Conferência
Resumo: Apresento uma síntese de algumas inquietações teóricas e sociopolíticas que permeiam minhas últimas pesquisas, as quais abordam o tema mais amplo da contracepção no contexto brasileiro. A gravidez imprevista é um fenômeno que atravessa a vida de muitas mulheres, de diferentes idades, classes sociais, raças/etnias, agravado pela impossibilidade de realização do aborto em condições seguras, interdito no país. Assim, apoiada em material empírico decorrente de três investigações que contemplam, respectivamente, a contracepção de emergência, os métodos contraceptivos reversíveis de longa duração e um dispositivo para esterilização tubária, busco demonstrar as imensas dificuldades que cercam a garantia de um direito assegurado na Constituição, o planejamento reprodutivo. Tendo em vista a regulação dos corpos e da sexualidade feminina pelos saberes biomédicos, instituições estatais, religiosas, há sempre uma desqualificação moral daquelas mulheres que “falham” no controle de sua capacidade reprodutiva, consideradas como “sem vergonha” ou “negligentes”. Tampouco se confere importância às hierarquias e constrangimentos de gênero ou à violência que modelam práticas sexuais e contraceptivas. Muito além do repertório de métodos contraceptivos, a contracepção é uma prática cultural, relacional, mediada pelo aprendizado da sexualidade e do gênero, da autodeterminação que precisa ser apoiada pelos serviços públicos de saúde.
Palavras-chave: Direitos sexuais e reprodutivos, Sexualidade, Gênero, Contracepção, Esterilização feminina.
Abstract: I here introduce a synthesis of some theoretical and sociopolitical concerns approached in my recent research concerning the wider topic of contraception in the Brazilian context. The unexpected pregnancy is a phenomenon that crosses many women’s lives, regardless the age, social class and race/ethnicity. It is worsened by the impossibility of having a safe abortion, as it is interdict in the country. This research is based on empirical material from three investigations comprising, respectively, emergency contraception, long-term reversible contraceptive methods, and a fallopian tube contraceptive device. Thus, I aim to demonstrate the huge difficulties regarding the warranty of a right provided in the Constitution, i.e., reproductive planning. In view of the regulation of female bodies and sexuality by biomedical knowledge, state and religious institutions, there is always a moral disqualification of those women who “fail” in the control of their reproductive capacity; they are considered “shameless” or “negligent”. Neither gender hierarchies and constraints nor violence that shape sexual and contraceptive practices are assigned importance. Way beyond the choices of contraceptive methods, contraception is a cultural, relational practice, mediated by the learning of sexuality and gender and the self-determination that needs to be supported by public health services.
Keywords: Sexual and reproductive rights, Sexuality, Gender, Contraception, Female sterilization.
Tênues direitos: sexualidade, contracepção e gênero no Brasil
Desde os anos 2000 venho me dedicando a compreender melhor as contingências e controvérsias que cercam o tema da gravidez imprevista, a partir de estudos empíricos realizados no Rio de Janeiro. Tal como ocorre com o aprendizado do sexo com o/a parceiro/a, na adolescência e juventude, há uma forte naturalização ou banalização das práticas contraceptivas, em geral atribuídas às mulheres, tomadas como algo dado, meramente técnico, quase compulsório, de ordem natural, como se isso fosse possível. “Evitar filhos” tem sido compreendido no campo da saúde como algo inerente às mulheres, impossível não saber, não fazer, não conseguir evitar uma gravidez inesperada. Daí ouvirmos em todos os espaços sociais expressões tais como: “Como assim, engravidou sem querer?” “Com tanta informação hoje em dia, com tantos métodos, como pode?”. O tema da contracepção, embora tomado no campo da saúde como de domínio técnico relativo ao conhecimento de métodos contraceptivos, engendra relações sociais complexas entre homens e mulheres, que ocorrem em contextos de hierarquias de gênero, de aprendizado da sexualidade e também de violência. Convivemos com uma reprovação moral e social da reprodução, principalmente em classes populares, como se diante da pobreza, não houvesse sentido algum em reproduzir, ter filhos, formar uma família.
Então, a gravidez imprevista tem sido uma janela ou categoria chave, uma chave de leitura para pensar, interpretar e estudar questões atinentes às práticas sexuais heterossexuais, à hierarquia de gênero e os muitos constrangimentos que dela decorrem para as práticas sexuais e contraceptivas, ao aborto inseguro, aos custos e ônus da reprodução, desigualmente divididos entre gêneros (Brandão; Cabral, 2017). Enfim, o tema tem me guiado a pensar desde relações de gênero, assistência à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), políticas públicas, direitos sexuais e reprodutivos e agenciamentos femininos no tocante ao planejamento reprodutivo neste cenário de escassez de apoio e acolhimento nos serviços de saúde para dialogar sobre sexo, violências, opressões de gênero, maternidade, casamento, paternidades, dentre outras questões importantes da vida íntima das mulheres.
Neste sentido, venho transitando teoricamente desde a antropologia do gênero e da sexualidade e a antropologia da saúde e doença para mais recentemente incorporar em minha trajetória de pesquisa saberes relativos à antropologia dos medicamentos e à antropologia da ciência e da tecnologia, sempre guiada pelo fio condutor dos métodos contraceptivos hormonais (pílulas, injetáveis, contracepção de emergência, dispositivo intrauterino e implantes subcutâneos) e/ou artefatos técnicos voltados ao controle reprodutivo. Assim, a contracepção passa a ser vista não somente como uma relação social entre sujeitos que se interagem sexualmente, amparada pelo acesso aos insumos e serviços públicos de saúde, mas também uma relação mediada por objetos sociotécnicos (Akrich, 2014) que condensam normas sociais, valores materiais e simbólicos, emoções, esperanças, expectativas comerciais e industriais do mercado de biotecnologias, marketing de laboratórios farmacêuticos e corporações médicas, etc.
Nesta ampliação da perspectiva de compreender teórica, metodológica e politicamente nossa cultura contraceptiva, apoiada em métodos hormonais ou não, a reflexão mais ampla sobre processos de medicalização, biomedicalização ou farmacologização da sociedade (Conrad, 2007; Clarke et al., 2003; Williams; Martin; Gabe, 2011), como vários autores assinalam, torna muito mais complexa a tarefa de pensar algo aparentemente tão banal e corriqueiro, tão “natural”, como “evitar filhos”, diante do fascínio de dispositivos médicos e tecnológicos que prometem suprimir a autodeterminação ou capacidade racional de escolha e decisão das mulheres, controlando assim os muitos riscos que perpassam nossas decisões neste campo.
O fantasma expresso pela forte hegemonia do conceito de “risco”, advindo da epidemiologia, que baliza as representações e práticas em saúde (Neves, 2019; Jeolás, 2010), sempre nos obrigou a pensar na contramão, a inverter a lógica biomédica predominante, a fazer face à cultura do risco que impregna as propostas de prevenção e promoção de saúde. Nesse esforço intelectual de captar e compreender outras lógicas sociais e simbólicas subjacentes aos modos de existir e de enfrentar eventos da vida sexual e reprodutiva, deparamos com escolhas peculiares, com agenciamentos que escapam às prescrições legais e normas sanitárias.
Então, pretendo trazer aqui três exemplos de questões que tenho me dedicado a pesquisar nos últimos anos, como forma de compartilhar com vocês algumas inquietações relativas ao tema da contracepção no contexto brasileiro.
O primeiro deles condensa um conjunto de estudos sobre a contracepção de emergência, comumente conhecida no senso comum como “pílula do dia seguinte”, que permanece no limbo deste debate, como uma alternativa marginal e periférica, pouco discutida nos serviços de saúde e em nossas políticas públicas. São reflexões desenvolvidas em diálogo com colegas, em projeto de pesquisa anterior (Brandão et al., 2016; Brandão et al., 2017; Brandão, 2019a).
Embora a contracepção de emergência tenha sido aprovada no Brasil há mais de vinte anos (1996) e seja um método contraceptivo hormonal para uso pós-coito, até 120 horas após a relação sexual desprotegida, seu estatuto continua impreciso, em razão de sua posição liminar entre a contracepção e o aborto, devido ao fato de sua utilização ocorrer após a relação sexual. Ao contrário da pílula anticoncepcional de uso diário, que conta com ampla aceitação social (Watkins, 2012), a contracepção de emergência está envolta em inúmeras controvérsias. As recomendações médicas assinalam sua utilização em situações emergenciais, esporádicas, de falha do método em uso, de esquecimentos, em casos de violência sexual, desaconselhando seu uso regular, rotineiro. Por outro lado, para as jovens que tiveram uma relação sexual sem proteção e temem a gravidez, o cálculo do risco de uso “excessivo” da contracepção de emergência é sempre ponderado pelo risco de engravidar. Assim, nas narrativas femininas, o medo da gravidez supera o medo dos efeitos colaterais que o medicamento pode provocar, tais como alterações nos ciclos menstruais, sangramentos. Concebida no senso comum e entre profissionais de saúde e de farmácias como uma “bomba hormonal” em razão de possíveis efeitos deletérios que a ingestão de hormônios poderia provocar, nos pareceu que a ênfase nos perigos e potenciais riscos do medicamento para a saúde das suas usuárias acoberta e assinala muito mais o incômodo com o livre exercício sexual destas jovens.
Há uma estratégia disciplinar subliminar à ênfase recorrente aos perigos da contracepção de emergência. Ao se realçarem os perigos e potenciais riscos à saúde que o contraceptivo provocaria, o que está em discussão é a regulação dos corpos femininos, principalmente jovens e pobres, lócus onde a reprodução é temida no país. Subjacente às preocupações sanitárias com a saúde feminina, o que se teme de fato é o pleno exercício sexual entre mulheres, jovens e pobres, que redundaria em “maternidades de risco”, tão bem discutidas por Alfonsina Faya-Robles (2014; 2019).
As mulheres consumidoras da contracepção de emergência são duramente criticadas por sua “negligência” ou “displicência” com os cuidados contraceptivos prévios à relação sexual. Essa censura social reatualiza uma biopolítica de governo e controle dos corpos femininos, que poupa os homens destes encargos e discrimina mulheres designando-as como “sem vergonha” (Paiva; Brandão, 2017). É curioso também notar em tempos de aprimoramento humano e uso indiscriminado de hormônios em vários processos de aprimoramento corporal, que o uso da contracepção de emergência seja colocado sob suspeição (Brandão, 2018).
A automedicação por parte das mulheres, em relação à contracepção de emergência, com acesso pelas farmácias[2], revela uma iniciativa que precisamos valorizar e compreender melhor. Em tempos em que o planejamento do sexo é mais circunstancial, mediado por tecnologias digitais, por um lado, pode-se dispensar uma árdua negociação com o parceiro quanto ao uso do preservativo masculino, nem sempre aceito por parte dos homens. Por outro lado, ela também permite às usuárias superar as muitas dificuldades encontradas para acesso aos cuidados em saúde nos serviços públicos de saúde – consultas médicas, exames, atividades educativas grupais como pré-requisito para obtenção do método, disponibilidade de insumos. Essa estratégia dispensa sua submissão aos poderes médico e das instituições de saúde (enfermeiras, assistentes sociais, farmacêuticas, agentes comunitárias de saúde) que costumam inquirir e perscrutar sobre a vida sexual, afetiva e moral das usuárias, com vistas ao “aconselhamento” e à “orientação” atinentes às práticas de saúde. O “controle pela palavra” tem sido um objeto de estudo clássico na área da saúde (Memmi, 2010; Berlivet, 2004).
Esse argumento permite discutir as lógicas sociais e simbólicas que possam estar presidindo o recurso à contracepção de emergência pelas mulheres, em especial as mais jovens, na direção que Fainzang (2003, p. 33) designa como “estratégias paradoxais”. O uso da contracepção de emergência como um dispositivo de afirmação da autonomia feminina (embora elas continuem desprotegidas das infecções sexualmente transmissíveis) pode revelar o quanto essa perspectiva pode estar ferindo hierarquias morais e sociais, de classe e de gênero entre nós. Como Carrara (2015) destaca ao discutir as políticas sexuais contemporâneas e seus estilos de regulação moral, as dimensões de responsabilização e de controle de si são centrais e são exatamente essas noções colocadas em cheque na utilização da contracepção pós-coito, desqualificando suas usuárias e sua (in)disciplina.
Infelizmente não temos dados atualizados que demonstrem a posição da contracepção de emergência comparativamente a outros métodos[3], mas nossa suspeita apoiada em vendas crescentes do medicamento nas últimas décadas pelos laboratórios farmacêuticos é de que cada vez mais ela tem sido usada, em razão de uma previsibilidade mais intangível nos dias atuais quanto às possibilidades de se fazer sexo, à medida que as formas de encontros com potenciais parceiros/as são hoje mediadas pelas tecnologias digitais. Ainda precisamos conhecer melhor como tem sido o recurso feminino à contracepção de emergência e sob quais circunstancias ele ocorre, mas decerto é uma prática muito difundida em contextos mais jovens, avessos ao uso contínuo da pílula anticoncepcional, por razões de saúde e de retorno ou privilégio aos métodos naturais, não hormonais.
O segundo exemplo que gostaria de compartilhar refere-se aos chamados métodos contraceptivos hormonais reversíveis de longa duração (Long-Acting Reversible Contraception), como o implante subdérmico, liberador de etonogestrel, com duração de três anos, e o sistema intrauterino com levonorgestrel (mais conhecido como DIU Mirena®), com duração para cinco anos[4]. São alternativas contraceptivas que já circulam no país há muitos anos, em consultórios médicos, mas ainda não disponíveis no SUS. O que nos interessa aqui é refletir de que modo eles são pensados e chegam para oferta a um público mais amplo de mulheres, aquelas usuárias do SUS. Que estratégias são acionadas para justificar sua inclusão no SUS? Novamente, a (in)disciplina feminina é ressaltada e reatualizada.
Em 2015, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) solicitou ao Ministério da Saúde (MS) a introdução dos dispositivos citados no SUS às mulheres entre 15 e 19 anos. A Federação defendeu a introdução dessa modalidade de contraceptivos na rede pública de saúde, com indicações para uso em “populações especiais”, como adolescentes, usuárias de drogas ilícitas e mulheres convivendo com vírus da imunodeficiência humana. Nos documentos examinados, os grupos de mulheres em situação de vulnerabilidade são detalhados:
estão incluídas as de baixa renda e escolaridade, as moradoras de áreas rurais ou regiões isoladas e remotas, as privadas de liberdade, as que vivem com vírus da imunodeficiência humana (HIV) ou com outras doenças crônicas, como epilepsia, bem como as indígenas, as adolescentes, as usuárias de drogas ilícitas e as portadoras de deficiência física e/ou mental.
Eles destacam como justificativas as elevadas taxas de gravidez imprevista no país, a vulnerabilidade de determinados estratos sociais e a alegação de que tais métodos “não dependem da disciplina da mulher”. Eles afirmam: “Uma das principais vantagens dos LARC em relação aos contraceptivos reversíveis de curta duração é a manutenção da sua alta eficácia, independentemente da motivação da usuária. Devido à facilidade de uso, os LARC ganharam o apelido ‘pegue-o e esqueça-o’” (Brandão, 2019b). A ideia de delegar ao médico a tarefa de escolha de um método contraceptivo (reversível ou não) minimiza a capacidade de escolha da mulher e seu poder de decisão como uma pessoa autônoma, capaz de avaliar e decidir naquele momento de vida a alternativa contraceptiva que melhor lhe atenda. Tampouco os LARC prescindem de acompanhamento clínico durante os anos em uso, para avaliar efeitos colaterais ou outro problema que possa surgir, em se tratando de métodos hormonais.
O aspecto mais doloroso da crítica à negligência e à indisciplina das mulheres no uso correto dos métodos contraceptivos é o fato de que essa falha, essa lacuna é transmutada para seu comportamento social, é identificada e julgada não como uma falha técnica, mas sim como uma falha individual de natureza moral. Sua incapacidade de seguir corretamente as prescrições médicas no uso de métodos contraceptivos compromete sua qualificação moral para decidir o que melhor lhe convém, sem necessariamente coincidir com a opinião dos especialistas. E muito pouco continua a ser dito sobre a responsabilidade dos homens no tocante à contracepção.
Por fim, quero trazer alguns resultados de uma investigação mais recente que venho conduzindo com outra colega sobre um dispositivo para controle definitivo da reprodução, designado “Essure®”, que circulou no Brasil entre 2009 e 2017.
No final de 2018, denúncias graves de diversos efeitos colaterais sofridos por mulheres em vários países (EUA, Europa, Brasil) vieram a público, após estas terem implantado em suas trompas, sob recomendação médica, um dispositivo permanente para controle reprodutivo, designado Essure®[5]. Tais denúncias colocaram em relevo muitas controvérsias científicas que encobrem ampla difusão pela Bayer, nas últimas décadas, deste artefato biomédico, apresentado como “solução ideal” para prevenção definitiva da gravidez. A introdução do dispositivo em hospitais públicos de capitais do Brasil, como Rio de Janeiro e São Paulo, associados ao Sistema Único de Saúde (SUS), despertou nossa inquietação no sentido de investigar tais procedimentos buscando compreender as condições sociais de sua implantação em mulheres usuárias destes serviços de saúde. Estamos buscando compreender a circulação internacional e introdução deste artefato biomédico no Brasil, para identificar processos sociopolíticos que permitiram sua regulação, sua implantação em mulheres que acorreram aos hospitais públicos com demanda para ligadura tubária e o ativismo das pacientes para retirada do Essure®, após sérios problemas de saúde (Brandão; Pimentel, 2020).
Apresentado como um dispositivo seguro, inócuo e de fácil manejo clínico, a promessa de um objeto permanente que impediria a gravidez sem necessidade de recorrer ao método cirúrgico, foi vendida pelo laboratório farmacêutico Bayer ao staff médico como solução simples, prática e moderna de controle reprodutivo. Aprovado pelas agências reguladoras nos EUA (2002) e Europa (2001), depois no Brasil (2009), os problemas surgidos após quase duas décadas em circulação demonstraram falhas nos processos de avaliação e aprovação de novas tecnologias médicas. Os problemas de saúde identificados envolviam gravidez indesejada, dor crônica, cólicas abdominais, sangramentos, desconforto pélvico, perfuração de trompas ou útero, migração do dispositivo, alergia e diversos sintomas sugestivos de sensibilidade e reações imunológicas associadas ao níquel, usado no dispositivo, dentre outros.
As dificuldades existentes no âmbito do SUS para acesso à contracepção e obtenção da laqueadura tubária, com grande demanda de mulheres que aguardam vagas/leitos para tal procedimento, eletivo, pode ter constituído um cenário propício para oferta de um procedimento novo, menos invasivo, realizado em ambulatórios por histeroscopia[6] e que prometia resolver definitivamente angústias femininas com o risco de uma gravidez imprevista. O acompanhamento clínico após a inserção do Essure® se estendia apenas aos três meses posteriores, quando se confirmava o sucesso do procedimento e suspendia-se o método contraceptivo em uso neste período entre implantação e sua avaliação clínica posterior. Após isso, as mulheres ficaram desamparadas, com aparecimento de sintomas e problemas de saúde, a princípio não reconhecidos como decorrentes do Essure®. O entusiasmo médico com o Essure® no Brasil não foi acompanhado de um cuidadoso monitoramento clínico das pacientes que o implantaram, que permitisse identificar e tratar seus efeitos colaterais em médio e longo prazos.
O Essure® começou a ser comercializado após curto tempo de realização de pesquisas científicas, valendo-se da fragilidade das normativas de regulação de dispositivos médicos. Em 2018, a Bayer anunciou o fim da sua comercialização nos Estados Unidos. No Brasil, o Essure® foi incluído em práticas de laqueadura em hospitais que integram o SUS, em muitas situações, através de pesquisas clínicas. Este episódio recoloca a discussão a respeito de quem são os sujeitos inseridos em práticas de pesquisas contraceptivas no país, como são selecionados e como a assistência à saúde lhes é assegurada longitudinalmente.
De modo distinto dos processos autoritários ocorridos nos anos 1970 e 80, que subjugavam o consentimento das mulheres à prática da esterilização, a campanha de divulgação na mídia do Essure®, tanto em seu website oficial (http://www.essure.com/), como nos posts e convocações divulgadas pelos hospitais públicos do Brasil, para atraírem ou convidarem mulheres para adesão ao procedimento, sutilmente captou tal anseio pela esterilização e o transformou em objeto de consumo, disponível no mercado. Há um Termo de Consentimento que foi aplicado, mas suspeitamos que as mulheres o assinaram consentindo com o procedimento da laqueadura, sem entenderem perfeitamente as diferenças entre as duas técnicas disponíveis por laparotomia ou por histeroscopia.
Como há uma demanda reprimida de mulheres que desejam fazer a laqueadura no Sistema Único de Saúde, pela via cirúrgica, aprovada na legislação e disponível como procedimento autorizado no rol de possibilidades contraceptivas ofertadas, é comum em diferentes contextos se ouvir menção a tal “fila de espera”. Esse foi o principal argumento usado por médicos para convencer gestores públicos a comprar o Essure®, um dispositivo comercializado por uma única empresa no país com elevado custo. Sob o pretexto da diminuição da fila de espera para laqueaduras, maior agilidade na realização do procedimento, em nível ambulatorial, sem anestesia, internação hospitalar, a promessa era de que em um curto período de tempo, a cobertura se ampliaria sobremaneira.
Outro ardil desta iniciativa foi capturar com maestria a necessidade que as mulheres tinham em realizar a laqueadura para o Essure®, sem que elas percebessem todas as diferenças entre ambos os procedimentos, o tradicional e o novo, os riscos e benefícios associados a cada um. Assim, o fato de muitas terem sido convidadas a assinar o Termo de Consentimento, parece-nos que, grosso modo, elas consentiram com a laqueadura antes desejada, com um procedimento médico irreversível que as livraria da gravidez para sempre, não necessariamente no tipo de técnica ou artefato a ser usado para este fim. De quais maneiras a diferença entre a ligadura por laparotomia ou histeroscopia foi informada e dialogada com as mulheres? Ao cotejarmos o Termo de Ciência e Consentimento Pós-Informado, utilizado em hospital público do Rio de Janeiro, percebe-se um documento longo de 4 folhas, letras mínimas, muitos termos técnicos e um volume de informações que dificilmente uma usuária com pouca escolaridade ou educação científica conseguiria apreender totalmente.
O interesse pela investigação deste tema advém do fato de ele reatualizar velhos dilemas éticos, sociais e políticos no campo da relação entre autoridade médica, empresarial e autonomia reprodutiva das mulheres. A atenção à saúde das mulheres, no que concerne à contracepção (reversível ou não) e à reprodução, continua sendo terreno propício e estratégico para a experimentação de novos procedimentos e aparatos técnicos e de biomedicalização do corpo feminino, em muitos momentos à revelia das usuárias.
Então, retomando o título de minha comunicação, “Tênues direitos” significa que algo praticamente estabelecido em nossa constituição, no SUS, nas políticas públicas de planejamento reprodutivo não encontra reverberação na atenção às necessidades destas mulheres. Como disse, a contracepção é um processo relacional, sujeito a condições sociais, de saúde e fase do ciclo de vida que a mulher se encontra, ao tipo de parceria sexual (ocasional ou estável) e à hierarquia de gênero. As chamadas descontinuidades contraceptivas não deveriam ser condutas de exceção, mas aceitas e incorporadas ao fluxo da vida a dois. Interrupções no uso de métodos acontecem por muitos motivos: mal-estares decorrentes de métodos hormonais, ganho de peso, outros efeitos colaterais, esquecimentos, deslocamentos na rotina cotidiana, ausência de recursos financeiros, troca do método em uso, rompimentos de relacionamentos afetivo-sexuais, entre outros. Aceitar tais descontinuidades contraceptivas como inerentes às práticas sexuais nos ajuda a reivindicar o direito ao aborto seguro, a disponibilidade da contracepção de emergência no SUS e nas farmácias fora do balcão (over-the-counter), com venda livre às consumidoras, os métodos reversíveis de longa duração a todas as mulheres do SUS que assim o desejarem, garantindo acompanhamento clínico ao longo destes três ou cinco anos, e o acesso à ligadura de trompas, dispensando o consentimento do parceiro às usuárias que optarem pela via definitiva da esterilização.
A importância da ampliação do leque de alternativas contraceptivas no SUS é inegável, mas é preciso compreender melhor sob que moldes os métodos contraceptivos são ofertados, quais as justificativas subjacentes à sua implantação e como serão acompanhadas as mulheres ao longo do tempo que dele fizerem uso. Daí a importância de conhecermos e acompanharmos os agenciamentos possíveis, como tais mulheres, inseridas em contextos específicos de classe, raça/etnias, geracionais e de exclusão social lidam com seus corpos e saúde reprodutiva, como superam dificuldades no campo da contracepção e da reprodução e como se relacionam com as instâncias sociais de controle médico.
No caso do dispositivo Essure®, que comentei antes, o ativismo digital das mulheres que fizeram a inserção do artefato e sofrem com muitas dores, sequelas e adoecimento em decorrência do dispositivo, tem sido o dado mais esperançoso deste cenário desolador para quem não deseja mais parir e não encontra as vias de fato para sua proteção. Elas têm se organizado em blogs, grupos de WhatsApp, Facebook, se conectado com outras mulheres de vários estados do Brasil e também acompanhado outras “e-sisters” na internet na Europa e EUA, trocando informações em busca da retirada definitiva do Essure® de seus corpos. Nossa pesquisa seguirá em seu segundo momento na tentativa de ouvi-las e de também escutar profissionais de saúde envolvidos com tal iniciativa. Espero, no futuro próximo, poder novamente dialogar com vocês a respeito.
Referências
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Notas