Artigo
O látego e o riso: a historiografia republicana de Joaquim Felício dos Santos
The whip and the laughter. The republican historiography of Joaquim Felício dos Santos
O látego e o riso: a historiografia republicana de Joaquim Felício dos Santos
História da Historiografia, vol. 14, núm. 36, pp. 403-433, 2021
Brazilian Society for History and Theory of Historiography (SBTHH)
Recepção: 31 Agosto 2020
Revised document received: 23 Julho 2021
Aprovação: 23 Julho 2021
RESUMO: Este artigo examina as estratégias retóricas e comunicacionais usadas pela tradição republicana brasileira para disciplinar o campo historiográfico no século XIX. O republicanismo é abordado como forma de governo (BOBBIO), ética (CATROGA) e linguagem política (POCOCK) para refletir sobre uma questão central: é possível falar em ética política como elemento meta-histórico? O objeto de análise é a obra de Joaquim Felício dos Santos, especialmente seus artigos políticos e satíricos publicados no jornal O Jequitinhonha (1861-1874). Os resultados deste estudo expõem algumas características da tradição historiográfica republicana no momento de sua criação: a transdisciplinaridade; a apropriação da herança antimonárquica clássica; o esforço de tradução do saber científico para as linguagens jornalística e satírica; o enfoque dualista; a conexão com a história da modernidade; e o argumento do anacronismo.
PALAVRAS-CHAVE: Usos da história, Ética para os historiadores, Ideologia.
ABSTRACT: This paper examines the rhetorical and communication strategies used by the Brazilian republican tradition to regulate the historical field in the 19th century. Aiming to answer the central question of whether the political ethics is a metahistorical element, this study approaches the concept of republicanism as a government system (Bobbio), an ethics (Catroga), and a political language (Pocock), in the light of the contributions of Joaquim Felício dos Santos, especially his political and satirical articles published in the newspaper O Jequitinhonha (1861-1874). The results indicate some typical characteristics in the republican historiographic tradition, such as: transdisciplinarity, an antimonarchical vocabulary, the effort to translate scientific knowledge into journalistic and satirical settings, a connection with the history of modernity, and the anachronism as an authority argument.
KEYWORDS: Uses of history, Ethic for historians, Ideology.
Introdução
A escrita da história e sua divulgação pública interessa tanto ao campo da história da historiografia quanto ao contexto sociopolítico contemporâneo. A expansão do mercado editorial e do universo digital tem resultado em uma explosão de representações sobre o passado (LIDDINGTON, 2011). Tal fenômeno, identificado como “demanda social pela história”, “carência de orientação no fluxo do tempo” (MALERBA¸ 2010, p. 09) ou simples “nostalgia” (BOYM, 2017) é hoje um dos principais desafios para historiadoras e historiadores.
A convivência entre a “história científica” e a esfera pública tem sido carregada de tensões desde o Oitocentos, quando a prática historiográfica começa a se profissionalizar. No intervalo de um século, o “lugar de fala” oficial migrou do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) para as universidades. A seu modo, ambas as instituições desejaram regular as práticas da disciplina histórica e construir uma memória hegemônica. Contudo, à revelia da “história disciplinada”, sempre circularam discursos, memórias e imaginários em que, não raro, realidade e ficção se entrelaçavam para oferecer à sociedade outras formas de se relacionar e se sensibilizar com o passado (GUARINELLO, 1994, p. 181).
Hoje, historiadores profissionais parecem ainda mais distantes de deter qualquer monopólio sobre a memória coletiva. Nos rincões da web, brotam discursos de cunho conservador, cuja demanda é uma história verdadeira e imparcial, livre da ideologia republicana e/ou comunista que atribuem à produção universitária (PATSCHIKI, 2012). A busca pela verdade única indica que muitos setores sociais continuam imersos em uma cultura epistemológica dualista.
Este artigo se dedica a refletir sobre a construção do dualismo na historiografia, forjado, de início, pelo IHGB e, mais tarde, alimentado pela tradição histórica republicana. O objetivo é explorar a oposição entre historiografia verdadeira e historiografia falsa ou ideológica. Para tanto, analisei os discursos enunciados no jornal O Jequitinhonha, publicado entre 1861 e 1874 por Joaquim Felício dos Santos, historiador pioneiro da tradição republicana brasileira. A seções Editorial e Variedades, em especial aos escritos satíricos “Páginas da História do Brasil no ano 2000”, são as principais fontes desta pesquisa.
A partir desse conjunto de fontes, propõe-se que a eficiência da historiografia republicana se estruturou em quatro pilares: 1- A capacidade de disseminação inerente ao dinamismo dos jornais; 2- A inserção de historiadores conservadores no contexto da “oligarquia parasitária” (dualismo); 3- A retórica que, desobrigada da formalidade que caracteriza o ofício profissional, explorava a sátira com intuito de causar riso, indignação e engajamento; 4- A liberdade para escrever sobre a história do tempo presente nos jornais, abarcando em sincronia os três quadros temporais. O caráter transdisciplinar dessa tradição, a relação entre ética democrática e verdade, o uso da teoria política como elemento meta-histórico e a convergência com a temporalidade moderna são temas abordados ao longo do artigo.
Verdade e ideologia: o dualismo como tradição histórica
A relação entre a escrita da história e a política instigou a curiosidade de diversos historiadores no século XX. Em 1972, John Pocock lançou Politics, Language and Time: Essays on Political Thought and History, em que refletia sobre a mescla involuntária entre história e teoria política (POCOCK, 1989 [1972]). Na mesma década, Carlos Guilherme Mota acentuava a relevância desse tema para o nascente campo da história da historiografia no Brasil, cuja tarefa essencial era, a seu ver, “apontar os conteúdos ideológicos das principais produções” (MOTA, 2008 [1977], p. 64). Esse procedimento, no entanto, não visava reconstituir as condições de produção e de possibilidade das obras historiográficas, mas hierarquizá-las, apontar a superioridade de certos livros e, especialmente, de certos autores.
Manoel Salgado Guimarães observou que a ênfase na autoria individual, a abordagem evolucionista e o viés político eram traços dominantes na geração de historiadores dos anos 1970-1980: “palavras contundentes mais parecem expressar uma disputa política no campo do que propriamente uma análise da historiografia em questão” (GUIMARÃES, 2005, p. 37). O ato de separar e hierarquizar obedecia a critérios metodológicos, argumentava Carlos Guilherme Mota, mas um observador menos comprometido se inclina a enxergar também a presença de parâmetros políticos e, sobretudo, éticos. Em sua opinião, Gilberto Freyre era um autor inferior, pois, “Sob a capa do tratamento científico, deixa escorrer sua ideologia”. Já Caio Prado Júnior era excelente, pois “[discute] o sentido da colonização e os componentes do sistema colonial para avaliar as persistências na vida brasileira [...]. Ele redefiniu a periodização corrente, valorizando os movimentos sociais como a Cabanada, Balaiada e Praieira” (MOTA, 2008 [1977], p. 70-71). Como se vê, uma obra de matriz aristocrática é rotulada “ideológica”; enquanto a outra é vista como “verdadeira”, por se dedicar à perspectiva do “povo”, isto é: por priorizar a ética democrática.
Carlos Guilherme Mota não era exceção. Durante o século XX, parte expressiva dos historiadores ligados à pesquisa universitária no Brasil se pautou por um conceito de verdade indissociável da ética democrática. Este contexto tornava fluida a fronteira entre a crítica epistemológica e divergências meta-históricas de caráter político, favorecendo um olhar dualista sobre a produção intelectual. De um lado, situavam-se “os historiadores sociais do povo brasileiro, que estudavam a realidade olhada de suas bases coletivas” (CHACON 1976, p. 559). Esse era o arquétipo do “verdadeiro historiador, que aprecia e julga o passado ligado ao presente, comparando-o e contrastando-o” (RODRIGUES 1988, p. 192).
Joaquim Felício dos Santos era considerado pioneiro da vertente verdadeira, “seguida por Capistrano de Abreu, tronco de onde provém José Honório Rodrigues, Carlos Guilherme Mota e o autor destas linhas” (CHACON, 1976, p. 559). De fato, parte expressiva da historiografia acadêmica bebia da tradição legada por Joaquim Felício, cuja obra mais conhecida é Memórias do Distrito Diamantino(1868), que, para José Honório Rodrigues (1979, p. 144), “O leitor que deseja compreender o terror oficial, busque em Joaquim Felício dos Santos [...] e aí encontrará a descrição do absolutismo do sistema colonial português”. Essa opinião é corroborada por D’Alessio e Janotti, como se pode ver em:
Historiadores do século XIX, como João Francisco Lisboa e Felício dos Santos, denunciaram os abusos do sistema colonial, a corrupção dos funcionários reais, a espoliação dos colonos pelas companhias de comércio, a imoralidade da escravidão de índios e negros. [...]. Se nos reportarmos ao início do século XX, também não nos faltariam exemplos deste tipo de análise: Alberto Torres, Vicente Licínio Cardoso e Euclides da Cunha. Mais recentemente, entre outros, Vitor Nunes Leal, Nelson Werneck Sodré, João Camilo de Oliveira Torres e Raimundo Faoro. Estes historiadores estudaram os fundamentos da dominação de classe, dos estamentos burocráticos, da ditadura política [...]. Nesse universo, destacam-se com maior presença no discurso acadêmico Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Emília Viotti da Costa” (D’ALESSIO; JANOTTI, 1996, p. 147-148).
No fundo, as Memórias do Distrito Diamantino ajudavam a estabelecer equivalência entre os conceitos de “monarquia” e “absolutismo”, reforçando a opção democrática em um momento político de autoritarismo crescente. Enquanto se adotou uma abordagem que enfatiza esses antagonismos, a obra teve papel relevante, realçada pela “radicalização do sentimento de inconformismo em relação à nossa condição de colonizados” (D’ALESSIO, 1994, p. 134).
No polo oposto, situava-se a historiografia conservadora, cuja fundação era atribuída a Varnhagen e ao IHGB. José Honório Rodrigues (1988 p. 193) a conceituava como “a história dos senhores do poder, dos governadores, das elites”, escrita por “pequenos reacionários destituídos de filosofia, de teoria, mas não de objetivo ideológico.” Como se vê, o problema com essa historiografia é o foco nas elites, sua matriz aristocrática. A repulsa a tal tradição era profunda, a ponto de Carlos Fico e Ronald Polito escreverem um artigo de vanguarda em que censuravam o predomínio marxista na produção universitária, elogiavam a recepção da obra de Hayden White no Brasil e, no fim, lembravam-se de reprochar o Instituto Histórico, destacando a questão da ideologia: “O vetusto IHGB […] ocupou o espaço de construção (grandemente ideologizada) da História nacional, com fortes laivos de patriotismo, oficialismo e mesmo simples bajulação” (FICO; POLITO, 1994, p. 148).
Essas operações manifestam o intuito de regular o campo historiográfico, seja cobrando transigência interdisciplinar ou sustentando a perspectiva dualista que institui o viés do “povo” e da ruptura como os únicos legítimos. Acima de tudo, predominava a ideia de que a historiografia conservadora era ideológica, bajuladora e estava ligada à esfera oficial. Em um balanço bibliográfico de fôlego, Márcia D’Alessio e Maria Janotti (1996, p. 147) concluíram que, “embora pouco definida e estudada”, essa tradição continuava a ser a principal interlocutora do discurso universitário, “onde aparece sempre, de maneira implícita ou explícita”. O esforço em compreendê-la em seu próprio contexto foi impulsionado por Manoel Salgado Guimarães, que inseriu o IHGB na fronteira cultural, intelectual e política entre o Antigo Regime e a modernidade. Tal viés posicionou o Instituto no âmbito de uma “sociedade de corte”, considerando-se este “lugar de fala” como decisivo para a configuração dos discursos históricos produzidos em seu interior (GUIMARÃES, 1988, p. 05).
A abordagem historicista rompia com a tendência prévia de interrogar os textos a partir de propósitos externos (GUIMARÃES, 2005, p. 43), resolvia provisoriamente a questão da ideologia e sugeria os limites da mescla involuntária entre a crítica historiográfica e a teoria política. Esses avanços contribuíram para lançarmos um novo olhar sobre a historiografia monárquica, mas o mesmo não se deu em relação à tradição republicana, a despeito de sua profunda influência no imaginário social e intelectual brasileiro. Com efeito, foi necessário esperar por certo distanciamento crítico em relação às ideologias e bipolaridades dominantes, para se assistir ao surgimento de uma literatura interessada na reflexão não dogmática sobre o republicanismo e a historiografia republicana (CATROGA, 2011, p. 125).
Aporte teórico, métodos, conceitos
Este artigo combina três abordagens para definir o conceito de historiografia republicana e refletir sobre questões como ação disciplinadora e tendência dualista. A primeira consiste em avaliar a presença das teorias clássicas das formas de governo como elemento meta-histórico (BOBBIO, 2001). Assim, ao analisar as publicações de Joaquim Felício dos Santos no jornal O Jequitinhonha, busco identificar intertextualidades que remetam ao republicanismo clássico, em especial, às obras de Cícero e Tácito. O regime republicano era compreendido como sistema misto, que combinava princípios de cada forma de governo - monarquia, aristocracia e democracia -, mas esses autores enfatizaram os riscos da tirania monárquica e da corrupção aristocrática. Ambos reforçam a antítese entre, de um lado, o governo republicano, assente no respeito à lei e à liberdade; e, de outro, o reino monárquico, despótico e arbitrário (MOMIGLIANO, 2004; CATROGA, 2011). A recepção desse arcabouço, sobretudo o dualismo entre república e monarquia, foi um elemento central na modernidade. Transformações semânticas relevantes surgem à época da Revolução Francesa e, aos poucos, o conceito de república foi convertido em sinônimo de regime democrático.
A segunda abordagem assume que o republicanismo é uma ética, munida de valores e conceitos próprios (CATROGA, 2011). Entre eles, destaco o conceito de virtude, associado à cidadania, ao debate transparente, travado à luz do dia e no espaço público, inibindo, assim, uma postura indiferente ou apática em que os cidadãos estão à margem das discussões políticas (CATROGA, 2011, p. 42-45; REZENDE, 2010, p. 20-21).
Por último, entende-se que a ética republicana se configura como linguagem política (POCOCK, 2013). Pressupõe-se que os indivíduos habitam um mundo que os precede; que suas vivências são mediadas por linguagens construídas antes deles, fornecendolhes categorias por meio das quais articulam suas experiências, dando-lhes sentido. O conceito de linguagem aqui exposto não diz respeito à língua vernacular, mas a idiomas, retóricas, maneiras de falar sobre política, termos básicos e ocasiões típicas em que são empregados jogos de linguagem distinguíveis (POCOCK, 2013, p. 29-32). Ela “deve possuir e prescrever um passado constituído pelas configurações sociais, acontecimentos históricos, valores reconhecidos e modos de pensar” (POCOCK, 2013, p. 37). Sendo assim, a historiografia republicana pode ser definida como aquela cujos discursos são compostos por linguagens republicanas, independente da época em que foi escrita e/ ou publicada.
Joaquim Felício dos Santos e O Jequitinhonha
Joaquim Felício se formou na Faculdade de Direito de São Paulo. Sua filiação ao Partido Liberal está ligada a Teófilo Ottoni e ao contexto da Liga Progressista (1862-1868), quando os Liberais Exaltados voltam à cena política e pressionam por mudanças mais agudas.
O periódico O Jequitinhonha, criado por Joaquim Felício em 1861, era o principal representante da Liga na província de Minas. Na seção História, o autor publica os primeiros fascículos das Memórias do Distrito Diamantino. Eleito deputado em 1864, em seu primeiro dia de mandato propôs uma profunda reforma legislativa, rejeitada pelo Partido Conservador, como era de se esperar, mas também pela maior parte dos deputados Progressistas (O LIBERAL, 1864, p. 1). Desiludido com a moderação da Liga, Joaquim Felício abandona o cargo e encerra as atividades d’O Jequitinhonha. O jornal voltaria a circular em 1868 e, no ano seguinte, o autor começa a publicar as sátiras Páginas da História do Brasil no ano 2000. Em 1870, assinaria o Manifesto Republicano e passaria a atuar no Partido até 1890, quando foi eleito senador. No contexto da Geração de 1870, Ângela Alonso (2002, p. 360) insere Joaquim Felício no grupo que denominou liberais republicanos, cujas principais lideranças eram Saldanha Marinho, Lúcio de Mendonça, Quintino Bocaiúva, Salvador de Mendonça, Américo Brasiliense, Aristides Lobo, Felisberto Freire e Lopes Trovão.
O jornal O Jequitinhonha é uma fonte valiosa para apreender os elementos da linguagem republicana, avaliar seus recursos e limitações, as formas como favorece o desenvolvimento de certos argumentos e inibe outros. O periódico circulou de forma esparsa entre 1861 e 1874. Compunha-se de cinco seções, entre as quais ressalto o Editorial e a seção Variedades. O Editorial ocupa lugar de destaque em um periódico e representa a posição da instituição diante de temas da atualidade, explicandoos segundo sua perspectiva ideológica. Os editoriais d’O Jequitinhonha traziam três vozes: a voz do Partido Liberal, em cujos princípios se baseava até 1870, quando se tornou oficialmente um veículo Republicano; a voz do jornal que, como militante do Partido Liberal, faz veicular suas ideias; e, por último, a voz do editorialista, Joaquim Felício dos Santos, que se assume como sujeito coletivo (FERNANDES, 2001, p. 26). Esse espaço era usado para o diálogo franco com os demais jornais, seus opositores, cujos argumentos são citados e rebatidos. Já a seção Variedades, onde as Páginas da história do Brasil no ano 2000 foram publicadas, dedicava-se à arte e ao entretenimento.
A ressonância do Jequitinhonha se concentrava na região sudeste, em especial por meio do periódico Diário do Rio de Janeiro (53 citações), cujo redator era Saldanha Marinho, importante nome do Partido Liberal, da Liga Progressista e do Movimento Republicano. A maioria das referências ao Jequitinhonha era feita na primeira e segunda páginas do Diário, espaços considerados nobres em um jornal. Eram geralmente transcrições de artigos de notícias com viés crítico, e não apenas noticioso, bem como de Editoriais, legitimando e divulgando as perspectivas de Joaquim Felício na Corte. A relação entre esses periódicos se caracterizava pelo uso de uma linguagem comum, mas também pela construção de um passado em relação ao qual tais identidades emergiram (MARTINS, 2017, p. 98-100). Os jornais se caracterizam por priorizar a narrativa sobre o presente, porém “o passado é uma dimensão fundamental nos textos jornalísticos, seja como história, tradição ou memória” (MATHEUS, 2011, p. 15).
Historiografia republicana. O látego de Tácito
Ao longo do Segundo Reinado, o IHGB se consolidou como locus centralizador da produção historiográfica. A definição do que seria uma história científica se baseou na criação de protocolos de validação que visavam disciplinar esta prática no Instituto, entre os quais destaco: a matriz política monárquica, ainda que internamente diversificada; a ênfase no estudo do passado distante, evitando temas que causassem polêmica no presente, e a rejeição da imprensa como canal de debate histórico. Os jornais eram considerados lugares onde se escreve “com muita paixão”, por isso, “todos os fatos são desconfigurados” (CEZAR, 2004. p. 59).
O IHGB assimilou uma cultura intelectual centrada na esfera privada, em que se prioriza o debate restrito entre os sócios, a especialização lenta, as reuniões a portas fechadas (GUIMARÃES, 1995; SCHWARCZ, 1993). No contexto linguístico republicano, ainda no fim dos anos 1860, essas diretrizes já eram percebidas como opostas aos princípios da transparência, do debate público e da liberdade de expressão. Além da sugestão de que os historiadores do Instituto distorciam a verdade; outra crítica recorrente era a de que viviam “encastelados” em uma torre de marfim, abdicando de pensar soluções para os problemas reais dos brasileiros.
A historiografia republicana, forjada para se contrapor ao regime e aos intelectuais monárquicos, já nasce com alguns atributos. Ela deve antagonizar e deslegitimar a tradição estabelecida, que conta com o aparato do Estado. Esse contexto a imbui de um caráter reativo que contém o embrião do dualismo. Além disso, tem o desafio de ser transdisciplinar. Não bastava o debate institucional no espaço privado dos institutos históricos, das escolas e faculdades, onde somente sócios, professores e alunos tinham voz. Era preciso atuar em lugares de fala extraoficiais, como os jornais, ocupar a esfera pública, entendida como espaço aberto de debate, oficialmente desvinculado do Estado (BENHABIB, 1992), em que se pode falar sem reservas sobre temas de interesse comum para auditórios mais amplos. Isso significava, também, utilizar outros gêneros de escrita para refletir sobre a história. Nesse sentido, pode-se falar em processos de tradução de um gênero científico para o jornalístico e/ou satírico.
Um ano antes de assinar o Manifesto Republicano, Joaquim Felício dos Santos afirmou que, para lutar contra a tirania de Pedro II, a quem se dirigia como “o nosso César”, seria preciso usar “o látego de Tácito, o riso sardônico de Juvenal e a máscara formidável de Rabelais” (O JEQUITINHONHA, 1869c, p.3). Esse trecho revela duas estratégias de ataque ao regime monárquico: de um lado, ele propõe uma historiografia tacitista, focada na denúncia da corrupção imperial; de outro, a extravagância caricatural, a sátira, o humor. A menção a D. Pedro II como “nosso César” expõe outro artifício central: o uso de termos típicos do ano I d. C. para descrever o presente, sugerindo que o Brasil vivia no passado, mais ainda, em um “passado” bem específico. Tal sensação de anacronismo ou tempo desordenado se expressa pelo extenso uso de palavras como cetro, púrpura, realeza, bajuladores, escravos de César ou salões dos Neros, visando associar a monarquia, os Conservadores e os historiadores do IHGB a tudo o que era antigo, arcaico e “atrasado”.
Ao percorrer as páginas d’O Jequitinhonha, constata-se que autores vinculados ao republicanismo clássico e moderno eram referências importantes para Joaquim Felício. As obras de Marco Tulio Cícero, Cornelius Tácito, Tito Lívio, Juvenal, Voltaire e Montesquieu são fundamentais para recuperar as formas como o autor interpretava o momento político em que vivia. O Jequitinhonha está repleto de temas recorrentes na tradição romana, como a bajulação, o servilismo e o parasitismo, usados para adjetivar os membros do Partido Conservador e os historiadores do IHGB.
Os ciclos da política: reconhecer os sintomas da degeneração
A tradição Clássica se caracteriza por uma noção cíclica do tempo, cujo transcurso levaria à decadência das formas de governo, compreendidas como degeneração. A degeneração da monarquia, da aristocracia e da democracia, gera, respectivamente, a tirania, a oligarquia e a demagogia. No arcabouço Clássico, a alternativa para deter a degeneração seria um quarto gênero de governo, a República, composta por um misto do princípio monárquico (cônsules), aristocrático (senado) e democrático (tribunos da plebe). Cada tipo de degeneração possuía uma lógica identificável no cotidiano das relações políticas, mas era consensual que o processo sempre se iniciava com a concentração de poder. Nesse contexto, o “antagonista” da República era a degeneração; e não a Monarquia, sendo assim, a principal ação para conservar o bem-estar político era zelar pelo equilíbrio dos poderes:
[Este] movimento natural e em círculos, deveis aprender a reconhecer desde o princípio. De fato, o essencial da prudência civil sobre a qual versa todo o nosso discurso [consiste] em observar os caminhos e desvios das repúblicas; quando soubéreis para onde a coisa se inclinarão, podereis detê-la ou socorrê-la com antecedência (CÍCERO, 1988, p. 45 apudBERNARDO, 2012, p. 42-43).
Após a Independência do Brasil, a sombra da centralização monárquica esteve sempre presente entre as preocupações dos Liberais. Os escritos de Joaquim Felício são permeados pelo receio de que o equilíbrio de poderes estava sendo gradualmente usurpado pelo Partido Conservador que, desde o Regresso, centralizava poderes no Executivo, “reduzindo a Constituição a uns poucos farrapos” (O JEQUITINHONHA, 1861a, p.1). Com efeito, os gabinetes ministeriais, indicados pelo Imperador, eram o motor do governo. Esse quadro era visto como indicativo de que o “velho absolutismo” estava obtendo sucesso, ao “ressuscitar e cobrir o seu hediondo e abominável selo com as brilhantes vestes da soberania nacional” (O JEQUITINHONHA, 1861c, p. 1).
A tradição republicana romana trazia uma reflexão refinada sobre essa sensação de distanciamento entre as aparências e a realidade. O principado de Augusto, no ano I d. C., era a grande referência para pensar sobre regimes “de fachada”. Esse período sucedeu o regime republicano em Roma e foi descrito por Tácito, Suetónio e Juvenal como o apogeu do imperialismo. Tito Lívio e Tácito relatavam que César lograra êxito em destruir a República e que um novo regime havia surgido, o Principado, mas Augusto não o implantara de imediato. Iniciou uma política moderada e não se intitulou rei, mas centralizou inúmeros poderes. Tito Lívio ressaltava que o regime, na prática, tornarase uma monarquia em estado puro, mesmo que Augusto se valesse das instituições republicanas para tal (CIRIBELLI, 1976, p. 517-525).
A leitura de Joaquim Felício sobre o presente é marcada por essa sensação de afastamento entre as palavras e as coisas: “Entre nós, o poder Judiciário é um braço do Executivo, que expressa suas vontades pelo Legislativo, submisso às suas ordens: é o Absolutismo debaixo das fórmulas constitucionais” (O JEQUITINHONHA, 1861e, p. 1).
Num primeiro momento, ele situava o cenário político do Império no contexto da degeneração da aristocracia Conservadora, referindo-se a esse setor por meio do termo oligarquia:
Encastelada no senado, no Conselho de Estado e nos principais empregos, faz sentir por toda a sociedade sua maléfica influência; procura absorver todos os poderes, dominar quase todos os ministérios que, amparados por ela e crendo que o poder dessa oligarquia emana da Coroa, julgam-se fortes para afrontarem a opinião pública, esbanjando a seu bel prazer as rendas do Estado, ferindo as leis com seus regulamentos e decretos e intervindo diretamente nas eleições (O JEQUITINHONHA, 1861d, p. 1).
Segundo o arcabouço Clássico, o processo de degeneração da aristocracia em oligarquia segue alguns passos típicos que Joaquim Felício procurava identificar. Primeiro, a aristocracia impunha um critério censitário eleitoral tão alto, que os pobres, apesar de serem a maioria, não poderiam participar do governo. Depois, à proporção que a nobreza se tornava mais forte, selecionava em seu seio quem deveria governar; como não eram poderosos o suficiente para destruir as leis, faziam com que elas se ajustassem a essas circunstâncias. A terceira fase se dava quando os nobres passavam a deter todas as funções de governo e, por último, no quarto estágio, “criam uma lei que impõe a hereditariedade das mesmas” (ARISTÓTELES, 1985, 1293b). Nesse ponto, independente do nome que se dê ao regime, vigora na realidade um governo oligárquico, corrompido pelos interesses privados de um grupo.
A convicção de que os Conservadores estavam em plena ação para concretizar um projeto oligárquico está explícita em diversas passagens d’O Jequitinhonha. O problema não era apenas a corrupção da política, mas seu objetivo: assaltar o Estado, embolsar o dinheiro público, ao invés de investi-lo na construção de um país rico e igualitário. Tratava-se, portanto, de uma questão moral que, aos poucos, passa a ser explorada por meio da contraposição entre o luxo moderno ao luxo nobiliárquico. Nesse contexto linguístico, o luxo moderno é associado à abundância, ao progresso da indústria, ao trabalho produtivo a serviço da felicidade dos homens no mundo temporal. Sendo assim, ele é considerado legítimo e atual. O luxo nobiliárquico, em oposição, vincula-se ao parasitismo, ao ócio improdutivo, à ostentação e ao desperdício. Portanto, o fausto não propicia melhora de vida para o coletivo, apenas alimenta a vaidade de um pequeno grupo (MARTINS, 2017, p. 41-43).
Citando Voltaire, O Jequitinhonha lembrava que a aristocracia na França não pagava impostos, sobrecarregando o povo. Estabelecia-se, assim, uma relação de causalidade entre os “Conservadores-parasitas”, a miséria da maioria e o atraso econômico do Brasil:
É isso justiça? O povo trabalha e contribui com tributos e serviços pessoais a fim de que os grandes do estado possam fruir ricas prebendas e estejam defendidos contra as rebeliões da canalha, que por ventura se lembre de perturbar o seu ócio e de fazêlos descer das posições em que se entrincheiraram. É uma verdade que, na ordem hierárquica, as retribuições por dezenas de contos, centenas e milhões seguem as honras e títulos honoríficos. [...] a agricultura, a indústria e o comércio floresceram, o povo viveria na abundância e feliz se essas centenas de milhões que se tiram desse povo para sustentar o luxo da corte e de suas famílias [se] revertessem em utilidade pública (O JEQUITINHONHA, 1861b, p. 1, grifos meus.)
Essa perspectiva atacava a oligarquia, resguardando a figura do rei. Contudo, meses depois, Joaquim Felício percebe que tal programa não poderia se impor sem a anuência do Imperador. Em sua perspectiva, “o partido retrógrado soube ganhar-lhe as graças” por meio da bajulação e do servilismo. “Não satisfeita em ter restaurado o beija-mão e todas as etiquetas ridículas hoje geralmente em desuso nas cortes ilustradas, ousam no próprio parlamento fazer alarde de seu servilismo. Causa tédio tanta indignidade, uma bajulação tão aviltante” (O JEQUITINHONHA, 1861d, p. 1-2, grifos meus).
O recurso ao tropo do bajulador, para rotular a elite Conservadora, é elementar para associá-la à corrupção e ao parasitismo. Segundo Sanchéz-Marín, a figura do adulador era um tipo comum às comédias greco-romanas. O ato de bajular se definia como prática degradante, mas lucrativa para o bajulador. Horácio aconselhava o poeta a não oferecer seu poema aos falsos críticos, sendo preferível o analista sincero, cuja franqueza o levaria a emendar seus versos. Esta temática adentra o âmbito moral ao ser explorada por Cícero, que situa o bajulador no polo oposto ao do amigo. Ele ressalta que o adulador busca sempre o lucro, disposto a despojar o rico patrono em troca de falsos elogios (SÁNCHEZ MARÍN, 2003, p. 46-48).
No início dos anos 1860, Joaquim Felício procura se situar na esfera do amigo, aquele que diz a Pedro II a verdade e o aconselha a não se deixar seduzir pelos falsos encômios dos Conservadores. Sob seu ponto de vista, eles estavam “inculcando no ânimo do imperador” que eram os “únicos e verdadeiros monarquistas”, pintando os Liberais como “anarquistas, rebeldes, demagogos, amigos da guilhotina e do terror”.
O objetivo disso era, a seu ver, “viciar a constituição, substituí-la pelo governo pessoal” (O JEQUITINHONHA, 1863, p.1).
Aos poucos, Joaquim Felício passava a desconfiar das intenções do próprio rei. Cícero enfatizara que os falsos elogios só alcançavam êxito quando o ente adulado não desejava ouvir a verdade e, por vaidade, cedia aos falsos encômios. Sob essa lógica, Pedro II poderia ser visto como um homem frívolo, inclinado a vícios, ou pior, um tirano que, como Augusto, cooptava engenhosamente a aristocracia para atingir o poder absoluto. O tema da oligarquia começava a ceder ao tema da tirania, uma reconfiguração importante, pois um tópico central da degeneração tirânica era a cooptação dos intelectuais. Com efeito, ao longo da década de 1860, o IHGB passa a ser descrito n’O Jequitinhonha como “o Instituto dos laureados” e seus historiadores, como “poetas mercenários”, “artistas oficiais”, “renegados epicuristas”, “eunucos do paço” e “andorinhas de Tobias”.
Tirania: a corrupção da esfera intelectual
Um traço central da leitura moderna da obra de Tácito foi a ênfase nos riscos a que se expunha a sociedade, quando a concentração do poder político possibilitava o controle da produção intelectual, seja por meio do medo ou da adulação (MOMIGLIANO, 2004). Essa preocupação é recorrente nos artigos de Joaquim Felício, sobretudo a partir de 1869, durante a guerra contra o Paraguai. Cético quanto a qualquer benefício oriundo da campanha militar no Prata, ele se mostrava abalado com a perda de vidas e receoso com as concessões de créditos suplementares direcionados aos ministérios da Marinha e da Guerra. No entanto, o que mais lhe chamava atenção era a cobertura da imprensa Conservadora, cujas narrativas, a seu ver, afastavam-se completamente da realidade, limitando-se a tecer elogios sobre as façanhas do rei e de seus generais na guerra.
Essa tendência era vista como sintoma de que o compromisso com a verdade havia sucumbido à adulação. A obra de Tácito, marcada pela ideia de que a substituição da República pelo Principado levara à decadência intelectual de Roma, mostrava-se mais uma vez adequada para refletir sobre o presente. Tácito relatava que o príncipe se tornara a única figura com importância política e sua casa, a domus Caesaris, passara a ser o espaço privado em que as decisões eram tomadas. Assim, para se obter algum tipo de promoção, seria preciso adular a um só, no lugar de convencer a muitos, como era a prática durante a República. Tal cenário gerara a decadência da eloquência, entendida como a capacidade de debater sobre questões políticas e filosóficas de forma fecunda (VARELLA, 2008, p. 84).
A perspectiva de que a esfera intelectual brasileira estava a se converter em mero conjunto de aduladores do rei e de que esse processo corrompia a verdade se torna cada vez mais presente no jornal O Jequitinhonha, onde o IHGB surge ao lado dos tropos típicos da literatura romana:
O servilismo, o quetum servitium de Tácito, é e foi em todos os tempos o supremo almejo do despotismo [...]. Para nos fazer apodrecer na escravidão [...] também o nosso César um dia sonhou com a glória militar para coroar sua obra. Soldado bisonho, enfiou as botas napoleônicas; sopesou a espada de Carlos Magno e, cercado de Roldões caricatos, revestiu-se do título de D. Pedro O Uruguaiano, como um dos seus avôs fora Afonso o Africano. Malvada empresa! [...] Debalde os poetas mercenários e o Instituto dos laureados [...], em vão os sábios artistas oficiais dedicam sua obra ao muito alto e poderoso príncipe [...]. Em vão o Instituto extasia-se lendo a quadrinha imperial Fiel povo Ituano e a compara com o mimoso canto derradeiro de Marco Aurélio ou com as estrofes de Augusto (O JEQUITINHONHA, 1869d, p. 01, grifos meus).
Nesse trecho, Pedro II é representado como a síntese do anacronismo. Ele reúne, em um só indivíduo, os déspotas de todos os tempos; e o despotismo implicaria uma estrutura intelectual dominada pela dependência. Essa leitura estabelece uma relação direta entre a tirania e a decadência das virtudes. Como sublinha Flávia Varella, “Tibério, Caio, Cláudio e Nero não foram apenas governantes impróprios, mas, com seus exemplos, alastraram o vício e a servidão por toda a sociedade” (VARELLA, 2008, p. 75). Por outro lado, aprofunda-se o tema da bajulação, estendendo-o à historiografia. O mesmo movimento laudatório que desfigurava a narrativa sobre o presente poderia ser usado para deformar a narrativa sobre o passado: “Não faltaram coroas, prêmios e arcos triunfais a Nero nem a Calígula, nem as musas do Lácio envergonhavam-se de cantar esses monstros. Dessas baixezas e adulações torpes nasce sempre a opressão” (O JEQUITINHONHA, 1868, p. 1).
Como enfrentar esse contexto? Como romper os ciclos da degeneração política e impedir a consolidação da oligarquia e da tirania? Visando reagir a esse estado de coisas, a campanha Republicana da Geração de 1870 investiria nos jornais, nas escolas, na praça pública, enfim, no debate travado de modo transparente e à luz do dia (ALONSO, 2002). Ao mesmo tempo, seus intelectuais rearranjavam o “ethos do historiador oitocentista”, buscando autonomia em relação ao poder instituído, a denúncia das “falsificações históricas” e a seleção de temáticas consideradas úteis para solucionar os problemas do presente (TURIN, 2009). Para tanto, Joaquim Felício estabelecia duas frentes de ação: escrever uma história verdadeira, crítica e significativa, cujo exemplo é sua obra Memórias do Distrito Diamantino (MARTINS, 2017, p. 95-135); e, de outro lado, deslegitimar a historiografia Conservadora e/ou monarquista, que ele associava diretamente ao IHGB. Esse é um dos objetivos da sátira Páginas da História do Brasil no ano 2000.
O riso sardônico de Juvenal
Cícero realçava que não costumamos guardar na memória as coisas pequenas, comezinhas e corriqueiras que vemos na vida; mas, “se vemos ou ouvimos algo particularmente torpe, desonesto, extraordinário, grandioso, inacreditável ou ridículo, costumamos lembrar por mais tempo” (CÍCERO, 2005, p. 5 apudVARELLA, 2008, p. 78). O uso do riso como arma política pode ser entendido nessa perspectiva. Embora a publicação de sátiras não fosse estranha à tradição portuguesa, iluminista ou mineira, a principal referência de Joaquim Felício é o satirista Décimo Junio Juvenal, citado várias vezes n’O Jequitinhonha ao lado de Horácio, Rabelais e Miguel de Cervantes.
Esses escritos são marcados pela grande transformação cultural pela qual passou Roma no século I d. C., atreladas à expansão do poder econômico e ao acúmulo de riquezas legados pelo imperialismo. Seus temas giram em torno de três motivos - o dinheiro, o sexo e o estrangeiro -, e entre seus tipos favoritos, estão os intelectuais medíocres (OLIVEIRA, 2013, p. 33). Em certos poemas, o narrador adota uma atitude cínica capaz de revirar às avessas compromissos de respeito hierárquico, para tocar em seus principais tópicos: os perigos da vida política, o valor do desapego, o elogio da resiliência individual e a rejeição ao intelectualismo (UDEN, 2011, p. 163).
A sátira Páginas da História do Brasil no ano 2000 expressa essas tendências. Publicada n’O Jequitinhonha em 1869, seu principal personagem é Dr. Tshereppanof, um médium russo capaz de transitar no tempo. Ele se torna amigo de Pedro II e, a convite do imperador, frequenta reuniões do IHGB. Tais episódios, alerta Joaquim Felício, são descritos “em linguagem do tempo” (O JEQUITINHONHA, 1869a, p. 03).
O que seria esta “linguagem do tempo”? Tratava-se de uma caricatura do “idioma monárquico”, isto é, de seus temas, tons e estilos próprios, do modo como frisava o poder das hierarquias em detrimento da igualdade. Nas Páginas..., as falas de Pedro II estão sempre no imperativo: “ordeno”, “instituo”, “decreto”, “determino”. Já os historiadores do IHGB, expressam-se com exagerada subserviência: “Sou criado de V.M.”, “Dê-me ocasião de obedecer-lhe”, “Sirva-se de mim”, “beijo a mão de V.M.”. Quando se referem ao rei, usam repetidas hipérboles, como “sapientíssimo” e “gloriosíssimo”. No fundo, essa linguagem expressa uma oposição política: de um lado, a relação entre pompa e falsidade, típica das tiranias; de outro, a ligação entre simplicidade e verdade, possível apenas em um regime republicano, no qual a liberdade e a persuasão são valorizadas.
A ridicularização da pompa e da ritualística monárquica no Segundo Reinado são temas recorrentes entre republicanos que se ressentiam dos caminhos aristocráticos seguidos pela Monarquia Constitucional Brasileira desde o Regresso (FONSECA, 2006). Nas Páginas..., essa afetação é representada por diálogos recheados de floreamentos retóricos que, naquele momento, tendiam a ser associados à falsidade e à adulação. Entendia-se que o discurso “laudatório” era usado para dissimular o que realmente se pensa: “Vou dizendo o que sinto sem atender às flores da retórica, a ideias pomposas que nada significam”, dizia o jornal Liberal Mineiro. Considerava-se que a “fraseologia vazia” tendia para o “pedantesco, e o que é pior, para o ridículo” (LIBERAL MINEIRO, 1884, p. 1; 1885, p. 3).
O suposto pedantismo intelectual de Pedro II e dos historiadores do IHGB desencadeia outros temas como o carreirismo, o cientificismo vazio e o desvirtuamento do método histórico. Joaquim Felício sugeria que jornalistas e historiadores Conservadores visavam apenas adular o Imperador para obter benefícios políticos e econômicos. A seu ver, esse imediatismo impedia a produção de conhecimento relevante e duradouro. Em um editorial em que criticava o jornal Diário do Rio durante a guerra do Paraguai, ele enfatizava que esse tipo de texto só servia ao presente e não resistiria à passagem do tempo: “Não faltaram coroas, prêmios e arcos triunfais a Nero nem a Calígula. Esses documentos servem à história? Não, o Diário sabe” (O JEQUITINHONHA, 1868).
Para Joaquim Felício, o IHGB pusera de lado a busca pela “verdade” e por temáticas relevantes, contentando-se em entreter um rei entediado. Essa percepção é exposta em diferentes episódios das sátiras. Num deles, a Corte prepara uma ópera em honra ao imperador. O ballet se inicia com “alguns sócios do Instituto Histórico vestidos de palhaços com pandeiros e guizo”, dirigidos pela Baronesa de Caiapó (O JEQUITINHONHA, 1869g). Sobressai nesses escritos a sensação de que a vida política e intelectual do Império não passava de uma farsa, paródia barata das monarquias da Europa, imitação burlesca, deslocada no espaço e no tempo. Em outro episódio, se ressalta que, ao invés de buscar soluções para os desafios do país, Pedro II “mata o tempo falando todas as línguas vivas e mortas” e “discutindo com os sábios do Instituto os mais apetitosos meios de rechear um papo de peru” (O JEQUITINHONHA, 1869f).
Esse trecho exprime o tema do ócio improdutivo, ligado ao tropo da aristocracia nobiliárquica, e traz outro mote típico do gênero satírico: a inversão de prioridades. Num episódio das Páginas..., narrava-se um encontro fictício no IHGB, cuja principal preocupação era confirmar se o imperador honraria a reunião com sua presença. Somente após a resolução dessa questão prioritária, os historiadores passam a tratar do que, ironicamente, era considerado marginal: o tema histórico a ser debatido na sessão.
Está entendido, senhor - respondeu este. O Instituto Histórico tem de tratar na sessão do dia 15 de um importante assunto - achar a etimologia da palavra Brasil. A discussão há de ser muito animada e calorosa, e até receio desordens. Os espíritos acham-se agitadíssimos [...]. Pediram a palavra 84 oradores, 41 a favor e 43 contra. O João Manoel romperá a discussão por parte de uma das turmas e o Varnhagen será o primeiro orador da outra (O JEQUITINHONHA, 1869e).
O contraste entre a polêmica e a monotonia do tema sublinha a pobreza intelectual do Instituto. Com efeito, nas Páginas da história do Brasil no ano 2000, os historiadores do IHGB sempre veneram as ideias de Pedro II, mesmo as mais descabidas. Uma delas era a obsessão do imperador em encontrar o crânio de Estácio de Sá, primeiro capitão mor do Rio de Janeiro. A cena se inicia quando o personagem Visconde lê uma edição fictícia do Punch, um jornal satírico inglês. Segundo o artigo, tão logo Pedro II manifesta a ideia de encontrar o crânio, a intelectualidade da Corte, incluindo-se “a associação dos mais distintos historiógrafos e paleontólogos do Brasil”, passa a competir para acompanhá-lo às catacumbas no cemitério de São Bento.
O olhar estrangeiro do Punch propicia um afastamento cultural que desnaturaliza a jornada, em especial a bajulação e o servilismo, ampliando sua dimensão pitoresca. Quando um é escolhido para auxiliar o rei, por exemplo, os outros “o olham com inveja”; cada qual quer ostentar seus conhecimentos ao monarca e um poeta corre tanto para lhe apresentar um manuscrito que, no caminho, destronca o pé (O JEQUITINHONHA, 1869e). Horas depois, como o crânio ainda não havia sido encontrado, Pedro II toma uma decisão: tapa os olhos e escolhe uma lápide a esmo. Quando o corpo é finalmente exumado, o rei toma o crânio entre as mãos e faz uma análise que, embora nitidamente falsa, era exposta através de termos técnicos e científicos:
- é dele! - disse o imperador. Vê-de doutor, está quase imperceptível a apófise sobre o segundo dente canino. Diz a fenologia que essa é uma característica de homens guerreiros. Observai o ângulo reto facial: é a medida do ângulo que deviam ter os capitães mores. Notai essa pequena depressão no osso frontal: é o sinal dos homens predestinados a morrer de uma flechada (O JEQUITINHONHA, 1869e).
Esta cena indica a desconfiança de Joaquim Felício em relação aos limites do cientificismo dogmático e realça a oposição mencionada entre pompa/ falsidade e, de outro lado, simplicidade/ verdade. Ao fim do episódio, o narrador destaca que “todos se extasiavam boquiabertos, admirados de tanta ciência”, exceto frei Venâncio e frei Caetano, únicos personagens que não faziam parte da comitiva imperial. Estavam ali a contragosto, pois eram os zeladores do cemitério. “E esta! Quer o imperador que aquilo seja o crânio de Estácio de Sá!” - Reclama frei Caetano. Aos sussurros, Frei Venâncio replica: “É um ignorante”.
Tais passagens expõem a crítica ao pedantismo infecundo do IHGB e mostram que o povo, na simplicidade de quem ainda não foi contaminado pela adulação, era capaz de enxergar a verdade. Na obra de Joaquim Felício, essa verdade está profundamente ligada ao futuro republicano. No desfecho da cena, frei Venâncio conta que aquele crânio, na realidade, pertencia a frei Tibúrcio, condenado a morrer emparedado por ter se envolvido na Conjuração Mineira. “De forma que nosso irmão emparedado vai ter no Pantheon as honras de Estácio de Sá”, diz ele. “Quem diria que os ossos de um conjurado republicano haviam de ter tais honras!” (O JEQUITINHONHA, 1869e).
O desenlace sugere que, de uma maneira ou de outra, o destino faria justiça e homenagearia aqueles que lutaram por um país democrático. Esta alusão é reforçada com o desenrolar das Páginas... Apesar de contar com a aprovação dos intelectuais do IHGB, Pedro II continuava preocupado com o juízo da posteridade. Por isso, incumbe o Dr. Tshereppanof de uma tarefa delicada: transportar-se para o ano 2000 e descobrir como seu reinado será visto no porvir. Através dele, o rei fica sabendo que o Brasil no ano 2000 é um país republicano, que a aristocracia, os títulos de nobreza e os privilégios haviam sido abolidos. “O que distingue o cidadão do futuro são as qualidades pessoais, a virtude, a ilustração, o patriotismo, a dedicação, a filantropia, os serviços prestados ao país ou à humanidade”, diz o médium. “Liberdade, igualdade e fraternidade são as bases da constituição moderna” (apudEULÁLIO, 1957, p. 130). Chocado, Pedro II não acredita e ordena que o Dr. Tshereppanof o leve ao futuro. Assim, o rei passeia incógnito pelo igualitário Brasil do ano 2000 sob pseudônimo de Dr. Muller. Os fluminenses, impressionados com sua erudição, elegem-no juiz de paz.
Segundo Ana Ribeiro (2012), a existência de um personagem que é também narrador e viajante é um elemento central das utopias. Sua função na trama é colocar em comunicação a realidade histórica e a realidade utópica. A autora insere as Páginas... também na tradição dos relatos de viagens; entretanto, elas descrevem uma sociedade localizada em um tempo por vir. Esse gênero de histórias, também conhecidas como romances de antecipação, teve ampla fortuna e dele derivaram inúmeras variantes, em geral distópicas, como a ficção científica. À primeira vista, o tema principal parece ser o futuro, no entanto, uma leitura detida revela que o verdadeiro tema é o presente do autor, o qual contém, em germe, o futuro retratado. A descrição do futuro não se trata apenas da projeção do presente. É, antes, uma forma de desfamiliarizar e reestruturar a experiência que se tem do presente, de pôr à prova ideias e noções estabelecidas, de modo que valores aparentemente imutáveis se revelam passageiros a longo prazo (RIBEIRO, 2012, p. 215-223).
Na sátira Antiga, o ataque ao presente era feito em nome de um tempo já passado e visava à reiteração do costume que estava sendo deturpado pelos vícios no presente. Já na sátira moderna, o ataque tem em vista um horizonte futuro, isto é, ela é realizada “em nome daquilo que há de vir, do ainda não” (BOSI, 1977, p. 160). Sob essa perspectiva, as Páginas da história do Brasil no ano 2000 podem ser entendidas como um mecanismo ideado para incitar o leitor a transformar o presente na direção de instituir um futuro republicano.
A verdadeira história
Deslegitimar os Conservadores, o IHGB e a historiografia monárquica era uma abordagem. A outra frente da ação seria a escrita de uma história verdadeira, crítica e significativa. Para Joaquim Felício, essa nova historiografia deveria se basear no látego de Tácito, isto é: seu objetivo seria expor a corrupção política do Império e descortinar a decadência dos costumes para superá-los. Nesse sentido, percebem-se certos esforços para disciplinar a historiografia republicana, entre eles, o de hierarquizar temáticas, considerando-se legítimos apenas os estudos imediatamente úteis para promover a ruptura com os “vícios” do Antigo Regime. Pode-se dizer que essa era uma das razões por que a tradição republicana não estimularia o interesse pela cultura monárquica ibérica, entendendo-a sobretudo como um contraponto ou exemplo negativo. N’O Jequitinhonha, nota-se mesmo um tom de censura em relação àqueles que dedicassem seus esforços a conhecer as peculiaridades das “sociedades de corte”:
Confessamos nossa completa ignorância sobre brasões, heráldica e coisas de fidalguia; ignoramos as leis ou o código que regulam a nobreza de nossa terra, as relações dos nobres entre si e com os plebeus, nós outros; quais sejam suas preeminências, graduações, privilégios e prerrogativas. Parece que deve ser uma legislação bem complicada, principalmente no que diz respeito às relações dos nobres com o monarca: coisas de entrada no paço, de cortesias, de casacas bordadas, de calções, de fivelas, de calças desta ou daquela cor. [...] O código, lei, decreto, ritual, aviso, alvará, portaria, regulamento ou o que quer que seja que tratou disso deve ser interessante, mas infelizmente não nos sobra tempo para estudálo. Ignoramos ainda quais sejam as habilitações que se exigem do plebeu para tornar-se fidalgo; se é necessário folha corrida, certidão de idade, puridade de nascimento, moribus, exame de suficiência ou o que mais (O JEQUITINHONHA, 1872, p. 1, grifos meus).
A descrição caricatural da simbologia nobiliárquica sugere que esta temática já não era pertinente, nem seria no futuro. Sendo o arcabouço cultural do Antigo Regime uma questão de menor valor, só despertava interesse por extravagância ou curiosidade, porém a discrepância entre sua complexidade e relevância não compensava o esforço. No limite, o interesse por esse tema poderia vincular o historiador em questão ao ócio improdutivo, à negligência em relação às urgências do presente, fazendo suspeitar de sua ética e intenção. Tal escolha temática sinaliza que o historiador republicano deve estar comprometido com outro lugar de fala, outro projeto nacional associado ao universalismo moderno. Nesse caso, o sentido da história está ligado ao processo de perfectibilidade humana, cujo sinal é o desenvolvimento de uma legislação democrática compatível com a liberdade e igualdade entre os homens.
Por um lado, a recusa à chave de leitura monárquica abria oportunidade de pôr em relevo temas antes marginalizados, o que era, sem dúvida, um ponto positivo. Como as Memórias do Distrito Diamantino expressam bem, o estudo sobre as práticas de dominação política, intelectual e econômica ganharam o primeiro plano (MARTINS, 2017, p. 95-135). Por outro, no contexto de antagonismo crescente, era de se recear que esses temas viessem a se tornar os únicos legítimos, inibindo, indiretamente, o desenvolvimento de uma abordagem historicista. Assim, de modo implícito, a tradição republicana tenderia a apontar a relevância dos princípios democráticos e a salientar os horrores do regime monárquico, condensado sob os conceitos de tirania e absolutismo.
Conclusão
Este artigo aborda o caráter transdisciplinar da historiografia republicana brasileira durante sua gênese no século XIX. Apesar de seu caráter a princípio indisciplinado, permissivo e subversivo, esta tradição também atuou para disciplinar e policiar a prática historiográfica. Ao avaliar fragmentos da obra marginal de Joaquim Felício dos Santos, isto é, seus artigos jornalísticos publicados no periódico O Jequitinhonha e as sátiras Páginas da História do Brasil no ano 2000, constata-se que o autor hierarquizava temáticas e ridicularizava a tradição monárquica, à qual se opunha. Paralelamente, ele operava para estabelecer um ethos do “verdadeiro historiador”, cuja conduta se conectava à ética e a princípios republicanos.
Ao longo do artigo, argumentei que houve uma articulação entre a teoria política e o campo historiográfico no Brasil oitocentista. Os arcabouços de Bobbio, Catroga e Pocock foram combinados, para examinar as formas como Joaquim Felício se apropriou de teorias republicanas a fim de construir um quadro coeso e estrutural do contexto político em que vivia. Entendendo que o Regime Monárquico Constitucional estava degenerando em oligarquia, o autor atuou para combater a tradição política e intelectual Conservadora. Em seguida, interpretando que o regime se degenerava em tirania, o autor passaria a atacar a tradição monárquica como um todo.
As estratégias discursivas presentes no jornal O Jequitinhonha orientam-se pela ética republicana, que prescrevia a participação política e intelectual na esfera pública. Sob essa ótica, ressaltava-se como as diretrizes do Instituto Histórico destoavam dos princípios da transparência (a participação restrita aos sócios, a ênfase no passado distante e a rejeição da imprensa como canal para o debate histórico). Situando-se no polo oposto, a tradição republicana propunha democratizar o conhecimento por todos os meios disponíveis: “A instrução precisa ser introduzida no país. Se não for pelo governo, seja ao menos pelos cidadãos” - dizia um Editorial d’O Jequitinhonha(1869b). A tática era atuar de modo transdisciplinar e ocupar lugares de fala não oficiais, como os jornais.
A ausência do suporte institucional, que antes parecia fraqueza, acabou por se revelar vantajosa. O caráter indisciplinado dos jornais permite tornar a reflexão histórica acessível a diferentes públicos, mesclando-se ao entretenimento. É possível que a mistura entre a política, a história e o riso incitasse o engajamento. De início, diante dos ataques satíricos de Joaquim Felício à “oligarquia”, os periódicos Conservadores de Minas adotaram uma postura arrogante de quem sequer se rebaixa a dialogar com a imprensa republicana: “Por hora não há um só jornal na província que mereça as honras de nossas discussões. O Jequitinhonha é um inseto que quase não enxergamos” - dizia o Noticiador de Minas (1869, p. 1). Somente quando a jovem geração de 1870 é seduzida pelas novas perspectivas, o enferrujado Instituto Histórico pôde perceber a força da teia que a cultura republicana tirara da semiclandestinidade.
Para além da comunicação inovadora, a tradição republicana se empenhou em forjar um discurso próprio. A partir das proposições de John Pocock, busquei tratar esses discursos como linguagem política republicana. Este idioma se compõe de temas típicos como a oligarquia, tirania, servilismo, adulação, dissimulação e pedantismo, engendrando modos próprios de interpretar a ação do rei, dos Conservadores e dos ambientes que frequentavam. O uso dessa linguagem não se circunscreve apenas aos discursos políticos: ela surge em outros gêneros de escrita, como a sátira e a historiografia.
Este idioma possui duas dimensões medulares que, de certo modo, continuam sendo veiculadas até os dias atuais: o dualismo e o anacronismo, estabelecendo uma causalidade entre a riqueza aristocrática e a miséria da população, inserindo todo Conservadorismo na esfera da imoralidade. O arquétipo típico é a oposição entre o luxo nobiliárquico (magnificência, ócio e desperdício aristocrático) e o luxo moderno, relacionado à democratização da riqueza e de uma ciência que reflita sobre o presente.
O principal trunfo da tradição republicana é a conexão entre ética democrática e ética moderna. A modernidade possui uma identidade e uma história que a definem como tempo de transição de um mundo antigo, marcado por práticas violentas de dominação, para um período novo, racional, superior. Nessa narrativa, a humanidade, no singular, “deixa a infância” e se emancipa como sujeito capaz de pensar por si mesmo e, portanto, de distinguir o que é melhor para si. Tal atitude inclui se livrar da tutela monárquico-aristocrática e escolher seu destino. Um dos principais exercícios retóricos usados por Joaquim Felício para deslegitimar a Monarquia e os Conservadores era justamente acentuar seu anacronismo em relação à marcha moderna. Com isso, ele os deslocava para o passado, realçando a primitividade de suas práticas políticas tutelares, de seus hábitos ritualísticos e antiquados, em uma palavra, cafonas, e também os alijava do presente moderno e universal, bem como das tendências democráticas adotadas pelas principais nações ocidentais da época.
Uma vez que a filosofia da história moderna ainda está em uso no Brasil, esse argumento continua a ser muito veiculado atualmente. Sobretudo entre os setores de “esquerda”, é comum apelar para o anacronismo das práticas da “direita” (em relação ao passado ou a outras nações “adiantadas”), visando demandar mudanças ou criticar o status quo. Diante da crise recente, contudo, o despertar da extrema direita reacendeu a defesa do regime monárquico e, parece-me, o argumento do anacronismo não será suficiente para que haja uma contraposição eficiente a esse discurso.
Se a historiografia republicana nasceu de uma postura indisciplinada, logo passou a hierarquizar e classificar, em suma, a propor seus próprios critérios de disciplinarização. Entre eles, a estigmatização da temática monárquica parece ser o mais pernicioso para o campo da historiografia. Essa operação de sinédoque reduziu o conceito de monarquia ao de absolutismo, apagando as dimensões culturais e filosóficas do regime e tornando um tabu estudá-las. Se os limites dessa opção estão claros do ponto de vista historiográfico (GUIMARÃES, 1988), o impacto sociopolítico ainda está por ser avaliado. Por um lado, o desconhecimento pintou o “Antigo Regime” com as cores do espantalho, dificultando a identificação de continuidades mais sutis e sofisticadas da cultura monárquica após a instituição da República. Por outro, em locais de fala extraoficiais, porta-vozes do neomonarquismo e de movimentos conservadores acusam a historiografia profissional de ser republicana, falsa e ideológica.
O uso desses argumentos indica que a linguagem republicana ainda está em uso, que outros a têm empregado para efetuar enunciações diversas e mesmo contrárias às originais. Isso, obviamente, significa que a modernidade não é um processo único, que o pensamento aristocrático-conservador soube se manter vivo, mesmo após a redemocratização. Essa continuidade não se deu somente por meio da violência, mas também da preservação e ressignificação do discurso. O que está em questão neste debate, parece-me, é, sobretudo, a discordância acerca do componente ético (aristocrático ou democrático) que perpassa a escrita da história. Se há, hoje, relativo consenso entre historiadores de que o elemento ideológico é parte do trabalho histórico, torna-se relevante refletir sobre o funcionamento dessa mediação. A intenção deste artigo é contribuir para a construção de um diálogo que vise não apenas relativizar a epistemologia histórica, mas também pensar sobre como tornar essa relativização operacional.
AGRADECIMENTO
Eu gostaria de agradecer ao Dr. Temístocles Cezar (UFRGS) e ao Dr. Berber Bevernage (UGhent) pelo suporte e troca generosa de ideias, sem os quais este artigo e a pesquisa por trás dele não teriam sido possíveis. Também sou grata à Dra. Helena Mollo (Univesidade Federal de Ouro Preto - UFOP), à Dra. Gisele Iecker (UGhent) e à Dra. Walkiria Oliveira (Universidade de Uberlândia - UFU) pelas proveitosas discussões intelectuais. Agradeço ainda aos pareceristas e editores anônimos da evista História da Historiografia, cujo saber e experiência contribuíram muito para melhorar o trabalho.
REFERÊNCIAS
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Notas
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
Autor notes
Alexandre Avelar - Editor convidado
João Rodolfo Munhoz Ohara - Editor Executivo
Lidiane Soares Rodrigues - Editora convidada
María Inés Mudrovcic - Editora convidada
Declaração de interesses
Nenhum conflito de interesse declarado.