Resumo: Pretendemos, neste artigo, abordar os processos de construção de masculinidades no arquipélago de Cabo Verde tomando como via de acesso as relações afetivas hétero e homossexuais. Partindo da afirmação que está no título, ouvida com frequência tanto por mulheres heterossexuais quanto por homens gays, buscaremos demonstrar como os caminhos pelos quais a masculinidade se constrói nesta sociedade coloca as relações afetivas em um limiar delicado e permeado por símbolos negativos quando expressas por essas mulheres heterossexuais e homens gays: do não público, do não romântico, do não íntimo e do quase exclusivamente sexual. A partir dos dados etnográficos aqui analisados, desenvolvemos dois argumentos centrais para pensar masculinidades: 1) que o modus operandus dos homens com os gays não passa somente pela noção de vergonha, mas por um ethosmasculino mais geral; 2) que não é suficiente pensar o papel do homem apenas como cônjuge, mas também como irmão e, principalmente, filho.
Palavras-chave:AfetoAfeto,MasculinidadeMasculinidade,LGBTLGBT,DádivaDádiva,ConjugalidadeConjugalidade,GêneroGênero,IntimidadeIntimidade,Cabo VerdeCabo Verde.
Abstract: In this article, we intend to approach the processes of construction of masculinities in the Cabo Verde archipelago taking as access route the heterosexual and homosexual affective relationships. Based on the statement in the title, often heard by both heterosexual women and gay men, we will seek to demonstrate how the ways in which masculinity is built in this society places affective relationships on a delicate threshold permeated by negative symbols when expressed by them, heterosexual women and gay men: non-public, non-romantic, non-intimate and almost exclusively sexual. From the ethnographic data analyzed here, we develop two central arguments for thinking masculinities: 1) that the modus operandus of men with gays is not about shame, but for a more general male ethos; 2) that it is not enough to think of the role of man only as an husband, but also as a brother and, especially, a son.
Keywords: Affection, Masculinity, LGBT, Gift, Conjugality, Genre, Intimacy, Cabo Verde.
Artigos
“Homem é tudo igual!”: relações de gênero e economia dos afetos no arquipélago de Cabo Verde, África
“Men are all the same!”: Gender relations and economy of affections in the archipelago of Cape Verde, Africa
Tendo como pano de fundo nossas pesquisas realizadas entre casais heterossexuais e homens gays no arquipélago de Cabo Verde[1], buscaremos: 1) analisar a economia dos afetos das relações heterossexuais a partir da percepção de que há íntima relação entre afeto e troca no contexto familiar, ou seja, é pelas tensões e interconexões entre afeto, desejo e trocas materiais que se constroem intimidade e, sobretudo, o sentimento de “ser família”, sendo o homem um ator que tensiona um sistema que tem por base a reciprocidade; 2) Nas relações homoeróticas, por sua vez, se a performance de gênero dos homens permanece semelhante àquela das relações heterossexuais, a impossibilidade tanto formal quanto prática de fazer cônjuges e família lança novos desafios para a análise. Tal tensão ganha outras proporções quando, às noções locais de conjugalidade, somam-se ideais românticas associadas a um dito “padrão europeu”, que coloca as coisas nos seguintes termos: quando contrastados a uma imagem idealizada dos “homens da Europa”, os cabo-verdianos “não servem”[2].
Ao afirmarem que “homem é tudo igual”, mulheres e gays parecem manifestar seu descontentamento com um modelo de masculinidade que permite aos homens viver relações poligâmicas (sem maiores repercussões de ordem moral), participar esporadicamente de uma lógica de reciprocidade local e se distanciar de um tipo de comportamento esperado em relações percebidas como ideais, ou seja, com apoio financeiro e afetivo mútuo, coabitação, cuidado com os filhos e algum “romantismo”. De formas ora distintas ora semelhantes, mulheres heterossexuais e homens gays cabo-verdianos apontam para a ausência do homem no âmbito doméstico e sua relutância em aderir a valores associados a um ideal de relação afetivo-conjugal.
Antes de prosseguir, faz-se necessário precisar alguns pontos. Primeiro, estamos de acordo com diversos estudos que vêm apontando acertadamente que as construções, tanto das masculinidades quanto das feminilidades, são processos complexos nos quais as relações entre mulheres ou entre homens - e não apenas aquelas entre os sexos - têm tanto ou mais a revelar sobre tais identidades de gênero e a constituição de pessoas no mundo. Neste artigo, todavia, não vamos abordar esse debate, uma vez que nossa questão inicial tem como ponto de partida as relações amorosas e/ou sexuais. O movimento que pretendemos realizar aqui é o de pensar para além da reciprocidade familiar atualizada prioritariamente pelas mulheres, ou seja, pensar como relações de troca e reciprocidade, tão essenciais ao universo familiar cabo-verdiano, atualizam-se nas relações afetivo-sexuais entre homens e mulheres e entre homens héteros e homens gays. Portanto, o universo do masculino constrói-se, em nossa narrativa, pelas reflexões delas e deles, pares sexuais destes homens, com o intuito de colocar em questão algumas figuras arquetípicas que surgem neste contexto.
Isto nos leva ao segundo ponto. Uma das figuras que vamos abordar aqui está expressa no próprio título deste capítulo. O homem cabo-verdiano que não é sério, que “não presta” e que “é tudo igual” é certamente um tipo genérico, uma figura muito difundida, comum às diferentes classes sociais e fixada nas representações de gênero que veiculam. Como demonstraremos nas páginas que seguem, a “falta de seriedade” associada ao homem cabo-verdiano pode assumir significados distintos, mas costuma estar associada à sua forte inclinação para a “natureza” ou para o “costume” (ou tradição) das relações múltiplas, para alguns, denominada poligamia informal. Finalmente, este tipo pode assumir facetas rudes, associadas ao não romantismo, mas também pode atingir extremos que chegam à violência física e/ou simbólica[3].
Por fim, é interessante chamar a atenção para a nossa proposta de abordar tais construções sobre o universo masculino através do olhar de seus pares sexuais e afetivos em relações hétero e homossexuais. Acreditamos que trazer a perspectiva dos gays não apenas complementa nossas imagens sobre o universo afetivo-sexual, mas amplia o debate para além de uma possível guerra entre os sexos (Castro, 2012). Salientamos, portanto, que nossa perspectiva não é de comparação, mas de complementaridade.
1. Trocas, afeto e família
Na introdução da coletânea Love in Africa, Jennifer Cole e Lynn Thomas (2009) chamam a atenção para a importância de colocar em contexto as análises sobre intimidade e amor, uma vez que as práticas de parentesco em constante mudança, as noções de gênero e as economias políticas estão intrinsecamente conectadas às formas como pensamos e construímos intimidades. Discursos contemporâneos, sentimentos e práticas de amor são produtos de processos históricos complexos e interseções (Cole; Thomas, 2009), e esses sempre devem ser observados por pesquisadores que se debruçam sobre o universo dos afetos e das relações íntimas.
A coletânea, em sua totalidade, responde a dois pontos importantes que permeiam a literatura africanista sobre família, parentesco e conjugalidades: a redução da intimidade africana ao sexo e a ideia de que emoções, intimidade e solidariedade familiar estariam (ou deveriam estar) em oposição aos intercâmbios econômicos, tratando-se de “mundos hostis” (Zelizer, 2005). Juntamente com outros estudiosos (Journet, 2005; Cole, 2005; Miller, 2010, Castro, 2012), os autores argumentam que, por mais que o senso comum ocidental oponha intimidades e trocas materiais, ambas estão profundamente conectadas em diversos cenários sociais, inclusive e sobretudo em contextos ocidentais.
O caso aqui analisado, o das relações no âmbito familiar em Cabo Verde[4], parece ser mais um exemplo etnográfico que pode reforçar o argumento dos estudiosos aqui citados, pois reciprocidade e solidariedade são conceitos centrais para se compreenderem as relações familiares nesta sociedade. A troca recíproca de alimentos, bens, objetos e cuidados é um fator fundamental na construção da intimidade familiar. Tais relações são profundamente marcadas por laços sociais alimentados cotidianamente pela partilha e pelas trocas de coisas, valores e pessoas, e o sentimento de pertencimento está vinculado a um conjunto de referências comuns e à participação em uma comunidade de prática.
As relações familiares em Cabo Verde podem ser caracterizadas por um comprometimento mútuo, por contatos sociais regulares e por um fluxo intra e inter-doméstico de benefícios materiais e não materiais (Lobo, 2011, 2014, 2014b ; Defreyne, 2016). Tais elementos são importantes para a construção do sentimento de proximidade e atuam no fortalecimento de laços parentais pré-existentes. Os vínculos de consanguinidade não seriam, portanto, irrevogáveis, precisando ser atualizados cotidianamente por pequenos atos de partilha de objetos, alimentos e de cuidados.
Pensamos aqui nos termos sugeridos por Mauss (1974), no que diz respeito ao princípio da vinculação de pessoas e coisas nas trocas realizadas, ou seja, a partir do princípio da dádiva, no movimento de dar, receber e da obrigatoriedade ideal de retribuir. O mecanismo da troca na esfera familiar cabo-verdiana colocaria em evidência o modo pelo qual as pessoas se relacionam com aqueles considerados mais próximos: por meio dos bens (tangíveis ou intangíveis) trocados cotidianamente. Portanto, tal como desenvolvido no pensamento de Mauss ao tratar da dádiva, propomos pensar tais relações de troca como relações de aliança num sentido mais amplo.
De forma breve[5], podemos destacar a mobilidade como um fator transversal que é parte da dinâmica familiar em diversos níveis: há constante partilha de coisas, alimentos, mensagens entre as casas, sendo esta última uma unidade central fortemente associada à mulher e às crianças; o homem, em sua posição de um próximo distante, incorpora uma dimensão do movimento como tensão, dada a incerteza sobre seu retorno (físico, financeiro, afetivo); finalmente, a emigração de homens e também mulheres, tão fortemente associada ao universo cabo-verdiano, intensifica não só as idas e vindas de pessoas, mas também trocas variadas e intensas que acabam por (re)produzir esse universo familiar em fluxos, em trocas (Lobo, 2014b ; Defreyne, 2016; Laurent, 2016).
As unidades domésticas, transversalizadas por esses múltiplos fluxos, são centradas na figura da mãe-avó. Apesar de operarem um ideal patriarcal, em que o homem exerce autoridade sobre o destino dos filhos e sobre o percurso de vida da mulher, na prática, elas têm um importante papel social e econômico, uma vez que os arranjos afetivos que predominam estimulam a circulação dos homens por várias unidades domésticas ao longo da vida adulta. O que queremos dizer é que as relações afetivas entre homens e mulheres, ainda que com filhos, têm por característica, num primeiro momento, a não fixação deste casal em uma união conjugal considerada estável: com residência compartilhada, divisão de tarefas no cuidado com as crianças e nas despesas financeiras.
Além disso, é frequente que o homem tenha simultaneamente relações sexuais e afetivas múltiplas, com mais de uma parceira, relações que também podem gerar filhos. Por fim, cabe ressaltar que os sentidos dados à masculinidade passam pela distância relativa do homem do universo doméstico, especialmente nos cuidados com as crianças. Tudo isso opera no sentido de conferir centralidade às mulheres no interior das famílias, posição reforçada pelas redes femininas de solidariedade e reciprocidade que conectam, no espaço e no tempo, casas e gerações por meio da partilha e da circulação de coisas, valores e pessoas.
Paralelamente, assim como as relações de parentesco devem ser obtidas, negociadas e alimentadas, as vidas dos indivíduos e suas posições no contexto familiar são decorrentes de escolhas, negociações e formas de participação nas trocas cotidianas, não devendo ser entendidas como devires inevitáveis e preestabelecidos dentro do sistema (Lobo, 2013). Captar este universo como um quadro composto por diversas possibilidades, em que as trajetórias dos indivíduos são múltiplas e suas posições são conquistadas a partir dos percursos de vida, é central para entender os lugares de homens e mulheres em relações afetivas e sexuais neste contexto, fazendo jus à heterogenia de suas experiências.
2. Afetividades e sexualidades: um homem e muitas ausências
É nesse cenário de partilha e trocas recíprocas que o homem é percebido em um lugar de proximidade distante, porque produtor de uma intimidade que carece de elementos essenciais para que seja plena, quando descrita pelo prisma de nossos interlocutores, mulheres hétero e homens gays. Conforme explicitaremos, os discursos desses dois grupos sobre o tal “homem cabo-verdiano” são coincidentes tanto em sua negativação quanto em sua própria vulnerabilidade diante dele. Porém, é importante notar que os desdobramentos das relações afetivo-sexuais entre homens-mulheres e “homens”-“gays”[6] têm implicações radicalmente distintas não somente em suas vidas, mas também nas possibilidades de construção de intimidades que ultrapassem o sexo.
É na tentativa de dar conta desta complexidade que convidamos o leitor para adentrar este universo em que o tecer e o romper da intimidade são constantes.