Resumo: Neste ensaio fotográfico procuro percorrer, em conjunto com caçadores tikmũ,ũn, imagens que anunciam historicidades através dos corpos e dos lugares fotografados. As imagens buscam adentrar no emaranhado de capim e em pequenos cursos de água onde pessoas tikmũ,ũn, comumente chamadas pelo etnônimo Maxakali, seguem com as linhas das suas vidas no nordeste mineiro, quase na fronteira com o sul da Bahia.
Palavras-chave:FotografiaFotografia,EtnografiaEtnografia,TerritorialidadeTerritorialidade,EtnohistóriaEtnohistória,Tikmũ,ũnTikmũ,ũn.
Abstract: In this photographic essay, along with tikmũ,ũn hunters, I intend to go through images which announce various historicities by means of the photographed bodies and places. Those images pervade the tangled grass and short watercourses where tikmũ,ũn people lead their lives in the northeast part of Minas Gerais, close to southern Bahia state border. In the past, farms were built, and colonião-grass were grown there, in tikmũ,ũn territory.
Keywords: Photography, Territoriality, Ethnohistory, Tikmũ,ũn.
Ensaio Visual
Imagens, ruínas e mundo por vir: deslocamento por lugares e corpos tikmũ,ũn
Images, ruins and becoming world: displacement across tikmũ,ũn places and bodies
As fotos escolhidas para compor este ensaio fotográfico foram capturadas próximo ao término de um trabalho de campo que realizei ao longo de 14 meses, entre os anos de 2014 e 2016, em diferentes aldeias tikmũ,ũn, nas zonas limítrofes entre o sul da Bahia e o nordeste de Minas Gerais[2]. Atualmente, pessoas tikmũ,ũn – mais conhecidas pelo etnônimo Maxakali – somam algo em torno de 2.200 pessoas. As aldeias tikmũ,ũn localizadas na Terra Indígena Maxakali situam-se em duas localidades, Água Boa e Pradinho. Elas estão vinculadas, respectivamente, aos municípios de Santa Helena de Minas e Bertópolis, no estado de Minas Gerais. Além da Terra Indígena, após um intenso conflito envolvendo praticamente toda a população tikmũ,ũn entre os anos de 2004 e 2005, uma parcela da população tikmũ,ũn vive atualmente em duas reservas indígenas, Aldeia Verde e Aldeia Cachoeirinha, situadas nas proximidades do município de Teófilo Otoni.
Como tantos outros, esses indígenas vivem em um regime de confinamento territorial. Habitando em uma terra totalmente devastada e estilhaçada, que não lhes garante sua soberania alimentar, vivem uma situação de profunda dependência de recursos governamentais. Apesar disso, o que pretendo demonstrar neste ensaio fotográfico é que, embora as forças coloniais tentassem impor a eles um confinamento territorial, isso nunca os impediu de viver um outro território existencial[3].
De certa forma, as fotos apresentadas aqui foram as poucas que me atrevi a fazer. Minha câmera, uma Fuji FinePix S4080, na maior parte do tempo, circulava nas mãos dos adolescentes da aldeia, que faziam fotos e as apagavam de maneira quase compulsiva. Creio que as fotos deste ensaio se aproximam dos períodos em que senti maior imersão em campo, nos quais os temas e as questões da pesquisa se aproximavam de um delineamento mais definido. Aos poucos percebia que meu interesse se aproximava das estórias que emanavam dos lugares habitados por pessoas tikmũ,ũn[4]. Assim, vivendo em uma terra tomada por capim-colonião, me perguntava quais as estórias podiam emanar dali. O que os entrelaçamentos da malha composta por pessoas tikmũ,ũn, fazendeiros, comerciantes, capim, vacas, bois e espíritos teriam a nos revelar sobre esse contexto etnográfico?
As imagens que se seguem tentam adentrar na densidade dessa malha entrelaçada à beira do córrego Umburanas. Ali, os corpos tikmũ,ũn se deslocam em meio a uma terra “branquificada”, como nos lembra Tomé Maxakali, transformada ao longo do século XX em pasto e fazenda[5]. Uma terra que anteriormente era uma densa, complexa e rica mata Atlântica transformou-se em um tedioso deserto verde formado de capim-colônia e algumas poucas áreas de mata. Esse processo de “branquificação” da terra foi amplamente incentivado pelos arrendamentos de terra, promovidos pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e Fundação Nacional do Índio (Funai), ao longo do século XX, em conluio com fazendeiros e políticos locais[6].
Nessa terra, pessoas tikmũ,ũn construíram – e constroem – seus corpos resistindo como podem. As caçadas às capivaras são frequentemente realizadas por caçadores tikmũ,ũn como forma de fazer oferendas sacrificiais aos yãmĩyxop (coletivo de povos-espírito), que vêm até as aldeias cantar, dançar, caçar, brincar, banquetear, fazer sexo, casar e curar. No passado, enquanto suas terras eram tomadas por fazendeiros, os caçadores tikmũ,ũn, em conjunto com os yãmĩyxop, caçavam as vacas, que eram distribuídas ritualmente nas aldeias. Através da circulação da carne de caça, bem como da circulação dos cantos dos yãmĩyxop, é que se faz e se constrói a pessoa e o corpo tikmũ,ũn. A pessoa tikmũ,ũn deve, ao longo da sua vida, fazer circular em seu corpo e nos dos demais os cantos dos yãmĩyxop[7]. Por isso, é importantíssimo o engajamento quando os yãmĩyxop estão presentes nas aldeias. As fotos abaixo adentram um pouco nesse universo.
Sob tal ângulo, este ensaio fotográfico se aproxima de duas perspectivas. Na primeira parte do ensaio, procuro adentrar nos emaranhados de capim, rios, fazendas por meio de cenas de caça a capivara[8]. Quando vemos as ruínas das fazendas e do antigo Posto Indígena Mariano de Oliveira, bem como o mar de capim, nos aproximamos de testemunhas materiais de uma historicidade que emana daquele lugar. Estas sequências de fotos aconteceram em momentos de muita saturação de luz. Diante de tais condições, me pareceu mais simples realizá-las em preto e branco. No entanto, as fotos em preto e branco funcionam neste ensaio como uma performance para dar contorno a esse território morto, que passa por um “embranquecimento”. Ao mesmo tempo, contudo, mesmo diante desse cenário distópico, pessoas tikmũ,ũn tentam produzir um devir tikmũ,ũn nestes lugares[9].
A segunda parte do ensaio trata dos momentos posteriores à circulação da carne de caça no interior das relações tikmũ,ũn. As fotos se aproximam do momento em que ocorre a festa do coletivo de espíritos-anta (ãmãxuxop), que trazem danças e cantos do ponto de vista de antas, veados, capivaras e vacas. Estes conjuntos de espíritos dançam com as mulheres tikmũ,ũn. Elas, por sua vez, ensaiam formas de armadilha-captura destes seres, transmutando olhares e perspectivas[10]. Geralmente, estes períodos ocorrem ao final da tarde ou no início da manhã, o que me facilitou – e muito – fazer fotos coloridas. Há neste ensaio, portanto, uma sobreposição ontológica de um mundo morto, em ruínas – fruto da colonização das terras tikmũ,ũn pelos brancos – e, de outro lado, um mundo por vir – fruto da agência tikmũ,ũn na sua terra. Esse mundo por vir é um mundo depois da morte. Um mundo que devir yãmĩyxop.
Deslocamento de caçadores até as proximidades do córrego Umburanas para a caça de capivaras – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Antiga fazenda no interior da Terra Indígena Maxakali (Pradinho, setembro de 2015) e ruínas do Posto Indígena Mariano de Oliveira na Terra Indígena Maxakali (Água Boa, setembro de 2014)
Caçadores tikmũ,ũn observando capivaras – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Atrás dos rastros de capivaras – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Caçador tikmũ,ũn aguardando capivaras descerem ao córrego Umburanas – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Itamar Maxakali a espera de movimentação de capivaras rio abaixo – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Caçador Maxakali no interior de matagal, nas proximidades do córregoUmburanas –Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Crânio e couro de capivara –Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Caçadores tikmũ,ũn retornam para suas casas – Terra IndígenaMaxakali, Pradinho, setembro de 2015
Partilha da carne de caça a ser distribuída na festa das antas (ãmãxuxop) na aldeia Novila – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Ãmãxux dançando no pátio da aldeia Novila – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Aproximação feminina das ãmãxuxxop na aldeia Novila – TerraIndígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Observação feminina do deslocamento das ãmãxuxop na aldeiaNovila – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Dança-captura das ãmãxuxxop na aldeia Novila – Terra IndígenaMaxakali, Pradinho, setembro de 2015
Ãmãxuxxop – coletivo-anta - Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Deslocamento de caçadores até as proximidades do córrego Umburanas para a caça de capivaras – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Antiga fazenda no interior da Terra Indígena Maxakali (Pradinho, setembro de 2015) e ruínas do Posto Indígena Mariano de Oliveira na Terra Indígena Maxakali (Água Boa, setembro de 2014)
Caçadores tikmũ,ũn observando capivaras – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Atrás dos rastros de capivaras – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Caçador tikmũ,ũn aguardando capivaras descerem ao córrego Umburanas – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Itamar Maxakali a espera de movimentação de capivaras rio abaixo – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Caçador Maxakali no interior de matagal, nas proximidades do córregoUmburanas –Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Crânio e couro de capivara –Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Caçadores tikmũ,ũn retornam para suas casas – Terra IndígenaMaxakali, Pradinho, setembro de 2015
Partilha da carne de caça a ser distribuída na festa das antas (ãmãxuxop) na aldeia Novila – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Ãmãxux dançando no pátio da aldeia Novila – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Aproximação feminina das ãmãxuxxop na aldeia Novila – TerraIndígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Observação feminina do deslocamento das ãmãxuxop na aldeiaNovila – Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015
Dança-captura das ãmãxuxxop na aldeia Novila – Terra IndígenaMaxakali, Pradinho, setembro de 2015
Ãmãxuxxop – coletivo-anta - Terra Indígena Maxakali, Pradinho, setembro de 2015