Resenhas
De peito aberto. Diretora: GrazielaMantoanelli. Produtor: Leonardo Brant. Produtora: Deusdará. São Paulo. 2019. 80 min.
De peito aberto. Diretora: GrazielaMantoanelli. Produtor: Leonardo Brant. Produtora: Deusdará. São Paulo. 2019. 80 min.
Anuário Antropológico, vol. 45, núm. 2, pp. 259-264, 2020
Universidade de Brasília
Mantoanelli Graziela. De peito aberto. 2019. São Paulo. Leonardo Brant. 80 |
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“É um alimento que não vem de uma caixinha, não vem de uma garrafinha. Ele vem de uma pessoa”. De uma pessoa para outra pessoa. De peito aberto, documentário de Graziela Mantoanelli (2019), nos insere na vida social da lactação em tempos contemporâneos. Parte do leite materno não somente como o veículo de relações sociais, mas também como condutor de reflexões sobre corpos femininos, medicina e biopolítica e, ao assim se roteirizar, faz desse líquido um alinhavo potente a ser investigado pela antropologia.
O desejo de dirigir um filme sobre a amamentação brotou da história pessoal da diretora, que teve dificuldades para amamentar sua primeira filha. Para a construção de seu enredo, foram acompanhadas seis mulheres de São Paulo, desde o parto até o pós-parto, durante seis meses de filmagem. Foram geradas mais de 200 horas de material bruto, e o filme foi produzido com financiamento coletivo de mais de 700 mulheres benfeitoras. Vale dizer que desde sua idealização, captação de recursos, filmagens e edição se passaram quase cinco anos.
Essas histórias se sobrepõem na película, não tendo um começo, meio e um fim. Vamos e voltamos com as personagens. Essa estratégia de direção e filmagem torna o filme dinâmico e instigante. As mulheres são diferentes entre si e também em suas histórias de lactação ou de vida láctea, como cunhado pela antropóloga espanhola e especialista do tema Estér Masso (2015). Na tela nos vemos diante de mulheres urbanas, de camadas médias e de periferia; entre mulheres negras e brancas; que vivem em casas grandes, mas também num quarto com banheiro. Temos mulheres casadas, heterossexuais e mães solo, mas também bissexuais em relacionamentos abertos. Mulheres que têm suas mães por perto e outras que não as têm mais. A diretora tenta assim contemplar a diversidade social em meio a uma suposta igualdade fisiológica, na presença do que as espanholas têm chamado de um corpo que é teta, alimento e resistência em tempos de aleitamento artificial e, por isso, espaço de/e lactivismo (Masso, 2015).
As narrativas aparecem entrecortadas por vinhetas em tons de azul e amarelo pastel, com animações que versam sobre os temas e os sentimentos que circulam no filme, todas ornamentadas pela mesma canção de fundo. Se as mulheres são diferentes entre si, todas têm em comum as dificuldades da amamentação. Entre uma história e outra, circulam também as falas de profissionais de saúde e especialistas no assunto. Entre eles, o pediatra espanhol Carlos Gonzalez e Daniel Becker, um pediatra brasileiro bastante reconhecido por sua defesa de uma criação mais natural. Defendem-se os benefícios fisiológicos da amamentação, tais como: saúde bucal e do maxilar; desenvolvimento da fala; redução de obesidade, diabetes e doenças respiratórias para o bebê e, para a mãe, redução do câncer de mama, miomas uterinos, diabetes e doenças da tireoide. Mas também a dimensão social do aleitar, quando as mães negras cobram o direito de amamentar os seus filhos e não os dos outros e quando Alexandre Coimbra do Amaral, psicólogo do circuito da parentalidade positiva no Brasil, sustenta que amamentar é “um ato sistêmico” – que só acontece a partir de uma rede de pessoas.
Uma rede que torna possível ao peito dar de comer. Um rede de pessoas conectadas à mãe e ao bebê, como o pai e as avós/avôs que cuidam da casa e cuidam da mãe, tanto física quanto emocionalmente, para que essa possa se dedicar ao bebê. Uma rede da qual participa também o Estado, que apoia o amamentar por meio de licenças do trabalho, informações e políticas públicas em prol do aleitamento. Uma rede composta também de profissionais de saúde que podem ajudar nas dificuldades iniciais, como bancos de leite, médicas, enfermeiras e técnicas de enfermagem. E uma rede também composta por tantas outras mulheres que fazem circular informações sobre o aleitar nas redes sociais e acolhem as mães em suas mazelas nesse processo. Por tudo isso, vê-se a vida social do leite que, ao final, chega ao bebê e como essa vida é composta de diversas pessoas que circundam a mãe e o bebê, sendo, portanto, uma amamentação sistêmica. Ou não.
Em uma cena, uma mulher sai para trabalhar e deixa o bebê com o pai, invertendo estereótipos de gênero. Em outra, essa mesma mulher aparece se arrumando à noite para ir em um baile de formatura, enquanto a prima, que fica em sua casa, oferece o peito ao seu bebê, pondo abaixo o tabu da amamentação cruzada. Com ambas nos colocamos diante dos arranjos tecidos nas camadas populares para que as crianças sejam alimentadas. Depois nos deparamos com o cotidiano de uma mãe solo, a contrapelo da ideia da amamentação como algo sistêmico e sim solitário e uma quase em depressão, por passar o dia sozinha com o bebê e não conseguir amamentá-lo.
Quando as câmeras nos levam para o interior de um apartamento luxuoso, nos vemos diante de uma relação entre mãe e filha bastante confusa. A mulher mais velha – mãe e avó - controla o cotidiano do recém-nascido e inclusive suas mamadas. Se relações entre mães e filhas podem ser tensas e diferentes, podem também ensejar saudosismo, já que uma das mulheres, bastante solitária e triste, aparece chorando e lamentando não ter a companhia de sua mãe.
De peito aberto nos coloca, por tudo isso, diante da socialidade da amamentação, de corpos socialmente diversos, do controle estatal e da articulação entre Estado e medicina (Foucault, 1993). Nessas tramas, figuram mulheres, frágeis e fortes a um só tempo, que estão a exigir o reconhecimento desse trabalho, mas que também sofrem quando não conseguem amamentar. Há assim uma onda de ativismo político em prol do aleitamento, para além de seus benefícios físicos. Mas também uma certa normatividade para que se amamente, o que tem provocado também adoecimento e exclusão social, à medida que “a natureza mata” ou também pode matar (Robayo, 2014).
Em alguma medida, a obra nos insere na ideia do lactivismo espanhol, um movimento de mulheres que parte da premissa de que os bebês e as mães são beneficiados fisicamente com amamentação (primeiro nível); em seguida suas famílias nucleares e estendidas (segundo nível); e por último, a sociedade em geral (terceiro nível) (Masso, 2015). Parte da premissa de que “el lactivismo pugna por transformar el mundo desde el cuerpo y desde la intervención ciudadana, sin solución de continuidad entre esas esferas tan clásicamente separadas de ‘naturaleza’ y ‘cultura’”(Masso, 2015, p. 253).
Se assumirmos que nutrir um bebê é uma responsabilidade individual (majoritariamente feminina), deixamos de olhar para o fenômeno como questão social, de saúde pública e de direitos humanos fundamentais, que certamente é. A amamentação é uma relação, um relacionamento, um diálogo íntimo e assim deve também ser vista como ato político. No filme, esse pessoal parece ser político, e o assunto ser uma questão de Saúde Pública, posto que envolve direitos trabalhistas, lutas feministas, direitos humanos, resistência ao modelo capitalista de esgotamento de recursos etc.
Esses pontos têm sido debatidos e sustentados na universidade, no interior dos feminismos e na sociedade civil espanhola. No Brasil, no entanto, esse movimento ainda parece engatinhar. Primeiro porque, desde os anos de 1980, vivemos sob a cultura do leite artificial, com forte apelo da indústria farmacêutica e de alimentos junto aos médicos e, por tabela, das mães. Essa cultura não desapareceu por completo. Bem ao contrário. Para além disso, carregamos dificuldades estruturais, de ordem econômica e social, que impedem que muitas mulheres brasileiras amamentem e/ou se mobilizem por isso, tais como: jornadas de trabalho, tempo de deslocamento, ausência de creches e famílias monoparentais chefiadas por mulheres que precisam deixar suas casas para obterem o sustento. De outro lado, também o próprio feminismo aqui negou e ainda nega a amamentação como algo político e libertário, já que – bem ao contrário – a vê como limitação de movimentação e expropriação do corpo da mulher. Enfim, as preocupações das muitas das mulheres brasileiras são urgências para sobrevivência. De peito aberto inova então em temas pouco explorados e ofuscados na realidade brasileira: o desejo de amamentar que as mulheres carregam; a desigualdade racial e econômica que compõe sua prática; as ações médicas que as desencorajam; o pessimismo social com relação ao corpo feminino; o descompromisso com a saúde do bebê e da mãe; e a inobservância aos seus direitos sexuais e reprodutivos.
Por fim, vale ressaltar que o filme explora a diversidade de mulheres e suas histórias, mas ainda assim não aborda outros tantos universos, como, por exemplo, a amamentação em casos de cesarianas, desejadas ou indesejadas; das mães soropositivas; de gestações gemelares; de mães que vivem uma perda gestacional; de crianças doentes; de crianças deficientes; e em casos de mortes maternas, entre tantos outros. Espaços ainda a serem pensados pelo cinema mas também pela antropologia.
Sendo assim, se o documentário importa por essas todas razões– sociais, epistemológicas e políticas –, para a Antropologia desponta como material fértil de problematização de ideias de parentesco, ancorados e sustentados pela transmissão do leite; de noções de corpo feminino como potência e/ou como falibilidade, quando não/se estabelece o aleitamento; de ideias de natureza/cultura, quando aleitar parece ser natural e inato, mas se desenha como algo com vida social; da leitura interseccional como olhar que compreende um ato fisiológico atravessado pela raça, classe e sexualidade.
A lactação pode interessar para a antropologia pensar modelos de Estado, de história, de políticas de saúde e de leituras de corpo e pessoa. De peito aberto nos brinda ainda com o debate sobre intergeracionalidade, ciclos de vida e práticas de cuidado; bem como sobre as relações sociais tecidas contemporaneamente sobre medicina e governos – todos temas e assuntos abordados pela antropologia atual. E por último, ao desalojar das mulheres a responsabilidade de amamentar –pautando a noção de rede ou sistema nesse processo –, nos projeta para comensalidade e os seus tabus. Enfim, por tudo isso, o documentário pode interessar às antropólogas e aos antropólogos atraídos pela vida social dos atos, objetos e relações, sobretudo, a partir das relações de gênero, e instigá-los.
Referências
MASSO, Ester. Por una etnografia lactivista: la dignidad lactante a través de deseos y políticas. Revista de Antropología Iberoamericana, v. 2, n. 10, p. 231-257, 2015.
ROBAYO, Margarita Garcia Leite. Nota sobre uma cruzada pessoal. Revista Piauí, n. 98, 2014. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/leite/. Acesso em: 17 nov. 2019.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993. p. 46-56.