estádios nos fins de semana, sentiam prazer em se confrontar fisicamente. Da mesma maneira, era importante saber em que medida a formação de um estilo de vida nesse meio dependia do respectivo encorajamento ao comportamento agressivo em seu meio de origem. Por fim, era mister elucidar o significado do futebol como o espaço escolhido para a exibição de tais condutas.

A fim de responder a essas indagações axiais, Dunning e seus colegas recorriam a um sociólogo estadunidense, descendente da Escola de Chicago, Gerald Suttles, autor de The social order of the slum (1968) e The social construction of communities (1972), trabalhos que abordavam as especificidades das camadas inferiores da classe operária, de onde eram egressos os jovens que formavam as subculturas violentas e que pautavam seus valores em padrões viris de afirmação da masculinidade.

Os representantes de Leicester extraíam do estudioso a expressão “segmentação ordenada”, que em muitos aspectos se assemelha ao “sistema de linhagens” descrito por antropólogos sociais britânicos como Evans-Pritchard. Em seu estudo sobre as comunidades de Chicago, Suttles sublinhava de que maneira as unidades territoriais costumavam articular suas identidades particulares, com a atribuição de um peso considerável à idade, ao gênero e à etnia. Estas por seu turno se imbricavam com a estrutura maior da sociedade e com o jogo de construção das identidades contrastivas intercomunitárias.

O referido esquema de sociabilidade poderia obedecer à variação de escalas em nível local, regional ou nacional, com a tendência ao estabelecimento de associações bilaterais entre grupos que ora se opunham, ora se aliavam. Tal modelo divisório-complementar de moradores de um bairro contíguo adjacente, que poderia se estender até mesmo a ordens de grandeza maiores, com polarizações entre cidades, regiões e países, dava origem a grupos vicinais de jovens do sexo masculino, formados na socialização em espaços públicos como a rua. Os laços de moradia adquiriam assim sentido e coesão à medida que se contrapunham aos demais grupos e à ameaça representada por rivais externos.

Ao lado das rivalidades criadas no convívio com seus pares em espaços públicos como a rua, a casa também constituía um lugar de destaque para a construção de um modelo entre os jovens adolescentes, espelhados nas condutas arbitrárias e violentas dos pais. O estereótipo do chefe de família da classe operária mais baixa ─ algo aproximado à personalidade autoritária de Adorno -é o daquele que exerce um severo controle sobre seus consanguíneos com base na força bruta e na separação bem clara entre os papéis masculinos e femininos.

Este tipo é aqui evocado para explicar, em termos eliasianos, a sociogênese da “masculinidade agressiva”. Ao contrário dos círculos sociais, inclusive dos operários em melhor condição econômica, em que a violência causa repulsa e é condenada, esses jovens proletários encontravam uma emoção agradável na intimidação e no confronto com seus inimigos, sem gerar qualquer sensação interna de culpa.

Como corolário, aquele que sobressaía nas lutas tornava-se respeitado, adquiria prestígio com seus colegas e ganhava status no meio de origem. Essa reputação crescia em importância porquanto ela se tornava a forma principal de visibilidade social. Por um mecanismo de estigmatização no trabalho e na escola, o trabalhador das classes subalternas é aquele que se sente alijado da sociedade envolvente e não divisa qualquer possibilidade de ascensão educacional ou profissional.

Destarte, a variação na frequência dos distúrbios e das brigas provocadas nos campos de futebol dependia em parte do grau de incorporação da classe trabalhadora na vida social britânica. Isso não implicava que a pobreza, o desemprego e a falta de perspectivas econômicas se refletissem de maneira imediata na produção e na reprodução das práticas de violência, pois, no universo sociológico de Norbert Elias, as causas e os efeitos variam sempre de acordo com as configurações, que são interações complexas, nunca automáticas.

Da sociologia à história: a pesquisa com arquivos e jornais

A relação variável entre os hooligans e o grau de inserção social de frações da classe operária no processo civilizador podia ser constatada pelos autores na ampla pesquisa empreendida junto aos arquivos da Football Association e a uma série de jornais ingleses.

Além da observação de que a figura do hooligan estava longe de ser uma novidade histórica, a coleta de informações nos periódicos e nos acervos oficiais mostrou a oscilação do comportamento violento nos estádios ao longo da formação do profissionalismo esportivo na Inglaterra. Com base nesse registro estatístico colhido nos documentos da imprensa, envolvendo incidentes entre grupos de torcedores, e à luz da interdependência entre sociedade e futebol, foi proposta uma explicação hipotética para os ciclos de violência nos estádios.

A reflexão sobre o material levantado revelou a existência de um movimento curvilíneo, em formato de um U, durante três tempos principais esquadrinhados na longa duração do futebol inglês. Grosso modo, a violência - mensurada pelos autores como desordens, confusões e brigas ocorridas nos estádios - apresentou, no início da história do futebol profissional, índices altos. Em seguida, houve um declínio e uma estabilização em patamares baixos, considerados toleráveis. Por fim, ela voltou a crescer em uma escalada ascendente. Longe de ser aleatória, a linha gráfica encontrava correspondência no nível de integração social e no estágio do processo civilizador, que, como reiterava Elias, era uma mensuração mais técnica do que hierárquico-judicativa.

O primeiro momento se situava no último quartel do século XIX e no início do século XX, até a Primeira Guerra Mundial. Nessa fase, os periódicos registraram um número frequente de brigas, distúrbios e charivaris. Segundo os autores, com a profissionalização do futebol em 1880, a entrada da classe operária nas tribunas dos estádios imprimiu um cunho emocional mais vibrante, aberto e infrene no acompanhamento do futebol, se comparado ao comedido público aristocrático de até então.

O estudioso escocês Herbert Moorhouse mostrava a ancestralidade do torcedor desordeiro, com base na legião de frequentadores de estádios na Escócia, como o Celtic Park ou o Hampden Park, que em fins do século XIX já abrigava mais de cinquenta mil espectadores. De igual maneira a Dunning, recorria-se ainda aos jornais da década de 1890, como o respeitado The Times. Ao perquirir as origens do termo, localizava-se o vocábulo houlihan, designador dos traços de insociabilidade de uma família irlandesa que vivera na Londres Vitoriana oitocentista, passando a designar atividades de gangues violentas e de grupos juvenis desordeiros, o que dava uma coloração mítica à sua narrativa de origem.

As remissões históricas fazem contraposição à existência de uma “idade de ouro”, em que teria vigido o autêntico e tradicional British way of life, a seguir de modo estrito a política, ou o mito, de vigência da law and order. A 30 de outubro de 1890, era possível colher a seguinte passagem no jornal londrino, conforme atilada pesquisa do professor Geoffrey Pearson, publicada no livro Hooligan: a history of respectable fears, em princípios dos anos 1980:

‘What are we to do with the “Hooligan”? Who or what is responsible for his growth? Every week some incident shows that certain parts of London are more perilous for the peaceful wayfarer than the remote districts of Calabria, Sicily, or Greece, once the classic haunts of brigands. Every day in some police court are narrated details of acts of brutality of which the sufferers are unoffending men and women. So long as the “Hooligan” maltreated only the “Hooligan”, so long as we heard chiefly of attacks and counter-attacks of bands, even if armed sometimes with deadly weapons, the matter was far less important than it has become . . . There is no looking calmly, however, on the frequently occurring outbursts of ruffianism, the systematic lawlessness of groups of lads and young men who are the terror of the neighbourhood in which they dwell. Our “Hooligans” go from bad to worse. They are an ugly growth on the body politic, and the worst circumstance is that they multiply and that the education boards and prisons, police magistrates and philanthropists, do not seem to ameliorate them. Other great cities may throw off elements more perilous to the State. Nevertheless, the “Hooligan” is an odious excrescence on our civilization.’ (PEARSON 1983, p. 10).

A segunda conjuntura correspondia ao entreguerras e aos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial. Nessa ocasião, há uma queda significativa no registro dos confrontos físicos nas partidas, resultante de uma série de transformações nas relações sociais, com a incorporação no pós-1945 dos benefícios da política do Welfare State para boa parte da população da Inglaterra. Era uma época de “inclusão” da classe operária, o que ocorreu graças à organização dos sindicatos, com a conquista de várias melhorias nas condições de trabalho, e às ações do governo, que, por sua vez, concedeu garantias trabalhistas, com a extensão de vários direitos civis às mulheres. Essa fase, também denominada pela imprensa como Golden Age, tem início nos anos 1920 e ficou marcada pela criação do mito do torcedor inglês como gentleman, quando o etos aristocrático se transforma em etos nacional.

O torcedor civilizado, protótipo da fleuma e da sobriedade inglesa, é forjado em contraposição ao torcedor de origem latina, do sul da Europa, mais conhecido por seu modo espontâneo e caloroso. Nesse sentido, graças ao futebol, é criada uma oposição tanto entre esse tipo ideal inglês e as paixões típicas dos latinos da Europa continental, quanto entre os civilizados ingleses e os supostamente bárbaros de origem britânica: escoceses, celtas e irlandeses.

A passagem da segunda para a terceira conjuntura, na virada da década de 1950 para 1960, corresponde à mudança na configuração do público esportivo. Nesse momento, assiste-se ao recrudescimento de incidentes violentos nos estádios, em certos momentos de forma vertiginosa. Os kops, ends ou terraces, como eram chamados os locais mais baratos e mais vibrantes dos estádios, situados atrás do gol, tornaram-se alvo de uma “topofilia”, para falar com o geógrafo inglês John Bale (1993), entre jovens torcedores londrinos, que criaram ali torcidas chamadas de firmas ou crews, como a Inter City Firm, do londrino West Ham United, ou os Headhunters, do também londrino Chelsea.

Junto a essa cultura juvenil em gestação, subgrupos urbanos já existentes, como os mods, os rockers, os teddy boys e os skinheads, transferem suas próprias lógicas de rivalidade para o futebol ao longo dos anos 1970 e 1980. Setores políticos ligados à extrema direita também procuram se aproximar de algumas torcidas, com vistas a recrutar adeptos juvenis à sua causa e a utilizar os estádios como canais de expressão ideológica, conforme sucede na aproximação do National Front com franjas de torcedores radicais, a exemplo dos estigmatizados fãs do londrino Millwall.

Além da “segmentação ordenada”, categoria supracitada, a justificativa dos autores para a intensificação da violência compreendia a incidência desigual das taxas de incorporação social, aferidas mediante a educação escolar e o mercado de trabalho. Com isso, o contingente saído das frações mais baixas da sociedade volta a se expandir e a provocar tumultos. Em meados da década de 1960, o núcleo duro do proletariado apropria-se dos campos esportivos não apenas como lugar de sociabilidade, mas também como forma de enfrentamento com os pares rivais e de manifestação do descontentamento perante a sociedade abrangente.

A polêmica em torno dos estereótipos tributados ao hooliganismo, dentre eles os de fanatismo, de irracionalidade e de selvageria, não se cingiu às explicações sociologizantes mais previsíveis e às ligações mais imediatas com as esferas políticas e econômicas do país, sejam as retrações do emprego, sejam os efeitos deletérios sobre a classe trabalhadora por parte das medidas liberais do governo Thatcher nos anos 1980. As punições sofridas pelos clubes ingleses, impedidos de disputar torneios internacionais durante cinco anos, em virtude das brigas de seus torcedores na Europa continental, iriam ainda recolocar um amplo espectro de questões éticas sobre o agir humano em coletividade. A partir do futebol, grandes temas universais para o homem ocidental do século XX seriam retomados, a saber, a psicologia das multidões, a decadência do Ocidente, o choque entre civilização e barbárie, a xenofobia e a intolerância perante o outro.

A interpretação proposta pela Escola de Leicester no decorrer dos anos 1980 contém, pois, um conjunto de indicações sugestivas para o entendimento mais panorâmico do nosso objeto. O recurso dos autores à imprensa não se limita ao registro das informações fornecidas pela mesma. A suposição de uma transparência da realidade nos fatos relatados é descartada, e a indagação recai no papel dos meios de comunicação na construção da imagem do hooligan e na fabricação do problema, tal como já apontado por Stuart Hall em 1978.

Em primeiro lugar, os exemplos arrolados sobre conflitos descritos na imprensa, desde o limiar do século XX, permitem dirimir qualquer ideia de ineditismo ao assunto. Em seguida, o acompanhamento retrospectivo das abordagens dos jornalistas esportivos acerca dos hooligans evidencia o quanto o fenômeno ganhou repercussão nacional em razão do tratamento dado pela imprensa. A análise específica de tabloides esportivos populares como o The Sun, conhecido pela produção de matérias de teor sensacionalista, foi a base para a sustentação do argumento.

Na década de 1960, quando o jornalismo inglês de uma maneira geral passava por reformulações editoriais e estruturais, a concorrência entre tabloides pelo aumento de vendas se intensificou e, em muitos casos, o sensacionalismo fez parte de uma estratégia comercial para o crescimento da vendagem. A percepção de que as brigas entre os hooligans cativavam o público leitor desses diários esportivos levou os jornais à ampliação da cobertura relativa ao assunto. Às vésperas da realização da Copa do Mundo de 1966, os jornalistas alardearam um temor quanto ao comportamento dos torcedores ingleses, e a visibilidade deles ganhou uma dimensão ainda maior.

A generalização de um “pânico moral” no futebol e na sociedade, ainda para retomar a expressão cunhada em fins dos anos 1970 por Stuart Hall, proporcionou um sentimento de decadência dos valores, que foi atribuído a um mal cuja responsabilidade era dos fãs de futebol. Conforme reportam Dunning, Murphy e Williams, o jornal The Sun, a 8 de novembro de 1965, referia-se à situação da seguinte forma: “Soccer is sick at the moment. Or better, its crowds seem to have contracted some disease that causes them to break out it fury.”

A questão até então pontual tomou uma proporção nacional e extrapolou o cenário esportivo. A mobilização da polícia a fim de impedir os confrontos encontrou como solução paliativa a divisão territorial das torcidas nos estádios. Sem surtir efeito, a demarcação de territórios contribuiu tão-somente para a potencialização do conflito, na visão dos autores. A crise propagou-se também para fora do país, e a imagem do torcedor inglês foi fixada no exterior por meio do estereótipo hooligan: um jovem pobre, mal inserido na sociedade, delinquente na vida ordinária e consumidor excessivo de álcool.

Na defesa do argumento, os autores de Leicester chegam à conclusão de que, embora o jornalismo esportivo não tivesse sido o fator decisivo para a emergência do fenômeno, a cobertura dos meios de comunicação havia desempenhado um papel ativo na construção da imagem do hooligan e na sua difusão em termos sensacionalistas. O trabalho da equipe de pesquisadores, com uma abordagem diacrônica da violência torcedora na imprensa, contribuiu para relativizar uma série de preconceitos que seus contemporâneos tinham acerca da questão.

A proposição de uma escala temporal e de uma variação de suas configurações no decorrer do século XX permitiu uma nova perspectiva e um conhecimento mais apropriado do tema. A reconstituição do problema levou à utilização do jornal como fonte na busca por informações sobre o comportamento das plateias esportivas. Tal recurso mostrou, por um lado, as potencialidades da pesquisa em periódicos; por outro, deixou clara as suas limitações, que derivavam do caráter seletivo, tendencioso e moralizante de muitas das notícias.

Da ilha ao continente: o hooliganismo como “problema” intercontinental

Exposta a diacronia do fenômeno, a Escola de Leicester também se debruçaria sobre um aspecto importante na extrapolação do comportamento dos torcedores: os jogos “fora de casa”. A narrativa dos jornalistas, responsáveis pelas reportagens acerca das circunstâncias dos jogos no exterior, seria a mesma autorizada a transpor para o imaginário da sociedade o ambiente das viagens entre os torcedores. A licenciosidade e a extravagância dos hooligans nos away matches seriam dois dos aspectos mais frisados pelos jornalistas esportivos, que se aventuravam nas viagens a fim de testemunhar a selvageria das ações antidesportivas nos meios de transporte e nos deslocamentos fora da Grã-Bretanha.

Embora estabelecessem uma diferenciação ante as pesquisas científicas, os estudiosos da Escola de Leicester encontrariam, nos escritos dos jornalistas esportivos, algumas chaves para a compreensão da lógica da viagem instituída entre os torcedores de futebol na década de 1970. Dunning, Murphy e Williams baseavam-se em trechos da entrevista concedida por um hooligan do Cardiff City ao jornalista Paul Harrison, publicada em 1974 no artigo intitulado Soccer’s Tribe War, para a revista New Society. Os eliasianos se apropriavam de uma expressão cunhada pelo entrevistador para captar a forma como os grupos de torcedores rivais se relacionavam uns com os outros nesses encontros.

A síndrome de Beduíno era o mote “tribal” que caracterizava o esquema silogístico das alianças e das associações, desviando a questão dos domínios da sociologia para o terreno da antropologia. As amizades e as inimizades entre torcidas visitantes e anfitriãs na Europa eram compostas com base em uma equação que parece primária: o amigo de um amigo é um amigo; o inimigo de um inimigo é um amigo; o amigo de um inimigo é um inimigo; e o inimigo de um amigo é um inimigo.

O primeiro livro publicado por esses três autores, Hooligans abroad (1984), abdicava do relato de jornalistas e procurava aprofundar por si próprio a vivência direta dos pesquisadores nas viagens com torcedores. John Williams seria responsável por um trabalho de campo durante todo o ano de 1982, quando acompanharia os deslocamentos dos hooligans em pelo menos três oportunidades: a final da Copa europeia de clubes, disputada entre o Aston Villa e o Bayern de Munique, na cidade holandesa de Roterdã; a partida decisiva pelo campeonato europeu de seleções entre Dinamarca e Inglaterra, disputada em Copenhague; e os jogos da seleção inglesa durante a Copa do Mundo realizada na Espanha.

Àquela altura, os antecedentes dos hooligans já haviam feito espraiar sua fama pelo continente, compondo uma espécie de coleção de transtornos e “horrores” no exterior, desde pelo menos 1965, quando o Manchester United foi jogar na Alemanha Ocidental, passando por meados da década de 1970, quando o mesmo Manchester jogou no estádio do Feyenoord, na Holanda, até o início dos anos 1980, quando foram registrados sucessivos incidentes em Luxemburgo, Copenhague, Turim e Oslo.

Os moradores das cidades onde ocorriam as partidas vivenciavam assim um clima de expectativa e apreensão, à espera da chegada dos “mindless English thugs”, de modo que Williams tinha de lidar com essa condenação prévia e taxativa aos torcedores com os quais se envolvia. O pânico moral ─ tendência a responsabilizar um grupo social pelos problemas por que passa toda uma sociedade ─ parecia bem apropriado à situação.

Para a observação participante, John Williams travestia-se de um torcedor comum do Aston Villa, clube da cidade de Birmingham, viajando à Holanda no intuito de vivenciar aquela experiência de modo direto, a fim de melhor compreender as reais intenções daqueles hooligans, para além dos estigmas atribuídos de antemão. As conversas informais permitiam-lhe ainda a obtenção de informações referentes à idade, à ocupação e à orientação política daqueles torcedores. Esta última era a questão capital que se impunha na época, pois no início da década de 1980 sondava-se a suspeita de envolvimentos de torcedores com partidos de extrema direita inglesa. Segundo a constatação do sociólogo, muitos dos viajantes eram desempregados, pertenciam aos estratos mais baixos da sociedade e alguns deles tinham antecedentes criminais.

A etnografia de John Williams constituía parte de uma pesquisa sociológica voltada para o auxílio da polícia na elaboração de um programa de prevenção no curto e no longo prazo. Os eliasianos de Leicester buscavam uma alternativa para o impasse entre as ações das autoridades policiais, que se valiam apenas da repressão como forma de contornar as desordens, e os representantes dos meios universitários, que via de regra minimizavam a violência entre os torcedores, tornando-a secundária. Assim, nos ônibus e sobretudo nos trens, o pesquisador inteirava-se das motivações dos torcedores para os jogos do clube fora do país, interrogava-se sobre as manifestações de hostilidade aos estrangeiros e ficava a par da importância das recordações de antigas viagens.

O último ponto era crucial: a lembrança das viagens passadas, espécie de ritual de iniciação e de provação nas excursões e caravanas, proporcionava o compartilhamento de uma memória coletiva, com os relatos de histórias que compunham o imaginário e que punham à prova os padrões de “masculinidade agressiva”. Além das viagens, o pesquisador descrevia os incidentes testemunhados fora dos estádios durante a Copa do Mundo de 1982, com confrontos que se davam entre os ingleses, a polícia e os hostis anfitriões espanhóis. Nestas ocasiões, o fervor nacionalista e a xenofobia se exacerbavam, discurso que facilmente poderia resultar em cenas de torcedores feridos, hospitalizados e presos.

Hooli-lit books: um subgênero jornalístico-literário

Não é possível afirmar se o método de infiltração entre os hooligans adotado por John Williams na pesquisa entre fins dos anos 1970 e início da década de 1980 inspirou direta ou indiretamente os jornalistas contemporâneos. Fato é que estes adotariam a mesma estratégia no desvendamento daquele universo semissecreto de confrontos, penetrando nos bastidores de uma série de transgressões e de viagens por diversos países da Europa. O relato mais notório do gênero, que se tornaria um best-seller editorial no mundo, graças à sua tradução em várias línguas, chama-se Among the thugs (1990), de autoria de Bill Buford.

Publicado em 1990, o livro descreve as impressões de um jornalista de origem norteamericana que conviveu durante seis anos com torcedores britânicos do Manchester United, seguindo-os em pubs, em trens, em estádios e em viagens por cidades europeias, tais como Cardiff, Cambridge, Sunderland, Turim, Düsseldorf e Sardenha. O jornalista dedicava-se a relatar, com filigranas literárias, os requintes de crueldade e os atos de selvageria de que eram capazes aqueles indivíduos, em nome da suposta paixão pelo seu clube de futebol.

A recepção, a curiosidade e o interesse despertado no grande público pela obra podem ser avaliados a partir da sua recepção internacional. Já em 1991, o livro era traduzido para o italiano, com o nome I furiosi della domenica: viaggio al centro della violenza ultra. Em 1992, a produção aparece também em português, com o título Entre os vândalos - a multidão e a sedução da violência, em edição que ficaria a cargo da editora Companhia das Letras. Dois anos depois, ela apareceria ainda em francês, com o título Parmi les hooligans, além de uma versão em espanhol a que não tivemos acesso.

Em verdade, o expoente dessa modalidade de jornalismo etnográfico nada tinha de especialista em esportes. Nascido em 1954 na Louisiana, Estados Unidos, Bill Buford vivera em Los Angeles até se radicar na Inglaterra em 1977, graças à obtenção de uma bolsa de pesquisa que lhe permitiu desenvolver pesquisas literárias em Cambridge, escrever para jornais ingleses e se tornar diretor da revista literária Granta. Em seu testemunho, como um típico norte-americano, o futebol era algo estranho à sua vida e nunca havia comparecido a um estádio até 1983.

O fenômeno hooligan apareceu-lhe em uma situação cotidiana casual, quando regressava do País de Gales a sua casa, numa estação de trem de uma pequena cidade próxima a Cardiff. Naquela ocasião, Buford ficou impressionado com a chegada de um trem abarrotado de ruidosos torcedores. Tão logo o trem estacionou na gare, os torcedores protagonizariam uma série de depredações e de atrocidades que muito o impactaram. Em sua justificativa da obra, diz que aquele incidente fora decisivo, e desde então resolveu seguir e se infiltrar entre os “fanáticos” torcedores. Na primavera de 1984, o autor partiu em viagem para assistir à semifinal da Recopa, disputada em Turim, em um jogo entre Juventus e Manchester.

Já naquela primeira oportunidade, o autor tomaria parte em um voo e descreveria o ambiente da excursão cunhando a expressão “turista-escória” para designar aqueles tipos humanos aficionados pelo futebol:

Duzentos e cinquenta e sete torcedores do Manchester United chegaram na manhã de quarta-feira, por obra e graça de Bobby Boss, a fim de voar até Turim para um jogo ao qual estavam proibidos de comparecer. A maioria dos torcedores do avião se conhecia; era uma excursão de clube. Ninguém sabia onde íamos nos hospedar; ninguém possuía ingressos para o jogo. Mas todos estavam com uma disposição de férias; todos orgulhosos de fazer parte de um grupo de turistas-escória. Havia um bocado de fotos a tirar. Havia a foto de registro de chagada para o voo, da garrafa comprada no free shop semivazia. E, embora eu admita que parecesse um pouco estranho ver tanta gente consumindo garrafas de um litro de vodca às 10 da manhã, nosso voo para Turim foi bastante tranquilo - barulhento, bem-humorado, mas, afinal de contas, sem divergir o mínimo daquilo que eu imaginava que outras excursões inglesas deveriam ser. O grupo, no conjunto, parecia inofensivo e divertido, e descobri que tudo aquilo - meu esforço para levantar cedo, o desconforto de viajar de Londres para Manchester com um garoto que não podia se permitir comprar um lenço, a súbita exposição a tanta gente extravagante - estavam começando a terminar. Honestamente, eu estava me divertindo. O fato, no entanto, era o seguinte: o turista-escória estava a caminho para devastar o país que iria visitar. Por ora, ele chegava a Turim (BUFORD 1992, p. 29-30).

A coletânea de histórias se estende de 1984 até 1988, quando Buford acompanhou a Eurocopa realizada na Alemanha junto aos briguentos fãs que foram à cidade de Dusseldorf, mesmo proibidos de participar de competições internacionais após a tragédia de Heysel, em 1985, na Bélgica, quando da semifinal entre Juventus da Itália e Liverpool da Inglaterra, dentro do que hoje é a Champions League, torneio internacional disputado por clubes europeus. Espécie de dublê de etnógrafo, com uma escrita em dicção romanesca, Buford teria sua derradeira experiência com os hooligans em 1990, ocasião em que se dirigiu a Sardenha, cidade italiana, para acompanhar a Copa do Mundo.

A minuciosa narrativa estruturada em três partes e narrada em primeira pessoa, com toques chocantes centrados naqueles tipos humanos para os quais não se poupavam juízos de valor - extravagantes, repugnantes, grosseiros ─, parecia expor entretanto mais as sensações íntimas e as inquietações pessoais daquele jornalista do que o universo investigado em si. Se a motivação inicial revelada pelo autor era saciar as suas curiosidades sobre aqueles “abomináveis fanáticos” ─ “eu queria conhecer melhor aquilo”, “ser um deles” ─, ao fim e ao cabo de seu relato sobressaía mais o frisson vivenciado pelo autor e menos o conhecimento da persona dos vândalos. Os requintes de prazer nos pormenores das brigas e nas inúmeras situações de risco descritas por Buford faziam crer que seu objetivo último era hipostasiar as cenas, chocando o leitor com as sensações de perigo e medo por ele heroicamente vividas.

O livro não obstante era revestido de credibilidade acadêmica na Inglaterra, uma vez que se tratava de um jornalista com formação literária e intelectual, dotado de uma considerável bagagem de leituras no assunto, seja o livro de Geoffrey Pearson, mencionado páginas acima ─ Hooligans: a history of respectable fears (1983) ─, seja a obra de Eric Dunning, John Williams e Patrick Murphy ─ The roots of football hooliganism: an historical and sociological study (1988) ─, seja o clássico de autoria do historiador marxista inglês Georges Rudé - The crowd in history (2005).

Além disso, como se depreende dos agradecimentos do livro, o sociólogo John Williams havia lido os originais antes da publicação e feito sugestões ao trabalho, o que dava uma legitimidade universitária à obra. Ademais, Buford parecia ter feito uma sólida pesquisa prévia, com a demonstração inconteste de um largo conhecimento dos grandes teóricos da psicologia das massas, pontificada por Gustave Le Bon, antes de enquadrar os torcedores no rol paradigmático das pulsões destrutivas.

Para além do sensacionalismo, a contribuição sociológica apresentada pelo jornalista era a crítica ao pressuposto corrente de que os hooligans eram jovens proletários sem perspectiva, provenientes das classes subalternas, frutos de uma juventude desfavorecida e frustrada. Ao refutar a explicação economicista, em certa medida defendida pelos eliasianos, Buford empenhava-se em mostrar a normalidade dos papéis sociais exercidos por aqueles torcedores no cotidiano, que ocupavam as mais diversas e heterogêneas áreas do ponto de vista profissional e familiar: bancários, funcionários públicos, comerciantes, pais de família etc.

Em contrapartida, esse dado levava o autor a reforçar as explicações etológicas e patológicas avalizadas pelos psicólogos das massas para entender a dupla personalidade daqueles indivíduos. Mesmo integrados no dia a dia da sociedade inglesa, os aficionados do futebol eram capazes de extravasar em grupo o ódio e a frustração, com manifestações racistas, nacionalistas, xenófobas, pautadas em toda uma mitologia da virilidade. Ao descrever na segunda parte do livro as festas do National Front a que compareciam os hooligans, Buford comprovava, com a autoridade de seu testemunho, as estreitas ligações ideológicas dos fãs de futebol com as diretrizes políticas dos movimentos de extrema direita, conhecidos à época pelos inegáveis traços neonazistas.

O sucesso do voyeurismo esportivo de Buford resultou em um boom editorial no mercado inglês com vários tipos de relatos do gênero, de livros de memória e autobiografias a ficções e filmes. O escritor contemporâneo John King aventurou-se no romance The football factory (1996), livro de quase quatrocentas páginas sobre o universo de um jovem torcedor do Chelsea e de seu grupo de amigos torcedores, versão ficcional que seria transposta também para as salas do cinema.

Nick Hornby, roteirista de Alta fidelidade, aficionado pelo Arsenal, publicou Fever pitch (1992), que teria acolhida internacional, sendo também adaptado para o cinema. Escrito em forma de diário de bordo, o livro relatava suas memórias de adolescência e juventude nos estádios ingleses, divididos em três tempos: 1968-1975; 1976-1986; e 1986-1992. Esse conjunto de trabalhos passou a ser valorizado tão logo o hooliganismo tornou-se um fenômeno sob maior controle na Inglaterra, desencadeando por outro lado polêmicas em torno da glamourização das brigas naquelas obras autobiográficas, literárias e cinematográficas. Elas contribuíram assim para a consolidação de um imaginário acerca dos hooligans na Europa e em boa parte do mundo.

Nas décadas seguintes, estimulados pelo sucesso das vendas de livros de acadêmicos e de jornalistas sobre futebol, bem como os relatos publicados de experiências de torcedores, frequentadores de jogos ligados ao hooliganismo, muitos deles afastados dos estádios, começaram eles próprios a escrever suas memórias e a publicar suas histórias vivenciadas nos campos. Sendo vários deles com teor sensacionalista, de modo a criar impacto na recepção do leitor pela crueza da narrativa, os livros geraram um subgênero literário, intitulado hooli-lit books, capazes de ocupar estantes inteiras das livrarias na Inglaterra.

A hegemonia eliasiana e “depois”: os estudos acadêmicos nos anos 1990 e 2000

Voltando à temática acadêmica, o recrudescimento do hooliganismo no futebol durante a segunda metade do século XX representou um desafio e pôs à prova a teoria do sociólogo alemão Norbert Elias, adotada pela Escola de Leicester na esfera esportiva. A manifestação de atos destrutivos e beligerantes nos estádios ia de encontro ao sentido evolutivo de contenção processual da força física e de aperfeiçoamento da autodisciplina requerida aos indivíduos na vida civilizada.

Se Norbert Elias havia encetado as linhas mestras de sua sociologia do esporte nas décadas de 1950 e 1960, quando o problema começava apenas a se insinuar, seriam seus acólitos Eric Dunning, John Williams e Patrick Murphy que se debruçariam sobre a aparente contradição entre os princípios civilizadores do esporte e as práticas antiesportivas de parcelas minoritárias radicais das torcidas britânicas. As considerações iniciais ponderavam a não linearidade do sentido tomado pelo curso da civilização, ele mesmo sujeito a momentos de descivilização, em que os mecanismos de controle sobre extratos diferenciados da sociedade revelam a sua ineficácia diretiva ou a sua incidência desigual.

Outra ponderação sustentava o hooliganismo como um fenômeno social que expressava tensões externas ao esporte, só de relance imanentes a ele, com a utilização do futebol para tornar-se visível socialmente na cena pública. O diagnóstico dos autores, baseado em levantamento histórico, em revisão da literatura e em observações pessoais, detectava o núcleo duro dos hooligans como frações juvenis saídas das camadas mais desprovidas da classe trabalhadora inglesa.

A repetição do esquema divisório entre estabelecidos e outsiders fazia-se notar em tais segmentos excluídos que cultuavam um estilo agressivo e rude, em que o protótipo da macheza e da virilidade impunha-se tanto nas brigas quanto nos cânticos ofensivos, por vezes intolerantes, xenófobos e racistas, e denegria o rival. O prazer da assistência a uma partida era deslocado com a canalização de energias nas estratégias excitantes de burlar o policiamento nas redondezas do estádio e de afrontar os adversários, jovens em geral provenientes da mesma classe social.

Pode-se dizer que, graças ao apoio institucional e à sistematicidade dos estudos, a interpretação consagrada pela Escola de Leicester tornou-se hegemônica entre os anos 1980 e 1990. Dunning, inicialmente discípulo de Elias, tornou-se ele próprio mestre e formador de uma série de continuadores de seu esquema compreensivo e explicativo na sociologia do esporte, em geral, e no “futebol hooliganismo”, em particular (MALCOM; WADDINGTON 2008).

No entanto, frente à nova realidade do futebol britânico pós-Relatório Taylor e à disseminação dos estudos sobre hooliganismo em outros quadrantes da produção intelectual, críticas também vêm surgindo a essa corrente, sobretudo ao viés interpretativo ancorado na teoria do processo civilizador de Elias.

Acresça-se também a conjuntura distinta por que passa o futebol inglês desde os desastres de Heysel - chamado de “vergonha” para a Inglaterra pela Primeira Ministra Margareth Tatcher em 1985 - e de Hillsborough. A instituição da Premier League, em 1990, desencadeou não apenas o êxito de um novo sistema competitivo esportivo, mas também instituiu um período virtuoso na mercantilização e na financeirização futebolística, na reinvenção de seus estádios, reconvertidos em arenas, na gentrificação de parcelas consideráveis de seu público e no controle dos grupos desordeiros, por meio de uma política repressiva mais intensa e implacável (KING 2002).

Tal política, por exemplo, valeu-se não só dos dispositivos de vigilância eletrônica nas dependências dos estádios, bem como de mecanismos punitivos ou restritivos mais severos, a exemplo das prisões, dos banning orders e dos travel restrictions, três tipos de impedimento e/ou afastamento eficazes dos protagonistas de confusões e brigas dentro e fora dos equipamentos esportivos (ALVITO 2014).

Na esteira da repressão, a partir de meios jurídico-legais e mesmo de uma nova legislação para a pauta, lançou-se mão também, ainda que em menor grau, de medidas preventivas para o contexto pan-europeu, sob o lema de “friendly but firm policing”, uma versão low profile face à virulência usual do policiamento ostensivo em estádios e nas ruas.

Para intérpretes menos otimistas, não se tratou propriamente do fim da “era hooligan”, mas de seu deslocamento do espaço de incidência. Em decorrência da repressão e da punição, os incidentes saíram do âmbito da elite do futebol inglês, recaindo sobre as divisões inferiores, nas quais ainda vigem estádios à moda antiga, preços de ingressos menos exorbitantes e menores mecanismos de vigilância. As estratégias dos grupos, não à toa denominados casuals, também mudaram, deixando o perímetro dos estádios e tendo por palco pubs ou outros pontos de encontro e sociabilidade mais afastados.

Por razões de espaço, não cabe nos limites deste artigo aprofundar o sentido dessas mudanças, mas tão-somente assinalar a emergência, ao lado desse cenário distinto, de uma nova geração de pesquisadores nos anos 1990 e 2000. Entre eles, o destaque vai para o sociólogo escocês Richard Giulianotti, originalmente vinculado à Universidade de Aberdeen, na Escócia, e hoje professor em Loughborough University, na região dos Midlands, Inglaterra. Este autor sistematizaria a crítica mais arrojada ao instrumental eliasiano, quer a via figuracional de “civilização” dos quadros sociais, quer a dimensão processual contida na teoria da equipe comandada por Dunning, a subsumir e condicionar todas as descobertas empíricas a um único paradigma teórico.

Junto a Giulianotti, organizador em 1994 de Football, violence and social identity (1994), soma-se o antropólogo inglês Garry Armstrong (1998), do University College, de Londres, que desenvolveu etnografia sobre o grupo The Blades - Blades Business Crew/ BBC - do Sheffield United. Armstrong refuta a utilização da expressão “segmentação ordenada”, embasada pela Escola de Chicago, para aplicá-la entre seus nativos, ao norte do país, na medida em que observa a dinâmica das relações de inimizade desses com os locais, Owls (Sheffield Wednesday), ou com os vizinhos do crew do Leeds FC, de cidade rival da mesma região.

Um ponto de discordância frontal de Armstrong diz respeito ao enquadramento de classe que norteia a tipificação do fenômeno pelos discípulos de Elias no estudo do hooliganismo inglês, no pressuposto edificante de uma “falha civilizadora”. Em seu lugar, opta por entender o “prazer do desvio” (delight of deviance) entre seus membros, sua moral e seus valores, bem como o estudo das lideranças emergentes e de seus códigos internos de conduta. Ademais, o antropólogo vai de encontro ao que considera uma essencialização da noção de “masculinidade” usada por Leicester para tratar do comportamento de grupo torcedor, sublinhando que há diversos matizes para analisála.

Outro autor referencial, oriundo da área do Direito, é Geoff Pearson (2012). Professor inicialmente da Universidade de Liverpool e hoje vinculado à Universidade de Manchester, desenvolveu trabalho etnográfico em viagens internacionais e no acompanhamento cotidiano dos torcedores. Propôs então três escalas de observação, quais sejam, a nacional, a regional e a local: fãs da Seleção inglesa, adeptos do Manchester United e seguidores do Blackpool FC.

Pearson inovou também ao estudar o tema do ângulo dos policiais da capital galesa de Cardiff, em sua lida com torcedores do clube homônimo da cidade. Coordenou ainda investigações de monitoramento de megaeventos esportivos nos anos 1990 e 2000, a exemplo dos torneios quadrienais da Eurocopa, da UEFA, e das Copas do Mundo, da FIFA, disputados em países como Itália, França, Bélgica e Holanda.

Ambos, Armstrong e Pearson, vêm adotando outros referenciais teóricos, como o de “carnavalização”, do russo Mikhail Bakhtin, e mobilizando categorias nativas extraídas do campo, como “hierarquia”, “honra” e “vergonha”. Esses pesquisadores procuram assim questionar a aplicação in totum de Elias para explicar as singularidades e complexidades do fenômeno do hooliganismo em distintas cidades e entre diferentes agrupamentos de torcidas da Inglaterra.

Entre esses autores, encontra-se o próprio John Williams, dissidente do núcleo duro ligado a Dunning que já em 1992 associar-se-ia a Giulianotti para organizar a coletânea Game without frontiers: footbal, identity and modernity (1994) e percorrer um caminho autônomo na sua agenda de pesquisa. O livro em questão propõe, já em início dos anos 1990, ampliar o escopo do objeto da Inglaterra para a Europa, em busca de novos repertórios, exemplos e modelos, bem como a fim de identificar interlocutores com base em uma rede de pesquisadores europeus, australianos e mesmo sul-americanos, como é o caso do argentino Eduardo Archetti.

Em conclusão, espera-se ter conseguido dar evidências de que a sociologia figuracional, basilar durante décadas, tem passado contemporaneamente por uma série de questionamentos epistemológicos, a exemplo de seu viés etnocêntrico. Seu paradigma é considerado inadequado diante do objeto que procura elucidar, em razão de seu pendor ora totalizante, ora normativo, quando não evolucionista, carente de referenciais empíricos mais substantivos.

Os novos pesquisadores têm, pois, privilegiado abordagens etnográficas nãoapriorísticas, derivadas de pesquisas de campo. Com efeito, almejam captar nuances antropológicas que escapam às generalizações sociologizantes e procuram contornar conceitos tidos por problemáticos ou insatisfatórios. Entre eles, destacam-se a antinomia “civilização”/ “descivilização” e a suposta incapacidade conjuntural de determinados segmentos de classes sociais mais baixas (‘rough’ working class) incorporarem o sentido do autocontrole e a aversão progressiva à violência.

AGRADECIMENTO

Sou grato à historiadora e brasilianista Courtney Campbell, que supervisionou meu estágio pósdoutoral na Universidade de Birmingham. Agradeço também a Richard Brunt, responsável pelo acolhimento e interlocução durante a estada na Inglaterra.

REFERÊNCIAS

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Notas

FINANCIAMENTO

Rutherford Fellowship/University of Birmingham.

Autor notes

EDITORES RESPONSÁVEIS

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Temístocles Cezar - Editor-Chefe

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Avenida Paulista, n. 1371, 1ª andar, FGV-CPDOC, Bela Vista, São Paulo-SP.

Declaração de interesses

CONFLITO DE INTERESSE

Nenhum conflito de interesse declarado.

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