Dossiê
DOI: https://doi.org/10.4000/aa.4950
Resumo: Este artigo tem como objetivo debruçar-se sobre as reflexões e ações políticas dos Avá Guarani no processo de habitar as aldeias em áreas que foram recuperadas no que tange à temática da preservação ambiental e recuperação ambiental. Trazendo as suas relações com a “natureza” para o centro do debate antropológico sobre a sustentabilidade e as Unidades de Conservação sobrepostas aos territórios indígenas, abordaremos especificamente dois contextos distintos nos quais se relacionam os Avá Guarani no Oeste do Paraná: o primeiro é a situação dos que vivem sob as Áreas de Preservação Permanente (APP) da Itaipu Binacional, e também trataremos de duas ocupações no Parque Nacional do Iguaçu (PNI), terra que os indígenas entendem como tradicional. Os dados aqui dispostos se orientam a partir de trabalho de campo. Dessa forma, darei prioridade à etnografia realizada junto aos Avá Guarani.
Palavras-chave: Avá Guarani, Resiliência ecológica, Recuperação territorial.
Abstract: This article pretends to look over the Avá Guarani’s reflections and political actions, in the process of inhabiting the repossessions about the topic of environmental preservation. Bringing their relations with the “nature” to the center of the anthropological debate on sustainability and the environmental units of conservation overlapping on the indigenous territories, we will deal specifically with two different contexts which the Avá Guarani in the West of Paraná are related: the first one is the situation of those who are living on the Permanent Preservation Area (APP) of Itaipu Binacional, and the another one is two occupations on the Iguaçu National Park (PNI), a land that indigenous people consider as traditional. The research data here are based on fieldwork, so I will give priority to the ethnography carried out with the Avá Guarani.
Keywords: Avá Guarani, Ecological resilience, Territorial recovery.
Introdução
Uma pergunta feita por Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida (2009) motiva este artigo[1] e em certo sentido tange às Unidades de Conservação sobrepostas às Terras Indígenas. “Seriam os povos tradicionais conservacionistas?”, perguntaram. Os indígenas do povo Avá Guarani, em suas descrições, indicam que antigamente os mesmos se autodenominavam como um “povo da floresta”, mas atualmente são tratados pelos brancos como “invasores” e “degradadores da natureza” no processo de recuperação das suas terras tradicionais.
A clássica elaboração formulada pelo Estado brasileiro de que os indígenas seriam um entrave ao desenvolvimento nacional, formulada nos anos 1980, ainda aparece em voga quando esses são acusados de “improdutivos” ou de “impedirem o progresso nacional” ao não aderirem às atividades hegemônicas da monocultura e rejeitarem as formas dos brancos de pensarem o que denominam como “progresso social”. Essa rejeição ao modelo dos brancos parece decorrer da reelaboração cosmológica dos efeitos do contato, ao explicarem que no tempo mítico, os Avá Guarani optaram por viver nas florestas, ao contrário dos brancos que escolheram viver da cidade e do dinheiro.
A lógica da conservação da biodiversidade dos não indígenas parece ter colocado os povos indígenas em um lugar semelhante ao da lógica que formulou a elaboração de que eles são um entrave para o desenvolvimento, ao serem apontados como um entrave para a conservação do meio ambiente. A noção de conservação a que os brancos aderiram está amparada nos modelos estrangeiros, que na prática impede os indígenas de habitarem as suas terras tradicionais que estão sobrepostas às áreas de Unidades de Conservação, como no caso dos Parques Nacionais. Essa situação pode ser observada em outras experiências meridionais de sobreposição das Unidades de Conservação em Terras Indígenas, onde indígenas são tidos como entraves para a conservação ambiental, o que atinge até mesmo indígenas da Região Amazônica, que são considerados como importantes aliados nos projetos de conservação do ambiente naquela região.
Na esteira de Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida (2009), nos inspiramos a perguntar: seriam os Avá Guarani conservacionistas? A questão norteadora tem o objetivo de trazer uma reflexão sobre como as suas práticas culturais se constituem como modos de habitar tradicionalmente sustentáveis. A partir de etnografia realizada junto aos Avá Guarani, pretendo abordar como as suas elaborações cosmológicas estão conectadas a uma conotação de “ética de conservação” que os leva a empreender nos territórios recuperados um projeto de “recuperação ambiental”.
Os Avá Guarani são falantes da língua tupi-guarani. Na literatura etnológica compreendem a parcialidade ñandeva, ainda que em sua autodenominação discordem dessa associação. Eles habitam o extremo oeste do Paraná no Brasil e o Alto Paraná no Paraguai, onde são conhecidos como os Avá Katu Ete. Trata-se de um território compreendido como contínuo, que abrange terras às duas margens do rio Paraná. No Oeste do estado do Paraná, os Avá Guarani iniciaram um processo de recuperação territorial assentado nas retomada de terras e nas entradas, reivindicando essas terras como tradicionais. São lugares dos quais foram esbulhados pelos processos de colonização do Estado Nacional e com o alagamento das suas terras em decorrência da construção da hidrelétrica da Itaipu Binacional. Atualmente, as aldeias na região estão conformadas a partir das entradas e das terras regularizadas (mediante aquisições efetuadas por Itaipu Binacional) dispostas no sudoeste e no noroeste, sendo que algumas dessas estão nas margens do Lago Artificial, e se localizam ao sudoeste nos municípios de Santa Helena, Itaipulândia, São Miguel do Iguaçu e Diamante D’Oeste, e ao extremo oeste em Guaíra e Terra Roxa. As duas regiões passam, atualmente, por processos administrativos de identificação de terras indígenas. O estudo da Funai nas áreas habitadas em Guaíra e Terra Roxa, recentemente publicadas constituiu a Terra Indígena Guasu Guavira.
Somente três dessas áreas estão regularizadas, resultado das ações políticas dos grupos indígenas que organizam por décadas a reivindicação das terras tradicionais que foram suprimidas pelas ações do Estado Nnacional e a Itaipu Binacional, responsável pelo alagamento das suas terras. Após pressões de organismos internacionais, nos anos 1990, a hidrelétrica efetivou a compra de uma primeira área, Tekoha Añetete, em 1997; a segunda foi adquirida somente 10 anos depois, Tekoha Itamarã, em 2008. E a primeira área criada pela hidrelétrica foi a de Oco’y, logo após o represamento das águas, em 1982, que alagou cerca de 1.350 km² de terras, criando o Lago Artificial da Itaipu Binacional. Isso acarretou sérios efeitos cosmológicos com a destruição de lugares sagrados para os Avá Guarani, como eram as Sete Quedas em Guaíra, que foi completamente alagada[2].
No total são três as áreas[3] regularizadas para os indígenas em processo de aquisição, que envolveu também a Funai, ao reconhecer as consequências da construção da represa sobre seus modos de vida: Terra Indígena do Oco’y (São Miguel do Iguaçu), Itamarã e Añetete (Diamante D’Oeste). As duas áreas que estão localizadas no município de Diamante D’Oeste correspondem às aldeias de Itamarã (2006) com 242 hectares e Añetete (1997) com 1774 hectares. Em Guaíra e Terra Roxa, a hidrelétrica não desenvolveu nenhuma medida reparativa de aquisição de terras para os indígenas dessa região. Apesar de também terem sido afetados, os Avá Guarani comentam que isso se trata de ignorar os direitos indígenas das famílias dessa região, os desconsiderando como atores que foram prejudicados, e que ainda sofrem os efeitos materiais e espirituais do represamento das águas do rio Paraná.
Figura 1 – Crianças brincam nasmargens do Lago Artificial daItaipu Binacional, em frente deuma das aldeias que estão emÁrea de Proteção Permanente.Registro feito em 2018.
Fonte: Fotografia do Autor.Acervo pessoal.A área de Oco’y, com 251 hectares, foi a primeira que os Avá Guarani negociaram com a Itaipu Binacional, após o alagamento da antiga aldeia de Jacutinga. Os indígenas, inicialmente, se recusaram a receber uma área menor que 1500 hectares, mas sem ver as suas demandas atendidas, resolveram aceitar a extensão de 251 hectares, com a iminência de ficarem sem nenhum terreno para as famílias habitarem, devido ao alagamento de sua aldeia. Entretanto, a área de Oco’y estaria localizada na própria Área de Proteção Permanente (APP) da Itaipu Binacional, sendo ainda, vizinha de propriedades de monocultivo que incidem sobre a saúde das famílias indígenas, com a emissão de agrotóxicos (Carvalho, 2005).
As outras aldeias do extremo Oeste do Paraná se configuram atualmente em maioria como acampamentos oriundos das ações de um processo de recuperação territorial, denominadas de aike, entradas, na língua nativa. Totalizando, seriam 24 áreas recuperadas, a maioria está em situação de acampamento, e apenas três são áreas regularizadas, sendo que na região de Guaíra e Terra Roxa os indígenas aguardam o desenvolvimento do processo de demarcação territorial. Os Avá Guarani são habitantes de toda a costa do rio Paraná e identificam também como parte do seu território a margem direita do rio Paraná, a região do Alto Paraná , na qual os povos indígenas autodenominados Avá Katu Eté são os seus parentes.
O Parque Nacional do Iguaçu: a presença dos Avá Guarani e sobreposições territoriais
A partir de 1939, as famílias indígenas começaram a ser retiradas de suas terras para a criação[4] do Parque Nacional do Iguaçu (PNI). Foram despejadas para outras áreas[5], ainda sem nenhuma garantia de área equivalente a qual pudessem habitar, restando a essas famílias se alocarem em aldeias dos parentes (Carvalho, 2005). Nessa época, a área do Parque Nacional do Iguaçu passou a ser de 185.000 hectares, e nos relatos dos idosos, ao menos três aldeias consideradas como grandes estavam localizadas nessa área, em que,posteriormente, foi criada a Unidade de Conservação[6].
Os indígenas, , foram expropriados das áreas de ocupação tradicional de diversas formas, ao longo do século passado, a despeito dos interesses dos não indígenas, servindo para a criação do Parque Nacional do Iguaçu, nos projetos de colonização do Governo do Estado do Paraná, na construção da hidrelétrica da Itaipu Binacional, entre outros. Justamente por esses processos de contato e expropriação das suas terras, eles acionam atualmente um processo de recuperação territorial para possibilitar a reprodução dos seus modos de vida. Apenas cerca de 2247 hectares de terras, estão regularizadas no Oeste do Paraná para os Avá Guarani, sendo que as áreas regularizadas estão no sudoeste, e nenhuma se encontra ainda em Guaíra e Terra Roxa, o que causa insegurança às famílias indígenas, pois as áreas regularizadas são insuficientes para abrigar todas as famílias Avá Guarani.
Nesse contexto, em que a quantidade de espaços é limitada para atender todas as famílias indígenas, os Avá Guarani realizaram duas entradas de terras indígenas no Parque Nacional do Iguaçu, que logo, foram consideradas “invasões” pelos jurua, brancos, ao argumentarem ainda que a presença das famílias indígenas comprometeria a conservação da natureza. O caso ganhou repercussão estadual, e a mídia local sugeriu que os indígenas deveriam ser retirados logo do Parque Nacional do Iguaçu, sem a possibilidade de uma negociação que pudesse gerar uma gestão integrada. Argumentavam que isso traria o risco de o Parque Nacional do Iguaçu se transformar no mais novo Parque Nacional do Monte Pascoal, onde os indígenas Pataxó também estariam depredando a Unidade de Conservação, após retomarem ás áreas e tentarem negociar a gestão integrada da área com o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), que faz o gerenciamento do Parque Nacional naquela região.
A primeira entrada, uma aike, dos Avá Guarani na área do Parque Nacional do Iguaçu, se deu no ano de 2005 e foi motivada pela situação em que ainda se encontra a aldeia de Oco’y. Ali vivem todos “apertados”; e devido a área não possuir matas, rios e espaço suficiente, se constitui limitada para a quantidade de famílias que habitam a aldeia. Em entrevista dada a um jornal local na época de negociação com o Ibama para a permanência das famílias indígenas no PNI, o senhor Simião Villalba comenta que “a preservação do meio ambiente não se limita a cuidar de bichinhos e flores, mas também dos índios”[7], e que a área do Parque Nacional do Iguaçu pertence ao território tradicional dos Avá Guarani. As memórias dos antigos descrevem essa região em torno das Cataratas do Iguaçu como lugar em que viviam antigamente, o que motivou os parentes saírem de Oco’y e recuperarem as terras tradicionais, que se encontram sobrepostas pelo PNI. Nessa região, contam que existiam no mínimo três aldeias, sendo essas mencionadas como grandes e apontadas por anciões como um lugar em que viviam “muitos índios”.
A expulsão das famílias indígenas do Parque Nacional do Iguaçu em 1939 se deu com o uso da violência como contam os idosos, em que um massacre ocorreu na floresta, com os corpos dos indígenas sendo jogados já mortos, amarrados em pedras grandes para afundar nas Cataratas do Iguaçu, após um projeto implementado pelos brancos com o intuito de limpar a área da presença indígena. Em depoimento dado a Carvalho (2005), uma xary’i (anciã) que comenta ter presenciado o massacre quando ali viveu até 1943, sentencia que “as cataratas é um cemitério dos índios guarani”, pois para os dispersar da área, foram assassinados, sendo que muitos foram jogados mortos nas cataratas, gerando com isso uma grande dispersão dos que sobraram vivos.
Essas não eram as únicas aldeias na região, e junto aos Avá Guarani foram localizadas mais de 32 aldeias antigas somente na margem esquerda do rio Paraná, todas interligadas por relações socioeconômicas, religiosas, e políticas (Carvalho, 2005). Com a construção da hidrelétrica da Itaipu Binacional, algumas dessas aldeias vieram a ser alagadas totalmente e outras foram alagadas parcialmente, áreas essas que abrangem até Guaíra.
As entradas dos Avá Guarani no Parque Nacional do Iguaçu não se deram somente porque as condições de suas terras são consideradas limitadas, mas também porque as áreas tradicionais que possuíam antes da colonização, que eram cercadas de matos e rios em boas condições, atualmente são áreas consideradas escassas, mas que continuam sendo esses os locais ideais para habitação. Se em um primeiro momento, as entradas parecem ser somente ações políticas para pressionar o Estado a adquirir novas terras, uma vez que as que há não são suficientes para a reprodução física e cultural das famílias, pois são muitas vivendo em lugares com espaços considerados reduzidos, logo se percebe que há outros motivos para as entradas , como as do Parque Nacional do Iguaçu. O movimento que levou os indígenas a retomarem a área se devia, também, às orientações espirituais dadas pelos deuses e espíritos antepassados aos chamõi (termo referente a xamã na literatura etnológica), com o objetivo de restabelecerem um teko porã (o modo de vida dos antigos). Vivendo o modo de vida dos antigos, estariam mais qualificados para ascender à morada dos deuses, o que evidencia que esse movimento está diretamente associado à busca da Yvy Marã’e’ỹ, a Terra sem Mal.
Os dois casos de entradas no Parque Nacional do Iguaçu foram semelhantes em suas motivações, apesar da diferença entre o número de famílias envolvidas nas entradas , e o salto de 8 anos que separam a primeira, em 2005, da segunda iniciativa, em 2013. A situação fundiária quanto ao aperto dos Avá Guarani pouco havia mudado com a criação da Tekoha Itamarã. Nas duas ocasiões, houve tentativas de negociações mas essas não avançaram, pois as propostas dos Avá Guarani estariam em reivindicar a permanência da área do PNI para habitarem, ou no mínimo uma área que fosse vizinha. Nesse caso, demonstravam a intenção de reivindicar o acesso ao Parque Nacional do Iguaçu para o uso de rios, remédios do mato, e pela própria convivência com as matas.
Entretanto, o caso terminou com os Avá Guarani sendo retirados por força policial depois de quase um ano de ocupação, em 2005. Depois de 8 anos, em 2013, uma nova entrada no Parque Nacional foi realizada, dessa vez com um número menor de famílias. Tive a oportunidade de visitar as famílias indígenas que estavam acampadas, em 2014, em uma reunião de lideranças da região, para saber quais eram as suas demandas, e os motivos que envolviam a retomada da área. As suas necessidades giravam em torno das mesmas reivindicadas na primeira ocupação no PNI por outro grupo de famílias Avá Guarani, com a diferença da caminhada religiosa, que teria sido o principal fator para que o grupo realizasse a sua entrada.
A falta de terras para as famílias e a prioridade dada às áreas que possuem matas têm sido uma demanda constante nas entradas, que em outras ocasiões ocorrem nas áreas de conservação da Itaipu Binacional, como do Refúgio Biológico e as APP’s, e por isso, essas ações são interpretadas pelos brancos como uma forma de pressão ao Estado para aquisição de novas terras em substituição às alagadas. Entretanto, as recuperações dos territórios estão longe de serem mobilizadas somente como forma de pressionar o Estado, com o fim de minimizar o sofrimento das aldeias apertadas. As ações de recuperação territorial assentadas nas entradas se constituem, sobretudo, em dinâmicas pautadas nas elaborações cosmológicas, que envolvem as relações humanas e não humanas que constituem sua socialidade.
Ainda sobre essa segunda entrada no Parque Nacional do Iguaçu, conversei com algumas lideranças que acompanharam o seu processo, a partir de suas próprias aldeias. Atentaram para o fato de que entradas como essa estariam amparadas em motivos religiosos, levando os Avá Guarani a promover as recuperações territoriais a partir da lógica do oguata porã, as boas caminhadas, as caminhadas sagradas. Essas que se constituem como ações cosmológicas, amparadas na missão espiritual dos Avá Guarani em estar sempre em busca de um teko porã (o modo de vida dos antigos) para habitar, onde poderiam viver conforme o modo de vida dos antigos. Nessa terra, recuperada a partir das suas recuperações dos territórios , que são consideradas tradicionais, os chamõi começariam a realizar “os trabalhos” xamânicos que são as atividades religiosas para aperfeiçoamento dos corpos e almas das pessoas com a intenção de alcançarem a morada dos deuses.
As entradas nessas áreas aconteceriam também por uma percepção de limitação ecológica das poucas áreas florestadas na região, essas que praticamente se extinguiram. O PNI é o último lugar de mata grande (ka'aguy guasu) que restou na região, área considerada ideal para as famílias exercerem o modo de vida dos antigos, o que não é mais possível devido às condições ambientais degradantes da região. Os grupos das famílias que nas duas vezes entraram no PNI, eram originárias da Tekoha Oco’y, em São Miguel do Iguaçu. Essa aldeia, considerada a “aldeia mãe” no sudoeste, representa um marco na história dos indígenas, por ser aquela em que foram primeiro transladados os que habitavam a antiga aldeia de Jacutinga, em parte alagada com a construção da hidrelétrica. A Tekoha Jacutinga não era a única na época, existiam várias outras aldeias na região, mas foram suprimidas pelos brancos com o uso da sua força, visando à dispersão imediata das famílias indígenas, o que, de fato, em parte, veio ocorrer. As condições limitadas de áreas como Oco’y não permitem a reprodução física e cultural ideal, e ao que parece, a criação da área não foi pensada no aumento no número das famílias que foram transferidas com o alagamento de Jacutinga, menos ainda, para receber de volta as famílias dispersadas para a construção da hidrelétrica, o que acaba comprometendo a convivência harmônica entre as famílias indígenas.
Durante a ocupação no PNI, os indígenas foram acusados de estarem “destruindo toda a natureza”, “cortando árvores”, e ainda “comprometendo com a conservação ambiental”. Porém, no tempo em que estiveram acampados, puderam observar a rotina em volta do PNI, e segundo denunciaram, era constante a entrada por parte de não indígenas que iriam adquirir madeira no lugar, de forma ilegal e sem que ninguém da administração percebesse. Com as famílias vivendo no Parque Nacional, a rotina de retirada de madeiras por parte dos brancos foi afetada, pois foram inibidos com a presença indígena. Isso passou a ser um argumento dos indígenas que estavam reivindicando a área enquanto tradicional. Ao serem acusados de estarem “degradando a natureza”, respondiam que na verdade estavam a proteger as árvores dos interesses lucrativos dos brancos, sendo eles os verdadeiros responsáveis pela situação de desmatamento que estaria acontecendo nos limites do Parque Nacional do Iguaçu.
Conversei com uma liderança indígena sobre a percepção de conservação dos brancos em áreas como a do Parque Nacional do Iguaçu e como os Avá Guarani lidam com os argumentos de que eles não podem habitar esses lugares, pois senão destruirão a natureza existente. A resposta que tive foi que esse argumento dos brancos estaria amparado no entendimento de sua própria condição (dos brancos) e sua histórica relação lucrativa com a natureza. Se os brancos decidiram adotar esse modelo de conservação, isso deriva de um histórico do porquê os brancos não podem conviver com a natureza sem intencionar a sua destruição. A decisão de adotar esse modelo de conservação é um reflexo das suas próprias ações, vindo justamente se valer nesse sentido, servindo para proteger a natureza das ações deles mesmos, partindo essa decisão de um entendimento de mundo baseado nas suas próprias experiências. Para ilustrar, segundo conta, haveria duas formas de viver na natureza: a primeira estaria em viver com a natureza e a segunda estaria em viver da natureza, sendo essas duas formas antagônicas e determinantes para as condições do futuro da terra, em que indígenas e brancos acionariam distintos modos de relação e de viver:
O ser humano viver com a natureza, isso é uma coisa, você cuida dela porque sabe que a natureza faz bem para o ser humano, agora se o ser humano viver da natureza, seria uma outra coisa, pois nesse caso estaria usufruindo da natureza. Por exemplo, uma pessoa comprou uma fazenda, e tem somente um pedaço de espaço, e vai querer fazer uma lavoura, uma agricultura, nesse caso, você derrubaria o mato que estivesse naquela parte para criar naquele espaço uma outra atividade, e fazendo isso você não vive com a natureza mas você vive da natureza, você derruba e inverte em uma coisa que não é totalmente a natureza, pois você inverte aquilo que existia de mato para transformar em outra coisa pensando na sua sobrevivência econômica, mas os indígenas não fazem dessa forma, os indígenas somente conviviam com a natureza, no meio do mato tinha comunidade e você olhando assim por fora parece que ninguém mora no meio naquele matão, pois a paisagem era a mesma, não muda, e isso é conviver com a natureza, você não derruba, pois naquele lugar pode acontecer muita coisa, pesca, caça, coleta de alimentos, mas os índios nunca irão abrir uma claridade, um clarão, e derrubar tudo que poderia vir a derrubar, mas o juruakuery (os brancos) está vivendo da natureza pois está vendo o lucro e por isso vai destruir a natureza pois não se contenta com a natureza [8].[9]
Para os Avá Guarani, as justificativas de que pessoas não possam habitar em áreas de conservação seriam uma forma de constatação da própria condição dos brancos em não poder eles mesmos estar na floresta sem intenção de destruir. Se os brancos conservacionistas decidiram criar um “ambiente conservado”, seria justamente por notarem quais são os modos de relação dos brancos que vivem da natureza, e que irão continuar, caso deixarem, degradar todo o território. Se a área do Parque Nacional do Iguaçu se encontrou com matas o suficiente a ponto de ser conservada em 1939, seria por conta deles, da presença dos Avá Guarani que habitam tradicionalmente essa região. Ao contrário, se estivessem os brancos, esse lugar estaria desmatado, como podemos notar o que aconteceu nas áreas que estão à sua volta. Para eles, os casos de coleta e caça de pequena monta não são suficientes para indicar que eles não estariam preservando o ambiente, pois essas atividades não acontecem em larga escala a ponto de abrir clarões nas matas ou mesmo transformar esses lugares em negócios lucrativos, como fazem os brancos. Essas atividades são reguladas de distintas formas, o que nos indica que habitar e “preservar” não são atividades antagônicas, e que as lógicas que regem as cosmologias indígenas não são compatíveis com os modelos de conservação dos brancos.
Nas recuperações dos territórios tradicionais, e nos projetos de futuro que imaginam implantar com as demarcações de terras, ideias como as de reflorestamento são pautadas como motivações para a regularização das áreas recuperadas. Esses projetos de “recuperação ambiental” estariam amparados em deixar um lugar “descansando” para a mata crescer, no entanto, argumentam que seria necessária uma terra boa, com espaço suficiente para construir as moradias, fazer roças (kokue), usar lenha e ainda deixar um bom espaço para a mata descansar e assim crescer.
O incentivo de plantar mudas de algumas árvores que estão extintas, que não são mais comuns na região como eram antigamente, e são tidas como plantas tradicionais, aparecem nas narrativas dos indígenas ao comunicarem os seus desejos em desenvolver projetos de “reflorestamento ambiental”. Entretanto, seriam as sementes frescas (a'yingue piro'y) presentes na própria terra das matas que seriam de qualidade semelhante as que estão presentes no “mato puro”, como denominam as áreas de mato que não foram reflorestadas. As árvores presentes no “mato puro” são consideradas de melhor qualidade. Essas árvores se constituem também como “remédios do mato” que auxiliam na cura de doenças físicas e espirituais. Em conversa com uma mulher indígena que exerce a função de agente de saúde da Sesai, mas que paralelamente auxilia a cura de doentes com os seus conhecimentos medicinais do mato, comenta que “a farmácia do índio” é ainda “os remédios do mato”, e por isso a sua importância se mostra cotidiana.
Em conversa com um chamõi, ele me diz que os conhecimentos da floresta , assim como os segredos que as matas possuem, seria uma qualidade que somente os indígenas que viveram no mato podem vir a acessar. Os brancos dependeriam dos indígenas e da sua sabedoria para a produção de medicamentos, para que não morram. As florestas são uma qualidade imprescindível para um teko porã, vida boa. Sem as matas, qualquer ambiente se torna ruim, inclusive a terra. Por isso, para viver seria preciso estar no mínimo próximo das matas , pois são lugares em que há todo o necessário e por isso que eles não a destroem como os brancos, a fim de proporcionar uma vida boa aos humanos e não humanos.
Com isso, contam os ramoikuera (rezadores) que o desejo de trazer os bosques novamente seria para poderem “ter paz” para eles mesmos e para as suas crianças. Nesse sentido, as florestas são uma fonte de paz física e espiritual, pois possui as qualidades sensíveis para uma boa vida no plano terrestre e celeste. “Tudo o que se come da selva faz bem à saúde, traz saúde ao corpo”, me dizem. Dessa forma, habitar na mata os ajudaria nos processos de maturação do corpo, no aguyje. A preocupação em tornar o corpo perfeito, isto é, um corpo leve, está diretamente associada com o desejo de se alcançar a Yvy Marã’e’ỹ, a terra onde nada morre, o mundo dos deuses.
Modos de habitar e práticas de conservação e recuperação ecológica no território Avá Guarani
Em conversa com uma senhora sobre os hábitos dos antigos Guarani em meio à vida na floresta, ela os definiu como avá ka’aguy, gente da floresta . Segundo ela, era assim que esses se referenciavam a si mesmos, pois as matas são o lugar de habitação por excelência dos Avá Guarani. Para extrair os elementos nesse mundo, devem pedir autorização aos jará kuery, espíritos donos[10] dos domínios terrestres, que são os que cuidam dos rios, árvores, plantas, florestas, pedras, corredeiras, montes, espécies animais, minerais e vegetais, a partir de uma coletividade invisível. Aos chamõi (anciões/rezadores) caberia a função de mediar o diálogo com os jará, a fim de autorizar os indígenas a buscarem o que for necessário para o seu mantenimento, desde lenhas até as carnes de espécies animais, mel de abelha, entre outros. Essas negociações sobrenaturais são constantemente contadas pelos idosos, os quais lembram ainda que antigamente, mesmo quando havia mais elementos disponíveis, para extrair qualquer produto da natureza era necessário pedir autorização aos espíritos donos, e logo fazer o benzimento em comunhão com os parentes, para somente depois estarem todos aptos a consumir o que foi consentido.
Nesse sentido, as práticas que intencionem uma alimentação, coletagem e manipulação de qualquer um desses elementos envolvem uma série de valores, atribuições e etapas que devem ser seguidas para o bom provento dos recursos, em sinergia com a vontade dos espíritos donos desses elementos e com os deuses que organizaram a distribuição dos recursos para todos os seres vivos. Dessa forma, os donos mantêm a predação dentro dos limites, o corte de lenha das árvores devidamente controlado, o uso da terra com o devido descanso regulado por temporadas previstas e o manuseio dos elementos terrestres regidos pelos espíritos donos que detêm a permissão para realização de determinadas atividades terreais e controlam a ecologia da terra. Essa formulação faz com que os Guarani se insiram nos grupos dos que detêm uma ideologia da quantidade limitada de recursos naturais que podem vir a ser explorados, mediados pelas figuras espirituais dos donos dos elementos terrestres, que estipulam a quantidade de recursos a serem manejados a partir das necessidades do grupo (Carneiro da Cunha, 2009).
Os Avá Guarani teriam sido feitos para viver na floresta , e ao habitá-la, a sua função seria a de protegê-la dos possíveis males, não a deixando jamais ser destruída. Dessa forma, esses se consideram os mba’e jará, os cuidadores do mundo, que foram enviados por Nhanderu (entidade suprema) para cumprir essa missão de cuidar da terra. As suas práticas cotidianas, ao habitarem as matas, estariam inseridas dentro de uma “ética do cuidado” para manter a terra, que é fundamental para que o mundo material não entre em colapso. Nesse sentido, os Avá Guarani segundo as descrições de Carneiro da Cunha (2009), seriam sociedades que poderiam se enquadrar na categoria de “conservacionistas culturais”, dadas as regras culturais para o uso dos recursos naturais. São sociedades que habitavam um território vasto e com uma população densa, e que ainda logram com competência gerir o ambiente em que vivem, sendo sustentáveis.
Nas aldeias indígenas que foram construídas no processo da recuperação territorial, algumas são as recentes experiências que são lidas como sendo de “preservação” pelos indígenas, e que foram implementadas a partir da percepção deles da grave devastação ambiental[11] na região. Essas experiências parecem funcionar de modo semelhante àquelas com os jará kuery, espíritos donos, que controlavam o manejo de seus domínios terrestres, sendo dessa vez intermediadas por lideranças e chamõi (anciões) com a intenção de regular o acesso à caça e a coleta em lugares em que se pretende uma “recuperação ambiental”, mostrando a existência de um projeto em curso de expansão das áreas florestadas nas aldeias. A tarefa, no entanto, não é fácil, uma vez que as iniciativas de monocultivo e os projetos de expansão imobiliária pretendem incidir sobre as áreas que os Avá Guarani reivindicam como sendo suas.
A defesa dessas terras passa a ser não somente uma forma de gerir seu território recuperado, como também porque são esses os lugares de mato, fundamentais para seu cotidiano, lugares esses que estariam em uma qualidade de “preservação”. Dessa forma, no contexto do conflito fundiário, as manifestações de luta pela terra que surgem não giram em torno somente da disputa de terras, mas da disputa de espaços que estão inseridos no projeto de “conservação ambiental” dos indígenas, que estão dentro dos lugares que se encontram em processo de delimitação na demarcação territorial, e que estão sendo ameaçados pelos interesses financeiros dos não indígenas. Em 2014, em Guaíra, um conflito de indígenas com proprietários rurais se desenvolveu após uma parte da mata que está em frente da área retomada, e que já estava incluída no processo de estudo para a demarcação da terra, vir a quase ser suprimida, o que motivou a retomada dessa área para impedir que toda a mata fosse destruída para a construção de um empreendimento particular[12]. O lugar é especial pela qualidade de remédios do mato que possui, e por ser um dos poucos lugares com mato que circunda a aldeia, o que faz com que tenham um cuidado maior com essa área florestada.
As relações com os espíritos donos se tornaram raras justamente com a dispersão das classes de seres pelo desmatamento. Essas relações eram frequentes em um tempo antigo, em que existia muita mata e liberdade para caminhar, um tempo que descrevem como sendo “o tempo dos índios”[13]. Nas descrições a que tive acesso, o termo “no tempo dos índios” faz referência a um tempo em que eles podiam caminhar de modo livre pelo seu território tradicional, visitar parentes, realizar caças e coletas na floresta, atravessar o rio Paraná para visitar os parentes, sem as restrições atuais de hoje, pois naquele tempo, tinham “paz”, tinham “liberdade” para viver. Nesse tempo, o ara yma, o tempo-espaço antigo, e o ara pyau, o tempo-espaço novo (Ladeira, 2008 [2002]), que representam dois tempos ecológicos e meteorológicos distintos, em que se percebe a mobilidade ou recolhimento de animais, plantas e frutos, eram mais regulares do que se apresentam atualmente.
As transformações das relações entre os indígenas e os espíritos donos, no entanto, como argumentam, são frutos de um processo de dispersão dos donos das matas que evadiram, devido à devastação pela ação política dos brancos. Esse processo de evasão dos espíritos donos, e o das matas e dos animais, aparecem nas descrições como consequência das ações dos brancos, e a esse processo de dispersão denominam de “sarambi”, o qual traduzem por um “esparramo”, o mesmo termo que utilizam para descrever suas próprias dispersões, causado pela pressão fundiária da colonização que obrigou as famílias indígenas a se refugiarem na iminência de mortes.
O “sarambi” deriva dos processos de dispersão das famílias indígenas, causado pela invasão dos brancos em suas terras, trazendo ainda, outras consequências, além da expropriação territorial, como a fragmentação das parentelas, que evadem desorganizadas frente ao violento contato, vindo esses a se refugiarem para as áreas vizinhas. Essas áreas vizinhas, que contam com a presença tradicional dos Avá Guarani, como em Mato Grosso do Sul e Paraguai, serviram de refúgio para se abrigar e garantir alguma possível segurança. Entretanto, os chamõi (anciões) apontam que as matas também teriam se “esparramado” com a invasão dos brancos, assim como os Avá Guarani, conforme demonstra o relato de uma senhora com que conversei: “E atrás das florestas (os brancos) andavam, sarambi fizeram com as florestas, através do cultivo da erva mate. Expulsaram tudo. Não sobreviveu nenhuma planta” (Pinna, 2016).
Esse termo, usado para descrever os processos de dispersão, é compartilhado por indígenas, espíritos donos, matas e animais, que passaram por essas mesmas experiências. Desse modo, os espíritos donos evadiram junto com a destruição dos seus elementos terrestres, o que torna o mundo mais suscetível ao desequilíbrio ecológico. As narrativas dos Avá Guarani apontam para alguns outros exemplos de compartilhamento de experiências, como as matas possuírem o dom da reza e os animais possuírem as suas lideranças, seus mitos e as suas aldeias. Em conversa com um chamõi, ele me disse que se cuidarmos e deixarmos a natureza “descansar”, os animais vão começar a voltar, sendo essa uma expectativa constante nas narrativas que tratam de uma possível recuperação da biodiversidade na região. Nesse sentido, recuperar ecologicamente algumas áreas, é recuperar as relações com os espíritos donos que se evadiram juntos com os seres e florestas no processo de desmatamento. A volta de animais que eram considerados extintos, nas áreas indígenas regularizadas, se explicaria, por exemplo, pela volta dos espíritos donos desses animais para esses lugares.
Essas possíveis voltas dos animais, das matas, e dos espíritos donos, se assemelhariam às experiências assentadas na volta dos parentes, que anos após terem sido dispersados das terras que habitavam, voltam reivindicando esses lugares e se engajam no processo de recuperação territorial. Nesse sentido, os seres não humanos poderiam estar retomando, a partir das entradas dos indígenas e seus cuidados com as áreas florestadas, os seus antigos lugares, dos quais também foram expropriados, processo que descrevem que teria ocorrido paralelamente às suas dispersões. Por isso, se os animais passarem a aumentar, isso indicaria a possibilidade de voltar a viver o modo dos antigos. Com isso, as experiências de cuidar das áreas florestadas criam expectativas de que com a definição do processo demarcatório das terras, possam implantar um projeto de “recuperação ambiental” para que haja um aumento significativo das classes de seres, como sugere o chamõi, em depoimento dado aos antropólogos responsáveis pela elaboração do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá:
Eu espero é a demarcação, porque hoje, hoje quase não existe mais mata, existe essas bolinhas de mato, essas... E nós queremos deixar reserva (mata), nós queremos plantar mais mata, queremos formar de novo reserva (mata) é a minha ideia, formar de novamente mata pra que os bicho os animais silvestres comecem a aumentar de novamente, aumentar de novamente. Porque se existe a mata os animais também vão começar a aumentar também, porque eles sabem aonde tem mata e eles vêm pra mata fechada, então a minha preocupação é a demarcação (RCID: Figueiredo/Faria/Oliveira, 2018, p. 329).
O crescimento das matas e a volta dos seus espíritos donos seria um movimento possível de ser realizado a partir das práticas de reflorestamento de árvores nativas, um desejo que eles visam realizar com a demarcação das suas terras, mas que já podem ser notadas nas retomadas a partir de outro processo ancorado na noção de yvy pytu’u, descanso da terra, de onde surgem qualidades de plantas sem mesmo precisar plantar.
O “descanso da terra” seria uma noção articulada desde o tempo dos índios, e que pude captar através das descrições dos idosos que narram um tempo em que eles frequentemente permitiam à terra o seu devido descanso. Mas isso era quando podiam andar com liberdade pelo seu extenso território de matas que se estendiam até as margens do rio Paraná. No tempo dos índios, o tempo dos antigos, a técnica estaria em aplicar a sua mobilidade para que a terra pudesse descansar; com isso, as famílias indígenas buscavam outras áreas que estavam dentro do seu território para habitar, deixando as áreas antigas descansando para voltar a ter vida. Desse modo, as árvores dariam novos frutos, os peixes voltariam a aparecer e o solo estaria mais fértil para a produção de novos alimentos. Em conversa com um chamõi sobre isso, ele me disse que “a terra tem que descansar porque a terra se cansa, cansa de comer gente, cansa de criar mandioca, cansa de criar milho, por isso para estar uma terra boa tem que descansar”. A terra “se cansa”, e preocupados e amparados nessa perspectiva, os Avá Guarani buscavam “lugares descansados” simbolizados pela fartura e qualidades dos elementos terrestres.
Esse descanso não seria somente do solo, mas de todo lugar, incluindo árvores, rios e se daria pela interrupção temporária do uso das técnicas de caça e coleta naquela área que havia sido habitada por um longo período. Os Avá Guarani buscavam áreas próximas para levantar uma nova aldeia, e assim que a antiga área dava sinais de que estava descansada, voltavam para o lugar. Todo esse movimento se dava dentro do que compreendia ser o seu território tradicional, e poderiam fazer coleta e caça de pequena monta, ao caminharem pelos lugares que estavam em repouso Por isso, essas áreas não estariam abandonadas, mas descansando, podendo inclusive vir a servir de abrigo para os parentes, que poderiam levantar no lugar uma nova tekoha, com as estruturas das antigas casas que foram deixadas montadas.
Atualmente, os Avá Guarani usam a expressão pytu’u, descansar, para descrever o modo de deixar as árvores e as matas crescer, em uma tentativa de reverter a situação de desmatamento e degradação ambiental na região. Justificam a infertilidade de algumas áreas devido à terra não estar descansada, pelo histórico de pecuária e monocultura, que ao usar o ambiente sem descanso, contaminam a terra e, consequentemente, prejudica a fertilidade dos alimentos.
As áreas que foram descansadas são descritas como prova de que se é possível fazer o mato crescer de novo. Para isso, contam que não é preciso tecnologia, seria só deixar descansando. Nas aldeias “irmãs” de Añetete e Itamarã em Diamante D’Oeste, a paisagem das áreas antes da instalação das duas aldeias, me contam, era de um terreno de plantação de monoculturas e criação de gado com pouca mata ao redor da fazenda, mas após a área ser regularizada para as famílias Avá Guarani, a mata ciliar local teria mais que dobrado em 20 anos, e isso se deve ao descanso que deram às matas, sem derrubadas de árvores, transformando a antiga área em um lugar bonito. Esse processo está aliado às rezas e ao modo de habitar que permitem às matas voltarem. A regulação de coletas e caças, o repouso e as rezas possibilitam a volta das matas, assim como das classes de seres que habitam o ambiente.
Explicam que, a atividade do agronegócio não deixa a terra descansar, e contamina a terra, os rios, os animais, e as pessoas, pois o vento espalharia o veneno dos agrotóxicos. Sobre isso, destaco outra fala de um senhor Avá Guarani, que expressa uma ideia recorrente entre eles quando o assunto é recuperação ambiental. A capacidade de transformar soja em mato se entende não somente como possível, mas necessária, e a despeito do que pensam os brancos, as matas trazem riquezas, enquanto a soja não:
Os karai (não-indígenas) nunca entenderam por que queremos a mata. Nós fazemos parte dela, precisamos dela para sobreviver. Os animais, tatus […] são nossos parentes. Com a autorização de Nhanderu podemos pegar eles para comer. Aí vieram e destruíram a mata, tudo virou soja. Mas é possível transformar a soja em mata de novo (..) Nhanderu fez a terra e a mata para nós indígenas, onde nos sentimos felizes, porque quando estamos na mata é como se estivéssemos em família, somos parentes; eles são os rezadores, por isso devemos respeitá-los. Como não temos mais diferentes tipos de árvores, diferentes tipos de frutos, hoje não temos mais como ter uma alimentação natural. Hoje somos pobres, não porque os brancos não querem fazer algo por nós ou dar dinheiro. Nós somos pobres porque a natureza foi destruída. Somos pobres física e espiritualmente. Só nossos parentes, natureza, é que garantirão o futuro das nossas gerações. Se esses parentes deixarem de existir não terá futuro da nossa geração. (RCID: Figueiredo; Faria; Oliveira, 2018, p. 390).
Dessa forma, algumas são as práticas levadas adiante com o intuito de fazer proliferar as áreas de matas existentes, que são consideradas escassas na região. As árvores, por exemplo, em algumas das aldeias recuperadas, somente podem ser cortadas para uso da lenha se já estiverem secas e sem capacidade de gerar frutos. Os animais somente podem ser caçados se tiver um rastro dos mesmos nessa área, simbolizando uma presença maior, para que assim não prejudique a sua reprodução. Há espécies de animais que não se recomenda caçá-los, pois isso contribuiria para a sua extinção, a evasão de outras espécies que poderiam aparecer no rastro no intuito da predação, e na própria precariedade da qualidade das matas.
Porém, atualmente a quantidade de seres que existem na região seria tão pequena, que muitos hábitos antigos se tornaram poucos frequentes, como a coleta de elementos dos matos e as suas relações com os espíritos donos. Isso porque quando algo da mata vem a ser retirado, deve ser solicitada a autorização aos seus espíritos donos e logo após ao ser coletado, ser benzido, rezado dentro da opy (casa de cerimônias religiosas) e somente depois dessas etapas rígidas que o elemento pode vir a ser acessado de fato. Sobre a extinção da “natureza”, que são seus parentes, os Avá Guarani lamentam muito, e atribuem as doenças que existem nas aldeias à falta da floresta. Somente as matas teriam a capacidade de repelir os ventos que espalham os agrotóxicos das monoculturas, fazendo chegá-los até às suas aldeias, trazendo doenças aos seres humanos e aos não humanos.
Como podemos notar, as relações entre humanos e espíritos donos podem trazer possíveis consequências em caso de descumprimento das regras sociais, que são manifestadas na aquisição de doenças[14], sendo necessária a intermediação entre chamõi e espíritos donos, a fim de pacificar as suas ações. Os perigos que podem surtir do descumprimento das regras sociais são vários, e por serem muitos os domínios terrestres dos quais os espíritos donos cuidam, mais cuidados os humanos devem ter. Por domínios terrestres entendemos que cada classe animal, florestas, cachoeiras, rios, pedras, plantas e seres integrantes do mundo teriam os seus donos. Segundo Pierri (2013, p. 198), cada classe de seres desses tipos conformaria um coletivo que estaria dotado de um principal. O autor ainda destaca que os guarani estariam mais propensos do que os brancos aos infortúnios causados pela vingança dos espíritos donos, por causa da sua composição corporal, que é distinta das que possuem os brancos.
Os Avá Guarani, com receio dos donos por causa de suas possíveis vinganças, não arriscam transgredir as regras e caçar, cortar, retirar alguma parte desses materiais sem a devida autorização. Com a autorização, podem comer tranquilos, coletar sem preocupações de que algum mal possa vir a lhes acontecer no embrenhar das matas; nesse caso, me dizem que os espíritos donos inclusive protegem os que forem entrar na floresta para buscar o que for preciso, por estar de acordo com seus pedidos. Por isso, antes de caçar um animal, seria necessário que o xamã entrasse em contato com os espíritos donos dos animais para pedir autorização para que a caça aconteça, caso necessário. A caça somente acontece com a autorização desses espíritos donos que, caso sejam contrariados, podem amaldiçoar aqueles que forem se alimentar dos animais sem a sua devida concessão.
Nesse sentido, a caça não seria uma prática indiscriminada, pois há uma relação de negociação com os espíritos donos, estando esses, atentos para proteger os seus domínios terrestres. Outra qualidade dos espíritos donos que se apresenta constante, seria uma gerência de possível ganância, na qual esses se atentariam para a real necessidade da quantidade de produtos coletados, em uma ação contra possíveis excessos por parte dos indígenas. Em caso de descumprimento das regras sociais – por exemplo, extrair mais do que o necessário, comer o alimento ainda dentro da mata depois de feita a sua caça, predar um animal que não foi autorizado pelo seu dono, ou extrair uma árvore sem a real necessidade –, podem sofrer danos pelo seu descumprido, recebendo a lição dos donos[15].
O uso de certos animais na alimentação aparece de modo frequente para a explicação da longevidade dos Avá Guarani, que estimam viver até os 120 anos de idade por conta da ingestão de substâncias que trariam uma eficácia dos atributos desses corpos para o corpo de quem o conecta. Os idosos, desse modo, podem vir a fazer serviços como caçar, capinar, fazer roça, plantar, não sendo a idade um impeditivo de fazer esses serviços, pois a sua força advém da manipulação constante de substâncias que frequentemente ingeriam. A explicação que recorrem para a diminuição da vitalidade nos jovens de agora que não fazem os trabalhos nas roças como fazem os idosos, está baseada na falta de determinados alimentos que transfeririam aos corpos dos Avá Guarani, as suas potencialidades, como a vitalidade e a longevidade.
Os mais idosos consumiram essas substâncias e disso advêm as suas forças. Todas as substâncias capazes de transmitir afecções de um corpo vegetal, animal, mineral para o corpo humano, são compreendidas como sendo moã ka‘aguy (remédios do mato) podendo esses, inclusive, não serem do mato, como são os casos dos jacarés, que são tidos como excelentes para dar longevidade. Se hoje os indígenas não vivem durante tanto tempo, como antes, isso seria porque os brancos acabaram com as florestas e logo com os seres que nela habitam, impedindo as famílias indígenas de terem uma vida saudável e longa. A noção de “transferência de afectos” usada por Pierri (2013), para exprimir essa produção corporal a partir de substâncias e fluídos de outrem, cabe perfeitamente para expressar como essas afecções são elaboradas para atingir as suas desejadas potencialidades e sanidades corporais.
As entradas dos Avá Guarani nas Áreas de Proteção Permanente (APP) da Itaipu Binacional se devem também ao acesso aos remédios do mato que ainda existem nessas áreas, mas são constantemente alvo de pedidos de reintegração de posse com a justificativa de degradação das áreas de preservação ambiental. Porém, habitar o mesmo lugar em que estaria instalada uma Área de Preservação não implicaria uma ruptura no mantenimento do ambiente conservado, pois habitar e preservar o ambiente não seriam atividades consideradas antagônicas.
As áreas de ocupação tradicional dos Guarani que estão sobrepostas às Áreas de Proteção Permanente da Itaipu Binacional se constituem atualmente em em Guaíra, em Santa Helena, e em Itaipulândia, sendo que nos dois últimos municípios houve solicitações de reintegração de posse por parte da Itaipu Binacional, com a justificativa de que os indígenas estariam colocando em risco as áreas preservadas[16]. Em 2018, as famílias que retomaram uma dessas áreas, em Santa Helena, foram alvo de uma ação judicial que acarretou a prisão de cinco indígenas por terem cortado uma takuara (bambu) na Área de Preservação Permanente (APP) da hidrelétrica[17]. Essa ação, que ocasionou o atual processo dos indígenas, reverberou entre as lideranças da região como um desagravo por parte da empresa. Elas acham que foram erradas as medidas efetuadas contra o grupo, visto que o lugar em que a coleta foi realizada seria território tradicional dos Avá Guarani, e a takuara um material que serviria para fazer o instrumento religioso utilizado na opy (casa de cerimônias religiosas).
Os indígenas que habitam a Área de Proteção Permanente (APP) da Itaipu Binacional argumentam ainda que foram eles que criaram essas reservas, e que se as matas estão de pé é por razão deles terem conservado as matas. A prova disso seriam as suas próprias vidas, pois se ainda estão vivos é justamente porque eles viviam na mata, o que se constata pela longevidade dos idosos.
As matas e seus seres dão as condições necessárias para que não tenham uma vida breve. A explicação da vida longa dos chamõi está diretamente associada a um modo de vida dentro das florestas. Com isso, contra-argumentam quanto à política de conservação dos juruas, que alegam que os indígenas irão degradar as áreas conservadas. Ao que eles se contrapõem, e alertam ainda que esse discurso contribui para que os demais brancos pensem que seriam os indíos os depredadores da natureza, prejudicando o processo de recuperação territorial e favorecendo, por fim, as reintegrações de posse nas áreas de ocupação tradicional que, em parte, estão nas áreas das APP’s da Itaipu Binacional.
No entanto, a despeito dos argumentos dos brancos, a conservação ambiental se constitui como fundamento em vários aspectos e iniciativas que abarcam o cotidiano das famílias, como o uso de ka’aguy moã (remédios do mato). Os remédios do mato que se mostram fundamentais, não somente para a saúde do corpo, mas para a saúde da alma dos humanos, é uma das justificativas para o acesso às matas conservadas, mas que são proibidas de serem adentradas, ainda quando as disputas por essas áreas já foram apaziguadas.
A preocupação com a saúde do corpo e da alma revela um sentimento de responsabilidade com o mantenimento do mundo. O cedro (ygary), árvore de qualidade religiosa, se constitui como fundamental, podendo ser vista em praticamente todas as áreas de ocupação tradicional. Dessa forma, demarcar as terras e “conservar” as florestas se mostram como equivalentes, a partir de uma percepção de conservação que estaria relacionada às atividades religiosas. Por isso, o modelo estratégico de conservação da biodiversidade dos brancos não é conciliável “com a natureza xamânica das cosmologias indígenas” (Albert, 1995, p. 23).
Portanto, a reivindicação da demarcação de terras não se compreende como uma pauta que se restringe aos humanos, mas que inclui os espíritos donos dos domínios terrestres, os animais e os deuses animais ancestrais, a quem os Guarani oferecem danças rituais para contribuir para o teko porã (o modo de vida dos antigos) e afastar os males desta terra perecível. O sentido da demarcação das terras, em consonância com o proteger das florestas, não está restrito ao espaço físico para reprodução cultural, mas para além disso, para o mantenimento das “coordenadas sociais e de intercâmbios cosmológicos” (Albert, 1995, p. 9) que são constitutivas na vida de humanos e de não humanos nesses mundos que compartilham. A sua importância não se limita ao plano terreal, compreendendo também os planos celestiais.
O processo de “recuperação ambiental”, como vimos, apesar das incertezas sobre o andamento jurídico das demarcações, já seria uma realidade para algumas aldeias em situação de acampamento. Em conversas com lideranças e andanças pelas aldeias, as comparações do antes e o depois das recuperações territoriais, aliadas às transformações perceptíveis na paisagem, são expostas como motivo de orgulho, pois as matas teriam crescido e se tornado maiores com a entrada dos indígenas. Uma outra forma de se medirem os efeitos das suas iniciativas seria com o surgimento de qualidades de plantas consideradas sagradas, como a erva-mate, (ka'a) que nasceria sem a necessidade de se plantar. As qualidades de plantas que são usadas para remédios e que também nascem sozinhas no meio das matas indicariam também os efeitos positivos das suas iniciativas, que estão ancorados no descanso dos ambientes e no modo dos indígenas de habitar. Os lugares que antes tinham somente um matinho pequeno se tornaram locais onde já habitariam animais, que antes não existiam mais na região, o que repercute a ideia de que uma recuperação ecológica que esteja alinhada com seus modos de vida seja possível, ainda que em áreas onde antes era apenas lugar de monocultura.
Uma liderança, contando sobre as transformações por que passou o lugar em que se encontra hoje uma aldeia, disse que antes esse era ocupado por posseiros, que o lugar tinha pouca mata, que os brancos somente o usavam para fazer lenha, e o restante da área era dedicada à plantação de soja e milho transgênico. No lugar da soja e milho transgênico de antes, com as recuperações dos territórios, o lugar passou a ter uma diversidade de plantações (temitykuera), entre elas, de milho (avatí), mandioca (mandi'o) de várias qualidades e amendoim (mandi'u), que são as que estão entre as mais cultivadas.
Figura 2 – Cultivo de amendoinsem uma aldeia, área que foiretomada, registro feito em2018.
Fonte: Fotografia do Autor.Acervo pessoal.Os lugares de ocupação tradicional dos Guarani, costumam conter um fragmento de matas, resultado dos imperfeitos mecanismos para proteção ambiental na região, e que ainda estão sendo ameaçadas por agrotóxicos, a forma intensiva do uso do solo, desmatamentos e que fica ao lado das plantações de monocultivo. São nessas pequenas áreas que estão próximas dos matos, que as famílias indígenas levantam as suas casas no processo de recuperação territorial, dando preferência às áreas florestadas, correndo o risco a sua saúde. Nesse sentido, a terra tem seu sentido cosmológico, mais do quee um suporte de “produção” como pensam os brancos; e a natureza, mais do que um objetivo, se constitui junto com outros seres, elementos e paisagens, como aliados na luta pela terra (Pimentel, 2018, p. 53).
Dessa forma, a recuperação territorial parece ser motivada pelo desejo de vir a recuperar ambientalmente as áreas que foram degradadas pelos juruakuera (brancos). Nesse sentido, as retomadas seriam também um processo de “recuperação ambiental” transformando pouco espaço de terra e, dentro das suas limitações, as áreas degradadas em áreas ideais para a vivência indígena. Cardoso (2016, p. 392) aponta caso semelhante entre os Pataxó, que promovem a ideia de que as retomadas possuem um caráter “socioambiental”.
Comentários finais
As formas de gestão das Área de Preservação Permanente e das Unidades de Conservação, como o Parque Nacional do Iguaçu,, apesar dos avanços, encontra limites com as noções de conservação dos Avá Guarani no Oeste do Paraná. Os indígenas reivindicam essas áreas como tradicionais, e algumas lideranças apontam a solução para uma possível participação dos indígenas na gestão em parte dessa área, o que iria ao encontro de uma gestão integrada, como são as experiências desenvolvidas pelo ICMBio nesse sentido em outras regiões com contextos semelhantes. Quando comparadas as noções dos indígenas, essas unidades seriam concebidas como unidades fechadas, categorizadas e ordenadas em polígonos, tais formas não correspondem às noções de yvyrupa, plataforma terrestre sem fronteiras, que compreende uma mobilidade territorial que antecede às imposições das fronteiras do Estado-nação, a qual não reconhecem, como demonstram as descrições dos idosos, nas caminhadas elaboradas pelos Avá Guarani.
Os pressupostos modernos da separação de “cultura” e “natureza”, que parecem inspirar os modelos de conservação, seriam incompatíveis com os Avá Guarani, pois habitar e conservar não seriam atividades contrárias. A criação do PNI interrompeu a territorialidade dos Avá Guarani, cercando uma parte do seu território e criando um ambiente de conservação que impediu sua habitação. A criação de um regime conservacionista nessas áreas se deu a partir da retirada das famílias indígenas sem o seu consentimento.
Sendo assim, como argumentam os indígenas, podemos notar como a área do PNI que está sobreposta ao território indígena dos Avá Guarani, e como a impossibilidade de habitar nessas áreas, impede que esses consigam viver em melhores condições de vida, como desejam ao buscar se aproximar do modo de vida dos antigos. Nesse sentido, certos modelos de conservação podem esbarrar nos direitos dos povos indígenas na gestão dos seus territórios tradicionais, mas pode-se buscar soluções como na interlocução afim de encontrar as melhores formas de aplicar um modelo gestão que não acentue conflitos, como na gestão participativa e integrada das UCs com os povos indígenas, que já se mostram eficientes para a preservação ambiental.
Na perspectiva dos Guarani, a “natureza” não seria uma entidade para ser compreendida pela “cultura” ou para ser explorada por seus “recursos naturais”, mas sim, um ambiente onde diferentes classes de seres se articulam em um projeto de vivência, ainda que, em suas distintas, e até mesmo perigosas, formas de relação. As análises de um processo de recuperação ecológica assentado nas retomadas de terras seriam não somente um campo de observação das iniciativas com conotação de recuperação ambiental feito por povos indígenas, mas também podem ser analisadas como parte fundamental das motivações que os levam a recuperar as suas terras tradicionais. Agregando valor que pode parecer “ambientalista” a essas iniciativas, e que se tornam importantes projetos em áreas degradadas pelo agronegócio, os Avá Guarani se destacariam por buscar promover alternativas e práticas aliadas às suas cosmologias na recomposição das matas em áreas degradadas pela ação do monocultivo.
Como vimos, as florestas são moradas em que vivem os indígenas, com suas aldeias e suas roças, os animais, os espíritos xamânicos, espíritos donos que são guardiões dos domínios terrestres. As árvores marcam um lugar por sua alteridade, dotada de poderes espirituais de onde emergem remédios para as curas de doenças físicas e espirituais, e de onde interromperia as doenças que os ventos trariam às pessoas. Dessa forma, viver com a natureza significa também viver com as diferentes classes de seres que habitam os diferentes mundos. Os brancos vivem da natureza, como disse o chamõi, e não somente ao desmatar para produzir “outras coisas” (as mercadorias), mas também em certos projetos mercadológicos de conservação. Ao conceberem a natureza como exterioridade, como detentora de recursos, e que para se preservar a “natureza” é necessário que se excluam os indígenas de habitarem essas áreas, privilegiam somente um tipo de pessoa, os turistas, que servem aos objetivos de uma socialidade artificial (Albert, 1995).
Contudo, se a permissão do uso de elementos, como árvores, os animais, entre outros, são atividades reguladas, para usar os termos dos autores, por “regras culturais”, essas se mostram como formas sustentáveis nessas socialidades que vivem com a natureza. Os modos de relacionar humanos e não humanos manifestam uma colaboração ecológica na elaboração de mundos que escapam à oposição “natureza” e “cultura”, e nos fazem perceber como essas formas de relação são cosmopolíticas por excelência. Isso imprime aos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas o caráter autêntico de conservação que proporciona o mantenimento da biodiversidade em seus territórios tradicionais. Isso é o que vai ao encontro das reflexões de Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida (2009), nos motivou a questão inicial, e nos faz considerar que são os Avá Guarani, socialidades sustentáveis.
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Notas