Resumo: Este ensaio apresenta as mobilizações dos moradores de Font de la Pólvora, zona leste da cidade de Girona, comunidade da Catalunha, em decorrência dos sucessivos cortes de luz que estão acontecendo há alguns anos no bairro. A institucionalização dos processos de precarização desse território, marcado desde sua constituição por narrativas de marginalização e abandono, acentua uma política de escassez histórica do Estado em torno da população residente, majoritariamente de etnia cigana. Através de atos públicos, os moradores buscam contestar o imaginário de contravenção que persiste e atualiza as inscrições de vulnerabilidade presentes no cotidiano do bairro.
Palavras-chave:CatalunhaCatalunha,MobilizaçõesMobilizações,CiganidadeCiganidade.
Abstract: This essay presents how the dwellers from Font de la Pólvora, in the east area of Girona city, in the Spanish community of Catalonia, have mobilized after successive power cuts that have been happening for some years in the neighborhood. This territory, marked from its emergence by narratives of marginalization and neglect, has been subject to increased precarity, in processes whose institutionalization accentuates a policy of historical scarcity of State presence around the local, mostly Romani population. Through public action, dwellers seek to contest the imaginary of contravention that persists and updates the inscriptions of vulnerability that are present in the neighborhood daily life.
Keywords: Catalonia, Collective action, Romani-ness.
Ensaio Visual
No somos delincuentes: mobilizações de moradores em um bairro cigano na Catalunha
No somos delincuentes: mobilizations of residents in a Romani neighborhood in Catalonia
Abstract: This essay presents how the dwellers from Font de la Pólvora, in the east area of Girona city, in the Spanish community of Catalonia, have mobilized after successive power cuts that have been happening for some years in the neighborhood. This territory, marked from its emergence by narratives of marginalization and neglect, has been subject to increased precarity, in processes whose institutionalization accentuates a policy of historical scarcity of State presence around the local, mostly Romani population. Through public action, dwellers seek to contest the imaginary of contravention that persists and updates the inscriptions of vulnerability that are present in the neighborhood daily life.
Resultado de um plano de urbanização que buscou erradicar o barraquismo[1] em Girona, o bairro foi construído na década de 1970, ainda sob regime franquista, para acomodar a onda migratória que chegou sobretudo da região sul da Espanha, onde as possibilidades de trabalho eram escassas e o tamanho da miséria recordava um prolongamento assombroso dos tempos de guerra. Como sintoma de um programa de atuação típico das políticas nacionais desenvolvimentistas que caracterizam os regimes ditatoriais, a economia catalã da época foi fortemente estimulada pela crescente industrialização local, atraindo um fluxo de população que buscava na cidade alguma perspectiva de melhoria nos arranjos da vida. Ir embora significava perder um pouco de si, deixar para trás a família, a casa, o povoado de origem, levar penosamente o indispensável e partir em busca do que seria uma aposta de futuro mais próspero.
Durante os doze meses de trabalho de campo, pude acompanhar diversos protestos e suas tramas políticas em decorrência dos sucessivos cortes de luz que estão acontecendo há alguns anos no bairro. A empresa contratada pela prefeitura atribui os cortes no setor leste da cidade às fraudes elétricas engendradas pelos próprios moradores que, segundo a companhia, estabelecem conexão clandestina com o serviço disponível. Tal ação produziria uma sobrecarga na fiação elétrica, gerando pane no sistema e falta de fornecimento para os apartamentos locais. No entanto, o sistema de rede instalado data do mesmo período de construção do bairro, não tendo sofrido nenhum tipo de revisão técnica ou atualização nos seus cabos de força. Através de declarações públicas dos representantes políticos elaboradas em reuniões, assembleias e coletivas de imprensa, é flagrante a constante tentativa de criminalização do bairro em sua totalidade, como se fosse possível instituir uma dimensão existencial propensa a condutas desviantes e práticas de infração que seriam a causa última da interrupção prolongada de energia. Ao longo dos problemas que emergem no cotidiano do bairro, estes modos de habitar a escassez vão conformando um campo de práticas e representações – presente tanto nas falas frequentes de pessoas do local como em diferentes instituições de governo – sobre inscrições de vulnerabilidade e reinvenções de possibilidades de vida às margens do Estado.
As fotografias que compõem esta publicação foram registradas durante o estágio doutoral no Departament d’Antropologia Social i Cultural da Universitat Autònoma de Barcelona com bolsa CAPES/PDSE, nos anos de 2018 e 2019. As condições de realização se deram a partir da minha inserção na recém-criada Plataforma pela Dignidade de Font de la Pólvora, associação composta por moradores e pessoas vinculadas a mobilizações sociais. Como parte do conselho administrativo encarregado pela fundação da Plataforma, participei ativamente na representação e organização das atividades desempenhadas pela entidade. Deste modo, a Plataforma emerge na intenção de marcar oposição pública às inúmeras tentativas de criminalização do bairro, sendo responsável por organizar a manifestação que vem a resultar neste ensaio visual. A função de retratar o ato partiu de um propósito coletivo do grupo na reivindicação e disputa por visibilidade a respeito das adversidades locais.
Tamanha institucionalização dos processos de precarização do bairro, marcado desde sua constituição por narrativas de marginalização e abandono, acentua uma política de escassez histórica do Estado espanhol e catalão em torno da população residente, majoritariamente de etnia cigana, e agrava o imaginário de contravenção sobre práticas e condutas inscritas naquele território. Neste sentido, as marcas de vulnerabilidade em Font de la Pólvora, materializadas pelos contínuos cortes no subministro de energia elétrica, configuram formas de violência repetidas no cotidiano do bairro. Através de mobilizações públicas, a Plataforma busca evidenciar uma gestão nefasta da empresa de energia contratada pela prefeitura da cidade. Na tentativa de contestar o caráter de gueto forjado por um modo de governança que constrói e mantém margens territoriais e corporais nas quais o próprio poder do Estado se (re)faz, os moradores levaram para as ruas de Girona cartazes com frases que ressoavam precisamente como um preâmbulo de incontáveis reparações: “nós não somos delinquentes”.